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Da utilidade da filosofia para a vida. Antonio Edmilson Paschoal Os gregos também filosofaram como homens da cultura e com os fins da cultura e, por isso, não tiveram de se dar ao trabalho de voltar a inventar os elementos da filosofia e da ciência, por causa de qualquer arrogância autóctone; antes, pelo contrário, começaram logo a completar, a aumentar, a elevar e a purificar esses elementos transmitidos, de tal maneira que, a partir de então, tornaram-se inventores, num sentido mais elevado e numa esfera mais pura. Friedrich Nietzsche Introdução Algumas questões não podem deixar de ser consideradas quando se coloca em discussão o ensino da filosofia, entre elas a da suposta oposição entre ensinar filosofia e ensinar a filosofar, que pode ser entendida também como uma dissociação entre o exercício da filosofia e o recurso à tradição expressa na história da filosofia. Esta questão, embora já tenha recebido as mais diferentes proposições de solução, continua “dando o que pensar”, 1 como se pode notar pela sua presença nos debates surgidos em função das reflexões promovidas pela Diretoria de Ensino Médio do MEC Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR. 1 Assim como ocorre com outras questões como, por exemplo, “o que é filosofia?” o fato de essa já ter sido amplamente discutida não elimina o seu vigor. Da mesma forma, o fato de a caracterizarmos como uma “suposta” oposição, não a desqualifica enquanto um tema a ser considerado quando se tem em vista o ensino da filosofia.

2 - Da Utilidade Da Filosofia Para a Vida - Edmilson

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Uma obra prática que visa facilitar o estudo da filosofia para quem está começando no pensamento apodítico.

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Da utilidade da filosofia para a vida

Da utilidade da filosofia para a vida.

Antonio Edmilson Paschoal(Os gregos tambm filosofaram como homens da cultura e com os fins da cultura e, por isso, no tiveram de se dar ao trabalho de voltar a inventar os elementos da filosofia e da cincia, por causa de qualquer arrogncia autctone; antes, pelo contrrio, comearam logo a completar, a aumentar, a elevar e a purificar esses elementos transmitidos, de tal maneira que, s a partir de ento, tornaram-se inventores, num sentido mais elevado e numa esfera mais pura.

Friedrich Nietzsche

Introduo

Algumas questes no podem deixar de ser consideradas quando se coloca em discusso o ensino da filosofia, entre elas a da suposta oposio entre ensinar filosofia e ensinar a filosofar, que pode ser entendida tambm como uma dissociao entre o exerccio da filosofia e o recurso tradio expressa na histria da filosofia. Esta questo, embora j tenha recebido as mais diferentes proposies de soluo, continua dando o que pensar, como se pode notar pela sua presena nos debates surgidos em funo das reflexes promovidas pela Diretoria de Ensino Mdio do MEC nos anos de 2004 e 2005, em torno dos Parmetros Curriculares Nacionais para o ensino de filosofia no ensino mdio (PCNEM), na elaborao das Orientaes Curriculares do Ensino Mdio (OCEM), e em uma srie de eventos que surgem em funo do retorno da filosofia como disciplina obrigatria no ensino mdio, promulgado pelo Conselho Nacional de Educao em junho de 2006.

No contexto daquelas reflexes, tal questo apareceu pela primeira vez nos Subsdios produzidos com o intuito de apoiar os debates sobre a disciplina de filosofia nos seminrios, e ganhou uma verso mais acabada na anlise crtica dos PCNEM denominada Orientaes Curriculares do Ensino Mdio, nas quais, o posicionamento assumido pode ser sintetizado nos seguintes termos: uma falsa aporia aquela que ope ensinar filosofia por um lado e ensinar a filosofar por outro, contrapondo uma suposta prtica do filosofar tradio filosfica.

Nas Orientaes encontra-se claramente a idia de que uma certa dicotomia muito citada entre aprender filosofia e aprender a filosofar pode ter um papel enganador, (OCEM, p. 32) no sentido de que dificilmente se produz filosofia desconsiderando-se a sua histria, uma vez que a partir de seu legado prprio, com uma tradio que se apresenta na forma amplamente conhecida como Histria da Filosofia, que a Filosofia pode propor-se ao dilogo com outras reas do conhecimento e oferecer uma contribuio peculiar na formao do educando. (OCEM, p. 27)

A procura por uma caracterizao da filosofia ou filosofias e tambm por uma forma de filosofar, ou formas, independentemente do contedo em questo, assim como a busca pelas peculiaridades da filosofia, no intuito de permitir seu dilogo com outras reas do conhecimento ou de promover a formao do educando, tm seu ponto de chegada na tradio filosfica que se apresenta, via de regra, com uma histria da filosofia. Nela o pesquisador encontrar uma tal variedade e riqueza de respostas, que dificilmente no considerar o suporte que tal legado pode significar para a produo de um pensamento independente e inovador.

Desta forma, ressalta-se a interligao entre ensinar a histria da filosofia e ensinar a filosofar, pois o cultivo da filosofia, naquilo que sua especificidade, se faz por meio de um enraizamento em seu solo, no seu legado prprio, que no tomado apenas como um celeiro de idias, um conjunto de exemplos do modus operandis do filosofar, ou ainda como uma fonte inspiradora para se pensar questes prprias atualidade, mas como um palco de debates sobre temas essenciais ao homem de todos os tempos e especialmente de hoje, quando possvel acessar toda aquela riqueza e todo o alcance ao qual tais questes j foram elevadas. Um palco no qual se apresenta, nas formas mais variadas, o desejo tirnico de domnio de cada filosofia em particular, a vontade que cada uma possui de fazer valer a sua perspectiva e, a despeito das demais, apresentar uma interpretao prpria e abrangente do todo. Neste palco, o estudante no apenas busca alguma informao, mas toma parte em debates abertos e sempre inacabados, o que, no se pode negar, j uma forma privilegiada de ensinar a filosofar.

Assim, acompanhando o esprito das Orientaes Curriculares, pretendemos chamar a ateno para o fato de que a filosofia no constitui um conhecimento autctone, mas um cuja elaborao ocorre, preferencialmente, por meio de uma retomada de questes j elencadas na tradio filosfica, s quais se pode complementar, ampliar ou mudar, conferindo a elas uma utilidade para a vida que as distancia de um pequeno luxo, um saber suprfluo que venha a acrescentar noes aparentemente requintadas a saberes outros, os verdadeiramente teis. (OCEM, p. 17)

Para esta abordagem, tomaremos como referncia alguns escritos de Friedrich Nietzsche, nos quais se encontra uma interessante contribuio para a forma como aquele debate aparece no documento das Orientaes Curriculares, proposto pelo MEC para o ensino mdio. Deste modo pretendemos expor uma hiptese de trabalho: ensina-se a filosofar, ensinando-se a filosofia. Ao mesmo tempo em que pretendemos experiment-la, pois retomaremos textos de um filsofo do sculo XIX, conquanto, a histria da filosofia, para abordarmos uma questo que j foi tomada em diferentes momentos, a partir de diferentes perspectivas e que continua suscitando debates ainda hoje. Se este no o nico mtodo disponvel para tal ensino, pode-se afirmar que ele o melhor. Ao menos se for considerada, por exemplo, a experincia dos gregos que, longe de qualquer arrogncia autctone, souberam constituir o seu esprito filosfico a partir da contribuio recebida das grandes culturas que os antecederam.

Filisteus da cultura

No ano de 1873 Nietzsche trabalha em dois textos que, tomados conjuntamente, oferecem um bom exemplo de uma crtica cultura de seu tempo como exerccio filosfico apoiado em um consistente olhar para o passado. O primeiro deles A filosofia na poca trgica dos gregos, cujas anotaes tm incio um ano antes e que no levado a pblico pelo autor, e o segundo David Strauss, o confessor e o escritor, elaborado e levado a pblico no ano de 1873, abrindo a coletnea intitulada Consideraes extemporneas. No primeiro, Nietzsche apresenta um estudo sobre a filosofia pr-socrtica, contrapondo a forma como os gregos se relacionam com os saberes apropriados por eles ao modo como os homens letrados de sua poca, sculo XIX, apoderam-se da cultura em geral e da filosofia em particular. No segundo livro, tomando a figura de David Strauss como uma lente de aumento para tornar visvel um estado de misria geral, porm dissimulado, (EH, Por que sou to Sbio, 8) Nietzsche desdobra aquela sua crtica cultura, especialmente por meio de duas frmulas extremamente provocadoras, a saber, cultura de jornaleiros e filisteus da cultura. A primeira, utilizada para designar a banalizao qual estava submetida a cultura em seu tempo, vtima da superficialidade e do embotamento tpico de um perodo em que, segundo ele, no se tinha a preocupao com esprito alemo, mas com o imprio alemo. E a segunda para referir-se os intelectuais, aos homens letrados de ento que produziam tal cultura e se identificavam com ela. Tal crtica, tendo como contraponto o modo como os gregos se relacionam com os conhecimentos colocados sua disposio para produzirem o seu esprito filosfico, oferece um interessante parmetro para analisar a os limites impostos ao pensar filosfico, tanto pela erudio vazia quanto pela banalizao da cultura. O que constitui, conforme veremos, duas faces de um mesmo problema.

Ao referir-se sua poca, Nietzsche afirma que nela todo filosofar restringido a uma aparncia de erudio. (FTG, 2) Para o filsofo, tal modo de se relacionar com a filosofia acaba por suscitar questionamentos acerca da prpria razo de ser da filosofia: sem um motivo para continuar existindo, ela seria simplesmente rejeitada, ou, no mnimo, tomada como um adorno, um adereo, algo suprfluo para ser desfrutada por aqueles que nada mais teriam a fazer do que filosofar. No entanto, se isto ocorre porque, segundo Nietzsche, no se cumpre a lei da filosofia em si, que viver filosoficamente, (FTG, 2) motivo pelo qual, em tal contexto, ela vagueia por um solo estranho, precisando esconder-se como uma pecadora ou uma profetiza.

Segundo Nietzsche, conferir filosofia o status de excentricidade prprio de uma poca que pretende apresentar traos de uma cultura geral, quando na verdade no possui cultura nenhuma, (FTG, 2) ou, em outros termos, possui uma cultura de jornaleiros.

O termo cultura de jornaleiros utilizado pelo filsofo para exprimir a vulgaridade que tomava conta dos meios acadmicos na Alemanha daquele perodo. O lixo cultural, caracterizado pela falta de unidade de estilo e de um carter prprio da cultua alem de ento, se faz representar, segundo Nietzsche, pelo livro de Strauss intitulado A velha e a nova f, no qual a coeso lgica cede lugar s palavras de efeito e o cuidado coma lngua cede terreno para os neologismos de mau gosto. Contudo, a despeito de sua fragilidade em termos de argumentao e de escrita, esse livro tem plena aceitao na Alemanha, com seis edies em pouco mais de um ano aps seu lanamento.

Um fenmeno que se explica, segundo Nietzsche, pelo fato de tal escritor encontrar muitos aparentados entre os homens de cultura daquela poca, os quais compartilhavam com Strauss tanto o ufanismo pela vitria na guerra franco-prussiana de 1870, seguida pela instalao do Imprio Alemo por Bismarck em 1871, quanto a sua percepo otimista do mundo, advinda dos progressos da cincia e de uma concepo mecanicista de mundo que no deixava lugar para grandes questionamentos acerca de quem o homem ou qual seria o seu destino, uma vez que tal destino, passivo de ser apreendido pela razo, j estaria traado, deixando antever um futuro feliz para o homem. O que significa, em termos filosficos, a banalizao do problema do homem.

Neste ambiente no de se estranhar que os homens se apropriem tambm da filosofia como um adorno, um luxo para poucos que podem pagar por ela, assim como podem pagar pela arte e tambm por outros elementos da cultura, que so tomados por eles para seu usufruto e passatempo, como se toda aquela tradio e cultura tivessem sido feitas para seu deleite. Tais homens so designados por Nietzsche por meio da expresso filisteus da cultura (Bildungsphilister).

O termo filisteu, utilizado aqui, no entanto, no remete ao povo indo-europeu que na poca de Ramss III (1194-1163) se fixou na regio da palestina e fundou vrias cidades (a cidade de Gaza conhecida ainda hoje) e que rivalizou com os antigos hebreus pelo domnio na regio. Trata-se, antes, de uma utilizao pejorativa do termo, cunhada por seus antigos inimigos, os judeus, e usual no sculo XIX. A palavra filisteu traduz, em tal contexto, a caricatura daquele homem de pouca cultura, especialmente sem capacidade para apreciar as artes e que apresenta um cdigo moral restritivo. Ela designa, ademais, uma pessoa sem qualquer propsito mais elevado para a existncia e que estabelece como finalidade ltima para si um estilo de vida burguesa, na qual predomine o conforto e os prazeres moderados e da qual se possa eliminar o sofrimento, evitando-se para isto, como uma primeira medida, o reconhecimento do carter trgico e contraditrio da vida. Por fim, um modo de existir que no coloca em questo a prpria vida.

Segundo Nietzsche, o termo filisteus da cultura tomado da vida estudantil e utilizado em seu sentido mais amplo, isto mais popular, em contraposio aos filhos das musas, aos artistas, aos autnticos homens da cultura. (CE I, 2) Nas palavras de Charles Andler, nos meios universitrios, depois do sculo XVIII, denomina-se filisteu o burgus submetido s leis, devotado aos afazeres, e que no consente para si a agradvel liberdade de estudante. O filisteu da cultura, embora acredite ser homem de cultura, ele , segundo Nietzsche, o oposto aos autnticos homens da cultura. (CE I, 2) Numa sociedade de filisteus, espera-se dos homens de cultura apenas coisas superficiais que no venham a alterar a situao de comodidade alcanada pelos prprios filisteus. Por exemplo, aos artistas so permitidas apenas duas coisas: ou a imitao da realidade, levada a cabo em idlios ou suaves stiras humorsticas, ou a realizao de cpias livres das obras mais reconhecidas e famosas dos clssicos, mesmo que seja com vergonhosas concesses ao gosto prprio da poca. (CE I, 2)

Tal forma de se relacionar com a filosofia, com a arte e com a cultura em geral desconsidera a vida e os paradoxos e contradies que so inerentes a ela. Deixa de lado, portanto, o que torna o homem um animal interessante, preferindo ocupar-se de afazeres prticos, indispensveis, ao certo, porm, aos quais no se pode reduzir o homem.

Aprendendo com os vizinhos

Segundo Nietzsche, tambm os gregos, como homens do conhecimento, no tiveram de inventar os elementos bsicos da filosofia. Eles se apropriaram de conhecimentos anteriormente elaborados, conferindo-lhes, no entanto, um tal significado que se tornaria uma tarefa dispensvel ocupar-se deles em algum momento anterior a essa apropriao, por mais que culturas anteriores tenham sido seu solo de nascimento e possam reivindicar o carter de originalidade em relao a eles.

Em contraposio forma como os homens cultos de seu tempo se apropriam dos elementos da cultura, Nietzsche afirma: (os gregos( so admirveis na arte de aprender dando frutos; e deveramos, como eles, aprender com os nossos vizinhos e utilizar os conhecimentos adquiridos como apoio para a vida e no para o conhecimento erudito, apoio a partir do qual se salta para o alto e mais alto ainda do que o vizinho. Segundo Nietzsche, os gregos aprendiam e logo queriam viver. Essa era a medida para o seu insacivel instinto de conhecimento: a considerao pela vida e a necessidade de vida ideal. (FTG, 1)

No se trata apenas de vivenciar um conhecimento numa correlao, por exemplo, entre uma teoria que se estuda e uma prtica realizada no dia-a-dia. Como se fosse uma tcnica que, uma vez aprendida, s teria finalidade quando aplicada. A compreenso da correlao entre filosofia e vida, bem como a idia de se tomar a filosofia na perspectiva da vida, requer um olhar sobre o significado do termo vida na filosofia de Nietzsche. de se notar que j nestes primeiros escritos, tem-se o que se pode chamar de um vitalismo na sua filosofia: uma afirmao da vida em oposio a tudo aquilo que, na sua perspectiva, a nega, restringe e deprecia, a tudo aquilo que, em nome da fraqueza e do medo, prope uma diminuio do carter expansivo, conquanto, paradoxal da vida. Para Nietzsche, uma vida que se afirma portanto, saudvel caracteriza-se pelo conflito, como identifica entre os gregos, que teriam na idia de agon (disputa) o fermento de sua existncia. Uma disputa qual faz referncia, por exemplo, em A filosofia na poca trgica dos gregos e tambm em A disputa de Homero.

A vida parte integrante de um mundo concebido por Nietzsche no como uma realidade (Realitt), mas uma efetividade (Wirklichkeit), (FTG, 5) ou, mais propriamente, um constante efetivar-se e diluir-se: um constante vir-a-ser, no qual toda estabilidade momentnea e provisria. Uma idia terrvel da existncia em que as individualidades emergem j condenadas a voltar, a subsumir no indeterminado.

Os gregos, segundo Nietzsche, concebiam a efetividade como um constante vir-a-ser, do indeterminado para o determinado, como concebe Anaximandro, ou apenas como indeterminao, num fluxo e refluxo, no qual nada indestrutvel, segundo Herclito. (FTG, 3 e 5) Porm, tal constatao no empurra os gregos para um pessimismo ou para uma busca por redeno da realidade numa compensao em outra existncia. Ao contrrio, eles tomam a idia de conflito, de disputa no como um empecilho, mas como a condio para a vida saudvel do indivduo e tambm do Estado. Uma fora plstica, criadora e modeladora de mundos, indivduos e estados. Isto o que se deduz, conforme aponta Nietzsche, a partir de um poema de Hesodo intitulado Os trabalhos e os dias, no qual o autor faz referncia s duas deusas ris: uma que conduz luta cruel entre os homens e que deve ser censurada; e outra que conduz a um tipo de inveja capaz de estimular os homens para o desenvolvimento de suas capacidades e para a ao da disputa e que, portanto, deve ser louvada. Enquanto a primeira pode ser notada na barbrie, a segunda pode ser verificada nas relaes dos homens entre si, na saudvel disputa entre os sofistas, professores, atletas e artesos e artistas. E de forma particular na filosofia.

Tal vida saudvel no descarta o aspecto terrvel da existncia, o qual, de resto, no poderia mesmo ser descartado, mas o toma como parte integrante, um fermento. A partir dessa concepo de vida, e tomando-se a filosofia como uma das formas mas refinadas que o homem possui de se colocar em uma disputa, uma vez que as teorias e sistemas abrangentes dos filsofos no so nada impessoais, porm, construdos com o intuito de domnio, imposio e de negao do que diferente, tem-se uma interpretao possvel do papel da filosofia e do esprito filosfico no sentido de apoio vida, ao menos na forma como os gregos o fizeram: ela permite vida desabrochar naquilo que peculiar a ela, a disputa, em graus mais elevados e refinados do que se poderia obter com qualquer outra modalidade de combate.

A idia de tomar conhecimentos no sentido de apoiar a vida, no remete, portanto, a qualquer tipo de apoio entendido como um suporte para conservar a vida, num caso extremo: para tentar manter uma vida que degenera e j se despede dela. Significa, antes, um modo, um meio para impulsionar a vida naquilo que prprio a ela, que atua ofendendo, violentando, explorando, destruindo e no pode sequer ser concebida sem esse carter. (GM II, 11) Trata-se, portanto, de um apoio para que a vida possa desabrochar em sua mxima exuberncia e contradio.

Tomar um conhecimento sob a tica da vida significa apreend-lo e us-lo como parte de uma formao que dirija o homem para alvos mais elevados. No pode ser simplesmente um meio para assegurar a reproduo de indivduos teis e preferencialmente no perigosos. Como se fosse facultado ao homem optar apenas por aquilo que, calculadamente, seria bom para ele. Isto porque no possvel retirar da vida o seu aspecto paradoxal, ficando apenas com um pedao dela supostamente mais agradvel. Tais tentativas de mutilar a vida ou outras que visam silenciar o seu lado explosivo por meio de algum sedativo que produza uma espcie de hibernao, revela um propsito daquele que fraco e debilitado pretende renunciar ao carter expansivo da vida como condio para se continuar vivendo.

Viver filosoficamente

A partir do que foi exposto pode-se apontar duas formas contrapostas de se relacionar com o legado oferecido pela filosofia: a dos gregos, que o toma os conhecimentos anteriormente dados por sua utilidade para a vida e imediatamente os vivenciam, e a dos filisteus da cultura, que os toma como um luxo, um objeto de deleite, mantendo a filosofia nos extremos do enciclopedismo e da banalizao.

Tendo em vista nossa questo inicial da suposta contraposio entre a prtica filosfica e a histria da filosofia e tomando a forma como os gregos se relacionam com conhecimentos anteriormente dados para a construo de seu esprito filosfico, possvel afirmar que o benefcio obtido por eles no o da apreenso em si, mas a utilidade que conferem ao que tomam de culturas anteriores. So meios para a vida. E o prprio esprito filosfico que constroem tambm um meio para uma vida que se afirma na disputa. Desta forma, eles justificam a filosofia e tambm o filsofo que, junto deles, no nenhum cometa. (FTG, 2)

Com os gregos se aprende que no necessrio reinventar os elementos bsicos da prtica filosfica. Aprende-se tambm que a tradio filosfica se apresenta como um palco de debates no qual as diferentes interpretaes de mundo so sempre vlidas, na medida em que possam ser apropriadas e vivenciadas. Isto porque, diferentemente do que ocorre com a cincia, em que uma verdade adquirida desqualifica a anterior e a substitui, em filosofia uma nova verdade uma nova perspectiva no exclui as anteriores, mas coloca-se em debate com elas. Por fim, aprende-se que a filosofia a forma mais refinada e sublime de disputa que o homem pode lanar mo, sendo, assim, til vida, idealizada pelos gregos e descrita por Homero na figura da boa ris.

Tomando esta interpretao, pode-se voltar ao texto das OCEM quando este prope contedos como instrumentos e o aluno como aquele que toma posio frente a diferentes perspectivas e, no limite, aprende a disputar: a educao deve centrar-se mais na idia de fornecer instrumentos e de apresentar perspectivas, enquanto caber ao estudante a possibilidade de posicionar-se e de correlacionar o quanto aprende com uma utilidade para sua vida, tendo presente que um conhecimento til no corresponde a um saber prtico e restrito, quem sabe habilidade para desenvolver certas tarefas. (OCEM, p. 28)

Por sua vez, tendo em vista novamente nossa questo, cabe ressaltar que os extremos em que o filisteu da cultura lana a filosofia um enciclopedismo por um lado e a banalizao por outro no so, de fato opostos, na medida em que possuem como ponto de interseco justamente o carter de inutilidade da filosofia. Mais ainda, possvel afirmar que tal forma de se apropriar da filosofia faz com que ela sirva para a formao daquele tipo de homem fraco e debilitado cuja vida se limita a uma preservao da vida. A superficialidade aliada promessa de conforto. A ausncia de grandes questionamentos associada promessa de no se ter grandes transtornos. Enfim, modos de se relacionar com a cultura que no colocam em risco a vida do filisteu da cultura. Em todo caso, caractersticas de momentos e culturas em que a filosofia parece ter pouco a dizer para a vida.

Tem-se assim, no tanto uma oposio entre a tradio e a prtica da filosofia, mas entre os diferentes modos de se estabelecer essa relao. Desta forma, tendo em vista no uma miragem que seria a oposio entre a filosofia e filosofar, mas a oposio entre uma cultura de filisteus, por um lado, e a experincia dos gregos, por outro, resta rejeitar aquele modo de fazer filosofia que se traduz ora como um enciclopedismo, em que o estudo da tradio seria mera repetio, ora como uma banalizao, em que a superficialidade leva a declarar tudo e qualquer coisa como sendo filosofia, e acolher a experincia que sabe olhar para o passado como fonte para a construo do prprio esprito, com a qual se cumpre a lei da filosofia em si, que viver filosoficamente.

Referncias

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NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo. Trad. Paulo Csar de Souza. So Paulo, Companhia das Letras, 1995.

OTTMANN, Henning (Hrsg.) Nietzsche Handbuch. Stuttgart/Weimar: J. B. Metzler, 2000.

( Professor do Programa de Ps-Graduao em Filosofia da PUCPR.

Assim como ocorre com outras questes como, por exemplo, o que filosofia? o fato de essa j ter sido amplamente discutida no elimina o seu vigor. Da mesma forma, o fato de a caracterizarmos como uma suposta oposio, no a desqualifica enquanto um tema a ser considerado quando se tem em vista o ensino da filosofia.

Refiro-me aos seminrios regionais e nacionais, ocorridos entre 2004 e 2005.

MEC. Orientaes curriculares do ensino mdio; volume 3; Cincias Humanas e suas tecnologias; Filosofia. Braslia, MEC, 2006, p. 13-40. Doravante citadas apenas pela sigla OCEM e o nmero da pgina.

MEC. Secretaria de Educao Bsica. Departamento de Polticas Pblicas de Ensino Mdio. Orientaes curriculares do Ensino Mdio. Subsdios para uma reflexo sobre o Ensino Mdio: Filosofia. Braslia, MEC, 2004, p. 373-400.

Faremos as citaes das obras de Nietzsche seguindo um padro estabelecido de siglas, com a indicao da parte, quando for o caso, e da seo. As obras citadas so: A filosofia na poca trgica dos gregos (FTG); David Strauss, o confessor e o escritor Considerao Extempornea I (CE I); Ecce Homo (EH); Alm de Bem e Mal (ABM); Para a genealogia da moral (GM).

ANDLER, Nietzsche, sa vie et sa pense, p. 501.

Curt Paul Janz. Friedrich Nietzsche. Erter Band. Mnchen: Carl Hanser Verlag, 1993, p. 498.

Quinto dos Cinco prefcios para cinco livros no escritos. Pequeno livro oferecido por Nietzsche como presente de aniversrio a Cosima Wagner em 24 de dezembro de 1872.

A respeito, leia-se: GUROULT, Martial. O problema da legitimidade da histria da filosofia. In: Revista de Histria (USP), So Paulo, vol. 37, n. 75, julho-setembro 1968, p. 189 211.