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Natalino da Silva de Oliveira A estética da dissimulação na literatura de Machado de Assis Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais PUC MINAS 2015

2 – Estética da Dissimulação - Portal PUC Minas · FICHA CATALOGRÁFICA ... de Língua Portuguesa ... Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas que serán analizados

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Natalino da Silva de Oliveira

A estética da dissimulação na literatura de Machado

de Assis

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

PUC MINAS

2015

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Natalino da Silva de Oliveira

A estética da dissimulação na literatura de Machado

de Assis

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Letras: Literatura de Língua Portuguesa, da

Faculdade de Letras da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais, como requisito parcial

para a obtenção do título de Doutor em Literaturas

de Língua Portuguesa.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Nazareth Soares

Fonseca

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

PUC MINAS

2015

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Oliveira, Natalino da Silva de

O49E A estética da dissimulação na literatura de Machado de Assis / Natalino da

Silva de Oliveira, Belo Horizonte, 2015.

199 f.

Orientadora: Maria Nazareth Soares Fonseca

Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Assis, Machado de, 1839-1908, Ressurreição, A mão e a luva, Helena,

Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas - Crítica e interpretação. 2.

Literatura brasileira. 3. Estética na literatura. 4. Romance brasileiro. 5. Narrativa

(Retórica). I. Fonseca, Maria Nazareth Soares. II. Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 869.0(81)-3

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Natalino da Silva de Oliveira

A estética da dissimulação na literatura de Machado

de Assis

Tese apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras: Literatura de Língua

Portuguesa, da Faculdade de Letras da

Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais, como requisito parcial para a

obtenção do título de Doutor em Literaturas

de Língua Portuguesa.

______________________________________________________________

Prof. Dra. Maria Nazareth Soares Fonseca (PUC MINAS) - Orientadora

______________________________________________

Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte (UFMG)

________________________________________

Prof. Dr. Marcos Antônio Alexandre (UFMG)

__________________________________________________

Prof. Dra. Melânia Silva de Aguiar (UFMG/PUC MINAS)

SUPLENTES:

____________________________________

Prof. Dra. Maria Zilda Cury (UFMG)

_______________________________________

Prof. Dr. Antônio Geraldo Cantarela (UFMG)

Belo Horizonte, 05 de março de 2015

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DEDICATÓRIA

Ao senhor da encruzilhada

Que se acenda uma vela

Ao senhor da encruzilhada

Para que eu enfim possa ver

Aonde me leva esta estrada

Pois, o que começa termina

Mantenha firme minha passada

Que os caminhos se abram

Com golpes de punho ou de espada

E que até no oco do mundo

Encontre minha morada (Poema de Natalino em homenagem a Exu)

A Deus e aos meus Orixás.

Dedico à Joelma, Mariana e Natalino

Minha mãe Maria, meu pai

Antônio, meu irmão Nelson,

minha avó Odila que me ensinou

o caminho do mensageiro

Dedico à Maria Nazareth Soares Fonseca

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus e aos Orixás que estão presentes em tudo que faço.

A São Jorge, a Ogum, a Oxaguiã que me guiaram e me deram força na caminhada.

À Oxum pelas minhas vestes.

Aos meus Eguns, meus ancestrais que carrego comigo nesta performance/vida.

Aos meus pais pelo apoio incondicional a tudo o que faço.

À minha companheira Joelma por me mostrar o que era realmente importante, por

incentivar-me, por amar-me.

À minha filha Mariana por alimentar minha alma, pelos abraços apertados em

momentos de dor, por seu amor incondicional.

Ao meu filho Natalino por conversar comigo.

Ao meu irmão Nelson pelo incentivo.

À Maria Nazareth Soares Fonseca por incentivar-me e por corrigir-me com elegância e

humildade sempre.

A Marcos Alexandre pela amizade e por servir de exemplo em minha caminhada.

Ao professor Audemaro pelos constantes incentivos ao meu trabalho.

Ao professor Eduardo Assis Duarte por inspirar-me a escrever esta tese.

Aos membros da banca examinadora pelas críticas, elogios e sugestões.

À minha família.

Aos amigos.

Aos membros do GEED (Grupo de Estudos em Estéticas Diaspóricas) – amigos que me

acompanharam em minha defesa.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras PUC Minas.

Aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Letras PUC Minas.

À Berenice e Rosária pelo auxílio nos incontornáveis procedimentos burocráticos do

meio acadêmico.

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RESUMO

O objetivo desta tese é discutir o conceito de Estética da dissimulação que é proposto

como ferramenta teórica para a análise da literatura de Machado de Assis. O estudo

abordará com maior atenção a obra narrativa do autor, particularmente os romances:

Ressurreição, A mão e a luva, Helena, Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás

Cubas, os quais serão investigados a partir da provocação do texto de Spivak “Pode o

subalterno falar?” que encaminhará a discussão de perspectivas estéticas dissimuladoras

e de subterfúgios textuais utilizados pelo escritor para dar voz aos indivíduos em

situação de subalternidade. Na análise dos romances de Machado de Assis, com o

auxílio de fundamentação teórica apropriada, serão discutidos episódios e situações que

embasem a defesa de que, na obra do escritor brasileiro, é possível perceber um viés

estético que se apropria da dissimulação para propiciar o afloramento de vozes

subalternas.

Palavras-chave: Literatura, Machado de Assis, Estética da dissimulação,

Subalternidade, Narrativa.

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RESUMEN

El objetivo de esta tesis es trabajar con el concepto de Estética de la disimulación que

es propuesto como herramienta teórica para el análisis de la literatura de Machado de

Assis. El estudio abordará con más atención la obra narrativa del autor, en especial las

novelas: Ressurreição, A mão e a luva, Helena, Dom Casmurro e Memórias Póstumas

de Brás Cubas que serán analizados partiendo de la provocación del texto de Spivak

“Pode o subalterno falar?” que propiciará la discusión de perspectivas estéticas

disimuladoras y de subterfugios utilizados por el escritor para dar voz a los individuos

en situación de subordinación. En el análisis de las novelas de Machado de Assis, con la

ayuda de la fundamentación teórica apropiada, serán discutidas escenas y situaciones

que embacen la defensa de que, en la obra del escritor brasileño, es posible percibir una

perspectiva estética que se apropie de la disimulación para provocar el afloramiento de

voces subordinadas.

Palabras-clave: Literatura, Machado de Assis, Estética de la disimulación,

Subordinación, Narrativa.

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Sumário

INTRODUÇÃO ...................................................................................... ......10

Reflexões sobre o conceito de Estética ............................................................. 18

O olhar exterior e a necessidade de se repensar a estética .............................. 35

Estética da dissimulação ................................................................................. 37

O cuidado de si ou a arte da existência ........................................................ 49

A voz subalterna ....................................................................................... 54

Estratégias de dissimulação: literatura brasileira e literatura afrodescendente ..... 62

Machado de Assis: cinismo, ironia, sarcasmo e dissimulação ............................ 67

As estratégias do caramujo ......................................................................... 82

A subalternidade e suas peculiaridades nas personagens machadianas ............... 90

Ressurreição ............................................................................................. 94

Dom Casmurro ....................................................................................... 118

Espelhos: o calculismo em A mão e a luva e Helena ......................................... 136

Belas e viçosas, mas em vaso de Sèvres ...................................................... 138

INCLASSIFICÁVEL ................................................................................ 150

O espelho quebrado ................................................................................ 155

Brás Cubas e o riso irônico ....................................................................... 168

Prudêncio: o simulador ............................................................................. 177

É bem, e o resto? ....................................................................................... 184

Referências ................................................................................................ 193

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Introdução

Talvez a fala, a comunicação, estejam apodrecidas. Estão inteiramente

penetradas pelo dinheiro: não por acidente, mas por natureza. É preciso um

desvio da fala. Criar foi sempre coisa distinta de comunicar. O importante

talvez venha a ser criar vacúolos de não-comunicação, interruptores, para

escapar ao controle. (DELEUZE, 2010, p.221)

A grande questão proposta pela tese está relacionada à linguagem e à língua em

seu sentido mais amplo. Pergunta-se, desde o início, sobre o que é preciso para que

indivíduos, colocados em situação de subalternidade, possuam suas próprias vozes ou

que possam se apropriar deste recurso que deveria ser condição de existência de

qualquer ser humano? Que condições sociais e culturais legitimam o direito à voz, à

palavra? O que é a voz? Que condições legitimam ter voz ou não ter voz? E como a

literatura encena a questão?

Pensar a língua, pensar a voz é refletir sobre identidades, subjetividades e sobre

as possibilidades de ser. É pensar também no que faz com que o subalterno perca a sua

capacidade de fala, porque, embora tenha sua própria língua, não tem direito a utilizá-la

em todas as demandas sociais. Como exercer o poder da fala se sua cultura é

desvalorizada? Neste cenário, configura-se um espaço marcado pela existência de dois

tipos de indivíduos: um que é sujeito e outro que é sujeitado. Ser desprovido de sua

própria voz é a maior violência que pode ser exercida para com o outro, pois, em

situação de opressão não há lugar para que “cada indivíduo, como ser único e distinto,

apareça e confirme-se no discurso e na ação” (ARENDT, 2001, p. 220).

É procurando pensar nessa voz emudecida, encenada pela ficção literária, que

esta tese buscará investigar as condições de enunciação do subalterno e os meios

empregados por ele para sobreviver e manterem suas identidades em situações extremas

e até mesmo desumanas. Esta estratégia é o que nesta pesquisa denominaremos estética

da dissimulação que compreende um conjunto de subterfúgios apropriados para que os

indivíduos sujeitados possam assumir, ainda que por artifícios de natureza estética, suas

subjetividades, suas culturas e suas línguas1.

1 O termo “língua” está sendo utilizado de forma abrangente para compreender elementos dos campos

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A estética da dissimulação toma por base as discussões propostas por Eduardo

de Assis Duarte (2005, 2007), nas quais a expressão poética da dissimulação encaminha

novos pontos de vista sobre a obra de Machado de Assis, a partir do conceito de

afrodescendência. Apropriei-me de muitas das ideias do estudioso que me ajudaram a

pensar na situação dos subalternos na obra de Machado de Assis. Às considerações de

Duarte foram se agregando as reflexões de Octavio Paz (2000) e seus estudos sobre as

máscaras mexicanas, as elucubrações de Roberto Fernández Retamar (2005 [1971]) e

sua análise da personagem Caliban de Shakespeare. Somados a estes pensadores foram

conclamados outros, particularmente os que constroem teorizações sobre a

subalternidade, sobre o direito à voz, como Gayatri Chakravorty Spivak (1988) e Hugo

Achugar (2006).

A proposta de uma estética representada pela atitude dissimuladora é aqui

apresentada como posição alternativa à estética hegemônica, configurada por expressões

artísticas valorizadas pela elite e pelo que vem sendo legitimado em arte e em literatura

como um cânone europeu. A estética da dissimulação é pensada como um recurso

ideológico e estratégico utilizado por sujeitos “subalternos” para propiciar a expansão

de suas vozes. Retoma-se uma discussão sobre a noção de estética, tanto a apresentada a

partir de uma visão universalizante e europeizante, sempre com referência a cânones

artísticos e literários europeus, quanto a que defende a possibilidade de serem

consideradas expressões artísticas de culturas que não ocupam o espaço geográfico da

Europa, ainda que a análise dessa produção, por vezes, se utilize de recursos analíticos

legitimados como Ocidentais.

A questão crucial ao pensamento de Spivak, exposta no texto, “Pode o

subalterno falar?” é também proposta por Hugo Achugar, ensaísta uruguaio, quando,

fazendo eco à pergunta da teórica indiana, indaga se “Podem os bárbaros latino-

americanos, falar, teorizar?" (ACHUGAR, 2006, p. 43). Respondendo à pergunta, o

teórico uruguaio apresenta outras interrogações: “(...) Existe somente uma forma de

teorizar? Eu tenho, apesar de bárbaro, o direito ao meu próprio discurso?” (ACHUGAR,

2006, p. 43). Retomo as questões de Spivak ao analisar o indivíduo subalterno e recorro

linguísticos, sociológicos e culturais.

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a Achugar para pensar também como estas questões e suas possíveis respostas poderiam

estar presentes na literatura machadiana, quando abordada pela perspectiva da estética

da dissimulação.

Achugar recorre à reflexão sobre o conceito de subalternidade desenvolvido por

Spivak para pensar a situação do latino-americano e sua relação com outros países da

Europa ou da América do Norte no que diz respeito ao desenvolvimento de um

pensamento próprio da América Latina. O ensaísta uruguaio questiona: “Qual é a língua

do discurso latino-americano elaborado na América Latina? É uma língua maior ou

menor? É um discurso minoritário ou maior? É obvio que há mais de um discurso e

mais de uma língua na América Latina” (ACHUGAR, 2006, p. 35). Se Achugar reflete

sobre a possibilidade do discurso latino-americano ser considerado uma língua menor,

porque é construído pelo indivíduo em situação de subalternidade e sujeitado aos

desmandos da elite, a situação permite a ele interrogar se, nessa situação concreta de

produção, esse discurso seria ainda menor ou simplesmente não existiria. Aprofundando

um pouco mais as reflexões de Achugar, este trabalho defende a possibilidade de

alternativas. Uma das saídas seria propiciada pela arte e pela literatura que se nutrem da

estética da dissimulação, surgindo como uma das formas de discursos balbuciantes de

que trata Hugo Achugar:

O balbucio é nosso orgulho, nosso capital cultural, nosso discurso raro, nosso

discurso queer. O orgulho daqueles raros que, supostamente, não têm boca

como os planetas de Lacan e, portanto, carecem de discurso. Ou, seguindo

alguns, pior ainda, pois falam ou produzem um discurso antigo, nativo,

criollo, moderno, imitativo, derivado, carente de valor. (ACHUGAR, 2006,

p. 14)

É nesse sentido que a epígrafe de Deleuze, escolhida para figurar no início desta

Introdução, pode ser vista em estreita relação com o conceito de estética da

dissimulação que sustentará as discussões teóricas e as análises literárias encaminhadas

por esta tese. O conceito de estética da dissimulação é proposto como um desvio

caracterizado por transgressões, por tessituras escorregadias e, mais concretamente, por

construções irônicas e intertextuais que se apropriam livremente de um processo que

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vem sendo chamado por vários teóricos de canibalização2.

A palavra canibal, como se sabe, está carregada de significações construídas

pelas diversas formas culturais de compreensão do outro. A primeira utilização do

vocábulo é atribuída a Cristovão Colombo e está presente em seu Diário de navegação3.

A palavra já é empregada como maneira de nomear o outro – um europeu nomeando os

índios caraíbas ou caribes, povos indígenas das Pequenas Antilhas que lutaram

bravamente contra a dominação imposta pelo grupo dos colonizadores. Há indícios de

que os caribes praticavam o canibalismo como ritual de guerra e com o objetivo de

absorver dos guerreiros inimigos características importantes para o guerreiro vitorioso.

Deste primeiro momento, é necessário saltar para a menção do termo caliban

(transliteração da palavra canibal) que surge na obra de Shakespeare A tempestade.

Caliban é apresentado como um selvagem escravo de Próspero. Ele é o oposto de Ariel,

outro servo de Próspero. Enquanto Ariel aprende os costumes de seu senhor, Caliban

preserva sua identidade primitiva e instintiva. Conforme esclarece Felipe Gomez, o

termo caliban foi empregado como conceito por muitos intelectuais, tais como “Renan

(1878), Groussac (1898) e Rodó (1900), e dele derivam os sentidos construídos pela

expressão “canibalismo cultural”, proposta por Oswald de Andrade e o modernismo

brasileiro, e por intelectuais como Césaire, Brathwaite e Fernandez Retamar”4

(GOMEZ, 2007, p. 125).

Este trabalho encontra nas reflexões de Retamar o porto mais seguro para

abordar este personagem-conceito ou conceito-metáfora, para utilizar os próprios termos

que ele cria. Assumir uma postura canibal diante da criação estética é, de acordo com

Retamar: “Assumir nossa condição de Caliban”, “(...) repensar nossa história a partir de

2 De acordo com José Jorge de Carvalho (2010), a canibalização tem sido concebida de diferentes modos:

a) O canibal devora o que alimenta e não está interessado com a comunidade do ser devorado; b) A

canibalização é uma forma de manter vivo (dentro das entranhas do canibal) o que foi devorado; c)

Canibalismo como incorporação ou re-contextualização, ressignificando o que foi devorado com o

objetivo de dar-lhe mais prestígio; d) O quarto e último tipo é o que mais se adequa à proposta aqui

defendida, ele ocorre quando há uma metamorfose antropofágica e o canibal passa a utilizar a pele do ser

devorado, apropriando-se de seus traços e passando até mesmo a assumir o papel do outro (passa a

performar o outro).

3 COLÓN, C. Diario de Colón. Gregorio Marañón, Madrid: Cultura Hispánica, 1968. 4 “(…) Renán (1878), Groussac (1898) y Rodó (1900), así como al canibalismo cultural propuesto

por Oswald de Andrade y el modernismo brasileño, y a intelectuales caribeños como Césaire, Brathwaite

y Fernández Retamar”.

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outro lado, a partir de outro protagonista” (Retamar, 2005 [1971], p. 37)5. É crucial

compreender que a metáfora continua viva, pungente e que, como afirma o teórico

cubano:

Nosso símbolo não é, pois Ariel, tal como pensou Rodó, mas Caliban. Isto é

algo que vemos com particular nitidez os mestiços que habitamos estas

mesmas ilhas onde viveu Caliban: Próspero invadiu as ilhas, matou a nossos

ancestrais, escravizou Caliban e o ensinou seu idioma para entender-se com

ele: Que outra coisa poderia fazer Caliban que não fosse utilizar esse mesmo

idioma para maldizer, para desejar que caísse sobre ele a “terrível praga”?

Não conheço outra metáfora mais correta para aludir a nossa situação

cultural, a nossa realidade. (Retamar, 2005 [1971], p. 33-34)6

Este é o desvio que este trabalho almeja perseguir, o mesmo encontrado por

Caliban/canibal/caraíba para enfrentar as imposições de Próspero. O ancestral que se

procura defender nesta tese é o mesmo defendido por Retamar: o rude, instintivo e

guerreiro Caliban e não o refinado Ariel. Por mais que Ariel absorva os conhecimentos

de Próspero, ele sempre será o outro, mas jamais será o protagonista de sua própria

história. Assumir a postura estética canibal é, portanto, agir como Caliban estabelecendo

um posicionamento desviante diante de outras ideias prósperas.

As antigas separações de escritores e obras por “escolas literárias” ou as que

defendiam formas e organizações do fazer artístico levavam em consideração,

sobretudo, as estéticas europeias. Elas legitimavam sua adequação para abranger, com

tranquilidade, todos os pressupostos artísticos, todas as realidades culturais e as

manifestações artísticas de diferentes espaços, ainda que deixando um enorme grupo de

manifestações estéticas à margem. O advento de tendências voltadas à compreensão de

manifestações artísticas desviantes que se valem de novas estratégias, como a proposta

neste trabalho, proporcionará repensar a organização canônica tradicional deixando

visível a necessidade de reformular a recepção crítica dos objetos artísticos.

5 “Asumir nuestra condición de Caliban”, “(…) repensar nuestra historia desde el otro lado, desde

el otro protagonista”. 6 “Nuestro símbolo no es pues Ariel, como pensó Rodó, sino Caliban. Esto es algo que vemos con

particular nitidez los mestizos que habitamos estas mismas islas donde vivió Caliban: Próspero invadió

las islas, mató a nuestros ancestros, esclavizó a Caliban y le enseñó su idioma para entenderse con él:

¿Qué otra cosa puede hacer Caliban sino utilizar ese mismo idioma para maldecir, para desear que caiga

sobre él la «roja plaga»? No conozco otra metáfora más acertada de nuestra situación cultural, de nuestra

realidad”.

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O direcionamento estético com o qual esta tese buscará uma aproximação não

surge, contudo, somente de um posicionamento estilístico e sim de uma necessidade que

não se localiza apenas no fazer artístico. Há de se ter em mente que a dissimulação foi

(e em alguns casos ainda é) uma forma de sobrevivência e fora apresentada, na arte,

como forma do indivíduo manifestar sua real existência. A voz dos atores subalternos

somente se tornou possível com o desvio da fala com objetivo de fugir do controle. Este

desvio no texto machadiano estaria marcado pelo uso da ironia, ambiguidades e por

negaças que dão ao texto uma feição e sentidos escorregadios (tal como será

demonstrado nas páginas que seguem).

A proposta empreendida nesta tese é a de ler a contrapelo a reflexão estética a

partir do ponto de vista de questões e indagações que vêm sendo propostas pelos

Estudos subalternos (como mencionarei e explicitarei posteriormente). Contudo, não

almejo aqui formular um conceito que signifique uma oposição a posturas canônicas

com relação ao estético, mas, sim, como uma expressão que se caracteriza pela abertura

necessária para reler os autores contemporâneos, os que foram marginalizados e até

mesmo os que são considerados cânones, tal como Machado de Assis – corpus eleito

por esta tese.

Machado de Assis será apresentado nesta pesquisa como um motivador das

formulações teóricas que estruturam a argumentação desta tese. Não poderia ser outro o

motivo da escolha, posto que todos os argumentos que serão apresentados surgem da

leitura de suas crônicas, contos, poesias, romances, bem como de artigos e análises

desses textos. Para apresentar a visão analítica das estratégias de dissimulação utilizadas

por Machado de Assis, será prudente refazer, ainda que de forma resumida, o caminho

estético traçado por filósofos e estudiosos que ajudam a melhor compreender a urgência

de novas estéticas, ainda que seja necessário reconhecer que já existiam, nas propostas

tradicionais, aberturas para as perspectivas estéticas mais atuais. Também será

importante demonstrar que os procedimentos de análise que se baseiam em

determinações estéticas mais tradicionais não satisfazem de forma plena as expressões

estéticas que fogem destes modelos e que apresentam propostas desviantes.

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Retornando à citação que inicia esta introdução, há nela um impulso ao desvio,

algo que também é possível encontrar no conceito-metáfora Caliban, de Retamar e que

estará presente no decorrer desta tese como um eco. Expressões estéticas caracterizadas

pelo desvio serão cruciais para repensar a participação de indivíduos em situações de

subalternidade como personagens ou como autores. Os subalternos foram e são

caracterizados, na maioria das abordagens, como incapazes de se apropriarem da fala.

Partindo desta premissa, buscar-se-á até mesmo refletir sobre o silêncio como uma

realidade ambígua, ou seja, ao mesmo tempo em que é imposto, serve também como

malícia para escapar do controle. Buscando o desvio caracterizado por uma voz

subalterna audível, a estética da dissimulação, aqui proposta, se configura. Porém, esta

perspectiva estética não surge separada das demais; por sua natureza dissimulada, ela se

apropria de outras linguagens mais tradicionais para se fortalecer e tornar-se voz.

É pertinente esclarecer que o projeto inicial de tese se configurava pela tentativa

de levar a cabo o estudo sistemático e exaustivo de toda a literatura machadiana.

Contudo, estudos posteriores revelaram a impossibilidade de realização desta

empreitada no espaço de tempo em que está compreendido o doutorado. Porém, ainda

assim, a leitura da obra completa de Machado de Assis possibilitou a estruturação dos

capítulos que compõem a tese.

O primeiro capítulo se configura como uma revisão da bibliografia relacionada

aos estudos de estética tradicional, passando por Aristóteles e as primeiras reflexões

sobre arte e a mimese, por Kant e todo o trabalho filosófico desenvolvido para defender

a subjetividade do juízo estético e por outros filósofos. Diferentes perspectivas teóricas

constroem, no primeiro capítulo, um percurso que procura alcançar os estudos de

reciclagem cultural, presente nos trabalhos de Klucinskas & Moser (2007). Refletir

sobre os estudos do juízo do gosto auxiliam pensar a estética da dissimulação. Esta

perspectiva surge da necessidade de encontrar saídas para um balbucio, uma voz

subalterna através de uma reflexão que utiliza os textos de Deleuze (1987, 2010),

Spivak (1988) e Achugar (2006).

O segundo capítulo é motivado por reflexões sobre as manifestações da voz

caracterizada pela subalternidade, pontuadas por cenas e aspectos do texto machadiano,

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muitas vezes retomando perspectivas apontadas por leituras críticas do texto do escritor

como as de Mário de Andrade (1972), Araripe Júnior (1895), Magalhães Júnior (1957,

1958), Chalhoub (1998, 2003), Assis Duarte (2005, 2007), Schwarz (1977, 1989, 1997,

2000). A revisão desta bibliografia se deu com o objetivo de repensar aspectos da vida

do escritor e de sua obra como representação da realidade social, cultural, política e

econômica brasileira. Assim, são elencadas críticas que são favoráveis à tese aqui

defendida e outras que são dissonantes, mas que funcionam como impulso para refletir.

Após a revisão dos estudos estéticos e da reflexão do conceito de Estética da

dissimulação, resta associá-lo a uma representação artística específica. Neste capítulo,

O romance Ressurreição será analisado juntamente com Dom Casmurro para pensar o

mote shakespeareano ou o Otelo às avessas.

No terceiro capítulo, serão analisadas as personagens femininas e seus recursos

de dissimulação nos romances A mão e a luva e Helena. Sendo que será dada mais

atenção à segunda por sua importância para a proposta desenvolvida nesta pesquisa. No

mesmo capítulo, serão analisadas personagens de Memórias Póstumas de Brás Cubas,

procurando refletir sobre representantes da elite e suas estratégias de simulação em

diferentes perspectivas: embustes utilizados por um narrador de primeira pessoa, um

narrador defunto.

As páginas que seguem surgem do desafio hercúleo de ler Machado de Assis e se

configura como um exercício de leitura e concomitantemente como busca de uma

interpretação inovadora. As análises interpretativas da literatura machadiana são

incontáveis e escrever algo novo é uma tarefa muito complexa. Partindo desta premissa,

este trabalho reconhece que a leitura inovadora aqui apresentada não apresentará um

novo Machado de Assis, não apresentará uma chave interpretativa e sim uma visão, por

outro viés, por outro foco. O caminho encontrado por este trabalho para ler as narrativas

do autor foi o da Estética da dissimulação que será paulatinamente apresentada e

desenvolvida nas páginas seguintes.

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Reflexões sobre o conceito de Estética

O terror e a piedade podem surgir por efeito do espetáculo cênico, mas

também podem derivar da íntima conexão dos atos, e este é o procedimento

preferível e o mais digno do poeta. Porque o Mito deve ser composto de tal

maneira que quem ouvir as coisas que vão acontecendo, ainda que nada veja,

só pelos sucessos trema e se apiede, com experimentará quem ouça contar a

história de Édipo. (ARISTÓTELES, 1993, p. 73)

A estética nasce da necessidade de se pensar, de delimitar, esquematizar de

forma lógica o belo e o feio (atitude agônica já de início por tentar controlar algo que

está acima dos limites da razão). Entretanto, apesar deste impulso de logicidade, a

análise do objeto estético jamais deixará de ter como elemento importante o lado

subjetivo. Porém, a estética (ainda que não fuja totalmente dos pareceres individuais e

subjetivos) visa trabalhar com um consenso7 (sempre relativo) sobre o que se considera

belo ou não (as fronteiras dos objetos passíveis de serem analisados e, por conseguinte,

a delimitação do próprio campo de estudo). Para isso, são designados modelos

avaliativos, objetos artísticos que compõem o panteão estético denominado cânone

(belas artes8). É claro que o conjunto de elementos que compõem o cânone não é

escolhido de forma aleatória, há uma série de pontos que são levados em consideração e

que por vezes são exteriores ao objeto artístico em si. Assim, a recepção de um objeto

artístico levará em consideração (dando maior ou menor grau de importância) os

elementos exteriores, tais como: política, religião, cultura, ideologia. Por isso, haverá

sempre modelos valorizados e outros que fogem às características demarcadas serão

marginalizados. Estes modelos costumam mudar com o tempo, porém eles sempre

acolherão algumas manifestações e rejeitarão outras.

7 “O juízo de gosto ou estético é universalizável: o seu objeto provoca a adesão de outros sujeitos

conscientes, na medida em que o prazer desinteressado não é uma satisfação confinada ao que

particulariza como indivíduo, mas depende da capacidade de sentir e de pensar, comum a todos os

homens” (NUNES, 2002, p.49). 8O termo é utilizado nesta tese como um repetir irônico. Vários termos já foram utilizados para descrever

a artes de prestígio (Poética, Belo, Belas Artes, Cânone).

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Desta forma, fica evidente que todas as vezes que houver mudanças nestes

parâmetros haverá ou deveria haver alteração nos modelos estéticos. Pois, os critérios

de valores são as diretrizes basilares que determinam a construção do limiar entre os

grupos ou as categorizações. Portanto, repensar parâmetros estéticos não é um mero

capricho de teóricos ou críticos, é sim uma necessidade diante de mudanças ocorridas

no mundo e que evidentemente afetam de forma decisiva a produção e recepção

artística.

Em estudos de datas anteriores a 1735, ainda não podemos falar com

propriedade de estética, pois o termo fora cunhado por Baumgarten. Porém, estudos da

arte sempre existiram e possuem a idade do homem, a idade da própria percepção de

objetos artísticos. Contudo, a estética (a Poética ou o Belo) somente é apresentada na

filosofia ocidental por Platão e Aristóteles. Portanto, o nascimento do discurso

propriamente estético (com o nome de estética, pois cabe lembrar que já existiam

esforços anteriores de categorizar e de pensar o belo) na segunda metade do século

XVIII, surge da necessidade, de desejo de conceituar, de criar uma teoria, uma

metodologia, princípios que facilitassem o contato, a recepção e a seleção do belo

artístico. O objetivo era estabelecer as fronteiras específicas deste campo.

É assim que Baumgarten, numa tentativa de construir uma ciência, uma lógica

do sensível (durante muito tempo fora empregado este termo para descrever a arte e

entre 1750 e 1800 desenvolveu-se uma teoria do belo relacionada à percepção sensorial)

determina o termo próprio para especificar o campo de estudos do belo artístico e inicia

a sua delimitação. Assim, o campo de estudos artísticos, a estética, passa a compor o

grande conjunto de estudos filosóficos.

O distanciamento mais evidente dos trabalhos desenvolvidos por Baumgarten é

apresentado por Kant em sua Crítica do juízo (que seria a crítica da crítica). A partir

deste momento há uma série de oscilações no campo da estética (as fronteiras são

reformuladas): o belo deixa de ser a perfeição do sensível, há a percepção de que o

julgamento estético não produz conhecimento sobre o objeto (a recepção sensível do

objeto por ser intensamente subjetiva não é do primado da razão), problematização das

noções de percepção estética e julgamento estético. Kant coloca definitivamente a

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terceira crítica9 (ou crítica do juízo) no campo específico da filosofia, delimita o campo

e o objeto da estética e defende a tese de que a obra de arte seja um objeto sem

finalidade (tese que virá a ser questionada em muitos momentos), produzida sem uma

função definida (proposição mais aceitável). Além disso, há a percepção do filósofo do

papel reflexivo da arte que passa a funcionar como um espelho refletindo o âmago do

ser que a observa. Por isso, a crítica da arte é algo que depende de um juízo, de uma

subjetividade que apresenta seus próprios critérios de valor.

A faculdade do juízo em geral é a faculdade de pensar o particular como

contido no universal. No caso de este (a regra, o princípio, a lei) ser dado, a

faculdade do juízo, que nele subsume o particular, é determinante [...].

Porém, se só o particular for dado, para o qual ela deve encontrar o universal,

então a faculdade do juízo é simplesmente reflexiva (KANT, 2008, p. 23).

Quase sempre são utilizados os textos de A crítica do juízo (1980) para abordar

os estudos de Kant sobre a beleza, porém as primeiras observações kantianas sobre o

problema de definição da estética e do belo estão presentes em Observações sobre o

sentimento do belo e do sublime e em Ensaio sobre as doenças mentais ambos

publicados em 1764. Nestes trabalhos há grandes avanços no entendimento do objeto da

estética separando o sentimento do belo e do sublime (“O sublime comove [rührt], o

belo estimula [reizt]” [KANT, 1993, p. 21]) e relacionando questões de natureza estética

com sentimentos humanos (sentimentos que deveriam ser evitados e outros que

deveriam ser admirados). Desde já é possível perceber a relação entre estética e ética

que será o mote do trabalho desenvolvido por Schiller em suas cartas que serão

formuladas somente em 1794. Entretanto, nem tudo pode ser encarado positivamente

nas reflexões kantianas quando as retomarmos para fortalecer o nosso objetivo de

estudo da estética. É o caso do fragmento abaixo:

Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento, por

natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume

desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um negro tenha

demonstrado talentos (KANT, 1993, p. 75, grifo do autor).

9 A terceira crítica é o livro do Kant mais maduro. Neste trabalho Kant abordará a capacidade de julgar e,

portanto, a estética será o assunto principal. A crítica da faculdade de juízo é denominada terceira, pois

Kant já havia escrito anteriormente duas outras críticas: Crítica da razão pura e Crítica da razão prática.

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Nas observações do comportamento humano em Observações sobre o

sentimento do belo e do sublime, de Kant há o emprego de critérios de valor, portanto

não estão isentas de preconceitos ou de elementos que são exteriores ao próprio objeto

analisado. Kant apresenta um caminho que deveria ser percorrido por todas as pessoas

na sociedade para que alcançassem o status de seres estéticos: Liberdade e civilidade

reforçam-se mutuamente, pois a ordem pública pressupõe o polimento das inclinações

que movem os agentes. O sentimento, aí, é a faculdade pela qual os valores se

estabilizam e se tornam compartilháveis (KANT, 1993, p. 15). Após estas conquistas, os

vícios individuais seriam sublimados pelas virtudes coletivas – refinamento popular.

(...) O constrangimento artificial e a opulência do estado civil produzem

indivíduos engenhosos e sutis, mas ocasionalmente, também estultos e

impostores, forjando uma aparência sábia ou uma aparência moral que

permite prescindir do entendimento e da integridade, conquanto que seja

espessa a urdidura do belo véu com que o decoro cobre a fraqueza secreta da

mente ou do coração. À medida que a arte se eleva, razão e virtude enfim se

tornam a senha comum, mas de tal forma que o zelo em falar de ambas

dispensa pessoas instruídas e educadas de se esforçarem em possuí-las

(KANT, 1993, p. 81).

Mesmo que seja possível reconhecer alguns equívocos na proposta de Kant com

relação aos estudos das personalidades ou até mesmo dos perfis de povos (equívocos

compartilhados e que não eram nem considerados pensamentos equivocados em sua

época - o preconceito contra a África e seus diferentes povos, por exemplo, era algo

comum, verdade, é só lembrar-se de Hume), cabe ressaltar que em seus estudos já havia

uma necessidade de relacionar estética, ética e cultura – tal como hoje se almeja fazer

com os Estudos Culturais.

Em teorias estéticas anteriores a Kant (Platão, Aristóteles, Plotino, Santo

Agostinho), a beleza era algo inerente ao objeto. A beleza se apresentava em duas

categorias distintas: a beleza natural e a beleza da criação artística (tanto em Platão

quanto em Aristóteles). A teoria da estética defendida por Platão está presente nos

diálogos O banquete, Fedro e no Discurso de Sócrates. Nestes textos é possível tomar

consciência que toda a arte construída no mundo real é fruto de lembranças,

reminiscências de outra vida, da qual vivemos desterrados. O idealismo de Platão

considera que o verdadeiro belo seria o presente no mundo ideal (inalcançável) e o belo

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artístico seria uma mera cópia imperfeita daquele. Aristóteles, por sua vez, não

abandona totalmente o idealismo, porém acrescenta a ideia de harmonia, de ordenação

harmônica dos elementos como característica essencial do belo (assim, as três grandezas

fundamentais da arte seriam: a harmonia, a grandeza e a proporção)10

. Tanto em

Aristóteles quanto em Platão há o esforço em encontrar as fronteiras da beleza sendo

esta determinada pela unidade na variedade, a união entre o aprazível e o bem. Em

Platão é possível perceber a distinção entre o que seria Belo e o que seria o Feio e já se

faz presente a ideia de uma didática, de uma formação para a apreciação artística.

Uma vez que o belo é o oposto do feio, trata-se de dois conceitos. Como não?

Se são dois, cada um constitui uma unidade. Isso também. [...] Nessa base,

continuei, estabeleço a seguinte distinção: de um lado coloco os que há

momentos denominaste amadores de espetáculos, os amigos das artes e os

homens práticos, e num grupo à parte os que a que nos referimos, os únicos

que fazem jus à denominação de filósofos. Em que consiste a distinção?

Perguntou. Os amadores de sons e de espetáculos, continuei, deleitam-se com

as belas vozes, as cores e as formas belas e todas as obras trabalhadas com

perfeição; porém, são de entendimento incapaz de perceber e de amar a

natureza do belo em si. É realmente o que se dá, observou. E os que são

capazes de elevar-se até ao belo e de contemplá-lo, não serão extremamente

raros? Sem dúvida. (PLATÃO, 2000, p. 267-268).

A estética com a filosofia platônica e aristotélica estava fundada na lógica e na

ética. O belo era difundido em uma tríade juntamente com o bom e o verdadeiro. A

condição para a existência do belo se fundamentava na conduta, na ética e na

moralidade. Contudo, para Platão o real era dividido em duas dimensões: a dimensão

inteligível e a dimensão sensível. A primeira seria a origem de todas as coisas, a

essência. A segunda, por sua vez, seria um mero reflexo, uma imagem, um simulacro do

original e, portanto, uma cópia imperfeita do real. Sendo assim, o belo seria

inalcançável e distante de qualquer intervenção do intelecto e do juízo humano.

Ao passo que Platão observava na mimese a imitação, a cópia imperfeita, em

Aristóteles o ato de imitar abriria espaço para a semelhança, o lugar do como, da

10

“O belo, num ser vivente ou num objeto composto de partes, deve não só apresentar ordem em suas

partes como também comportar certas dimensões. Com efeito, o Belo tem por condições uma certa

grandeza e a ordem. Pelo qual motivo, um ser vivente não pode ser (do) belo, se for excessivamente

pequeno... nem desmedidamente grande...” (ARISTÓTELES, s. d., cap.VII, p.250)

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verossimilhança, do reconhecimento catártico, da representação e da experiência. O ato

de recriação da essência ou da origem que ocorre com a mimese não é privilegio do

campo das artes e sim uma representação linguística da escolha do signo que melhor

represente a coisa significada.

A crítica à poesia presente na República e propagada pela boca de Sócrates não é

simplesmente uma forma de desvalorizar a arte poética e sim uma alternativa utilizada

para equiparar esta a outras expressões artísticas. O poeta ocupa um lugar privilegiado

na polis, o mesmo status vivenciado pelos sacerdotes. Expressões artísticas como a

pintura ou a escultura são consideradas menores enquanto a poesia é, de certa forma,

divinizada. Assim, o objetivo do discurso da República é a equiparação da arte em geral,

seja sua matéria a palavra, seja o barro ou a tinta. Todas utilizam elementos miméticos

para representar o sensível. E neste sentido, talvez a poesia seja a que mais se distancia

da forma ideal, por contar apenas com a palavra em suas representações. O poeta é um

artesão das palavras, um pintor de signos e, portanto, um representador que utiliza um

objeto de matéria inferior pelos moldes miméticos platônicos.

Aristóteles, portanto, abandona completamente o idealismo platônico no que se

refere ao belo, pois para ele a beleza de um objeto não depende de uma participação

maior ou menor numa beleza suprema. Decorre apenas de certa harmonia, entre as

partes do objeto e sua relação com o todo. O belo exigiria ainda, uma característica

importante que seria a grandeza ou imponência, e ao mesmo tempo proporção e medida

nesse todo. As características essenciais da estética aristotélica seriam a ordem, ou

harmonia, assim como a grandeza. Aristóteles se preocupa com as medidas e suas

proporções. A célebre fórmula aristotélica seria que a beleza consiste em unidade na

variedade.

Os gregos identificavam a beleza com o belo clássico, mas Aristóteles parece ter

pressentido que ela apreendia outras categorias além do belo. Para ele o mundo após o

caos, passou a ser regido por uma harmonia. Uma luta entre a harmonia desejada os

destroços do caos ainda aqui existentes é fundamental em seus pensamentos. Ele inclui

o Feio no campo estético, sendo de fato não mais o objeto que ele estuda, e sim a

repercussão no espírito do contemplador. Isto é, a beleza como objeto que agrada ao

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contemplador como simples fruído. Assim, o campo do belo é ampliado agregando

outras categorias. O belo é único por sua capacidade de proporcionar conhecimento pelo

choque e a unidade na variedade também pode ser alcançada com o feio. Na filosofia

aristotélica o universo viveria como um todo harmônico que seria alcançado pelo

equilíbrio entre os destroços do caos e a ordem. Portanto, a arte também teria seus

elementos de ordem e seus elementos caóticos.

Assim, Aristóteles avança no campo dos estudos do belo quando percebe que o

modelo platônico seria inalcançável e, por conseguinte, impraticável. A realidade para

Aristóteles é o sensível que passa por uma série de abstrações inteligíveis até que

alcance o ideal universal de arte. Deste modo, a imitação não só é benéfica como passa

a ser fundamental para o processo de apreensão do belo. A experiência catártica produz

no receptor a possibilidade de experimentar e de enriquecer-se com seu caráter

pedagógico. A beleza, então, deixa de curvar-se a uma Beleza superior, ideal,

inalcançável, suprassensível. A estética aristotélica toma a imitação como representação

superior do sensível e não como reprodução imperfeita do absoluto, como fazia Platão.

O belo aristotélico é algo material palpável coordenado pelos valores de grandeza,

proporção, harmonia.

Na “Retórica”, Aristóteles avalia a fruição da obra de arte e as características da

beleza de acordo com o ponto de vista do sujeito. Chegando a conclusão que o prazer

decorre da gratuita apreensão e sem esforço, pelo espírito do sujeito. O advento da

subjetividade será crucial para formulações posteriores dos estudos estéticos.

Estes primeiros limites do campo estético foram definidos sempre levando em

consideração o objeto (teorias objetivas) e não o sujeito na produção ou na recepção.

Somente com o idealismo germânico (Kant e Hegel para nomear de forma mais básica)

é que surge a percepção de que o belo pode não seja inerente ao objeto e sim uma

atribuição do sujeito (ou seja, o belo não estaria nas propriedades de um objeto e sim

nas sensações que este provoca em seu contemplador). Machado de Assis

estrategicamente lança mão da importância do receptor em seu célebre conto A chinela

turca. Na provocação machadiana cabe refletir: se o espectador pode transformar um

drama tedioso em algo emocionante, o inverso também é válido (ou seja, uma literatura

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de qualidade superior também pode padecer de olhos não capacitados ou preparados

para recebê-la).

Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça

com um sonho original, substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi um bom

negócio. Um bom negócio e uma grave lição: provaste-me ainda uma vez que

o melhor drama está no espectador e não no palco. (ASSIS, 2008, II volume,

p.282).

A reflexão kantiana sobre a beleza tem como grande contribuição a noção de que

a atribuição de valor estético a um objeto surge da relação complexa entre intelecção e

sensibilidade. É por esta relação que ao analisar esteticamente um objeto é impossível

fugir de valores subjetivos, parciais e tão efêmeros quanto a própria vivência. Para

corroborar com esta afirmação cito de forma mais esclarecedora o fragmento de Charles

Lalo:

(...) é nossa maneira de pensá-los que faz a beleza dos objetos ou das pessoas,

assim como também sua feiúra. Porque em si eles não são belos nem feios:

são o que são, e qualquer outra qualificação lhes é extrínseca e vem-lhes

exclusivamente de nós. (...) a beleza de uma coisa não se liga à natureza desta

coisa, mas ao livre jogo da imaginação e do entendimento, que pode se

produzir num contemplador por causa desta coisa, qualquer que seja a

natureza dela fora dele (LALO, 1952, p.2-3 apud: SUASSUNA, 1972, p.32-

33).

É após Kant que surge a subdivisão do campo estético e o belo passa a ser uma

das categorias do campo juntamente com o sublime. Nesta nova categorização que

surge também a questão do que seria belo, já que a mesma palavra abriga elementos tão

distintos. De acordo com Bruyne: “A arte não produz unicamente o belo, mas também o

feio, o horrível, o monstruoso. Existem obras-primas que representam assuntos

horríveis, máscaras terrificantes, pesadelos que enlouquecem.” (BRUYNE, 1930, p.41

apud: SUASSUNA, 1972, p.23). Kant já percebera a necessidade de se repensar a noção

de belo ampliando o conceito e incluindo o feio em sua concepção.

Em suas Lições sobre a analítica do sublime (KANT, 1980, 1951), o filósofo

questiona: o que nos inclina para o belo? Desejamos o que é bom? Nada disso. Nada

nos move, pois o belo só pode assim ser chamado quando ocorre de forma gratuita.

Tentamos controlar as nossas ausências (e seguimos acumulando ausências). Contudo, o

vazio existencial jamais será possível preenchê-lo, a arte pode sim amenizar a dor ou ao

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menos pode facilitar o entendimento do nada, mas este sempre existirá.

Para Kant, o belo é como o bem. Porém, as duas categorias não podem ser

fundidas, não são a mesma coisa e nem uma decorre da outra. O sentimento do belo é

desinteressado, é partilhável, é livre (ou deveria ser). O belo pode proporcionar fruição

por sua simples forma, mas o prazer verdadeiro surge na recepção, na capacidade de

compreensão, apreensão, na construção de um conhecimento. O sublime não provoca

fruição, ele oprime, aprisiona. Diante de uma sublime beleza contempla-se calado, o

espírito emudece-se. A arte, por sua vez, estimula, liberta. Este poder didático do belo

também pode ser encontrado na filosofia estética de Hume – o caminho da educação do

espírito livre para a apreciação do objeto artístico.

O gosto não consegue perceber as várias excelências do objeto, e muito

menos consegue distinguir o caráter particular de cada excelência e

determinar sua qualidade e seu grau. O máximo que pode esperar-se é que

declare de maneira geral que o conjunto é belo ou disforme, e é natural que

mesmo esta opinião só seja formulada, por uma pessoa com tanta falta de

prática, com maior hesitação ou reserva. Mas se a deixarem adquirir

experiência desses objetos seu sentimento se tornará mais exato e mais sutil.

(...) Numa palavra, a mesma competência e destreza que a prática dá a

execução de qualquer trabalho é também adquirida pelos mesmos meios, para

sua apreciação. (HUME, 1992, p.266).

O trabalho com a filosofia estética presente em Hume apresenta pontos

concordantes com o que é apresentado em Kant e que posteriormente será

incansavelmente repensado em Schiller – a educação estética. Claro que o leitor atento

de cada proposta estética perceberá que ao mesmo tempo que uma completa a outra,

uma amplia a outra em alguns elementos e uma contradiz a outra em outros pontos.

Sendo assim, nenhuma pode ser considerada desprezível. Contudo, a estrutura kantiana

é, sem dúvida, algo que apresenta um virtuosismo e uma obsessão admiráveis. O

modelo estético kantiano chega ao ponto de instaurar ou revelar a aporia do próprio

sistema filosófico nos estudos da arte. A filosofia não está livre de suas próprias armas

críticas – a crítica da crítica – pois, nenhum sistema filosófico ou de pensamento estará

absolutamente neutro.

Schiller, por sua vez, busca inspiração em Kant principalmente na doutrina dos

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costumes, ou seja, nas elucubrações de Kant sobre a relação entre moral e razão

objetivando encontrar uma relação entre virtude e gosto, sensibilidade e moral, estética

e valores. Contudo, o prazer livre e desinteressado presente em Kant é motivo de crítica

em Schiller. A beleza schilleriana precisa ser virtuosa e não há juízo sem pré-juízo, ou

seja, julgar é consequentemente tomar partido, expor-se. E, por isso, Schiller não

distingue eticidade (die Sittlichkeit), o ético (das Sittliche) e a moralidade (Moralität),

ou o sentimento estético (Schönheitsgefühl) e o gosto (Geschmack).

Contudo, é preciso refletir sobre o significado do sem interesse kantiano. Esta

forma desinteressada de apreciação artística não significaria um posicionamento

passivo. Qualquer espírito que se submete ao ato de observação carrega em si certo

nevoeiro em seu olhar, uma névoa gerada por suas convicções e por seus mais íntimos

impulsos. Não há como se desvencilhar de uma vontade de representação, de um poder

em potencial que age na subjetividade sem que necessariamente o indivíduo perceba. A

questão do interesse já intrigou Nietzsche na crítica que faz da análise feita por

Schopenhauer do pensamento kantiano.

Schopenhauer valeu-se da visão kantiana do problema estético (...). “Belo,

disse Kant, é aquilo que apraz sem interesse” (...). O caso é bastante

admirável: ele interpretou, por si mesmo, o dito “sem interesse” do modo

mais pessoal possível, a partir de uma experiência (...) nunca se fatigou de

glorificar esse desvencilhamento da “vontade” como a grande preeminência e

utilidade do estado estético (...). E não se poderia, em última análise, objetar

ao próprio Schopenhauer que aqui ele foi bastante injusto ao se imaginar

kantiano, que não entendeu, em absoluto, a definição kantiana do belo de

maneira kantiana – que o belo lhe apraz, também a ele, por conta de um

“interesse” (...) o do torturador (Torturirten) que se desvencilha de sua tortura

(Tortur)? (NIETZSCHE, 1999c, p. 347-349 – grifo nosso).

Para Schiller, a estética seria uma forma efetiva de se alcançar a ética. Sendo

assim, o conhecimento do belo poderia mudar o homem em sua essência, transmutar

vícios em virtudes, pois o objeto artístico teria o poder de afetar as sensações humanas

tornando-se perceptível pela inteligência e, portanto, afetando as emoções (patética).

Todo este processo de experiência estética é mediado pela linguagem que se constitui

como o verdadeiro exercício de apreciação artística por não haver outro meio de

apreender e/ou dividir a consciência daquilo que é belo. Kant defende que por meio da

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percepção estética, há a possibilidade de libertação das prisões conceituais. Isto se dá,

pois na filosofia kantiana a maioridade da razão também pode ser alcançada por meio da

apreciação estética. Por isso, a filosofia kantiana é tão importante para o

desenvolvimento da estética schilleriana. A apreciação estética não exige que o

contemplador possua conhecimento técnico, portanto possui capacidade abrangente e

possui caráter formador. Schiller compreende esta característica da estética e se apropria

desta para construir sua filosofia pedagógica da estética. É possível perceber, então, que

Schiller buscou refletir bastante sobre os trabalhos kantianos, em particular os

desenvolvimentos sobre estética e sobre razão prática. A divergência se dá quando Kant

defende a liberdade, a fruição livre. É sobre estes pontos divergentes que ele alerta

quando aborda a utilidade da moral nos costumes estéticos e quanto menciona os

perigos dos costumes estéticos.

Schiller vê na apreciação, no juízo, no gosto do belo um importante caminho

para o virtuoso. Isto se dá, pois o gosto possui a capacidade de selecionar ações que lhe

sejam oportunas. O belo é essencial à moralidade por auxiliar os indivíduos no processo

de afastamento de inclinações relacionadas puramente aos hábitos, a ações

condicionadas. O caminho para a moralidade passa necessariamente pela maioridade

kantiana, porque somente um sujeito livre poderá escolher; e moral é escolha. O gosto

previne ações que estejam ligadas a impulsos naturais humanizando, assim, nossas

atitudes.

É claro que nem todos buscarão o caminho da virtude. As necessidades do corpo

físico são bem distintas daquelas advindas do corpo moral, ético, estético. O que

Schiller busca, de forma bem realista, é uma harmonia entre as diferentes necessidades.

A virtude básica estaria na minimização dos riscos. Por isso, a conveniência de uma

educação estética poderia servir como um peso a mais na balança da moralidade e do

virtuosismo.

Hegel em seu Curso de estética assume a problemática do termo estética

considerando este inadequado11

, pois é um conceito marcado e vinculado à língua alemã

11

“Foi Baumgarten quem denominou de estética a ciência das sensações, esta teoria do belo. Só aos

alemães esta palavra é familiar. Os franceses dizem théorie des arts ou des belles lettres. Os ingleses

incluem-na na critic. Os principais críticos de Home gozaram de grande voga no tempo em que este autor

publicou sua obra. Na verdade, o termo estética não é o que mais propriamente convém” (Hegel, 2000,

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e às reflexões sobre o belo de origem alemã. Também faz uma inversão interessante se

comparadas à estética hegeliana e a kantiana: Hegel diante da dicotomia entre o belo da

natureza e o belo artístico considera o último superior. Porém, segue defendendo a ideia

kantiana de que a estética é tarefa da filosofia e denomina a reflexão sobre o belo como

filosofia das belas artes.

A arte e suas obras, decorrentes do espírito e geradas por ele, são elas

próprias de natureza espiritual, mesmo que sua exposição acolha em si

mesma a aparência da sensibilidade e impregne de espírito o sensível. Neste

sentido, a arte já está mais próxima do espírito e de seu pensar do que da

natureza apenas exterior e destituída de espírito (...). No entanto, se as obras

de arte não são pensamento e conceito, mas um desenvolvimento do conceito

a partir de si mesmo, um estranhamento na direção do sensível, então a força

do espírito pensante reside no fato de não apenas apreender a si mesmo em

sua Forma peculiar como pensamento, mas em reconhecer-se igualmente em

sua alienação no sentimento e na sensibilidade. (HEGEL, 2001, p. 36-37 –

grifo nosso).

Hegel, embora possa parecer, não retoma o idealismo platônico. Platão pensava

em um mundo ideal, o das ideias, onde residia a estética. Hegel, por sua vez, defende

que o belo é de ordem espiritual. Contudo, este belo espiritual está relacionado ao

campo subjetivo e, portanto, não é inerente ao objeto, não e de ordem material. Há na

estética hegeliana um esforço que vai além da matéria, pois, em sua filosofia, o

fenômeno estético e verdadeiro conteúdo do belo seria o espírito. E neste ponto estaria a

superação do objeto estético que consegue ultrapassar sua materialidade e alcançar o

sensível: o campo subjetivo da existência humana.

Na segunda metade do século XIX ocorre a expansão do termo estética com a

respectiva ampliação dos campos de atuação da disciplina (interdisciplinaridade). O

campo do estético deixa de ser privativo da filosofia e acaba sendo abordado por outras

disciplinas, tais como: a psicologia, a sociologia e a antropologia.

No fim do século XIX há o desenvolvimento de novas conceitualizações

estéticas, algumas até mesmo de correntes contrárias. Neste momento, ocorre a luta de

negação e de reação contra a herança idealista.

34).

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No século XX a questão torna-se mais complexa com as releituras e valorização

das reflexões nietzschianas sobre a crítica da metafísica. Assim, os teóricos nutrem uma

verdadeira aversão contra os essencialistas que se mantiveram durante muito tempo

como norma, modelo, e leitura obrigatória para o estudo do objeto artístico. A

complexidade e as desavenças apresentadas neste período fazem com que seja

desencadeada uma crise (abalos nas bases do pensamento) na forma de pensar a estética,

crise esta que é fruto de alterações no próprio fazer artístico fruto de elaborações

artísticas desencadeadas pelas vanguardas.

Já no final de 1980 surge como proposta de pensamento das ciências humanas:

os estudos culturais. A partir daí é reconhecida a importância de outros parâmetros na

construção do objeto estético e que devem ser levados em consideração, pois,

consequentemente, influenciará em sua análise. Ou seja, os objetos que compõem o

conjunto denominado belas artes são determinados pelo valor, sendo que este leva em

consideração critérios de natureza exterior à própria obra de arte. Assim, é necessário

reconhecer que a análise puramente metafísica ou filosófica que visava orientar a

eleição do cânone jamais fora pura. Deste modo, os critérios analíticos foram

considerados simplistas pelos seguidores dos estudos culturais. Em decorrência desta

constatação, a crise estética fora intensificada e surge a necessidade de se pensar

politicamente a estética e de sua redefinição - repensar sua função e seu objeto.

A crise pode ser comprovada pela presença massiva, em trabalhos atuais sobre

estética, da defesa da necessidade pungente de se repensar a disciplina (talvez o termo

que nomeia o campo já nem seja adequado, tal como já afirmara Hegel). Atualmente, a

denominação é considerada inadequada, pois é muito limitada levando-se em

consideração que, no conceito de estética, há uma variedade de saberes, intenções e de

mídias. Também há a controversa aparição das mais variadas discussões e estudos que

analisados profundamente objetivam o retorno aos estudos iniciais de Baumgarten, ou

seja, a estética enquanto percepção sensorial.

O advento das novas mídias e da revolução tecnológica problematiza ainda mais

a questão da conceitualização estética. A notoriedade do espaço-tempo do objeto

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artístico, agora, apresenta uma complexidade maior. Surgem discussões em torno à

questão do original e da cópia (BENJAMIN, 1987) ocasionada pela capacidade de

reprodução de obras autênticas (o que acaba provocando até mesmo questionamentos

sobre a autenticidade da obra de arte) e a sua reprodução em cópias idênticas. Este foi

mais um e talvez o mais forte golpe à noção de belas artes e à característica aurática

destas produções (BENJAMIN, 1987, p. 28). Estes fatores foram os que influenciaram a

transformação da experiência estética pelas novas mídias, novas tecnologias de

produção e reprodução, mudanças políticas que alteraram a forma de ver o mundo,

reorganização das classes sociais, industrialização/reprodutibilidade técnica, tipografia,

desauratização da matéria artística e consequentemente de seu criador, tensão entre

originalidade e multiplicidade – processo de reprodução que acaba por ocasionar a

desmaterialização do objeto artístico. O objeto artístico passa a ser um signo vazio – o

que impele o artista a improvisações performáticas/valorização e demanda do corpo do

artista como parte importante na recepção de seu trabalho, direitos humanos/imposição

de posicionamentos denominados politicamente corretos). Estas alterações

acompanhadas de outras não mencionadas impeliram que fosse criada uma nova

configuração nas estratégias de recepção e nos parâmetros de apreciação do objeto

artístico (novos métodos de análise e critérios de valor estético).

Se se olha do lado da arte (objetos e experiências), observa-se uma incerteza

categorial, pelo fato de que se torna cada vez mais difícil traçar os contornos

do campo que ela presumidamente ocupa. Suas linhas de demarcação

tornaram-se cada vez mais porosas (...). (KLUCINSKAS & MOSER, 2007,

p. 20)

As mudanças na percepção dos sujeitos produtores da cultura, a abertura de

espaços e possibilidades mais amplas de divulgação de vozes antes emudecidas, a

politização de grupos marginalizados, a luta pelos direitos humanos, a relativização dos

valores de produção e de recepção de elementos artísticos, todas estas mudanças

desaguadas no fim do século XIX e na primeira década do século XX (e outras não

mencionadas aqui) propiciaram a ampliação do campo de categorização do belo. Esta

reconfiguração impele a necessidade de se recuperar a estética canonizada. Por

conseguinte, ocasiona uma mudança de valores estéticos que provocará a mudança de

elementos canônicos tanto aqueles que por hora estão sendo produzidos, quanto os que

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ainda serão e até mesmo os que já foram produzidos.

Deste modo, é possível concluir que uma reconfiguração da estética provocará a

mudança dos parâmetros tanto de produção quanto de recepção do objeto estético. O

deslocamento proporcionado (como ocorre com qualquer processo de reciclagem12) é

cronotrópico, ou seja, espaço-temporal. Por vezes o simples deslocamento físico do

objeto estético provoca uma ruptura e um fenômeno de reciclagem, ou seja, um objeto

de prestígio que ocupa o espaço do museu é transportado para outro espaço ou um

objeto comum é ressignificado somente pelo fato de vir a ocupar um espaço prestigioso

de um museu, por exemplo, (tal como a estratégia procedida nos ready made de

Duchamp ou como a apropriação da cultura Pop pela arte, atitude que gerou

reformulações estéticas interessantes e posturas críticas agrupadas sob o paradigma da

Pop Art)13. Todavia, o deslocamento também pode dar-se no âmbito teórico ou da

recepção, relacionado profundamente a uma alteração do foco. O deslocamento também

pode ocasionar alterações ideológicas quando altera o foco.

As mudanças que são geradas não são de forma alguma gratuitas ainda que não

sejam aplicadas conscientemente pelos respectivos criadores. Porém, ainda que sejam

necessárias e naturais, surgem problemas no que tange à avaliação deste produto. Como

avaliar, como armazenar, como manipular, como interpretar e hierarquizar estes novos

processos de apresentação e os novos produtos artísticos? Novos procedimentos e

abordagens são essenciais para lidar com as reconfigurações do campo estético. E o que

se observa é a reação contrária à mudança de posicionamentos conservadores que

tentam impor barreiras desqualificando e desvalorizando novas investidas artísticas.

A constatação é negativa; fala-se de banalização, de degradação, de diluição,

pelo menos numa perspectiva pessimista. Os otimistas descrevem a mesma

situação em termos de abertura, de disponibilidade e de livre circulação dos

materiais culturais e dos artefatos. Regozija-se, então, com as mudanças

acrescidas no domínio cultural, mudanças que comportariam uma

12

Entendo reciclagem a partir da conceitualização feita por Klucinskas & Moser: Caracterizariam a

reciclagem deslocamentos espaciais e temporais de objetos estético-culturais, abarcando um processo que

consiste em várias fases de um gesto que comporta ao mesmo tempo repetição e transformação.

(KLUCINSKAS & MOSER, 2007, P. 17) 13

Mencionar estes fatos é só uma forma de ilustrar os questionamentos que sofreu a arte na época das

manifestações mencionadas acima. Contudo, estes golpes não conseguiram abolir os critérios de valor

presentes em qualquer tempo. Mas, deixou claro que estes critérios podem ser alterados e que o que

define a arte é a intenção e em alguns casos o projeto (principalmente se o foco é a arte contemporânea).

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oportunidade de revitalização e de redefinição do mundo da arte.

(KLUCINSKAS & MOSER, 2007, P. 21)

Os teóricos mais saudosistas podem seguir pensando que o que há hoje não é

arte. Podem continuar buscando a verdadeira arte de nossos dias, embora,

provavelmente só pense encontrá-la no passado. Sendo assim, possivelmente, poderá

não encontrar o que busca. Enquanto não reconhecer no “novo” algo complexo e que

mereça ser analisado de forma reflexiva, não encontrará “novos” parâmetros analíticos,

estará perdido num lapso temporal, num tempo do já-não-é-mais, viverá num castelo de

ar almejando encontrar os alicerces basilares de uma arte que se apresenta em sua forma

gasosa.

A faculdade de sentir não legisla sobre objetos; [...] o senso comum estético

não representa um acordo objectivo das faculdades (isto é: uma submissão de

objectos a uma faculdade dominante, a qual determinaria ao mesmo tempo o

papel das outras faculdades relativamente a estes objectos), mas uma pura

harmonia subjectiva onde a imaginação e o entendimento se exercem

espontaneamente, cada qual por sua conta. Por conseguinte, o senso comum

estético não completa os outros dois [o senso comum lógico e o senso

comum moral]; funda-os ou torna-os possíveis (DELEUZE, 1987, p. 56-57,

grifo do autor).

Com a ampliação e redefinição do conceito de beleza, os filósofos pós-kantianos

começam a questionar outro problema complexo da filiação da estética: eles oscilam

entre o campo filosófico e o científico. Porém, ainda que seja feito um esforço não há

como filiar a estética ao campo meramente científico (ao menos que a ciência também

seja encarada como filosofia, trabalhando mais com proposições e menos com fatos). O

embate, então, deixa de ser produtivo. Porém, sempre haverá impasses e os estetas na

atualidade não apresentam um denominador comum em suas propostas teóricas. Assim,

já não se pode falar em estética, ou a estética, e sim estéticas.

Deste modo, chegar-se-á a nada simples conclusão de que por mais que os

estudos de estética e filosofia se afastem de seus umbigos sempre acabará retornando

àquela eterna maldição de morder a própria cauda, como se expressa na simbologia

alquímica do oroboro. A construção de conteúdos tautológicos é viciosa e mesmo

parecendo sem sentido, é sim produtiva, destarte absurda (como a tarefa de Sísifo).

Mas toda a ciência desta Terra não me dirá nada que me assegure que este

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mundo me pertence. Vocês o descrevem e me ensinam a classificá-lo. Vocês

enumeram suas leis e, na minha sede de saber, aceito que elas são

verdadeiras. Vocês desmontam seu mecanismo e minha esperança aumenta.

Por fim, vocês me ensinam que este universo prestigioso e multicor se reduz

ao átomo e que o próprio átomo se reduz ao elétron. Tudo isto é bom e espero

que vocês continuem. Mas, me falam de um sistema planetário invisível no

qual os elétrons gravitam ao redor de um núcleo. Então percebo que vocês

chegaram à poesia: nunca poderei conhecer. (CAMUS, 2010, p.33)

E o exercício empreendido nesta pesquisa será o de afastar-se do tautológico e

encontrar no objeto a teoria, a reflexão estética que melhor estará apropriada para sua

análise. Parte-se da defesa de que o texto literário por si só já é uma proposta de análise

estética de outros textos e que pode servir não somente para o deleite e prazer, mas

também para as especulações de cunho filosófico.

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O olhar exterior e a necessidade de se repensar a estética

É grande o número de críticos que produzem análises críticas ou teóricas

simplificadoras e, constantemente, generalizantes sobre determinada realidade que não

conhecem. Consequentemente, ainda que bem intencionadas, estas propostas de análise

acabam chegando a um lugar comum caracterizado por construções teóricas que se

apresentam com teor preconceituoso.

Mesmo que não queiram, a divisão simplista entre primeiro e terceiro mundos

extrapola o âmbito da relação econômica e contamina as relações estéticas e culturais.

As antigas oposições entre metrópole e colônia, centro e periferia, ressurgem,

sorrateiramente, comprometendo até mesmo as mais, aparentemente, ousadas

produções. Isto pode ser percebido na tentativa de colocar expressões culturais e

artísticas tão díspares e até mesmo contraditórias a mesma etiqueta: artes e expressões

do terceiro mundo ou periféricas.

As miradas europeias sobre o diferente que seria buscado em culturas

“periféricas” são em sua maioria representadas por duas sensações distintas:

vislumbramento e pavor. O vislumbramento é tão antigo que pode ser encontrado na

carta de Pero Vaz de Caminha ao descrever o contato com indígenas marcado pela

defesa da inocência e do bom selvagem; ou contaminado pela ideia do “selvagem

cruel”. As reações de resistência a estas formas de mirar constrangedoras podem ser

declaradamente ativas ou dissimuladas.

É possível ampliar indefinidamente as possibilidades de olhares constrangedores e

limitadores. Entretanto, a priori, qualquer ponto de vista sobre um objeto de análise

(ainda que com as melhores das intenções) é a interpretação do “não eu” do “diferente”.

Mas, estas diferenças são mais expressivas, limitadoras e preconceituosas quando o

outro apresenta um gênero, uma raça ou uma cultura que não é prestigiada pelo modelo

dominante. Ou seja, quando este “outro” é representado pelas denominadas “minorias”

(negro, índio, mulher, homossexual).

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Politicamente alguns países assumem o discurso da ausência de diferenças.

Entretanto, na prática não é isto que observamos no cotidiano, nas ruas, em situações

corriqueiras e comuns. Reconheço que ser negro-mulher-homossexual-indígena14

em

determinados países seja diferente de negro-mulher-homossexual-indígena em outros e

ainda que se perceba que ser negro-mulher-homossexual-indígena pobre ou analfabeto

seja diferente de ser negro-mulher-homossexual-indígena rico ou com formação

acadêmica. Ainda assim estas relações de diferença existem, a discriminação existe em

variados níveis, disfarçada ou descaradamente assumida em diversas partes do globo.

Partindo deste ponto de vista, o conceito de “Estética da Dissimulação” torna-se

mais amplo e mais complexo. Para abordá-lo a contento seria necessário um estudo

mais aprofundado. É nesse sentido que este trabalho pretende levantar a poeira que

encobre a questão, tocar a ferida que está fechada, mas que ainda não está cicatrizada.

Para isso serão utilizados a título de exemplo um contexto e expressões artístico-

culturais específicas.

14

O termo apresentado com traços indica uma crítica irônica à visão preconceituosa que coloca

indivíduos com características e histórias de luta tão diferentes numa única designação: minorias. Ao

mesmo tempo me aproprio da designação de forma positiva unindo este grupo não por suas características

tão particulares, mas sim pelo preconceito sofrido.

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Estética da dissimulação

Olá! Negro

Os netos de teus mulatos e de teus cafuzos

e a quarta e quinta gerações de teu sangue sofredor

tentarão apagar a tua cor!

E as gerações dessas gerações quando apagarem

a tua tatuagem execranda,

não apagarão de suas almas, a tua alma, negro!

Pai-João, Mãe-negra, Fulô, Zumbi,

negro-fujão, negro cativo, negro rebelde

negro cabinda, negro congo, negro ioruba,

negro que foste para o algodão de U.S.A.,

para os canaviais do Brasil,

para o tronco, para o colar de ferro, para a canga

de todos os senhores do mundo;

eu melhor compreendo agora os teus blues

nesta hora triste da raça branca, negro!

Olá, Negro! Olá, Negro!

A raça que te enforca, enforca-se de tédio, negro!

E és tu que a alegras ainda com os teus jazzes,

com os teus songs, com os teus lundus!

Os poetas, os libertadores, os que derramaram

babosas torrentes de falsa piedade

não compreenderiam que tu ias rir!

E o teu riso, e a tua virgindade e os teus medos e a tua

bondade

mudariam a alma branca cansada de todas as

ferocidades!

Olá, Negro!

Pai-João, Mãe-Negra, Fulô, Zumbi

que traíste as Sinhás nas Casas-Grandes,

que cantaste para o Sinhô dormir,

que te revoltaste também contra o Sinhô;

quantos séculos há passado

e quantos passarão sobre a tua noite,

sobre as tuas mandingas, sobre os teus medos, sobre

tuas alegrias!

Olá, Negro!

Negro que foste para o algodão de U.S.A.

ou que foste para os canaviais do Brasil,

quantas vezes as carapinhas hão de embranquecer

para que os canaviais possam dar mais doçura à alma

humana?

Olá, Negro!

Negro, ó antigo proletário sem perdão,

proletário bom,

proletário bom!

Blues,

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Jazzes,

songs,

lundus...

Apanhavas com vontade de cantar,

choravas com vontade de sorrir,

com vontade de fazer mandinga para o branco ficar

bom,

para o chicote doer menos,

para o dia acabar e negro dormir!

Não basta iluminares hoje as noites dos brancos com

teus jazzes,

com tuas danças, com tuas gargalhadas!

Olá, Negro! O dia está nascendo!

O dia está nascendo ou será a tua gargalhada que vem

vindo?

Olá, Negro!

Olá, Negro!

(LIMA, 1958, p.180)15

Estes versos ácidos de Jorge de Lima iniciam este subcapítulo e apresentam em

seus temas e posicionamentos característicos do que esta tese defende como estética da

dissimulação. Primeiramente, há a questão da resistência, pois a estética da

dissimulação não nasce nos grandes salões. Ela nasce dentro dos navios negreiros, nas

senzalas, nos morros cariocas, nos quartinhos e nunca nos salões, nas regiões marginais

e nunca no centro. Contudo, sua capacidade de penetrar estes lugares é surpreendente,

pois dissimuladamente esta expressão estética não é contundente. É por meio de

subterfúgios e de posturas controladas que ela domina os espaços que ocupa. Os versos

de Lima falam de uma cultura que fora mantida entre grilhões para que agonizasse e

morresse. Entretanto, os dominantes não conheciam a capacidade desta cultura de

silenciosamente apropriar-se dos elementos culturais utilizados pelos dominantes e de

convertê-los, e os transformar e os absorver. A cultura europeia foi constantemente

nutrida pela cultura que sofrera e que fora escravizada, assim como as mães negras

amamentaram e alimentaram os filhos dos senhores. E assim, por meio da simulação e

dissimulação esta cultura segregada se agarrou da forma que pôde e sobreviveu e

preparou o negro para novos dias: O dia está nascendo ou será a tua gargalhada que vem

15

O poema foi utilizado apenas para retratar a ideia de dissimulação e foi apropriado e interpretado nesta

tese com um foco irônico ("com vontade de fazer mandinga para o branco ficar bom"). Ainda assim,

há que se reconhecer que Jorge de Lima em outros poemas retrata o negro de forma bem distante da

defendida neste trabalho.

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vindo? Antes de tentar responder esta pergunta, este trabalho se concentrará na reflexão

sobre uma nova conceitualização estética: a Estética da Dissimulação.

O conceito de estética presente na Crítica da razão prática (KANT, 1951) leva

em consideração a coletividade, não basta definir o que é belo, é preciso que um grupo

de pessoas compartilhe os mesmos modelos de beleza. Sendo assim, a arte, o belo,

alcança uma dimensão social que passa a ser definida por ideais do grupo (sejam estes

ideais políticos, religiosos, etc). Deste modo o conceito kantiano de estética apresenta

nas definições de arte e de belo alguns determinantes, tais como: a) Liberdade (de quem

produz o objeto e também do apreciador) e b) Coletividade (o belo deve ser

compartilhado).

É principalmente por causa dos determinantes mencionados no parágrafo

anterior que surge a incompatibilidade da proposta estética defendida neste trabalho e as

definições de estéticas mais tradicionais. Fica, então, evidente a necessidade de se

repensar o conceito e seus determinantes básicos. A estética da dissimulação se origina

em situações extremas, de necessidade, de luta pela sobrevivência e de manutenção de

individualidade, existência, subjetividade. Portanto, os indivíduos que comungam das

formas de produção e de recepção definidas pela vertente estética adotada por esta tese

possuem uma liberdade limitada, posto que nem sempre possam fazer uso de suas vozes

(já que estamos abordando, na maioria das vezes, pessoas que vivem em situações de

subalternidade). Até mesmo a coletividade, elemento imprescindível ao conceito de

estética, deverá ser repensada, pois seria esta categorizada pelo número de pessoas ou

pela representatividade destas no meio social.

Nesta tese assume-se a expressão Estética da dissimulação talvez com intenção

próxima da que leva o pesquisador Dr. Eduardo de Assis Duarte, que inspirou este

trabalho, utilizar o conceito de Poética da dissimulação. Para discutir o uso da

expressão que estimula a reflexão proposta por este trabalho, é necessário definir os

pontos de aproximação e distanciamento entre os dois conceitos.

O termo poética da dissimulação estaria associado à capacidade dissimuladora

expressa por variadas estratégias de Machado de Assis, muitas delas já analisadas por

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outros pesquisadores de forma isolada ou sem a conexão que estabeleceu o pesquisador

Eduardo Duarte. É certo que muitos trabalhos críticos sobre Machado de Assis apontam

a ironia, o sarcasmo, as litotes, os binarismo e a preterição como recursos de

dissimulação habilmente utilizados pelo escritor em seus textos. Porém, a grande

contribuição de Eduardo Duarte está no reconhecimento da relação entre o estilo

machadiano e sua afro-descendência, entre estilística e a ética autoral (o que esta tese

denomina como performance autoral) que os textos machadianos exibem. Poder-se-ia

nomear o uso desses recursos como uma “poética” ou também percebê-los como

estratégias próprias de uma estética que assumiria os sentidos (e as estratégias) de uma

experiência artística de efeitos poderosos alcançados com o uso de determinados

recursos como os já assinalados.

O Dicionário de Estética (CARCHIA, Gianni, D’ANGELO Paolo, 2003) define

o termo poética como: "(...) um termo utilizado no século XX sobretudo para evidenciar

a importância de uma análise concreta dos produtos literários ou artísticos em geral.

Neste sentido, foi usado em contraposição às teorias estéticas de orientação mais

filosófica." (CARCHIA, Gianni, D’ANGELO Paolo, 2003, p.283). O termo poética

também está associado à ideia de gênio, de genialidade, de talento individual, de uma

expressão única e rara: "Um dos princípios fundamentais da determinação moderna da

estética é a teoria do GÊNIO, a qual deve ser também inserida no contexto mais global

do processo de redescoberta da individualidade do sujeito. (CARCHIA, Gianni,

D’ANGELO Paolo, 2003, p.111)". Porém, a simples ideia do gênio também pode

apresentar aspectos generalizantes e excludentes.

Talvez, a utilização do termo tenha sido uma saída utilizada por ASSIS

DUARTE para abordar a literatura machadiana sem usar o conceito de estética. A

estética enquanto filosofia do belo está carregada de categorias que podem ser

interpretadas como desgastadas ou limitadas pela própria utilização. Contudo, é

prudente reiterar que o termo poética também apresenta suas limitações interpretativas

provenientes da solidificação de sua utilização e nestas condições, ele: "(...) não só

tende a ser intérprete das necessidades espirituais e dos movimentos culturais de uma

época, como também se revela particularmente sensível às condicionantes do poder e da

ideologia dominantes". (CARCHIA, Gianni, D’ANGELO Paolo, 2003, p. 283). O uso

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de poética também pode estar relacionado à intenção de apresentar a literatura de

Machado de Assis como algo único. O termo, portanto, também pode ser apresentado

como alusivo a elementos da obra de um escritor ou de objetos artísticos de

determinado autor.

Sendo assim, esta tese defende a utilização do termo estética por sua

abrangência e por ser muito mais pungente do que as suas próprias limitações. A sua

utilização, porém, deve concretizar-se: "numa acepção generalizada, indicando a

filosofia do belo e da arte independentemente das circunstâncias de tempo e lugar, é

uma operação que prescinde da natureza determinadamente histórica do conceito."

(CARCHIA, Gianni, D’ANGELO Paolo, 2003, p.110). Portanto, as utilizações da

denominação estética nesta tese levarão em consideração esta acepção generalizada do

termo.

Além disso, ao se estudar a história da disciplina Estética percebe-se que sua

concepção é fruto de uma necessidade de afastar o estudo do belo do campo dogmático:

"A estética nasce, precisamente, a partir do momento em que a crítica do “gosto”, ou

seja, a reflexão sobre as condições que permitem avaliar algo como sendo belo, substitui

qualquer dogmática ou doutrina metafísica do belo." (CARCHIA, Gianni, D’ANGELO

Paolo, 2003, p.110). Assim, observando esta caracterização das disciplina, é possível

encontrar bases para a defesa de uma estética dissimuladora, antidogmática que fuja de

delimitações europeizantes, até mesmo pelo fato de o conceito absorver contribuições

de cada época. Após a perda da aura e das poéticas dogmáticas, a Estética acabou

sofrendo críticas desestruturantes e adquiriu novos significados que circulam livremente

pelo campo da arte e da literatura, como se mostrará em outro momento.

O fenômeno de perda da aura, apresentado por Benjamin, propicia novas

possibilidade de pensar a estética. O valor intrínseco e imutável da obra de arte passa a

ser questionado e as crises do conceito de estética tornam-se importantes para a

dilatação do sentido antigo do termo e de suas possibilidades de aplicação. Pensar na

estética como um conceito capaz de abordar a literatura machadiana pelo aspecto da

dissimulação e pelo viés político dos Estudos da Subalternidade seria impensável em

contextos anteriores.

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Para Walter Benjamin, a perda da AURA que a arte sofre na moderna

sociedade de massas desloca o seu centro de gravidade da dimensão do

"culto" e do "ritual" para a dimensão da prática "política". Nesta passagem, a

estética intervém a dois níveis: adquirindo um carácter político, acentuando,

portanto, a sua função crítica em relação aos poderes estabelecidos mesmo

não tendo intenções programáticas específicas; ou então, fazendo com que a

política renuncie às suas prerrogativas críticas e amplie as formas de

"exposição" do poder até se tornar pressuposto indispensável aos mecanismos

que, historicamente, deram vida a fenómenos como o fascismo (Opera).

(CARCHIA, Gianni, D’ANGELO Paolo, 2003, p.114)

Ainda assim, após a perda da aura, assumir a postura de apropriar-se do termo

Estética é no mínimo uma tarefa arriscada. O nome já está carregado de elementos

definidores que o caracterizam como uma conceitualização que somente se aplica às

expressões artísticas europeias. Porém, utilizar a mesma denominação é uma estratégia

que permite apropriar-se do conceito dilatando sua abrangência. Afinal, utilizar outro

nome poderia mudar a coisa significada? E, utilizar o mesmo termo para um objeto que

antes não entraria no âmbito do estético poderia deturpar o conceito?

Toda estética que pretende considerar-se enquanto disciplina apresenta suas

categorizações e instâncias que limitam os seus campos de estudo. Todavia "A beleza

não é uma objetividade com maiores garantias nem dada antecipadamente, e também

não é uma perfeição baseada em cânones pŕe-construídos." (CARCHIA, Gianni,

D’ANGELO Paolo, 2003, p.111). A subjetividade estética talvez seja um dos elementos

que mais dificultem sua estruturação enquanto conceito.

O mundo do feliz e do infeliz, o mundo do bom e do malvado contêm

os mesmos estados de coisas, são, quanto ao ser-assim, perfeitamente

idênticos. O justo não vive noutro mundo. O eleito e o condenado tem

os mesmos membros. O corpo glorioso só pode ser o próprio corpo

mortal. O que muda não são as coisas, mas os seus limites. É como se

sobre elas estivesse agora suspensa qualquer coisa como uma auréola,

uma glória. (AGAMBEN, 1993, p. 73).

Deste modo, a Estética da dissimulação não difere muito de outras estéticas

tanto na apresentação dos elementos que categorizam uma estética quanto pelos limites

postos pela ideologia presente. Contudo, ela também apresenta um critério de valor

estético, aspectos que definam um objeto estético, uma definição de cânone. Enfim, os

nomes são os mesmos, a terminologia é a mesma, porém o lugar de enunciação é

diferente. E partindo desta premissa, todos os elementos e suas delimitações acabam

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sofrendo alterações. Por isso, serão apresentadas as categorizações e aspectos do

significado que estão relacionados com as ideias defendidas neste trabalho sobre valor

estético, objeto estético, cânone.

Considera-se que o valor de um objeto não é um atributo presente na dimensão

material, na condição física do objeto, pois há sempre uma “variabilidade dos gostos e

das escalas de valor utilizadas nas diferentes épocas e por diferentes orientações

críticas” (CARCHIA, Gianni, D’ANGELO Paolo, 2003, p.61). O conteúdo valorizado é

um corpo sutil, incorpóreo, algo que se faz presença sem se materializar. Por isso, este

elemento sutil está carregado de subjetividade, mas de uma subjetividade controlada,

limitada pelo mainstream cultural e por forças que fogem do âmbito estético (forças

econômicas ou políticas).

(...) Geralmente, o objecto estético é o referente da experiência e da

percepção estética e deve ser entendido quer como produto da arte, quer

como objecto comum ou fenómeno natural, simplesmente abordado na

perspectiva estética. Deste modo, o objecto estético fica isolado do contexto

que o rodeia, abstraído de outras modalidades possíveis de juízo e

reconduzido a um único ponto de vista, o da estética, que pode mudar

significativamente o seu estatuto como acontece nas correntes de arte

figurativa do século XX que trabalham com objectos de uso comum, não

destinados a priori à fruição estética(...). (CARCHIA, Gianni, D’ANGELO

Paolo, 2003, p.260)

Neste trabalho, em momentos de discussão do conceito de cânone, optou-se por utilizar

o termo canonizado (-a, -os, -as) para apresentar no próprio termo uma crítica à ideia de

canône como algo de valor estético cristalizado. Porém, é possível utilizar a palavra

cânone apropriando-se de sua significação menos tradicional. Isto se dá, porque “o

cânone não tem bases estéticas mas sim ideológicas (…)" (CARCHIA, Gianni,

D’ANGELO Paolo, 2003, p.61). Contudo, é necessário refletir que todo e qualquer

cânone ou reconhecimento de valor possui um critério ideológico. O Dicionário de

Estética de Gianni Carchia e Paolo D'angelo apresenta os seguintes significados para a

palavra cânone:

1) Na estética antiga, medieval e renascentista, chama-se cânone à norma ou

regra que prescreve determinadas medidas e proporções (…). 2) Em filologia,

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fala-se de cânone para indicar um corpus de obras reconhecidas como

autênticas. 3) (…) cânone entendido como o conjunto das obras (literárias,

artísticas) a que determinada tradição reconhece um valor particular (…).

(…) o cânone não tem bases estéticas, mas sim ideológicas (…). (CARCHIA,

Gianni, D’ANGELO Paolo, 2003, p.60)

Sendo assim, é possível enquadrar qualquer livro dentro da terminologia do

canônico, sem a necessidade do politicamente correto “canonizado”, em todas as

conceitualizações apresentadas anteriormente. Como proporção posto que qualquer

poética ou estilo apresenta uma estrutura particular; como algo autêntico ou como

conjunto de obras de reconhecido valor.

O valor e as categorias constituintes da disciplina estética, nomeados neste

trabalho, apresentam uma condição variável, efêmera. A estética antidogmática se funda

na provisoriedade de seu elemento. A Estética da dissimulação se configura como uma

estética antidogmática e por isso, já forçaria o conceito de cânone a assumir a

característica intrínseca da transitoriedade, da hibridez, da efemeridade.

Ao pensar em estética, defende-se que as estratégias dissimuladoras não estão

concentradas apenas na literatura de Machado de Assis. Nesse sentido, o próprio título

desta tese, A estética da dissimulação na literatura de Machado de Assis, não parte da

premissa de um nascimento da estética dissimuladora com o advento da literatura

machadiana. Antes deste trabalho foram escritos outros que se abordaram os mesmos

recursos constituintes da “estética da dissimulação”em outras obras literárias,

defendendo sua pertinência16

.

16

"Simulação e/ou dissimulação: reflexão sobre a estética em Memórias póstumas de Brás

Cubas e As visitas do Dr. Valdez" (OLIVEIRA in Scripta, V. 16, n. 31, p. 119-138, 2º Semestre 2012) e

"Maldito Tango: Disimulación y traición en Boquitas pintadas de Manuel Puig" (OLIVEIRA in

Literatura: teoría, historia, crítica. Vol. 14, n. º 2, julio - diciembre de 2012 ISSN (impreso) 0123-5931 -

(en línea) 2256-5450 www.literaturathc.unal.edu.co). No primeiro artigo há uma análise dos romances

Memórias póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis e As visitas do Dr. Valdez de João Paulo Borges

Coelho com a distinção entre o que seria a simulação e a dissimulação comparando as personagens

Prudêncio de Machado de Assis e Vicente de Coelho; No segundo há a abordagem do romance Boquitas

pintadas de Manuel Puig tentando demonstrar os processos dissimuladores desenvolvidos pelo autor na

intenção de aproximar cultura popular e cultura letrada relacionando as canções de tango e a literatura.

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A estética da dissimulação, portanto, não se encontra presa aos objetos ditos

estéticos, ela também se faz presente enquanto estética da existência em vivências

performáticas, nos posicionamentos, nas posturas corporais, no pacto social, na História

e nos testemunhos, nas máscaras utilizadas para simular e dissimular. Por isso, o termo

poética limitaria as incursões feitas por esta pesquisa. E, ainda que, ao se propor uma

Estética da dissimulação na literatura de Machado de Assis, filiada às discussões

propostas pelo trabalho de Eduardo Duarte, o caminho percorrido nesta tese é outro,

diferente, mas com o mesmo teor político herdado do primeiro.

A proposta de uma estética da dissimulação, em minhas reflexões iniciais, estava

relacionada às imagens propagadas que tentavam retratar a situação dos negros trazidos

na condição de escravizados para o Brasil. Porém, o objeto de estudo deste trabalho

exigia maior complexidade reflexiva, pois não se trata somente de indivíduos

escravizados e sim de indivíduos que por algum motivo são impedidos ou limitados no

uso de suas próprias vozes. Como exemplo é possível mencionar os livros de Machado

de Assis. Em situações encenadas em trechos dos romances selecionados estão

presentes outras situações de subalternidade e não só aquela entre senhor e escravizado.

Há a presença de outros indivíduos em situação de dependência – os que formam a

grande massa de agregados (pobres, mulheres, filhos bastardos, etc.). Neste contexto de

definição do belo, cabe pensar como se comportaria a estética da dissimulação. Esta

variante estética se apresenta como marginal. Ela possui uma coletividade que

compartilha dos mesmos ideais, que possui o mesmo modelo, porém, este contingente

não possui voz. É justamente nesta aparente impossibilidade de ocorrer que as pressões

externas impelem que a criatividade produza alternativas para driblar os controles

impostos. A liberdade que não existe no meio social encontra uma possibilidade no

artístico, ainda que dissimulado.

Portanto, a formulação do conceito de estética, aqui defendido, certamente

retoma a elementos apresentados nas propostas estéticas tradicionais, contudo se

apresenta como uma expressão transgressora. É assim que o conceito de estética da

dissimulação vai ao encontro (no sentido em que encontra um aliado e o complementa)

do conceito de Reciclagem cultural empreendido por Klucinskas e Moser (2007).

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A abordagem da reciclagem artístico-cultural, aqui almejada, leva em

consideração alguns aspectos, no campo de análise crítica concernente aos romances de

Machado de Assis e coloca em evidência a dimensão recicladora de ressignificação de

elementos estilísticos e temáticos canonizados e de matriz europeia na construção

literária do autor brasileiro; já no campo teórico observa-se no que tange às estratégias

de revalorização17

, de montagem e de sampling18

da teoria estética tradicional.

Relacionando a perspectiva da reciclagem cultural com a questão do vazio do

objeto artístico defendida em parágrafos anteriores, surge o performático presente tanto

na produção quanto na recepção crítica da arte. Em Machado de Assis buscar-se-á

trabalhar com a performance de negritude: a afrodescendência do autor. A performance,

defendida neste trabalho, é composta por traços, gestos, idiossincrasias que estão

apresentadas no corpo do texto e que acabam representando o corpo do autor. São links,

sinapses, do texto literário e do escritor ao escrever representando a ligação nada

simples entre literatura e vida com a forma de hipertextos. O desenvolvimento da tese

de uma performance de negritude está relacionado com a performance autoral, com a

função autor e com a terceira voz presente em seus romances. Com o trabalho com estes

termos buscarei demonstrar que há uma coerência entre produção artística e

posicionamento político por parte do autor (coerência que denomino performance

autoral ou função autor). Contudo não se deve confundir esta função autoral como uma

forma de biografismo, não é relacionar vida e produção artística puramente. A relação

que estabeleço é entre discurso artístico e discurso político.

A performance pode ser encontrada em recursos textuais que permitem que se

ouça a voz do autor em expressão (tom ou atitude). Afinal, quem está falando em

determinada passagem, principalmente nas mais emblemáticas? Narrador, personagem,

autor? Depois da morte do autor proposta por Barthes, não se almeja aqui buscar a voz

autoral como se fosse uma leitura autobiográfica dos textos literários.

17

Refere-se à alteração de critérios de valores. 18

Sampling é uma técnica desenvolvida a partir de novas tecnologias digitais que permite utilizar uma

base de qualquer música para criar uma nova. Os elementos da música anterior são mantidos e novos

elementos são acrescentados gerando alterações que em alguns casos provocam uma mudança tão radical

que a nova música acaba fazendo apenas uma alusão à primeira. Desta forma me aproprio do termo tal

como fez Klucinskas & Moser, para pensar a estética.

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O “verdadeiro” Machado de Assis, sua subjetividade, jamais será encontrada

escancarada em seus textos. Ele se encontra submerso sob seus disfarces, o mais

encolhido dos caramujos. Em seus textos, nem mesmo as suas personagens são

conhecidas em profundidade pelo leitor – são personas, pessoas de papel, por isso são

tão complexas – e esta complexidade afasta os que leem de suas intimidades, pois elas

também atuam no grande palco da existência.

A terceira voz19 (que esta tese objetiva encontrar) apresentada em seus romances

não é a voz autoral (da pessoa do autor) – é a voz do autor-função que representa muito

mais do que só uma personalidade. Esta função está marcada pelo local ocupado

(enunciação), modo em que vive, recepção dos textos e sensibilidade dos leitores. Esta

sim é possível ser buscada na rede estrutural e semântica da escrita.

Trabalhando com vozes é possível verificar que a denominada polifonia

bakhtiniana é presença marcante nos romances. Porém, estas vozes estão quase sempre

em desigualdade de manifestação. Desta forma, elas lutam, algumas são anuladas, se

chocam, se encontram, algumas sobressaem. Sendo assim, é necessário levar em

consideração que a presença de várias vozes não necessariamente significa espaço,

ocorrência e peso igual para todas. O estudo aprofundado da literatura machadiana

propiciou a verificação prática desta realidade, principalmente observada em seus

romances pelo controle maior estabelecido pela recepção da obra machadiana e pela

própria sociedade perante as funções prestigiosas que o autor ocupava. É preciso

reconhecer que há um impulso realista (não gostaria de utilizar a palavra estilo ou, ainda

pior, estilo de época por acreditar que a literatura de Machado de Assis fuja dos

modismos ou das gavetas empregadas e até mesmo impostas na organização do cânone

brasileiro) nos textos do bruxo do Cosme Velho. Portanto, não poderia ele de forma

romântica criar personagens subalternos fazendo uso da voz de modo similar ao dos

representantes da elite.

Estas vozes não conseguiriam sobreviver se não fosse o desejo íntimo dos

sujeitos que tiveram podados seus direitos de existir. A arte nestes momentos passa a

assumir a trágica função de estética da existência propiciando para os subalternos uma

19

Assunto a ser tratado em capítulo específico.

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alternativa: fazer de suas vidas uma expressão artística, uma performance da

sobrevivência. Por isso, a seção posterior abordará de modo particular a estética da

existência como subterfúgio empregado com objetivo de manter vivas as vozes

subalternas.

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O cuidado de si ou a arte da existência

Se não tivéssemos declarado boas as artes e inventado essa espécie de culto

do não-verdadeiro: a compreensão da universal inverdade e mendacidade,

que agora nos é dada pela ciência – a compreensão da ilusão e do erro como

uma condição da existência que conhece e que sente -, não teria podido ser

tolerada. (...) Como fenômeno estético, a existência é sempre, para nós,

suportável ainda, e pela arte foi-nos dado olho e mão e antes de tudo a boa

consciência para, de nós próprios, podermos fazer um tal fenômeno.

(NIETZSCHE, 1983, p. 197-198)

É nos momentos de grande crise, períodos em que as liberdades individuais são

ameaçadas de forma tão extrema e violenta que se faz necessário o posicionamento da

arte diante da situação que se configura ao seu redor. Um destes momentos devastadores

da história da humanidade pode ser situado no período da escravidão. Neste meio tão

devastador que amedronta tanto a existência, faz-se urgente repensar coisas mais básicas

e tidas como elementares como o próprio ato de existir, de reconhecer a própria

existência. A Estética da Dissimulação defendida nesta tese se configura como uma

alternativa para que indivíduos resilientes mantenham suas identidades. A arte precisa

deixar, então, de ser algo exterior ao indivíduo e passar a constituir sua forma, passa a

sustentar sua subjetividade – o ser torna-se mídia e objeto de sua própria. Esta obra que

se consolida no próprio ato de viver é que se estrutura por meio do cuidado de si.

(...) estas devem ser entendidas como as práticas racionais e voluntárias pelas

quais os homens não apenas determinam para si mesmo regras de conduta,

como também buscam transformar-se. Modificar-se em seu ser singular, e

fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e

que corresponda a certos critérios de estilo. (FOUCAULT, 2004, p. 198-199).

A construção de uma estética ética apoiada na noção do cuidado de si se

distancia da estetização da ética. A segunda é fruto da sociedade do espetáculo e,

portanto, está relacionada a este momento de estetização banal do mundo. O cuidado de

si se relaciona com o objetivo ético da estética quando o ser faz de sua própria vida uma

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obra artística. É exatamente este o esforço de Foucault, reativar os traços antigos da arte

clássica para amenizar o vazio existencial presente: “Eis o que tentei reconstituir: a

formação e o desenvolvimento de uma prática de si que tem como objetivo constituir a

si mesmo como o artesão da beleza de sua própria vida” (FOUCAULT, 2004, p. 244).

Os estudos do cuidado de si na obra de Foucault se iniciaram no livro A

hermenêutica do sujeito. Neste livro, o autor abordará a situação em que o Estado passa

a ser o senhor, o suserano, que possui o direito de decidir sobre as formas de o vassalo

viver e de morrer. Este direito sobre a existência não só do corpo físico, mas também do

corpo enquanto materialidade da subjetividade é denominado biopoder. O conjunto de

manobras executadas pelos indivíduos na tentativa de resistir à estatização do direito de

si é o que é denominado cuidado de si e que compõe a biopolítica. O termo cuidado de

si é proveniente dos gregos e constitui uma prática de extrema complexidade que

agrupava um grupo de prática que estavam relacionadas aos cuidados consigo mesmo –

epiméleia heautoû em grego ou em latim cura sui inventado por Sócrates (470 a.c – 399

a.c). Este cuidado almeja principalmente tomar as rédeas da existência, assumir o

controle da própria vida, encontrar sua própria identidade, é estar ciente das

transformações e mutações e ainda assim ser, existir, autenticamente. A alteridade surge

no momento em que o ser relaciona-se com o outro, com o mundo exterior, sem anular-

se, sem deixar de ser, sem deixar-se dominar e sem buscar assumir o biopoder do

outro: "o processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito, mais precisamente

de uma subjetividade, que evidentemente não passa de uma das possibilidades dadas de

organização de uma consciência de si" (FOUCAULT, 2004, p. 262).

Em primeiro lugar, penso efetivamente que não há um sujeito soberano,

fundador, uma forma universal de sujeito que poderíamos encontrar em todos

os lugares. Sou muito cético e hostil em relação a essa concepção do sujeito.

Penso, pelo contrário, que o sujeito se constitui através de práticas de

sujeição ou, de maneira mais autônoma, através de práticas de libertação, de

liberdade, como na Antiguidade - a partir, obviamente, de um certo número

de regras, de estilos, de convenções que podemos encontrar no meio cultural.

(FOUCAULT, 2004, p. 291)

A prática do cuidado de si apresenta-se primeiramente no Alcebíades de Platão

(428/427 a.c – 347/346 a.c) e reaparece nos textos helenistas e romanos posteriores, nas

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Confissões de Santo Agostinho (354-430 d.c), nas Meditações de Descartes (1596-1650)

e nas Confissões de Rousseau (1712-1778). Em Foucault, há o esforço em aproximar

dois modelos de práticas de si: a moderna e a grega:

De um ponto de vista filosófico estrito, a moral da Antiguidade grega e a

moral contemporânea nada têm em comum. Em contrapartida, se tomamos o

que estas morais prescrevem, impõem e aconselham, elas são

extraordinariamente próximas. É preciso fazer aparecer a proximidade e a

diferença e, através de seu jogo, mostrar de que modo o mesmo conselho

dado pela moral antiga pode funcionar de modo diverso em um estilo

contemporâneo de moral. (FOUCAULT, 2004, p. 257)

A prática-de-si que almejo desenvolver está mais relacionada com a bioética e o

poder de controlar o próprio corpo perante a tirania do Estado que insiste em controlar

as liberdades corporais dos sujeitos, está relacionada com a techne tou biou ou arte da

existência. Este estudo tardio de Foucault configura-se complexo no momento de

relacionar o cuidado-de-si com o cuidado-dos-outros, a possível ou impossível relação

entre o governo de si próprio e o governo dos outros. A complexidade também se

configura na reflexão ética sobre a individualidade, a verdade e o exercício do poder. A

questão foi tratada por Foucault por meio de uma investigação histórico-filosófica sobre

as práticas-de-si:

O problema das relações entre o sujeito e os jogos de verdade havia sido até

então examinado por mim a partir seja de práticas coercitivas..., seja nas

formas de jogos teóricos ou científicos... em meus cursos no Collège de

France, procurei considerá-lo através do que se pode chamar de uma prática

de si, que é, acredito, um fenômeno bastante importante em nossas

sociedades desde a era greco-romana, embora não tenha sido muito estudado.

Essas práticas de si tiveram, nas civilizações grega e romana, uma

importância e, sobretudo, uma autonomia muito maior do que tiveram a

seguir, quando foram até certo ponto investidas pelas instituições religiosas,

pedagógicas ou do tipo médico e psiquiátrico. (FOUCAULT, 2004, p. 264-

265)

Mais e mais a sociedade foi se afastando deste conhecimento de si e buscando

algo exterior, um conhecimento exterior, uma hermenêutica do exterior. Algo que se faz

muito constante na obra machadiana, uma crítica à supervalorização do exterior em

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detrimento do interior. Os livros do autor, de forma mais intensa em alguns, apresentam

a questão da simulação e da dissimulação que contrapõem a ideia de existência no

sentido mais amplo do termo. Contudo, a narrativa que realmente aborda uma teoria

sobre o assunto é a do conto “O espelho”20

. Ali fica nítida a divisão entre a alma interior

e a exterior: “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro

para fora, outra que olha de fora para dentro...” (ASSIS, 2008, p.323). Por vezes, as

personagens machadianas que representam a elite patriarcal brasileira valorizam mais a

alma de fora e acabam por aniquilar a interior. As personagens que foram tomadas por

um forte impulso simulador (fingem ser o que não são ou que fingem possuir o que não

possuem) dificilmente conseguiriam alcançar a estética da existência, mas aquelas que

dissimulam (fingem não ser o que verdadeiramente são ou fingem não ter aquilo que

possuem) conseguem manter íntegras suas identidades. Sendo assim, o que aqui se

denomina Estética da Dissimulação se aproxima do conjunto de estratégias

relacionadas ao cuidado de si.

Segundo Foucault o conhecimento de si mesmo surge três formas

hermenêuticas: o método platônico, o cristão e o helenístico. O último modelo

hermenêutico foi obliterado pelos dois primeiros, o objetivo de Foucault, então, é

retomar este modelo por meio da releitura dos estoicos, epicuristas e cínicos.

O cuidado de si, uma noção importante durante os áureos tempos do

pensamento helenístico e romano na antiguidade, até o limiar do

Cristianismo, tendo inspirando a filosofia antiga e em especial o filósofo

Sócrates foi perdendo força, sobretudo a partir da filosofia cartesiana. Parece-

me que o ‘momento cartesiano’ [...] atuou de duas maneiras seja

requalificando filosoficamente o gnôthi seautón (conhece-te a ti mesmo), seja

desqualificando, em contrapartida, a epiméleia heautoû (cuidado de si).

(FOUCAULT, 2004, p. 18).

20 O conto "Espelho" está acompanhando de um subtítulo: "Esboço de uma nova teoria da alma humana".

O subtítulo não poderia ser o mais apropriado. Nesta narrativa, Machado de Assis apresenta sua

teoria, sua análise da sociedade de aparências. O narrador afirma que temos duas almas e que há casos

em que a perda da alma exterior (máscara) implica a perda da existência. Há indivíduos, portanto, que

possuem em sua essência apenas a máscara e perdendo esta, perdem tudo. As pessoas que possuem

apenas a máscara representam a simulação e aquelas que possuem máscara ou alma exterior e

conseguem manter a alma interior são as que dissimulam. Outro conto do autor que pode facilitar o

entendimento destas duas almas é "Teoria do medalhão", não por acaso os dois contos carregam em

seus títulos o termo "teoria". Em "Teoria do medalhão", um pai dá conselhos ao filho e o tenta

persuadir a seguir a carreira de "medalhão" e de "medalhão completo", ou seja, viver de aparências.

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A queda nas práticas dos cuidados-de-si foi drástica para a filosofia e

principalmente para as relações do sujeito consigo mesmo e com o outro. O conhece-te

a ti mesmo cartesiano não foi uma prática-de-si e se configurou mais como um

individualismo do ser que se isola ao passo que a epiméleia heatoû necessita da

alteridade para produzir conhecimento. O cristianismo também corroborou para a

defasagem da busca do conhecimento de si, pois no método cristão prevalece a auto-

anulação e um retorno à menoridade, posto que o indivíduo coloca toda a

responsabilidade de sua vida em Deus ou em Cristo.

(...) em nossas sociedades, a partir de um certo momento – e é muito difícil

saber quando isso aconteceu –, o cuidado de si se tornou alguma coisa um

tanto suspeita. Ocupar-se de si foi, a partir de um certo momento, denunciado

de boa vontade como uma forma de amor a si mesmo, uma forma de egoísmo

ou de interesse individual em contradição com o interesse que é necessário

ter em relação aos outros ou com o necessário sacrifício de si mesmo. Tudo

isso ocorreu durante o cristianismo, mas não diria que foi pura e

simplesmente fruto do cristianismo. A questão é muito mais complexa, pois

no cristianismo buscar sua salvação é também uma maneira de cuidar de si.

Mas a salvação no cristianismo é realizada através da renúncia a si mesmo.

Há um paradoxo no cuidado de si no cristianismo... (FOUCAULT, 2004, p.

268)

Pensar uma estética da existência na literatura machadiana é uma forma de

explicar o uso da arte, da performance e da dissimulação como ferramentas para

sobreviver em um ambiente tão hostil. Quando se pensa em indivíduos subjugados

sejam os escravizados, os dependentes, os que vivem de favor; a primeira impressão

seria a de imaginar que não se poderia abordar uma arte da existência posto que estes

sujeitos não existem em suas individualidades. Contudo, é o que este trabalho visa

provar: a existência de uma voz, ainda que subalterna no âmbito de espaços tão

limitadores.

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A voz subalterna

Y es tanta la tiranía

De esta disimulación

Que aunque de raros anhelos

Se me hincha el corazón,

Tengo miradas de reto

Y voz de resignación.

(ALFONSO REYES, 1959, p. 68)21

A pesquisa do conceito de subalterno parte de uma provocação proveniente da

leitura do ensaio Pode o subalterno falar? [Can the subaltern speak?] (SPIVAK, 1988).

Neste livro, Spivak levanta a questão da existência de uma voz subalterna e da

possibilidade desta ser ouvida. Até hoje, a resposta passa por formulações complexas.

Neste momento, não refletirei muito sobre a questão formulada por Spivak (algo que

definirei com maior especificidade em capítulos posteriores). Acelerarei a resposta,

resumindo minha tese e afirmando que “sim, é possível para o subalterno falar e

também é possível que sua voz seja ouvida”. Entretanto, o caminho para que isto ocorra

passa necessariamente pela arte, pela estética e principalmente pela subversão. Porém, a

ação subversiva que pretendo discutir não se dá de forma direta. Ela ocorre de forma

sutil – é o que estou denominando como Estética da dissimulação.

O termo subalterno está carregado pela situação da dependência. A

complexidade surge quando se aprofunda nas reflexões sobre o que é ser dependente. As

relações de dependência podem ser de origem econômica, cultural, de gênero, étnicas,

contudo há algo que é comum a todas: a presença de uma estrutura dominante (que

nomearei nesta tese de várias formas diferentes tais como: elite ou metrópole) que

subjuga o grupo dependente estabelecendo os limites e as peculiaridades de sua

existência.

A inspiração para iniciar esta pesquisa surgiu do texto de Spivak, entretanto é

21

“E é tamanha a tirania / Desta dissimulação/Que ainda que as raras lembranças/ Façam palpitar meu

coração/ Tenho olhar desafiador/ E voz de resignação.”

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necessário deixar claro que os Estudos Subalternos já possuem uma gama bem

diversificada de pensadores de renome e que devem ser mencionados. Para isso é

importante mencionar que há dois grupos mais importantes: 1) Grupo Latino em que os

pensadores mais influentes são os críticos: John Beverly, Robert Carr, Jose Rabasa,

Ileana Rodriguez, Javier Sanjines (fundadores do grupo em 1992); 2) Grupo Sul-

Asiático que possui como pesquisadores mais conhecidos os nomes de: Ranajit Guha,

Gayatry Spivak e Dipesh Chakrabarty.

Subalternidade, da forma que a entendo, já se distancia um pouco do conceito de

subalterno puro e simples. Enquanto o segundo determina um grupo de pessoas, o

primeiro denomina um comportamento que no primeiro momento é imposto e que

posteriormente pode vir a fazer parte da própria subjetividade. Subalternidade, por ser

caracterizada por um espaço e tempo definido, acaba gerando valores culturais distintos

dos empregados pela elite.

Estabelecidos os termos volto à questão inicial recolhida do título do livro de

Spivak Pode o subalterno falar?. A questão parte da principal barreira que impede ou

limita a voz do subalterno – a representatividade. Por estarem em uma condição de

dependência, os subalternos não conseguem (ou são forçados a isso) expor suas vozes

de forma autônoma e dependem de um representante, este pode falar por como ocorre

em âmbito político ou pode re-presentar como ocorre na filosofia, na arte, na literatura.

[...] representação estão correndo juntos: representação como “falar por”,

como na política e representação como “re-presentar” como na arte ou

filosofia. Uma vez que a teoria também é apenas ação, o teórico não

representa o (falar por) dos grupos oprimidos. […] Este dois sentidos de

representação dentro do estado de formação e da lei, por um lado, e a

predição do sujeito, por outro lado, estão relacionados, mas irredutivelmente

descontínuas. (SPIVAK. Can the subaltern speak? p.275)22

Estou mais interessado na segunda acepção de representação: re-presentar.

22

Two senses of representation are being run together: representation as “speaking for”, as politics, and

representation as “re-presentation” as in art or philosophy. Since theory is also only “action”, the

theoretician does not represent (speak for) the oppressed group. [… ] These two senses of representation-

within state formation and the law, on the one hand, and in subject-predication, on the other-are related

but irreducibly discontinuous (SPIVAK. Can the subaltern speak? p.275).

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Como o subalterno é representado na literatura? Seria possível ouvir sua voz23? (o

subalterno que é objeto desta tese é aquele representado na obra de Machado de Assis (e

que pode ser representativo de um contingente de indivíduos que viveram no Rio de

Janeiro do século XIX em situações de subalternidade): negro [escravizado ou o

alforriado dependente], o agregado, a mulher). Respondi, de forma ligeira, o

questionamento da voz em parágrafo acima. Sim, é possível o subalterno falar. Só que

para isso é necessária toda uma série de instrumentos que são mais facilmente

empregados no meio artístico e literário. A este conjunto de recursos que possibilitam

que a voz subalterna seja ouvida denomino: Estética da dissimulação.

A Estética da dissimulação está profundamente relacionada com os conceitos de

subalternidade e subalterno, pois ela também ocorre em contextos bem específicos de

dominação. Nestas situações a estética não funciona somente como um meio de

sensibilizar e humanizar as pessoas, ela funciona mesmo como meio de sobreviver e de

existir. O silêncio provocado pelo não poder falar que é característico em situações de

subalternidade gera um viver sem existir.

Desta forma ela se aproxima muito da Estética da existência (pensada por

Foucault no livro História da Sexualidade: o uso dos prazeres, 2006). A também

nomeada Estilística existencial deveria ser empregada no plural para exprimir

corretamente sua multiplicidade de formas (sendo assim, estou associando a

dissimulação a uma destas formas). Foucault utiliza juntamente com ela os conceitos de

forma, estilo, arte, beleza. Esta denominação estética aparece na Introdução ao segundo

volume de História da Sexualidade: o uso dos prazeres (2006) em momento em que seu

autor se preocupa com a problematização da moral. Diante desta questão complexa, ele

(assim como o fez anteriormente Nietzsche) vai buscar nas características da cultura

Greco-latina, nos escritos epicuristas e estóicos, o caminho que deveria seguir. Assim,

ele chega à interessante constatação de que a arte estava profundamente ligada à

existência (artes da existência) e proporcionava ao indivíduo o controle, a

governabilidade de si:

23

A relação de dependência é caracterizada pelo silêncio. A voz que menciono não é o puro som emitido

pelas cordas vocais, é algo mais complexo. Voz e fala são categorias políticas que estão relacionadas ao

poder de autonomia do sujeito em manifestar seus pensamentos.

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(...) à luz dos temas antigos relacionados ao cuidado de si, ao trabalho de si

sobre si, Foucault propõe uma arte de viver, uma estética da existência, um

estilo de vida, que não reproduziria, evidentemente, os exercícios espirituais

da Antiguidade, mas que abriria ao sujeito a possibilidade de se constituir na

liberdade, em oposição aos poderes exteriores. (...) O que caracteriza mais

particularmente a noção que Foucault tem do cuidado de si é, talvez, a

introdução da perspectiva estética, a de uma existência que se cria como um

objeto de arte (HADOT, 1996, p. 22).

Há todo um processo em que o que é mais comum de ocorrer é passagem da

simulação para a dissimulação. Sem apropriar-se dos meios de dominação utilizados

pela elite se tornaria impossível superar as limitações impostas. Por isso é necessário

simular, aprender simulando, repetir. É preciso dominar todo um conjunto de códigos e

de seus significados e só há uma forma de apreendê-los: repetindo, repetindo – até que

ocorra a assimilação. E afinal, o que é prestígio/ou poder, senão o domínio aceitável de

um conjunto de códigos que façam com que o indivíduo seja respeitado ou tenha sua

voz ouvida.

É desta forma que Octavio Paz observará a realidade cultural mexicana. O povo

mexicano, assim como todos os povos das Américas, foi formado pelo processo

traumático da colonização. Neste processo, o povo indígena (povo autóctone) sofreu

demasiadamente com as mais variadas formas de violência. Este fato histórico marcará

profundamente o modo de ser e de agir deste povo. A dissimulação fará parte das

estratégias de existência utilizadas por eles durante todo o processo de colonização e até

mesmo posteriormente:

Quizá el disimulo nació durante La Colonia. Indios y mestizos tenían, como

en el poema de Reyes, que cantar quedo, pues “entre dientes mal se oyen

palabras de rebelión”. El mundo colonial ha desaparecido, pero no el temor,

la desconfianza y el recelo. Y ahora no solamente disimulamos nuestra cólera

sino nuestra ternura. Cuando pide disculpas, la gente del campo suele decir:

“Disimule usted, señor”. (OCTAVIO PAZ, 2000, P. 47)24

Entretanto, como foi afirmado no início, o primeiro processo de defesa que se

24

Talvez a dissimulação tenha nascido durante A Colonização. Índios e mestiços tinham, como no poema

de Reyes, que cantar quieto, pois “entre dentes mal se escutam palavras de rebelião”. O mundo colonial

desapareceu, mas não o temor, a desconfiança e o receio. E agora não somente dissimulamos nossa

cólera, mas também nossa ternura. Quando pede desculpas, a gente do campo costuma dizer: “Dissimule

senhor”. (OCTAVIO PAZ, 2000, P. 47)

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passa é o de simulação, o de imitação dos modelos considerados de prestígio. Assim, o

indivíduo na condição de subalterno passa a ser um espelho que reflete as atitudes de

classes dominantes. Em muitos casos ela se torna um hábito tão arraigado culturalmente

que passa a fazer parte da própria identidade. Nestes casos, fica complicada a passagem

do estágio simulador para o estágio dissimulador.

La simulación, que no acude a nuestra pasividad, sino que exige una

invención activa y que se recrea a sí misma a cada instante, es una de

nuestras formas de conducta habituales. Mentimos por placer y fantasía, sí,

como todos los pueblos imaginativos, pero también para ocultarnos y

ponernos al abrigo de intrusos. (OCTAVIO PAZ, 2000, P. 44) 25

Este processo exige o dinamismo constante para que se dê de forma efetiva. O

simulador deve atualizar-se constantemente para que não se apresente equivocadamente

e seja ridicularizado. Este estágio é importante para que o processo evolua para algo

superior. Toda esta evolução evoca elementos artísticos atrelados a valores culturais.

Nesta busca por ser o que verdadeiramente não é, o simulador passa a fazer arte – uma

arte de sobrevivência, necessária, indispensável. O improvisar constante exige uma ação

performativa incansável – um constante desafio de sobrevivência.

El simulador pretende ser lo que no es. Su actividad reclama una constante

improvisación, un ir hacia adelante siempre, entre arenas movedizas. A cada

minuto hay que rehacer, recrear, modificar el personaje que fingimos, hasta

que llega un momento en que realidad y apariencia, mentira y verdad, se

confunden. De tejido de invenciones para deslumbrar al prójimo, la

simulación se trueca en una forma superior, por artística, de la realidad.

Nuestras mentiras reflejan, simultáneamente, nuestras carencias y nuestros

apetitos, lo que no somos y lo que deseamos ser. Simulando, nos acercamos a

nuestro modelo y a veces el gesticulador, como ha visto con hondura Usigli,

se funde con sus gestos, los hace auténticos. (OCTAVIO PAZ, 2000, p. 44)26

25

A simulação, que não vem de nossa passividade, mas ao contrário exige uma invenção ativa e que se

recria a si mesma a cada instante, é uma de nossas formas de conduta habituais. Mentimos por prazer e

fantasia, sim, como todos os povos imaginativos, mas também, para ocultar-nos e colocar-nos ao abrigo

de intrusos. (OCTAVIO PAZ, 2000, p. 44) 26

O simulador pretende ser o que não é. Sua atividade reclama uma constante improvisação, um ir

adiante sempre, entre areias movediças. A cada minuto é precisa refazer, recriar, modificar o personagem

que fingimos, até que chega um momento em que realidade e aparência, mentira e verdade, se

confundem. De tecido de invenções para deslumbrar ao próximo, a simulação se transforma numa forma

superior, por artística, da realidade. Nossas mentiras refletem, simultaneamente, nossas carências e nossos

apetites, o que não somos e o que desejamos ser. Simulando, nos aproximamos de nosso modelo e às

vezes o gesticulador, com já observou com profundidade Usigli, se funde com seus gestos, os faz

autênticos. (OCTAVIO PAZ, 2000, p. 44)

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E, como acentua Paz, “Esclavos, siervos y razas sometidas se presentan siempre

recubiertos por una máscara, sonriente o adusta27” (OCTAVIO PAZ, 2000, p. 78). Só

que em algumas situações, a simulação precisa ocorrer de forma muito intensa. Para que

o individuo seja realmente ator de suas ações, ele precisa atuar. O sofrimento surge no

momento em que o simulador alcança o auge do processo (momento em que ele pode

avançar para o estágio de dissimulação ou não) e a máscara quase que se funde em seu

ser – a observação e repetição o levaram a aperfeiçoar tanto suas atitudes que já é

possível improvisar – o estágio do “ser como”. Ainda neste momento, o simulador

possui real consciência de sua situação, de sua condição e de suas identidades. Ele,

ainda que mimetizando todos os gestos, reconhece sua condição de espelho.

La simulación es una actividad parecida a la de los actores y puede expresar-

se en tantas formas como personajes fingimos. Pero el actor, si lo es de veras,

se entrega a su personaje y lo encarna plenamente, aunque después,

terminada la representación, lo abandone como su piel la serpiente. El

simulador jamás se entrega y se olvida de sí, pues dejaría de simular si se

fundiera con su imagen. Al mismo tiempo, esa ficción se convierte en una

parte inseparable – y espuria – de su ser: está condenado a representar toda su

vida, porque entre su personaje y él se ha establecido una complicidad que

nada puede romper, excepto la muerte o el sacrificio. La mentira se instala en

su ser y se convierte en el fondo último de su personalidad. (OCTAVIO PAZ,

2000, P. 46)28

Simular está relacionado à capacidade do indivíduo em esquivar-se de sua

condição utilizando para isso somente sua astúcia. É uma arte de engano. É dominando

esta arte que o indivíduo alcança a governabilidade de si, suas ações, seu pensar, a

possibilidade de sobreviver, ainda que seja necessário para isso mascarar suas

27

Escravos, servos e raças subjugadas se apresentam sempre cobertos por uma máscara, sorridente ou

séria (OCTAVIO PAZ, 2000, p. 78). 28

A simulação é uma atividade parecida com a dos atores e pode expressar-se em tantas formas conforme

o número de personagens que fingimos. Mas, o ator, se é realmente um ator, se entrega a sua personagem

e a encarna completamente, ainda que depois, terminada a representação, a abandone como a serpente

abandona sua pele anterior. O simulador jamais se entrega e se esquece de si, pois deixaria de simular

caso viesse a fundir-se com a imagem. Ao mesmo tempo, essa ficção se converte em uma parte

inseparável – e espúria – do seu ser: está condenado a representar toda sua vida, porque entre sua

personagem e ele se estabeleceu uma cumplicidade que nada é capaz de romper, exceto a morte ou o

sacrifício. A mentira se instala em seu ser e se converte no fundo último de sua personalidade (OCTAVIO

PAZ, 2000, P. 46).

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identidades. Assim, ele passa para o segundo estágio: a dissimulação (o termo não está

sendo utilizado aqui com sua carga de negatividade, dissimular é sobreviver sem deixar

de ser). A dissimulação é o estágio posterior à simulação. Dissimular é não chamar a

atenção, é não chocar. Deste modo, é possível ocupar lugares, assumir posições. Isso só

ocorre, pois o dissimulador (aparentemente) não coloca em perigo o status quo social.

Simular es inventar o, mejor, aparentar y así eludir nuestra condición. La

disimulación exige mayor sutileza: el que disimula no representa, sino que

quiere hacerse invisible, pasar inadvertido – sin renunciar a su ser - . El

mexicano excede en el disimulo de sus pasiones y de sí mismo. Temeroso de

la mirada ajena, se contrae, se reduce, se vuelve sombra y fantasma, eco. No

camina, se desliza; no propone, insinúa; no replica, rezonga; no se queja,

sonríe; hasta cuando canta – si no estalla y se abre el pecho – lo hace entre

dientes y a media voz, disimulando su cantar (…) (OCTAVIO PAZ, 2000,

p.46-47)29

É adaptando-se a este modo de viver que surge a Estética da dissimulação. Ela

se organiza como uma guerrilha. Apropria-se das matrizes culturais de prestígio

(matrizes europeias), aquelas que são de uso da classe dominante. Esta armadilha

funciona como um cavalo de Tróia. O dissimulado reconhece que a única forma de

sobreviver à dominação alheia é aprendendo a língua daquele que o subjuga. E passa a

utilizar a língua do dominador com tamanha desenvoltura que a subverte e a altera. É no

interior da própria língua, é seguindo suas regras de funcionamento que surge o brilho

da criatividade do oprimido que domina a língua de seu opressor encontrando

subterfúgios para que sua própria voz seja ouvida. Ele também reconhece que a luta

direta só trará mais dor e sofrimento. Por isso, alguns escolhem caminhar pelo sensível,

pela arte de dissimular. Quanto mais aprofunda em sua arte, mais complexa esta se torna

e também mais dissimuladora. A arte de apossar-se das armas dos outros para ter

condições de lutar. Semelhante à tática do jabuti, referido em texto de Antônio Callado:

"O jabuti que só possuía uma casca branca e mole deixou-se morder pela onça que o

atacava. Morder tão fundo que a onça ficou pregada no jabuti e acabou por morrer. Do

29

Simular é inventar, ou melhor, aparentar e assim iludir nossa condição. A dissimulação exige maior

sutileza: o que dissimula não representa, mas quer fazer-se invisível, passar inadvertido – sem renunciar

seu ser. O mexicano excede na dissimulação de seus sentimentos e de si mesmo. Temeroso do olhar

alheio, se contrai, se reduz, se converte em sombra e fantasma, eco. Não caminha, se desliza; não propõe,

insinua; não replica, resmunga; não se queixa, sorri; até mesmo quando canta – se é sincero e abre o

coração – o faz entre os dentes e com voz trêmula, dissimulando seu cantar.

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crânio da onça o jabuti fez seu escudo" (CALLADO, 1977, p.287).

Esta capacidade de fazer uso da máscara alheia constitui uma técnica de

dissimulação. Apropriar-se do modo de vida da elite, no primeiro momento para repetir

(simulação), no segundo momento para transgredir (dissimulação). Desta forma, seria

possível fazer uso de sua própria voz de forma sorrateira, sem alardes. E apropriando-se

desta e de outros ardis que Machado de Assis estrutura seu texto, como poderá ser

observado em toda a tese e enquanto introdução no tópico a seguir.

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Estratégias de dissimulação: literatura brasileira e literatura

afrodescendente

Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a

lei, que a Regente sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí, eu, o

mais encolhido dos caramujos, também entrei no préstito, em carruagem

aberta (...). Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra

ter visto. (ASSIS, “A semana” 14/02/1893).30

A literatura brasileira não é formada por um bloco fechado, homogêneo, linear31.

Ela constitui um mosaico, um imenso rio donde se emergem vertentes. E uma dessas

vertentes “recentemente” pesquisada é a da literatura afro-brasileira. Mas, o que faz de

Machado de Assis um escritor dessa vertente? Para pensar um autor como afro-

brasileiro faz-se necessário o preenchimento de alguns requisitos: o escritor deve ser

negro ou mulato, deve assumir-se nesta condição e em sua escritura deve abordar temas

que permeiam o universo afrodescendente. Sendo assim concluímos por razões lógicas

que Machado preenche todas as condições.

Como se sabe, Machado foi identificado, pelo crítico Harold Bloom, como o

maior escritor negro de todos os tempos (declaração que chocou muitos críticos

brasileiros – a afrodescendência do fundador da Academia Brasileira de Letras

30

O pequenino fragmento apresentado acima (da ilustre obra de Machado de Assis) é uma mônada do

trabalho desenvolvido nesta tese, pois dele nasceram as reformulações que serão defendidas ao longo

deste trabalho. A crônica acima me foi apresentada em época já distante, quando iniciei meu curso de

Letras na Universidade Federal de Minas Gerais, pelo professor Eduardo Assis Duarte. 31

Tomando posição explicitamente benjaminiana, Zila Berndt defende a necessidade de “pentear o pelo

no sentido inverso ao do seu crescimento (...): ler a história literária não como uma totalidade fechada,

mas como possibilidade. Percebe-la permanentemente inacabada deverá permitir que autores ou

movimentos possam transitar da esfera da sombra para a esfera da consagração”. (BERND, 1988, p.16)

Posição assumida também por Eduardo Assis Duarte: “A conformação teórica da literatura “afro-

brasileira” ou “afrodescendente” passa necessariamente pelo abalo da noção de uma identidade nacional

una e coesa. E, também, pela descrença na infalibilidade dos critérios de consagração crítica presentes nos

manuais que nos guiam pela história das letras aqui produzidas”. (DUARTE, Literatura e

afrodescendência in:

www.acaocomunitaria.org.br/discussoes_tematicas/literatura_e_afro_descendencia.pdf

acesso em 20 de abril de 2012).

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reconhecida por um renomado professor e crítico literário norte-americano). Mas cabe

ressaltar que de suas produções literárias, são em suas crônicas e contos que

encontramos de forma mais evidente a presença de sua negritude.

Alguns pesquisadores e biógrafos acusam o autor com teses de “aburguesamento”,

branqueamento32 e total passividade política33 perante os dramas sociais de seu tempo

(como a escravidão). Entretanto, estes estudiosos assumem esta postura justamente

porque baseiam suas pesquisas na presença pouco expressiva de negros em seus

romances.

Na condição de mulato, funcionário público e escritor, não seria prudente

apresentar uma crítica direta à elite, principalmente em um grande relato como os

romances. É impossível saber ao certo qual seria o seu público leitor, mas de forma

hipotética é possível que fossem membros da classe elitista, escravocrata, branca e

senhorial. E por isso é necessário que busquemos em suas obras, e não fora delas, a

preocupação do escritor com a situação econômica e política brasileira.

O teor crítico surge principalmente na imprensa, nos jornais, sendo que o autor se

apresentava através de pseudônimos (o escritor assumiu vários pseudônimos em seu

fazer jornalístico: Lélio, na seção “balas de estalo”; João das Regras, em A+B;

Malvólio, na “Gazeta de Holanda”; Boas Noites, na seção “Bons Dias”; Policarpo, em

“Crônicas do Relojoeiro”; Dr. Semana, na “Semana Ilustrada”, e outros). Geralmente

utilizando, em seus contos, a voz de narradores brancos, como Coutinho do conto

“Mariana”, o autor desmascara o universo escravocrata brasileiro.

A reificação por parte da elite, do outro (negro, mulato), a hipocrisia, o falso

liberalismo34. O contexto social da época não era muito propício para o negro. Na

segunda metade do séc. XIX a hierarquia das raças era tida como verdade científica

32

“[Machado] exprimia-se como um escritor branco que não sentisse o mínimo de sangue negro correndo

em seu coração. É o patrono da Academia Brasileira de Letras, numa prova de sua branquitude de

inspiração, ficando à margem e pouco se preocupando com movimentos sociais do seu tempo, com a

Abolição e a República”. (RODRIGUES, 1997, p.256). 33

Em um ensaio intitulado Instinto de Nacionalidade, Machado de Assis diz que "o que se deve exigir do

escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo que o torne homem de seu tempo e país, ainda quando

trate de assuntos remotos e no espaço". 34

O falso liberalismo ou liberalismo de fachada é posição defendia por Roberto Schwarz em suas obras.

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incontestável e entronizava a cultura branca, ocidental e cristã. A tese da inferioridade

genética de negros e mestiços estava presente até mesmo num texto que tinha como

objetivo fazer a propaganda brasileira na Europa (o texto de Arthur Gobineau,

representante diplomático do governo francês que residiu na Corte na época de

Machado e se tornou amigo de D. Pedro II – defendia a ideia de que os mulatos não

conseguiam se reproduzir além de certo número de gerações – tese da esterilidade).

O homem das letras, assumindo cargo estatal necessita intimamente assumir sua

Negritude35 e ironicamente confrontar a sociedade e o próprio Estado brasileiro neste

momento tão triste de nossa história. A escravidão era a base da ordem imperial,

chegando a ser defendida e admitida por alguns intelectuais, situação que revela a

hipocrisia da classe pensante do país.

No ramo do discurso literário de sua época, a depreciação da cultura africana era

apresentada em autores que supostamente defendiam a abolição da escravatura36

. O

negro era constantemente apresentado de forma estereotipada: vingativo, assassino,

feiticeiro deformado física e moralmente, a mucama pervertida presentes em Vítimas e

algozes, de Joaquim Macedo; ou a mulata assanhada de “O cortiço” de Aluízio

Azevedo; e em outro extremo o negro de alma branca, o “cão” fiel do senhor, desenhado

na figura do preto Domingos, personagem de José do Patrocínio em Motta Coqueiro37

.

A originalidade de Machado se faz presente em sua consciência crítica

apresentada com argumentos irônicos e metafóricos. O autor assume utiliza uma tática

original, fazendo uso da ironia e da metáfora como armas de um sábio guerrilheiro, que

35

Negritude (Négritude em francês) foi o nome dado a uma corrente literária que agregou escritores

negros francófonos e também uma ideologia de valorização da cultura negra em países africanos ou com

populações afrodescendentes expressivas que foram vítimas da opressão colonialista. A posição de

negritude é totalmente diferente da posição negrista. Enquanto a primeira é uma atitude de valorização do

povo negro enquanto ser humano e individuo, a segunda assume uma visão estereotipada. A negritude foi,

no início, conscientização da originalidade do pensamento africano. 36

No ramo do discurso político abolicionista o negro era constantemente tratado como um símbolo e não

em sua dimensão humana. A ideia era acabar com a escravidão e motivos econômicos também estavam

em jogo, além da pressão vinda de outros países. 37

Os autores citados apresentavam uma postura puramente negrista em relação ao negro e sua cultura. O

negrismo, enquanto manifestação especificamente literária, não é sinônimo de negritude, termo que

engloba aqueles movimentos, surgidos nos anos 30, que reivindicam os direitos dos negros. O negrismo

está acompanhado do exotismo, a introdução de uma estética ancorada nas máscaras, nos fetiches

africanos ou das máscaras polinésias e o retorno aos elementos primitivos da cultura.

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ataca e se esconde, técnica apurada do “mais encolhido dos caramujos”. As sutilezas e

os incessantes deslizamentos de sentido caracterizam uma solução encontrada pelo

autor-caramujo para criticar o sistema de dentro. O “Bruxo do Cosme Velho” faz uso de

disfarces de toda ordem, sendo que estes constituem uma forma de sobrevivência.

Outra célebre arma utilizada pelo escritor é a poética da dissimulação. As personagens

afrodescendentes, caracterizadas por sua real situação de fragilidade econômica e social

frente a todo um sistema, na condição de escravizado ou dependente, só possuem uma

arma para lutarem – um posicionamento dissimulado. É por isso que para ler os livros

de Machado o leitor precisa ter quatro estômagos38

para digerir o texto. São nas

entrelinhas, em palavras utilizadas com a precisão de um bisturi que encontramos as

marcas da “pena da galhofa”, sarcástica e ácida de seus argumentos.

Em seu conto “Virginius” o autor equipara o afrodescendente “trigueirinho” Julião

a um ícone da literatura ocidental, da tragédia grega. Em uma de suas crônicas, ele torna

a situação do escravizado semelhante à da classe camponesa russa caracterizada e

descrita no romance “Almas Mortas” de Nikolai Gogol. Também consegue quebrar

estereótipos da mulata como objeto de prazer (representada quase sempre como figura

sensual) quando cria Mariana e quando esta se posiciona “acima das veleidades” de

Coutinho, não permitindo ser usada. Afirma também que o negro é senhor de seu

próprio destino, possuidor de livre arbítrio, quando em seu poema Sabina, a

protagonista decide viver e ter seu filho quando todos, até mesmo o estilo literário da

época (romantismo), diziam que ela devia morrer.

Machado cria escola, quando em seus contos e crônicas aborda de forma original,

o negro sob uma visão não de negrismo, mas de negritude. O negro passa a ser

protagonista como também os valores negros, suas angústias, sofrimentos, se tornam

temas centrais. Enquanto o branco surge como pano de fundo. Este é a conclusão que

defendo depois da leitura de sua obra e depois de percorrer um caminho de revisão

38

O termo stomachus também pode ser definido como: ―resignação, ―paciência (cf. Saraiva, 1993,

p.1131). A expressão quatro estômagos se faz presente em Esaú e Jacó: "O leitor atento, verdadeiramente

ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que

deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida" (ASSIS, 2008, p. 1148). A utilização da metáfora

orgânica do sistema digestivo pode ser uma referência a Quintiliano quando este afirma que o texto, tal

como os alimentos, não pode entrar totalmente cru em nosso espírito, precisa ser mastigado e triturado

(QUINTILIANO, S.D).

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crítica da recepção desta por parte de um grande leque de críticos (caminho este que

será apresentado no próximo tópico).

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Machado de Assis: cinismo, ironia, sarcasmo e dissimulação

Há dois tipos de cinismo: o cinismo amargo dos oprimidos que desmascara a

hipocrisia dos que estão no poder, e o cinismo dos próprios opressores que

violam abertamente os seus próprios proclamados princípios. Slavoj Žižek,

publicado em Dangerous Minds

Os bons livros possuem uma característica comum: são construídos,

desconstruídos e reconstruídos de acordo com o tempo. Assim são os livros de Machado

de Assis que possuem críticas tão díspares. Qual estaria correta, qual estaria

equivocada? Esta parte da tese não visa o julgamento das críticas lidas e sim a reflexão.

A leitura da reflexão crítica machadiana é importantíssima para este trabalho para

auxiliar na fundamentação de uma dicção própria. Ainda que em vários momentos,

levando em consideração o crítico que sou (pois não a atividade crítica não está livre da

pessoa, da subjetividade daquele que a exerce), venha a discordar dos posicionamentos

alheios, o caminho aqui percorrido foi no mínimo necessário.

O trajeto que farei está organizado da seguinte forma: dos críticos que mais se

distanciam de minhas ideias até àqueles que vão ao encontro destas com mais

frequência. Sendo assim, há uma manipulação estratégica dos dados encontrados com o

objetivo de convencer o possível leitor de que os argumentos levantados são plausíveis.

A seleção de críticos também foi manipulada, entretanto busquei os mais

representativos (os nomes que geralmente se repetem na maioria dos trabalhos). A

ordem cronológica de aparecimento das críticas selecionadas é seguida, mas não foi

organizada com este objetivo inicial (porém, os críticos que são contemporâneos

acabam por defender análises que estão concatenadas com as minhas). Deste modo,

parto dos críticos que veem um Machado de Assis alheio às questões mais pungentes de

seu tempo (tese da passividade – Pedro Couto, Mário Matos, Sílvio Romero, Raimundo

Faoro, Mário de Andrade, Luiza Lobo [1993], Domício Proença Filho [1998], Afonso

Romano de Sant’Anna [1994]) para chegar ao entendimento de que o escritor

mencionado não só estava atento a estas questões como também participou ativamente e

defendeu (talvez não de forma direta) seus posicionamentos (Machado de Assis como

historiador – Schwarz [2000], Sidney Chalhoub [2003], John Gledson [2007]).

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68

A razão de toda esta disparidade quando tratamos da interpretação do texto

machadiano é decorrente da ironia presente em toda sua obra. O jogo entre o raso e o

profundo, entre o simples e o complexo, entre a essência e a aparência acaba por

dissimular a crítica do autor à realidade social e às principais questões de seu tempo. As

interpretações que julgam um Machado passivo acabam perdendo-se nas aparências de

seus textos. Procuram nos salões, nas presenças e se esquecem das entrelinhas e que até

mesmo no que aparentemente está ausente há reflexões sobre a situação social em que o

autor vivia. Outra dificuldade que surge na abordagem da obra machadiana é a

necessidade de se encarar sua produção como um todo lógico e interdependente. Não se

pode perder de vista que sua obra é feita de crônicas, contos, poemas, textos dramáticos

e romances (sendo estes os que mais sofrem com críticas ao absenteísmo autoral).

As primeiras críticas levantadas aqui estão relacionadas ao estilo que era

comumente utilizado na época da escrita dos textos de Machado de Assis e que exigiam

a representação da cor local. É o caso de Pedro Couto que assinala não encontrar no

escritor carioca sinais do tempo em que vivera:

Ora, quando é sabido como a Literatura, as Artes refletem o estádio de

civilização; quando é sabido que pelas obras deste se pode até certo ponto

reconstituir um período social, não se deve admitir que um escritor da

nomeada de Machado de Assis não deixe entrever em sua vasta obra nenhum

sinal do momento em que viveu. Os fatos sociais são postos à margem, nem

indiretamente, mesmo, eles se fazem sentir (Pedro Couto apud BROCA,

1983, p. 27-28).

Cobrando a mesma presença das cousas nacionais está a crítica desenvolvida

por Emílio Moura de 1926. O crítico assume a perspectiva de leitura que será comum,

de um Machado alheio aos eventos sociais e de defensor de uma estética puramente de

Arte pela Arte:

(...) vivendo numa época que foi talvez a dos maiores surtos da

nacionalidade, ele [Machado de Assis] ficou indiferente a todas idéias vitais e

tumultuosas da época. Ninguém praticou entre nós, em grau tão elevado, a

Arte pela Arte. Nos seus livros ele nunca nos revelou o homem nas suas

relações com o meio físico e social (apud BROCA, 1983, p. 28).

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69

As críticas de Emílio Moura já caminham para a questão da passividade, o que

também é possível observar em Mário Matos que no capítulo de 1939 com o título já

polêmico de “O meio e o temperamento apolítico de Machado de Assis” em que afirma

que o autor fora: “espectador imparcial e desinteressado do espetáculo em que foi ator

de somenos ou quase de nenhuma importância” (MOURA, 1939, p.42). Este tipo de

crítica será comum em críticos posteriores. Assim como a questão da passividade

surgirá também relacionada à negação da identidade e mais especificamente a não

representação do negro ou a não menção do drama da escravidão por parte de Machado

em suas obras. É o caso, por exemplo, de Mário de Andrade de quem destaco a seguinte

posição:

A escravaria, por culpa do branco e dos seus interesses, ficou entre nós como

expressão do amor ilegítimo. Não só relativamente à casa grande, mas dentro

da própria senzala. Machado de Assis nem por sombra quer evocar tais

imagens do sangue que também tinha. Ele simboliza o conceito do amor

burguês, do amor familiar, e o sagra magnificamente (MÁRIO DE

ANDRADE, s/d, p. 94).

Mário de Andrade defende a tese de que o autor carioca teria renegado suas

próprias origens e representado em suas páginas apenas o modo de vida burguês (o

crítico se esqueceu das duras críticas feitas na obra de Machado a este mesmo modo de

vida). Deste modo, de acordo com Andrade, Machado teria conseguido vencer as

barreiras impostas contra sua condição social anulando sua verdadeira identidade para

assumir a de um burguês comum:

Assim, vitorioso na vida, ele o foi mais prodigiosamente no combate que, na

obra, travou consigo mesmo. Venceu as próprias origens, venceu na língua,

venceu as tendências gerais da nacionalidade, venceu o mestiço. É certo que

pra tantas vitórias, ele traiu bastante a sua e a nossa realidade. Foi o

antimulato, no conceito que então se fazia de mulatismo. Foi intelectualmente

anti-proletário, no sentido em que principalmente hoje concebemos o

intelectual. Uma ausência de si mesmo, um meticuloso ocultamento de tudo

quanto podia ocultar conscientemente. E na vitória contra isso tudo, Machado

de Assis se fez o mais perfeito exemplo de “arianização” e de civilização da

nossa gente (MÁRIO DE ANDRADE, s/d, p. 104).

A posição de Mário de Andrade é a de contundentemente criticar não só os

livros, os textos, mas também o próprio autor e os posicionamentos tomados em sua

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vida, o acusando de antimulato, anti-proletário, exemplo de arianização. Isso, pois

estamos falando de autor que escreve Instinto de nacionalidade defendendo a

necessidade de que o escritor seja homem de seu tempo e de seu país39

. O crítico

também faz críticas ao estilo machadiano afirmando que o autor copiava os exemplos

de escrita europeus: “Machado de Assis continua insolitamente na literatura aquela

macaqueação com que a nossa Carta e o nosso parlamentarismo imperial foram na

América uma coisa desgarrada” (MÁRIO DE ANDRADE, s/d, p. 104). Não contente

com estes ataques, ele segue questionando até mesmo os que defendem Machado de

Assis como um escritor representante da tradição brasileira “é que esses brasileiros não

se acomodam passivamente com a pequena contribuição de alma brasileira existente no

homem Machado de Assis” (MÁRIO DE ANDRADE, s/d, p.105). Critica também os

pesquisadores que consideram o escritor carioca como um autor político ou como uma

mentalidade intelectual avançada: “Machado de Assis não profetizou nada, não

combateu nada, não ultrapassou nenhum limite infecundo” (MÁRIO DE ANDRADE,

s/d, p.107).

As pesquisas já avançaram bastante e já não são poucos os pesquisadores que

reconhecem a força política dos textos do bruxo do Cosme Velho e até mesmo sua

atitude ativa e dissimulada na luta pelo fim da escravidão e pelos direitos dos negros.

Contudo, ainda existem os que mantêm a tese da passividade. É o que se observa em

textos de Luiza Lobo (1993) e Domício Proença Filho (1998) ao tratarem

especificamente da literatura negra. Lobo ainda tenta eximir-se da polêmica defendendo

a posição contrária ao biografismo, porém acaba repetindo posicionamentos que

defendem a passividade do escritor para com a causa abolicionista:

Não caberá à literatura a análise do perverso como expressão do recalcado,

nem o julgamento ideológico do autor em função da sua classe social ou

biografia – mas fica explícita aqui a indiferença de Machado pelo tema

abolicionista, à diferença de tantos outros do mesmo período, como Luís

Gama, José do Patrocínio e Cruz e Sousa, que não se isentaram do problema

(LOBO, 1993, p.173).

39

Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se

dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a

empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne

homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço

(ASSIS, 1997, p.804).

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Domício Proença Filho até reconhece na literatura machadiana temas que

abordam a questão da escravidão no Brasil, porém de acordo com o crítico a presença

desta temática na obra do escritor carioca não o exime da atitude passiva diante dos

dramas sociais de seu tempo. Pois, segundo Proença Filho, em contos como “O caso da

vara” ou “Pai contra mãe”, o autor estaria mais preocupado com a análise do caráter das

personagens do que com a situação do negro. Sendo assim, o crítico aguça ainda mais a

tese da passividade, pois reconhece a presença de negros na obra machadiana, contudo

assume a defesa de que estes estão presentes somente para servirem de argumento ou

exemplos para o desenvolvimento de outras questões. Ou seja, os negros são simples

objetos com os quais o autor articula sua narrativa:

Da minha parte, entendo que a literatura machadiana é indiferente à

problemática do negro e dos descendentes de negro, como ele. Mesmo os

dois contos que envolvem escravos, “O caso da vara” e “Pai contra mãe”, não

se centralizam na questão do negro, mas no problema do egoísmo humano e

da tibieza do caráter. Os demais tipos negros ou mestiços participam como

figurantes em histórias que, no nível do conteúdo manifesto ou do realismo

de detalhe, constituem reflexo da realidade social que pretendem retratar

(PROENÇA FILHO, 1988, p.92).

Até mesmo em obras de autores consagrados e que trabalham em uma

perspectiva histórica como Raymundo Faoro, há a tentativa de defender a posição

passiva do escritor. Em Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio, livro que em muitos

aspectos é essencial para a pesquisa que objetivo desenvolver, o crítico apresenta uma

visão que não é compartilhada por esta tese acerca do posicionamento de Machado

perante a causa abolicionista:

Cético com respeito à abolição e às alforrias, a escravidão existe, na obra de

Machado de Assis, independente de sentimentos. O entusiasmo abolicionista,

a piedade com a sorte do escravo, o protesto contra o mau trato, não

encontrarão nenhum eco na palavra do escritor, senão em expressões

palidamente convencionais (FAORO, 1974, p.333).

Caracterizar como palidamente convencionais as expressões machadianas pode

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ser uma referência a apenas alguns textos do autor ou uma leitura que não levou em

consideração o caráter dissimulado da literatura machadiana repleta de desvios, ironia,

estratégias de dissimulação. Porém, só para citar duas das crônicas que considero mais

contundentes quando o tema é a causa abolicionista e que o posicionamento do escritor

não é nada convencional e até mesmo eufórico (01/06/1877 e outra de 14/05/1893).

E para terminar a parte dedicada às críticas ao homem Machado de Assis e sua

produção, apresento as observações de Afonso Romano de Sant’Anna em texto de

época recente datado de 1994. Em título também polêmico denominado A escravidão:

um quase silêncio, o crítico se refere somente a crônica publicada em 19/05/1888 e a

alguns fragmentos de Memórias Póstumas de Brás Cubas e de Esaú e Jacó. Citando

apenas estes textos Sant’Anna afirma que:

(...) temos de convir que é muito pouco, diante da gravidade da questão e do

espaço que ela ocupava na história da época. Esse quase silêncio só tem

paralelo no distanciamento que também suas crônicas mantêm em relação à

proclamação da República (AFONSO ROMANO DE SANT’ANNA, 1994,

p.10).

Um dos mais importantes críticos que interpretam Machado de Assis pelo viés

histórico e que servirá de base para defender a atitude dissimulada e a presença da voz

subalterna na obra do autor é Schwarz. Foi por meio das leituras de seus livros que me

dei conta da presença tão importante (ainda que velada) de uma grande variedade de

indivíduos em situação de subalternidade (seja de gênero, de cor ou de situação social e

que são classificados como agregados – os que vivem do favor). E é Schwarz quem no

capítulo “A sorte dos pobres” (2000) de livro já considerado um clássico pela crítica

machadiana (Um mestre na periferia do capitalismo) afirma que a presença do negro e

da questão abolicionista nos livros de Machado de Assis é apresentada de forma

contundente e extremamente calculada:

A presença do escravismo é determinante, conforme tratei de mostrar, embora

as figuras de escravo sejam raras. Umas poucas anedotas esparsas bastam

para fixar as perspectivas essenciais. A parcimônia nas alusões, calculada

para repercutir, é enfática à sua maneira: um recurso caro ao humorismo

machadiano, mais amigo da insinuação venenosa que da denúncia

(SCHWARZ, 2000, p.112).

Chalhoub que também aborda uma perspectiva histórica colocaria um enfoque

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bem diferente em seu trabalho e que poderia até mesmo ser considerado um contraponto

do exercício crítico empreendido por Schwarz. Ao passo que Schwarz dá ênfase aos

romances em suas pesquisas, Chalhoub trabalhará com as crônicas, amparado sempre

com dados históricos e com interpretação dos arquivos do funcionário público Machado

responsável pela Segunda Seção da Diretoria da Agricultura do Ministério da

Agricultura (1870-1880). O trabalho de Chalhoub servirá não só para iluminar leituras

posteriores da obra do autor carioca como também para esclarecer alguns pontos

polêmicos da atuação do cidadão Machado de Assis perante o maior drama de seu

tempo: a escravidão.

Iluminado também pelas leituras de Schwarz que Gledson desenvolverá a

percepção da literatura dúbia produzida pela linguagem machadiana. Gledson

encontrará em Schwarz a questão da dependência. Analisando como os dependentes

vivem - suas condições de sobrevivência -, ele analisará a conduta de Machado de Assis.

Assim, perceberá que a ironia, o sarcasmo, o cinismo funcionam como embustes que

despistam o leitor o levando a caminhos distintos dos reais efeitos de sentidos do texto.

As especulações políticas e históricas de Machado muitas vezes são assim

ocultas e implícitas. Mas podem ser desvendadas e compõem, com muito

mais freqüência do que suspeitavam os críticos, um aspecto essencial de suas

intenções como escritor. John Gledson, em Machado de Assis: ficção e

história (CHALHOUB, 2003, p. 28).

Esta forma peculiar de abordar os fatos e de fazer críticas de forma velada

caracterizam o que se nomeia como a escrita capoeirista de Machado de Assis. A

capoeira literária de Machado de Assis foi estudada por Costa Lima e também por Assis

Duarte. A estratégia de ginga pode ser observada em recursos que a crítica tradicional

apontou e analisou nos textos machadianos: o uso da ironia, os embustes, e a presença

de figuras de estilo que reforçam os sentidos presentes nos dois primeiros. Textos da

crítica tradicional apontam as características aludidas e os textos de Costa Lima e Assis

Duarte estabelecem a relação entre os recursos estilísticos utilizados pelo autor com

aspectos do que se denomina, nesta tese, de performance autoral. Os constantes

mascaramentos fazem com que torne-se difícil encontrar o autor em seus textos. As

distorções funcionam também como disfarces, como acentua Costa Lima:

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Diríamos, não conheces nem o homem Machado, que ginga e dribla, que faz da

capoeira um estilema, nem muito menos aquele a que Machado se refere – este

homem, poço de iniquidades e incertezas, torturante e torturado, mais

precisamente: cada um de nós. (COSTA LIMA, 2002, p. 337).

Afinal, este estilo caracterizado pelas esquivas, pela capoeira verbal, pela

escrita constelacional, apontados por Costa Lima como auditividade e por Roberto

Schwarz como versatilidade do narrador, estão relacionados com o que, nesta tese,

denomina-se Estética da dissimulação. A auditividade, o tom conversacional é algo

intencional na obra de Machado de Assis. Esta também é uma de suas bruxarias, a

capacidade de tornar-se íntimo do leitor, um confidente, uma voz ao ouvido, uma

espécie de consciência.

A mesma pergunta feita por Costa Lima faz eco nas linhas deste trabalho:

“Pergunto-me então: Como se caracteriza a capoeira da palavra em Machado? Ou

melhor: pode-se entender a capoeira como princípio de individuação de uma forma de

escrita?” (COSTA LIMA, 2002, p. 331). Seria esta capoeira literária o que está

denominado nas pesquisas de Assis Duarte como uma poética da dissimulação? Seria,

então, um princípio de individuação que torna a literatura machadiana algo único? A

premissa pode ser defendida por alguns aspectos que se fazem presente apenas na

estilística do autor. Porém, a dissimulação surge em outros autores e em outras

estratégias de sobrevivência, tal como, a desenvolvida pelos negros escravizados nos

golpes e na ginga da capoeira. A capoeira só é dança para os que não são iniciados em

sua prática. Os que foram batizados em seu jogo conhecem suas malícias, suas negaças

e suas mandingas. E Machado mimetiza este jogo em seu estilo-estilete: “O estilete se

disfarçava em estilema para, como se fosse tão só palavra, graça e jogo, exprimir

posições, e convicções. (COSTA LIMA, 2002, p.329). A capoeira literária de Machado

de Assis é a técnica que assume sua maestria na escrita de um mandingueiro.

A “versatilidade do narrador” já seria em si uma fecundação por Machado do

princípio de estilo que começara a exercitar na crônica. A “capoeira” consistiria em (a)

desprezar uma lógica estritamente fundada em moldes escriturais, i.e., baseada em uma

construção linearmente proposicional. Há muitos anos, veio-me à cabeça que a demora

na introdução dos processos de impressão no Brasil fizera com que, entre nós, se fixasse

o que eu então chamava linguagem auditiva (COSTA LIMA, L.:, 1981, 15-20). Queria

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dizer: que se se adotava uma forma de composição que, mantendo alguns dos hábitos da

oralidade – menos sua mnemotécnica, seus esquemas rítmicos, sua estudada

gestualidade do que suas repetições, seus tiques verbais, sua altissonância - , agora os

moldava sob a aparência de um curso escritural. Daí, de um ponto de vista estritamente

discursivo, uma prosa pobre, fácil, de ideias ralas, salteada ou contraditória, cuja única

riqueza era lexical ou de citações de autoridade. A auditividade, em suma, mantinha os

hábitos mais banais da oralidade dentro de um molde de aparência escritural. (COSTA

LIMA, 2002, p.334).

(…) a auditividade machadiana é consciente e experimentalmente pratica. O

encadeamento proposicional, embora sintaticamente bem estabelecido, é

propositalmente solto. Mas, por isso mesmo, seu texto não tem nada de

frouxo. Ao contrário, a leitura atenta mostra-o conduzido por um princípio

que chamaríamos constelacional, radicalmente distinto de uma argumentação

linear – cujo modelo seria “se a, b, c, então d”. Por princípio constelacional

entendemos a conexão de blocos proposicionais diversos, que, entretanto, se

interligam por um motivo comum; este motivo os “ilumina” por uma luz

diversa da que seria apropriada a cada bloco. (COSTA LIMA, 2002, p. 335).

Esta auditividade, esta desestruturação linguística no interior da linguagem, esta

fala que se faz presente na escrita machadiana é o que denomino nesta tese de distorcer

a língua em seu interior. “Já chamado por mim mesmo um mestre de palimpsestos,

continuamos sem desconfiar de seus escavados abismos.” (COSTA LIMA, 2002,

p.328). O encadeamento proposicional estabelece uma coesão diferenciada que só pode

ser preenchida pelo leitor.

O encadeamento proposicional, embora sintaticamente bem estabelecido, é

propositalmente solto. Mas, por isso mesmo, seu texto não tem nada de

frouxo. Ao contrário, a leitura atenta mostra-o conduzido por um princípio

que chamaríamos constelacional, radicalmente distinto de uma argumentação

de cunho linear – cujo modelo seria “se a, b, c, então d”. Por princípio

constelacional entendemos a conexão de blocos proposicionais diversos, que,

entretanto, se interligam por um motivo comum; este motivo os “ilumina”

por uma luz diversa da que seria apropriada a cada bloco25 [grifo do autor].

(COSTA LIMA, 2002, p.335)

Além da escrita lacunar, o estilo machadiano se apresenta carregado de expressões

que afirmam X quando querem dizer Y. O gaguejar e o tartamudear apontados por

Romero (ROMERO, 1936) deixam de ser vistos nesta tese como um defeito e passam a

significar um desvio consciente buscando as esquivas, o gingado, o ziquezaguear, o

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drible. Por isso, Machado de Assis busca um leitor com quatro estômagos. O leitor

machadiano é um desconfiado. O autor abusa de recursos estilísticos dissimuladores:

a) Adjetivação compensatória – um recurso irônico utilizado por Machado de Assis

no sentido de amenizar uma dura crítica ou para ocultar adjetivos negativos,

defeitos apontados. Tal como em Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Tinha

então 54 anos, era uma ruína, uma imponente ruína.” (ASSIS, 2008, p. 628) – ao

descrever Virgília, Brás utiliza uma adjetivação perversa (ruína) e logo depois,

tenta amenizar o adjetivo anterior (imponente). A adjetivação compensatória é o

famoso morde e assopra em que a máscara escapa, a dissimulação é revelada e

logo é ocultado novamente: “(...) morde e sopra, levanta a máscara e logo a

afivela de novo.” (BOSI, 2002, p. 14).

b) Preterição – Recurso dissimulador em que o narrador finge que não sabe alguma

coisa ou finge ocultar um fato quando, na verdade, o expõe e realça. O narrador

chama a atenção do leitor para um fato quando finge tentar ocultá-lo. O autor

esconde o lixo para debaixo do tapete perante os olhos atentos do leitor. Como

em Memórias Póstumas de Brás Cubas quando o narrador afirma que não dirá

alguma coisa e diz: “Não, não direi que assisti às alvoradas do romantismo, que

também eu fui fazer poesia efetiva no regaço da Itália; não direi coisa nenhuma.”

(ASSIS, 2008, p. 655). Machado de Assis utiliza a preterição para alfinetar o

Romantismo: “Ah! como eu sinto não ser um poeta romântico para dizer que isto

era um duelo de ironias! Contaria os meus botes e os dela, a graça de um e a

prontidão de outro, e o sangue correndo, e o furor na alma, até ao meu golpe

final (...)”. (ASSIS, 2008, p.981). Há também uma crítica feroz à hipocrisia da

elite brasileira: “Não obstante, calo-me, não digo nada, não conto os meus

serviços, o que fiz aos pobres e aos enfermos, nem as recompensas que recebi,

nada, não digo absolutamente nada.” (ASSIS, 2008, p. 756). Brás Cubas afirma

que não falará de serviço prestado aos pobres, mas não perde a oportunidade de

vangloriar-se de seus feitos.

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c) Sarcasmo e Ironia – o significa de ironia é a própria dissimulação. Sendo assim,

este é o recurso que possui mais importância para este trabalho. Até mesmo pelo

fato dela estar presente nos outros recursos analisados. Ela é um dos estilemas

mais utilizados pelo autor com objetivo de ocultar as reais intenções de seus

textos. O Sarcasmo, por sua vez, apresenta as críticas de forma mais direta.

Contudo, ele vem acompanhado do recurso do humor que acaba mascarando a

malícia. O riso surge nos sarcasmos como forma de mascaramento. A diferença

entre sarcasmo e ironia na literatura machadiana pode ser bem sútil. Afinal, as

sutilezas e os mascaramentos constituem o alicerce das narrativas do bruxo do

Cosme Velho. O próprio autor utiliza sua narrativa para didaticamente alertar o

leitor onde há sarcasmo em seus textos: “— Quem sabe onde é que há de morar

amanhã? disse ela com um tom leve de melancolia; mas, tornando logo ao

sarcasmo: E você no altar, metido na alva, com a capa de ouro por cima,

cantando... Pater noster...” (ASSIS, 2008, p. 756). Um bom exemplo de ironia é:

“Naquele ano, morria de amores por um certo Xavier, sujeito abastado e tísico, -

uma pérola. (ASSIS, 2008, p. 645). Refletindo sobre o caráter de Marcela é

possível descobrir o tom irônico do narrador e o fato de um sujeito abastado e

tísico ser considerado uma pérola. O sarcasmo, por sua vez, disfarçado em riso

se apresenta de forma ácida, tal como o utiliza Brás Cubas ao resumir sua

relação com Marcela: “(...) Marcela amou-me durante quinze meses e onze

contos de réis; nada menos.” (ASSIS, 2008, p. 648). O sarcasmo utilizado em

Machado de Assis se apresenta de forma dissimulada na voz de um

representante da elite, tal como ocorre em Brás Cubas: “Ao contemplar tanta

calamidade, não pude reter um grito de angústia, que Natureza ou Pandora

escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu

que me pus a rir, – de um riso descompassado e idiota”(ASSIS, 2008, p.635).

Este riso descompassado e idiota fruto do sarcasmo se apresenta na voz do

ventríloquo Brás como uma crítica do próprio autor a toda uma série de

hipocrisias presente nos costumes da elite brasileira.

d) Litotes – recurso utilizado pelo autor para ampliar a qualidade polissêmica da

frase. A retórica dissimuladora de Machado de Assis afirma negando, oculta

quando expõe e expõe quando oculta. Bentinho ao afirmar: “Como bem e não

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durmo mal” (ASSIS, 2008, p. 932) – utiliza a litotes para despistar a monotonia

da sua vida e as angústias de uma existência vazia. O recurso também é

utilizado em Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Não era a frescura da

primeira idade, ao contrário; mas ainda estava formosa, de uma formosura

outoniça, realçada pela noite” (ASSIS, 2008, p.740). Mais uma vez o narrador

utiliza-se de recursos retóricos para adjetivar Virgília. Aqui ele utiliza a litotes

para afirmar que sua amante da juventude já não apresenta mais a beleza jovial e

sim uma formosura outoniça, marcada pelo tempo e que, agora, pode beneficiar-

se com a ocultação da noite. Uma metáfora apresentada pelo autor para

representar a litotes e a retórica dissimuladora em suas narrativas pode ser

encontrada na seguinte situação:

Eram seis damas de Constantinopla, — modernas, — em trajos de rua, cara

tapada, não com um espesso pano que as cobrisse deveras, mas com um véu

tenuíssimo, que simulava descobrir somente os olhos, e na realidade

descobria a cara inteira. E eu achei graça a essa esperteza da faceirice

muçulmana, que assim esconde o rosto, — e cumpre o uso, — mas não o

esconde, — e divulga a beleza. Aparentemente, nada há entre as damas turcas

e o Damasceno; mas se tu és um espírito profundo e penetrante (e duvido

muito que me negues isso), compreenderás que, tanto num como noutro caso,

surge aí a orelha de uma rígida e meiga companheira do homem social...

(ASSIS, 2008, p.739)

O levantamento de questões relacionadas à linguagem machadiana também é

feito com perspicácia na leitura interpretativa feita por Silviano Santiago em seu ensaio

“Retórica da verossimilhança”. Extremamente importante é a observação de Silviano no

que tange à leitura dos textos de Machado como se estes formassem um conjunto

coerente em que um texto está em profunda relação com o outro (interdependência). É

por isso que a leitura isolada acabaria por gerar análises errôneas, incompletas e

facilmente tendenciosas ou até mesmo ingênuas.

Já é tempo de se começar a compreender a obra de Machado de Assis como

um todo coerentemente organizado, percebendo que à medida que seus textos

se sucedem cronologicamente certas estruturas primárias e primeiras se

desarticulam e se rearticulam sob forma de estruturas diferentes, mais

complexas e mais sofisticadas. (SILVIANO SANTIAGO, 2000, p.28)

De acordo com o crítico, o desgaste interpretativo dos sentidos do texto

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machadiano surge exatamente da leitura exaustiva de fragmentos isolados. Com certeza

este tipo de exercício repetitivo de leitores de sua obra acaba por dificultar ainda mais a

observação de outros pontos de vistas, de outros focos interpretativos. A análise da

literatura produzida pelo bruxo do Cosme Velho exigia a ação lenta, a vagarosa digestão

proporcionada pelos quatro estômagos. Pois, há em seus textos o constante e forte

direcionamento do leitor para sentidos que na maioria das vezes provam serem os mais

inadequados.

A busca – seja da originalidade a cada passo, seja da excitação intelectual em

base puramente emocional, a leitura dirigida para os “melhores momentos”

do romancista – dificultou a descoberta daquela que talvez seja a qualidade

essencial de Machado de Assis: a busca, lenta e medida do esforço criador em

favor de uma profundidade que não é criada pelo talento inato, mas pelo

exercício consciente e duplo, da imaginação e dos meios de expressão de que

dispõe todo e qualquer romancista. (SILVIANO SANTIAGO, 2000, p.28)

A leitura dos textos formando uma rede em que a interpretação de um

dependente da leitura de outro facilita a percepção por parte do leitor experiente das

artimanhas desenvolvidas pelo autor visando à criação de armadilhas. Contra as críticas

que consideram o texto machadiano quase escasso de referências locais utilizo o

fragmento de artigo de Leyla Perrone-Moisés (2001) em que ela reflete sobre o

nacionalismo em Borges e no escritor carioca:

Enquanto os escritores menores cedem ao provincianismo ou, inversamente,

à imitação e à influência, os maiores tecem um texto irônico, em que os

elementos estrangeiros e os locais produzem uma combinação inédita, que

engrandece tanto a literatura nacional como a internacional (PERRONE-

MOISÉS, 2001, p.113).

Quanto à crítica a não euforia de Machado diante do que viria a ser a libertação

de seus semelhantes e que viria a ser utilizado como uma forma de provar a alienação

diante da situação dos negros no Brasil utilizarei os ensaios de Octávio Ianni (1988) e

Raimundo Faoro (1988) em que há nitidamente nos dois a observação do ceticismo do

autor diante de uma abolição que não iria significar liberdade. Esta mesma postura

cética poderia ser observada diante outros fatos cruciais da história brasileira.

(...) o ceticismo essencial de Machado de Assis lhe permitia visualizar o

escravo e o livre no contexto da miséria social inerente à sociedade. Para

muitos, a alforria poderia significar uma calamidade, quanto às condições de

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vida e trabalho que teriam de enfrentar (IANNI, 1988, p.22).

Havia alguma coisa diferente no seu modo de sentir a realidade do Rio de

Janeiro, sem o véu culto, ilustrado, falsamente livresco dos seus

contemporâneos, embriagados de fórmulas. Somente ele, isolado na multidão

que aclama, ousou manifestar a inanidade do 13 de maio. Livre o escravo,

estará na rua, sem emprego, ou receberá do senhor a esmola do salário, em

troca de igual trabalho, com as antigas pancadas e injúrias (FAORO, 1988,

p.323).

Portanto mais uma vez a retórica da verossimilhança (SILVIANO SANTIAGO,

2000 [1969], p. 27) está presente e impera na sociedade brasileira e Machado observa

criticamente os acontecimentos e os falsos ideais de libertação do negro. Ele percebe

que esta dita abolição não libertaria o negro da opressão e se limitaria a demonstrar de

forma definitiva a realidade cruel da dependência. Liberto o negro viveria na miséria até

o momento em que assumiria mais uma vez o papel subserviente diante do senhor

branco para poder sobreviver. Ao colocar em condições de igualdade os escravizados, os

libertos, as mulheres e os agregados de toda classe, Machado de Assis vai além do que

esperavam os críticos que o acusam de passividade, ele não só retratou a situação de seu

tempo como também já levanta a questão de que a dependência é o motor da

desigualdade.

Esta pesquisa dialoga com uma variedade enorme de trabalhos que propiciaram

a reflexão que empreenderei nas próximas páginas. Contudo, grande parte do caminho

que será seguido teve como impulso inicial, como centelha, o trabalho do pesquisador

Eduardo de Assis Duarte. Ele faz todas as leituras que mencionei anteriormente e as

relacionando destaca as ciladas linguísticas utilizadas por Machado de Assis para

criticar duramente a sociedade senhorial e branca de sua época. É também no trabalho

de Assis Duarte que encontro o termo dissimulação e a defesa de uma postura

afrodescendente por parte do autor carioca.

(...) o tratamento enviesado, indireto; os negaceios verbais e as alfinetadas

ligeiras, mas cortantes; o discurso irônico substituindo a fala explícita ou

peremptória; o enfoque universalizante de questões nacionais; a paródia de

mitos e narrativas fundadoras de hegemonias; o desmascaramento da classe

senhorial pela sátira dos detentores do poder; e tudo isto vazado numa

linguagem marcada por disfarces de toda ordem, aí incluso o do próprio foco

narrativo (Duarte, 2007, p.272-73).

Este discurso marcado pelo cinismo, sarcasmo, negaceios verbais, enviesado e

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carregado de dissimulação não ocorre simplesmente por uma questão de estilo ou de

escolha gerada pela busca da arte pela arte. A linguagem indireta é em Machado antes

de qualquer coisa um plano de defesa. Suas condições de vida o impeliam à ação contra

as doenças sociais de seu tempo. Todavia, até mesmo os seus posicionamentos pessoais

deveriam ser velados. Diante do dilema de sobreviver (negro, funcionário público,

dependente do sistema) versus existir (crítico, reconhecendo as injustiças,

afrodescendente), o bruxo do Cosme Velho escolhera os dois. Para resolver uma

equação tão perigosa, a saída encontrada por ele fora sua literatura. Pode o subalterno

falar? Pode. Só que a opção por existir e por exercer sua fala é perigosa e exige uma

técnica cautelosa, a existência com arte, por meio da arte e pela arte, velada, de

guerrilha, enviesada – a estética da dissimulação.

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As estratégias do caramujo40

O que nos salvou do que a gente viveu nas ruas (e você sabe do que estou

falando) foi a nossa completa ignorância e falta de habilidade em se adequar

ao está posto. (Criolo em entrevista concedida ao Programa Espelho em

04/04/2013).

Muitos críticos acusam Machado de Assis de não ter assumido um

posicionamento político em seus romances, certamente baseando-se naquilo que ele não

escreveu. Uma pergunta se repete constantemente nessas críticas ao autor, como um

eco: “Por que Machado de Assis não destaca o negro em seus romances?”. Esta

pergunta e a elaboração de possíveis respostas se fazem presentes principalmente em

obras críticas publicadas antes dos estudos de Chalhoub 1998 e 2003; Gledson 1986,

1991, 1996; Schwarz 1977, 1989, 1997, 2000 e Duarte 2005.

Gledson apresenta em seus estudos um Machado preocupado com a situação dos

negros e, principalmente, atento às diversas mudanças sociais e econômicas ocorridas

no país. Suas análises desconstroem a percepção de que as ideias críticas e o

posicionamento do escritor podem indicar uma atitude passiva do escritor diante dos

problemas da sociedade em que viveu. A reflexão de Gledson permite constatar que

Machado foi capaz de presumir que a abolição da escravidão não mudaria muito a

situação do negro.

A abolição não é um movimento da escuridão para a luz, mas a simples passagem de um

relacionamento econômico e social opressivo para outro. (...) libertando os escravos, não se

faz mais do que libertá-los para o mercado de trabalho, no qual serão contratados e

demitidos e, sem dúvida, receberão salários miseráveis. (Gledson, 1986, p.124)

O ceticismo do escritor se faz presente, principalmente, em seus textos

jornalísticos em que ele aborda a questão. Machado já percebera que a abolição da

escravatura e outros eventos históricos do Brasil apresentam muitas faces. Com certeza

um acontecimento importante como esse, comemorado até mesmo pelo escritor como

festa não encobriria a indagação sobre qual posição assumiria o negro na sociedade,

40

Ao retomar a metáfora do caramujo, faço alusão emprego desta no livro de Assis Duarte:

Machado de Assis afro-descendente: escritos de caramujo (2005).

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após os festejos da libertação dos então escravizados. Essa pergunta está em

Nascimento (2002, p.61), quando acentua: “Passando ao longo dos movimentos

abolicionistas que fervilhavam na época em que as obras foram escritas, Machado deixa

patente, como a marcar o momento, sua descrença numa real inserção do negro nos

quadros representativos da sociedade brasileira”.

Por outro lado, as críticas a Machado de Assis não se resumem ao aspecto político

de sua obra ou à pretensa passividade do escritor diante de fatos marcantes da sociedade

em que viveu. Silvio Romero, por exemplo, irá criticar o estilo machadiano de escrever.

Em passagem conhecida dos estudiosos, o crítico centra sua observação em aspectos

relacionados ao estilo do escritor, comparando-o com o de escritores portugueses e

mesmo com o de Alencar:

(...) o estilo de Machado de Assis não se distingue pelo colorido, pela força imaginativa da

representação sensível, pela movimentação, pela abundância, ou pela variedade de

vocabulário. Suas qualidades mais eminentes são a correção gramatical, a propriedade dos

termos, a singeleza da forma. (...) Machado de Assis como já ficou acidentalmente dito, não

tem grande fantasia representativa, ou antes, não possui quase essa faculdade. Em seus

livros de prosa, como nos de verso, falta completamente a paisagem, falham as descrições,

as cenas da natureza, tão abundantes em Alencar, e as da história e da vida humana, tão

notáveis em Herculano e no próprio Eça de Queirós. (Romero, 1992, p.121-122).

Romero não se prende somente à questão das imagens, suas farpas também são

lançadas com objetivo de atingir a linguagem do autor. O crítico fala da escrita pouco

grandiosa ou eloquente, da psicologia indecisa do autor que reflete em sua obra.

Contudo, considero que é neste tropeçar, neste gaguejar do estilo que se apresenta a

grandiosidade do gênio machadiano. Essas qualidades configuram uma estética da

dissimulação da qual fazem parte aspectos criticados por Romero como a fala

escorregadia, a personalidade indecisa, a ausência de vivacidade e a presença de certa

melancolia irônica.

(...) [o estilo de Machado de Assis] é a fotografia exata de seu espírito, de sua índole

psicológica indecisa. Correto e maneiroso, não é vivaz, nem rútilo, nem grandioso, nem

eloqüente. É plácido e igual, uniforme e compassado. Sente-se que o autor não dispõe

profusamente, espontaneamente do vocabulário e da frase. Vê-se que ele apalpa e tropeça,

que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da palavra. Sente-se o esforço, a luta.

Ele gagueja no estilo, na palavra escrita, como fazem outros na palavra falada (...).

(Romero, 1992, p.122)

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A escrita de Machado, repleta de subterfúgios, escorregadia, gaguejante, foi a

causa principal de sua ascensão social. Ainda que seus textos trouxessem uma crítica

cruel à sociedade brasileira de sua época, seus livros eram lidos por membros dessa

mesma sociedade. É pertinente destacar que são exatamente as características apontadas

por Romero como uma dicção gaguejante que serão valorizadas por Haroldo de

Campos:

(...) em Machado, o tartamudeio estilístico era uma forma voluntária de metalinguagem.

Uma maneira dialógica (bakhtiniana) implícita de desdizer o dito no mesmo passo em que

este se dizia. O ‘perpétuo tartamudear’ da arte pobre machadiana é uma forma de dizer o

outro e de dizer outra coisa abrindo lacunas entre as reiterações do mesmo, do ‘igual’, por

onde se insinua o distanciamento irônico da diferença. (Campos, 1992, p.223-224)

A obra de Machado procurava mostrar que a inconsistência entre a ideologia

defendida e o que acontecia na prática. O que se faz presente em seus textos é uma

sociedade que vivia de aparências. A arma eficaz do escritor era o espelho, na verdade

não um espelho comum e sim um prisma, que mostrava o indivíduo sob sua máscara. A

técnica utilizada por ele assemelha-se à de um guerrilheiro: atacar e esconder-se, atacar

utilizando as armas do inimigo, disfarçar-se, ficar camuflado. Machado de Assis sabia

desenvolver todas estas estratégias com maestria, tal como ressalta Nascimento (2002,

p.53-54), quando diz:

Com maestria e coerência. Maestria porque não é nas linhas que se deve

buscar esta questão. O que está escrito não conta. Conta o que não foi dito

nem visto com os olhos de fora. (...) Coerência porque seu compromisso era

retratar a sociedade tal qual se lhe apresentava, e aí, o negro não constituía

uma representação significativa, melhor dizendo, nem mesmo como ser

social era reconhecido. Na ordem das representações, a lente do retratista não

poderia alcançar o que nem sequer era cogitado.

O recurso de deixar, aparentemente, um vazio e lacunas que indicam a não

presença do negro em seus romances pode ser considerado como uma faceta do bruxo

que o escritor foi. Sobre esse aspecto, Nascimento dirá: “Machado também não pondera

e desfere golpes profundos contra o sistema; e se omite o negro enquanto ser social de

seu universo ficcional (que tem na representação social o núcleo para suas críticas) é

para melhor denunciar o modelo social vigente” (Nascimento, 2002, p.61).

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Essa é uma das chaves para entender a obra do autor, observar os detalhes, é

preciso ficar atento às entrelinhas, aos espaços, pois é nesses espaços que se percebe o

seu objetivo: utilizar a máscara ficcional para apresentar a verdadeira face da realidade

brasileira do século XIX, tal como afirma Merquior: “Machado é um escritor em quem

o aspecto fortemente retórico do estilo, longe de lesar, reforça a energia mimética da

linguagem, o seu poder de fingir (ficção) efetivamente a variedade concreta da vida”

(Merquior, 1977, p.174). Portanto, há em Machado uma coerência entre o que afirmam

seus textos e sua visão crítica, a reflexão na forma literária dos mandos e desmandos

presentes na sociedade burguesa. Contudo, como vimos afirmando, o posicionamento

crítico do autor se dá de forma indireta, pelo despistamento, pelos mascaramentos.

A ousadia de sua forma literária, onde lucidez social, insolência e

despistamento vão de par, define-se nos termos drásticos da denominação de

classe no Brasil: por estratagema artístico, o Autor adota a respeito uma

posição insustentável, que entretanto é de aceitação comum. Ora, a despeito

de toda mudança havida, uma parte substancial daqueles termos de

dominação permanece em vigor cento e dez anos depois, com o sentimento

de normalidade correlato, o que talvez explique a obnubilação coletiva dos

leitores, que o romance machadiano, mais atual e oblíquo do que nunca,

continua a derrotar (Schwarz, 2000, p. 12).

Reitere-se que, para se compreender a crítica feita pelo autor em seus textos é

preciso estar atento às entrelinhas. Machado consegue apropriar-se da linguagem

observada em seu convívio com a elite brasileira e transpor para suas narrativas o

mesmo estilo simulador visualizado. A estrutura da sociedade brasileira serve de modelo

para que o autor crie seu próprio estilo servindo de base para a construção estrutural de

seus livros. E como observa Schwarz, há coerência entre estrutura do romance e os

valores defendidos pelo autor, pois: “(...) a fórmula narrativa de Machado consiste na

alternância sistemática de perspectivas, em que está apurado um jogo de pontos de vista

produzido pelo funcionamento mesmo da sociedade brasileira” (Schwarz, 2000, p.11).

Tais aspectos estão defendidos em Instinto de nacionalidade, texto em que Machado

defende que o escritor deve ser homem de seu tempo, o que de certa forma explicaria a

literatura do autor. É o que considera Schwarz quando afirma:

O dispositivo literário capta e dramatiza a estrutura do país, transformada em

regra da escrita. E com efeito, a prosa narrativa machadiana é das raríssimas

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que pelo seu mero movimento constituem um espetáculo histórico-social

complexo, do mais alto interesse, importando pouco o assunto do primeiro

plano (SCHWARZ, 2000, p.11).

Machado não apresenta qualquer preconceito em abordar em seus livros fatos

contingenciais, corriqueiros. Crônicas, contos, poesia, crítica e romances se apresentam

como um todo crítico, cínico e irônico. Esta capacidade de lidar de forma dissimulada

com as contingências gera certo desconforto em alguns críticos que analisam sua obra,

como os que ressaltam a postura passiva do autor como Pedro Couto, Mário Matos,

Sílvio Romero, Raimundo Faoro, Mário de Andrade, Luiza Lobo [1993], Domício

Proença Filho [1998], Afonso Romano de Sant’Anna [1994]. Ainda que apresente fatos

contingenciais, sua literatura não fica aprisionada a fatos históricos. Machado foi um

grande cronista e escrever crônicas é, reduzindo bastante, como fazer uma fotografia,

captar algo da cotidianidade de tal forma que passe para a posteridade. Escrever sobre

as mazelas sociais constitui uma característica do texto machadiano.

Ao transpor para o estilo as relações sociais que observava, ou seja, ao

interiorizar o país e o tempo, Machado compunha uma expressão da

sociedade real, sociedade horrendamente dividida, em situação muito

particular, em parte inconfessável, nos antípodas da pátria romântica

(SCHWARZ, 2000, p. 11).

É fácil constatar que o julgamento de críticos como Silvio Romero está baseado

na estética naturalista que ele defendia. É possível que em termos naturalistas o texto de

Machado realmente não apresentava o recurso do detalhismo de paisagens, ambiente e

personagens. Machado, contudo, era um exímio retratista, mas não se definia por longas

descrições de cenas ou de paisagens exibidas em detalhes, tal como defende Campos

(1992).

Muitos teóricos o criticaram por não apresentar imagens de monumentos, da fauna

e da flora tipicamente brasileiras, o que, para alguns, significaria uma postura

antinacional. Entretanto, era para o homem e para a mulher de seu tempo que a sua

objetiva estava posicionada. E fica claro, o porquê do negro não estar no centro de

algumas de suas narrativas longas e em outros gêneros ter sua presença excluída ou uma

presença elíptica. Numa sociedade paternalista, senhorial e escravocrata na qual

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predominava a voz do senhor patriarcal, onde deveria estar o negro? Em qualquer

espaço que fosse distante da casa grande, das salas e dos salões, dos grandes eventos da

corte. Porém o retrato dessa sociedade pintado por Machado não poupa o “senhor”,

expõe seus defeitos e imperfeições do mesmo modo indica as bexigas que leva no rosto.

A imagem de fachada é corroída pelo verme, como um cupim que corrompe a madeira.

É de dentro desta sociedade, de seus salões e das casas burguesas que o narrador

machadiano decompõe as bases de todo um sistema escravocrata. Ao focalizar sua lente

no senhor, o escritor acabaria por comprovar a invisibilidade do negro na sociedade

brasileira do século XIX.

Estão na obra de Machado as principais características da sociedade, da elite

brasileira de sua época, vista por ele pelo prisma da simulação e dos mascaramentos.

Tais armadilhas ficcionais permitem que perceba a questão posta por seus escritos: neste

ambiente elitista, onde estariam os subalternos? Na resposta a este ponto é possível

refletir sobre as principais críticas feitas por críticos como Romero à construção de

cenários e personagens de seus romances.

Nascimento faz um levantamento das personagens machadianas elaboradas em

concordância com o espaço ocupado por elas: “(...) em termos de espaços ocupados por

seus personagens, as salas, varandas e salões são os mais frequentados

(NASCIMENTO, 2002, p.54). Estas personagens que ocupam os grandes salões

representam componentes da elite brasileira. Marcados pela simulação, não querem ser

vistos sem suas máscaras. Por isso é “Difícil surpreendê-los na intimidade de um quarto

ou qualquer outro espaço que lhes possibilitem um desnudamento, um encontro consigo

mesmos”. (NASCIMENTO, 2002, p.54)

Talvez o objetivo do autor fosse o de mostrar as máscaras que se exibem em

espaços onde a falsidade se faz presente, em ambientes em que a imagem criada é o que

conta, como observa Nascimento:

(...) é impossível aos personagens de Machado despirem-se de suas máscaras quando,

comprometidos sempre com o prestígio, social e a consideração pública, configuram-se

mais como atores do que como indivíduos; intérpretes aplicadíssimos de suas próprias

histórias. A opinião pública passa a ser, então, seu principal parâmetro e sua justa medida.

Quanto mais justa e aderente, mais perfeita a máscara. A máscara, sua própria pele.

(NASCIMENTO, 2002, p.24)

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Na obra de Machado, personagens, narrador e até mesmo as imagens de autor

estão representadas como se estivessem num grande teatro, expondo suas máscaras

como um mis-en-scene do mundo, ou seja, suas personagens dissimulam através dos

vários papéis que assumem. É ainda Nascimento quem observa que as personagens da

vida pública, comprometidas com determinadas posições de prestígio na sociedade,

precisam participar do jogo social onde quem melhor souber jogar receberá as melhores

recompensas (Nascimento, 2002, p.54).

Pode-se dizer que o narrador, estrategicamente, descreve personagens que não

conhece, pois faz parte do jogo não conhecer a verdadeira face dos que atuam no

cenário social levado para a ficção. Neste grande palco, o negro é apenas parte do

cenário, não atua, pois só assume os papéis permitidos pela sociedade, só pode atuar em

papéis indicadores de sua subalternidade. Para ser ator é necessário deixar de ser objeto,

para conseguir um papel é necessário ser pessoa.

É possível dizer que a escrita de Machado também joga com as possibilidades da

representação, nos engana, é sedutora e venenosa dissimulando na tessitura da ficção a

crítica a uma sociedade marcada pelo paternalismo, pela política do favor, pelas idéias

fora-de-lugar, por um liberalismo de fachada. Seus textos são armadilhas para o leitor

desavisado, uma cilada, uma verdadeira lição de crítica incisiva apresentada de forma

indireta. Por isso, a crítica do tempo do escritor não conseguiu perceber as estratégias

escolhidas pelo escritor e a sua capacidade de tratar criticamente a sociedade de sua

época, tal como afirma Camargo:

Seus textos eram, então, consumidos rapidamente, e as análises, além de

apressadas, eram, muitas vezes, superficiais, sem permitir um tempo maior para a

apreciação do grande trabalho de elaboração feito para se chegar àquele ponto. A

escrita em palimpsesto nem sempre foi bem reconhecida, tanto pelos leitores

comuns quanto pela crítica, ao tempo do escritor. (CAMARGO, 2005, p.144)

Somente a crítica publicada no decorrer do século XX, após a releitura cuidadosa

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de sua obra, conseguiu descortinar alguns enigmas do texto machadiano. As várias

retomadas de sua obra puderam esclarecer que, ao contar suas histórias, Machado de

Assis, de certa forma reescreveu a história do Brasil no século XIX. Esta é a posição de

Chalhoub quando considera: “Essa é a hipótese que vem sendo defendida, a meu ver de

forma bastante convincente, por críticos literários como Roberto Schwarz e John

Gledson (...)” (CHALHOUB, 2003, p.17). Longe de ser um intelectual

descompromissado com a situação política e econômica do Brasil, Machado foi

“homem de seu tempo e de seu país”. Para destacar essa característica do escritor,

Chahoub irá considerar que, “se a pena de Gledson revela um Machado empenhado em

interpretar o sentido da história, também mostra que tal esforço é acompanhado de um

processo não menos intenso de “dissimulação” e “despistamento” do leitor (...)”.

(CHALHOUB, 2003, p.18, grifo nosso). As considerações de Chalhoub são importantes

para se entenderem as questões que serão postas no item que se segue.

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A subalternidade e suas peculiaridades nas personagens machadianas

Mal Secreto

Se a cólera que espuma, a dor que mora

N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,

Tudo o que punge, tudo o que devora

O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse o espírito que chora

Ver através da máscara da face,

Quanta gente, talvez, que inveja agora

Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo

Guarda um atroz, recôndito inimigo,

Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,

Cuja a ventura única consiste

Em parecer aos outros venturosa!

(RAIMUNDO CORREIA in ASSIS,

2008, p. 1291)

O soneto de Raimundo Correia, citado acima, integra o prefácio escrito por

Machado de Assis ao livro Sinfonias, do poeta maranhense, tendo sido publicado em

1883. Entretanto, qual seria o motivo do bruxo do Cosme Velho transcrever em sua

totalidade os versos do poema acima? Coincidência? Considere-se que o escritor carioca

não trabalha com o acaso, sua literatura é detalhista e sua crítica não poderia ser

diferente. Há algo no soneto que chamou a atenção do autor para a escrita de Raimundo

Correia.

Mas para os leitores maliciosos é que se fizeram os prefácios astutos, desses

que trocam todas as voltas, e vão guardar o leitor onde este não espera por

eles. É o nosso caso. Em vez de lhe dizer, desde logo, o que penso do poeta,

com palavras que a incredulidade pode converter em puro obséquio literário,

antecipo uma página do livro; e, com essa outra malícia, dou-lhe a melhor

das opiniões, porque é impossível que o leitor não sinta a beleza destes versos

de Raimundo Correia (...). (ASSIS, 2008, p.1291)

O soneto de Raimundo Correia, de estrutura fixa, parnasiano, foi escrito em

1898. Estruturalmente o texto apresenta a estrutura do gênero textual soneto, mas é a

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sua temática que é interessante para Machado de Assis. O poema apresenta uma dura

crítica à sociedade que vive de ilusão, soterrada pelas aparências. A capacidade de usar

as máscaras de forma tão perfeita que a identidade passa a ser algo inexistente é o que,

nesta tese, estamos chamando de simulação. Simular é no primeiro nível fingir e neste

jogo de fingimento não há distinção de classe social. Enquanto os cidadãos da elite

encontram na simulação o meio de demonstrar sucesso, os subalternos utilizam o

fingimento como forma de sobrevivência. O favor pode exigir que o subalterno faça de

tudo para manter a satisfação de quem o sustenta.

Os elementos trabalhados no primeiro capítulo desta tese servirão de base para

que se desenvolvam as reflexões deste capítulo. A defesa de uma perspectiva estética

alternativa à defendida pelos posicionamentos artístico-literários mais tradicionais, a

reflexão sobre a subalternidade, a estética da dissimulação e da reciclagem são pontos

de vista utilizados para deixar evidente a defesa de que na narrativa machadiana se faz

presente uma postura ideológica dissimulada, resiliente e que as características que são

apontadas no estilo do autor surgem como forma de coadunar com os objetivos

camuflados.

No capítulo anterior menciono também a presença de uma terceira voz que

diverge das apresentadas pelo narrador, pelas personagens. Esta voz seria a utilizada

pelo autor enquanto função, tal como defende Foucault. É esta perspectiva autoral que o

segundo capítulo objetiva alcançar, a voz ideológica, política, de posicionamento,

enquanto performance do sujeito, que constrói as armadilhas narrativas, que dissimula

intenções, que utiliza de várias personagens como marionetes, ao passo que amplia as

atitudes de outras. Algumas personagens, ainda que passem a ideia de presença pouco

marcante, demonstram a capacidade de mover o conteúdo narrativo dissimulando a real

importância.

Estas personas subalternas são de vital importância para o entendimento da

construção narrativa machadiana conforme pretendo defender. Considero que os

subalternos, pela pena realista de Machado, são representados de acordo com os lugares

que ocupam na sociedade. Por isso, em seus romances, surgem em contextos pré-

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determinados ou são apenas mencionados, in absentia, revelando a situação de cada um

no contexto sócio-histórico em que vivem. Ainda que o status ocupado por estas pessoas

na sociedade as impossibilite de surgir em ambientes de prestígio, nos romances de

Machado elas são cruciais para o entendimento da narrativa e para a percepção da

dissimulação instaurada em seus textos.

A característica comum observada nas personagens em condições de

subalternidade é a resiliência. Este conceito advindo da física representa a capacidade

que possuem determinados materiais de alterar significativamente suas características,

sofrendo uma deformação momentânea quando expostos à pressão ou temperaturas

elevadas. Pois bem, este conceito físico foi apropriado pela psicologia para designar as

pessoas que, em situações limites e de estresse, são obrigadas a alterar suas

personalidades de forma drástica. Contudo, cessada a situação, estas pessoas retomam

suas identidades e subjetividades, momentaneamente alteradas.

O negro escravizado, os dependentes, as mulheres e demais personagens

históricos que viviam do favor patriarcal assumiam a condição de subalternidade. Os

subalternos constantemente são obrigados a assumir a postura do fingir como alternativa

de sobrevivência. Há os que fingem não ser o que são e há os que fingem ser o que,

verdadeiramente, não são. Sendo assim, há os que escolhem o caminho da simulação e

na maioria das vezes perdem suas identidades e há os que dissimulam, que utilizam

máscaras, mas que guardam dentro de si mesmos, longe de olhos estranhos, suas

personalidades. A discussão deste comportamento das personagens pode se valer do

termo resiliência trazido do campo da física para o da teoria literária. Todavia, a

resiliência que me interessa é aquela caracterizada pela malemolência, pela capacidade

de dobrar-se sem perder suas características marcantes, a sabedoria de curvar-se, mas de

não anular-se perante as dificuldades. A habilidade de dissimular as emoções, de

controlar os impulsos e escolher o momento correto e a técnica adequada para fazer

valer sua vontade e de não permitir qualquer forma de assujeitamento. São estas as

qualidades que serão exploradas nas personagens machadianas com o objetivo de

demonstrar o contraponto entre as características observadas nas personagens que

representam a elite brasileira e aquelas apresentadas pelas personagens subalternas, no

contexto em que os romances foram escritos.

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É com esta intenção que serão discutidas no romance Ressurreição a construção

das personagens Félix e Lívia como o objetivo de demonstrar como cada uma delas

representa papéis sociais claramente definidos na sociedade apresentada no contexto do

livro. No romance Dom Casmurro serão destacadas as características do narrador que

utiliza de meios simuladores para construir a narrativa.

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Ressurreição

Mas o tempo, que é bom mestre, vem diminuir tamanha confiança, deixando-

nos apenas o que é indispensável a todo o homem, e dissipando a outra, a

confiança pérfida e cega. Com o tempo; adquire a reflexão o seu império, e

eu incluo no tempo a condição do estudo, sem o qual o espírito fica em

perpétua infância. (ASSIS, 2008, p. 235).

Ressurreição é o primeiro romance de Machado de Assis publicado pela

elogiada editora da época, Livraria Garnier, em 1872. Já neste primeiro texto romanesco

é possível perceber o jogo que o bruxo do Cosme Velho empreende com o leitor. Há

uma constante geração de elementos de cunho romântico, que ficam claros em

expressões como: “encontros e desencontros amorosos”, “casamentos postergados”,

“carta anônima”, “vilão dissimulado e insidioso” (GUIMARÃES, 2004, p.127) que

sugerem ao leitor um possível desenlace do tipo “final feliz”.

Em Ressurreição, não falta nem mesmo a inveja de outros pelo amor dos

amantes apaixonados, pois, a mulher amada deve ser o alvo de outros cavaleiros que

também a desejam. Lívia era desejada por Luís Batista, por Meneses e por vários

homens do salão de baile da casa do coronel. A simples aproximação entre Lívia e Félix

já era causadora de olhares de despeito de outros: “Não passou isto sem que notassem

alguns lábios despeitados” (ASSIS, 2008, p. 249). E tanto ela quanto ele eram

invejados, pois assim é o amor romântico, causa a ira alheia: “Um cavaleiro disse a uma

senhora: – Não lhe parece que dona Lívia tem um gosto deplorável? A senhora

arregaçou levemente a ponta esquerda do lábio superior, e respondeu: - O Félix não o

tem melhor” (ASSIS, 2008, p. 249).

Contudo, a recepção é frustrada por um final inesperado, fato que gera a

desconfiança e a sensação de estranheza expressada pela crítica. Consciente do choque

que causaria um romance tão peculiar em um estilo que foge aos moldes já

cristalizados, o narrador, assumindo pontos de vista do autor, constantemente parece

pedir desculpas ao leitor por ser repetidamente frustrado:

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Aqui podia acabar o romance muito natural e sacramentalmente casando-se

dois pares de corações e indo desfrutar a sua lua-de-mel em algum canto

ignorado dos homens. Mas para isso, leitor impaciente, era necessário que a

filha do coronel e o Dr. Meneses se amassem, e eles não se amavam, nem se

dispunham a isso. Uma das razões que desviavam da gentil menina os olhos

de Meneses era que este os trazia namorados da viúva. De admiração ou de

amor? Foi de admiração primeiro, e depois foi de amor; coisa de que nem ele,

nem o autor do livro temos culpa. Que quer? Ela era formosa e moça, ele era

rapaz e amorável, e de mais a mais inexperiente ou cego, que não adivinhava

a situação anterior da viúva e do médico ainda por entre os véus com que lha

ocultavam (ASSIS, 2008, p. 278).

O autor revela já no início, na advertência feita à primeira edição, o seu interesse

em não criar um romance de costumes. Há um exercício em fugir do impulso

regionalista tão característico do Romantismo brasileiro dos anos 1870. “A extrema

flexibilidade do seu talento permite-lhe casar perfeitamente a verdade geral e superior

da natureza humana, com a verdade particular do temperamento nacional.”

(VERISSIMO in ASSIS, 2008, p. 26). O objetivo do autor era, então, criar uma

narrativa em que o enredo estivesse pautado na psicologia das personagens

principalmente baseado na relação de Lívia e Félix marcada pelas constantes separações

provocadas pela desconfiança. Por isso, em sua narração não há exploração da natureza

com descrições primorosas, o enredo emocional e carregado de aventuras, nem mesmo a

cor local determinada pela presença de vocabulário e expressões regionais.

A sua literatura não é, de intenção, descritiva; no mundo só lhe interessa de

fato o homem com os seus sentimentos, as suas paixões, os seus móveis de

ação; na sua terra, o puro drama, humano, talvez ele preferisse dizer comédia,

sem lhe dar da decoração, da paisagem, dos costumes, de que apenas se

servirá para criar aos seus personagens e aos seus feitos o ambiente

indispensável, porque sendo entes vivos não podem viver sem ele.

(VERISSIMO in ASSIS, 2008, p. 26)

Ressurreição apresenta quase ausência de ações exteriores e até mesmo quando

estas surgem são provenientes de sentimentos ou pensamentos. O interesse do narrador

neste romance é o interior das personagens, as particularidades de caráter, o contraste de

temperamentos entre o médico e a viúva. Na narrativa, toda atenção está voltada para o

pequeno universo das personagens. O mundo gira em torno da vida de duas

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personagens: Félix e Lívia. Todo o cenário social, político e geográfico surge dos olhos

deles e da perspectiva narrativa. O psicologismo linear do romance realista do século

XIX também é desprezado pelo autor, pois só conhecemos as personagens, suas

angústias e sentimentos ao final da narrativa. Suas personalidades vão sendo construídas

por suas ações e pensamentos.

Por elaborar um enredo demasiadamente conciso, Machado se expõe às duras

observações dos críticos que buscavam, talvez, um teor mais romântico. Uma das

críticas publicadas no Correio do Brazil, possivelmente escrita pelo poeta e dramaturgo

Carlos Ferreira (vide GUIMARÃES, 2004, p.302) destaca a artificialidade do romance

mais preocupado com a “inteligência do que com o coração” fruto de uma “imaginação

fria e positiva”. Quanto às características de concisão e frieza da razão serem superiores

aos impulsos da emoção, é possível encontrar lógica em seu posicionamento. Contudo

considerar que estas sejam qualidades negativas é incongruente, pois pensando no estilo

machadiano estas devem ser encaradas de forma positiva. Há em Machado de Assis uma

economia quando se trata de fatores como enredo e descrições ao passo que há extrema

engenhosidade no vasculhamento da alma humana, das suas vicissitudes e dos recursos

utilizados para construção de suas imbricadas estruturas narrativas.

O romance “(...) pertence à primeira fase da minha vida literária”. (ASSIS, 2008

[1905], p.235), contudo o autor expõe seus motivos que em muito se contrastam com os

defendidos naquele momento literário: “Não quis fazer romance de costumes; tentei o

esboço de uma situação e o contraste de dois caracteres; com esses simples elementos

busquei o interesse do livro” (ASSIS, 2008, p.236). Há no romance a abordagem de

estereótipos comuns dos burgueses do século XIX: Félix representando o homem

ciumento, atormentado pela aguda dúvida e que só se preocupa consigo mesmo e com

as aparências: “Não me parece provável que houvesse lido Sá de Miranda; todavia,

punha em prática aquela máxima de um personagem do poeta: ‘Boa cara, bom barrete e

boas palavras custam pouco e valem muito’...” (ASSIS, 2008, p.239); Lívia, a mulher

que busca uma paixão intensa, romântica; Raquel e Meneses, os que vivem o amor. Isto

deixa claro que Silviano Santiago estava correto em afirmar: “O romance de Machado é

antes de tudo um romance ético (...).” (Silviano Santiago em ASSIS, 2008, p. 127). Esta

bem poderia ter sido uma novela que aborda as dicotomias entre razão e sensibilidade.

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Contudo, ainda que fosse possível enquadrar a viúva no âmbito da sensibilidade seria

impossível aplicar à personagem masculina a moldura da razão sem as necessárias

adequações. Félix não era simplesmente um homem racional, também era frio,

calculista, egoísta e simulador. Somente se deixava envolver em relações em que tivesse

a certeza de lucro.

Há desta forma, tal como afirmara o próprio autor, “o contraste de dois

caracteres”. De um lado Lívia e sua crença abnegada na capacidade de renovação

proporcionada pelo amor romântico e Félix, o eterno cético e infeliz, atormentado por

fantasmas do passado – até mesmo por isso o título irônico, ressurreição, que pode ao

mesmo tempo caracterizar o posicionamento das duas personagens principais diante da

vida, uma que acredita no poder regenerador do amor e outra que sofre com os efeitos

do passado que o impede de seguir em frente.

Tal era o contraste desses dois caracteres, que a estrela da viúva, não sei se

boa ou má estrela, reuniu a seus pés. Um, se viesse a adorar um rosto

hipócrita, desceria na escala das degradações, com os olhos fitos na quimera

da sua felicidade; outro, ardendo pela mais angélica das criaturas humanas,

quebraria com as próprias mãos a escada que o levaria ao céu. (ASSIS, 2008,

p. 278)

Nesta narrativa inaugural de M. de Assis no gênero romance, já é possível

perceber os traços que acompanharão seu estilo e que serão aprimorados em textos

narrativos posteriores: a ironia, a crítica severa aos costumes defendidos pela elite

carioca do século XIX, a análise psicológica das personagens. As ideias aqui defendidas

reverberam e estão afinadas com as já defendidas por José Verissimo no momento em

que este afirma que: “Todo o Sr. Machado de Assis está efetivamente nas suas primeiras

obras; de fato ele não mudou apenas evolveu” (VERÍSSIMO, 1976, p.157). Ou seja, cai

por terra a ideia de um Machado ingênuo na primeira fase, pois a “máxima

virtuosidade” apresentada em livros posteriores, a “segunda maneira” “não é senão o

desenvolvimento lógico, natural, espontâneo da primeira, ou não e senão a primeira com

romanesco de menos e as tendências críticas de mais” (VERÍSSIMO, 1976, p.157). Há

um processo e o conjunto deve ser analisado como um todo coerente, coeso e relacional

como também defende Lúcia Miguel-Pereira:

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O autor das Memórias póstumas de Brás Cubas existia no de Ressurreição

como a Capitu da Glória estava na de Matacavalos – em germe; de vez em

quando, por uma frase, por uma indicação, por uma ideia apenas esboçada e

que mais tarde seria desenvolvida, parece aflorar, querer surgir das

profundezas em que mergulhava; mal se deixa surpreender, porém, e logo

some, abafado pelo narrador amante das conveniências, respeitador das

etiquetas sociais e literárias. (Miguel Pereira in ASSIS, 2008, p. 61).

Se aos primeiros críticos os livros de Machado eram considerados frios, o que

diriam então os posteriores? Com o passar dos anos, o grande “mestre tempo” sem o

qual “o espírito fica em perpétua infância” faz com que o escritor aguce ainda mais a

“inteligência” tornando a ironia mais fina e a crítica mais pontual. Tal como afirma

Veríssimo, “Nos livros que se seguiram é fácil notar como a emoção é, diríeis,

sistematicamente recalcada pela ironia dolorosa de um desabusado” (VERÍSSIMO,

1976, p.157).

Alfredo Pujol, acentuando ainda mais a divisão entre um primeiro e um segundo

Machado, defende que a primeira fase estaria caracterizada por um “humorismo faceto”

ao passo eu a segunda seria a fase de humor mais amargo. Segundo o crítico o primeiro

humor “não fere sequer a epiderme e que apenas faz sorrir” enquanto na segunda “A

tristeza da sua visão e o amargor da sua análise virão mais tarde, com o aparecimento da

nevrose que gerou seu doloroso pessimismo (PUJOL, 2007, p. 70). Contudo, penso que

a divisão de Pujol, ainda que lógica e bem amparada teoricamente, se apresenta de

forma exagerada, pois há no Machado de Assis dos primeiros romances alguns traços de

romantismo que, entretanto, são transfigurados pelo pessimismo manifestado pelo autor.

Discordo parcialmente também da análise que Pujol faz das quatro personagens

femininas principais das primeiras narrativas, caracterizadas pelo crítico como

românticas. As mulheres machadianas estão longe de ser as donzelas indefesas, pois

tanto Lívia, quanto Guiomar, Helena e Estela são mulheres fortes, decisivas e que

frustram o ideal romântico de mulher (tal como o que se faz presente na literatura de

José de Alencar).

Os principais problemas das críticas feitas aos primeiros romances machadianos,

talvez pudessem ser resumidos em duas questões:

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1 - As críticas que foram escritas na época de publicação dos livros estão

preocupadas em comparar o autor com outros autores românticos nascidos no Brasil ou

no exterior. Especialmente, o teor da crítica se volta para a observação e busca de

encontrar na narrativa machadiana elementos do romantismo;

2 – Os críticos posteriores que escreveram suas observações após a publicação

de livros da denominada “segunda fase” do autor, comparam-no consigo mesmo. Há

uma visão maniqueísta comum entre um Machado ingênuo e aprendiz dos primeiros

livros e o bruxo do Cosme Velho de suas narrativas de madurez;

Este foi o meu primeiro romance, escrito aí vão muitos anos. Dado em nova

edição, não lhe altero a composição nem o estilo, apenas troco dois ou três

vocábulos, e faço tais ou quais correções de ortografia. Como outros que

vieram depois, e alguns contos e novelas de então, pertence à primeira fase

da minha vida literária. (ASSIS, 2008, p. 235)

Na citação acima se percebe que a divisão entre primeira fase e segunda também

é induzida pelo próprio Machado que utiliza de armadilhas ficcionais levando o crítico

a acreditar em dois autores distintos. Na tentativa já irônica de abrandar as possíveis

críticas, o autor escreve a advertência abaixo. Designar seu romance como um ensaio é

uma forma de minimizar os ataques. Machado de Assis já previa que a boa e sisuda

crítica iria levantar os pontos negativos que seriam as divergências entre sua literatura e

o romantismo da época.

Não sei o que deva pensar deste livro; ignoro sobretudo o que pensará dele o

leitor. A benevolência com que foi recebido um volume de contos e novelas,

que há dois anos publiquei, me animou a escrevê-lo. É um ensaio. Vai

despretensiosamente às mãos da crítica e do público, que o tratarão com a

justiça que merecer. (ASSIS, 2008, p. 235).

No meu ponto de vista, a literatura machadiana não deveria ser dividida em duas

fases (primeira e segunda). A ideia de amadurecimento é interessante por demonstrar

que o espírito evolui com o tempo. E com o bruxo do Cosme Velho não seria diferente.

Pode-se perceber que o amadurecimento carrega junto um agravo do pessimismo e

maior liberdade para abordar assuntos polêmicos e fazer críticas mais contundentes. O

espírito que caminha e evolui para fugir da perpétua infância traz inspirações kantianas

para a advertência de Machado. A diminuição da confiança é um eufemismo para o que

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virá a proceder no futuro com a forma de refletir sobre a sociedade e sobre a vida que se

encontra nos romances da denominada segunda fase.

Mas o tempo, que é bom mestre, vem diminuir tamanha confiança, deixando-

nos apenas o que é indispensável a todo o homem, e dissipando a outra, a

confiança pérfida e cega. Com o tempo; adquire a reflexão o seu império, e

eu incluo no tempo a condição do estudo, sem o qual o espírito fica em

perpétua infância. (ASSIS, 2008, p. 235)

Os posicionamentos críticos relatados acima desconhecem na literatura

machadiana a construção de um todo artístico constituído por textos interdependentes.

Há em sua literatura a criação de uma obra harmônica caracterizada por narrativas,

contos, poesias, teatro, crítica e crônicas que giram sobre uma mesma questão. Em

Machado há sempre a crítica ao modo de vida da sociedade, a qual surge de forma mais

direta ou indireta. Por isso, não faz sentido pensar em narrativas totalmente autônomas e

separadas.

Já é tempo de se começar a compreender a obra de Machado como um todo

coerentemente organizado, percebendo que certas estruturas primárias e

secundárias se desarticulam e rearticulam sob forma de estruturas diferentes,

mais complexas e mais sofisticadas à medida que seus textos se sucedem

cronologicamente. (GLEDSON apud SANTIAGO, 2000, p. 429).

É necessário assumir que por vezes o trabalho aqui desenvolvido não conseguirá

fugir totalmente ao segundo modo apresentado de fazer crítica machadiana, contudo há

a tentativa de amenizar e evitar comparações que prejudiquem a reflexão sobre seus

livros tentando abordá-los sem levar em conta uma visão progressista sobre o estilo de

escrita machadiano, relacionando os textos de acordo com o contexto de cada época.

Ainda assim, admitindo a importância das contingências de seu tempo e de seu

país, causam-me assombro as relações extremadas entre vida e obra tal como as

consideradas por Lúcia Miguel Pereira em alguns pontos. A crítica afirma que o

realismo de M. de Assis é prejudicado por seu escasso conhecimento dos costumes da

elite burguesa em representações das personagens desta classe em seus primeiros

romances. Segundo a crítica, a tentativa de análise psicológica por parte do autor de

personagens fora frustrada por desconhecimento da personalidade dos membros dessa

faixa social: “(...) em Ressurreição, essas paixões e esses temperamentos não são ainda

os da vida real, mas os que idealizava um mulato pobre e de talento quando sonhava

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com a gente elegante, que via passar de carro” (PEREIRA, 1988, p. 141).

Não é difícil notar que as críticas de Alfredo Pujol, de Lúcia Miguel Pereira e de

José Veríssimo somente são possíveis, pois, os críticos conhecem a obra de M. de Assis

tanto da “primeira fase” quanto da “segunda”. Estão, por conseguinte, amparadas num

perspectivismo comparativo e sincrônico. Nesta visão também não é um absurdo lógico

deduzir que para eles há um M. de Assis melhor e, consequentemente, um pior, ou que

há o início do projeto e uma conclusão dele.

Já mencionei a dificuldade encontrada para que esta tese fuja da tendência

perspectivista e comparativa dos textos machadianos, porém, também há um esforço

empreendido que objetiva fugir da comparação entre um Machado crítico e um ingênuo,

entre um humor faceiro e um humor irônico. O que defendo é que há condições

externas, contingenciais, contextos que influenciam a produção de qualquer objeto

artístico. Desta forma, não desprezo o trabalho comparativo, mas tento também analisar

a narrativa e as condições de produção do texto.

Com Schwarz é possível perceber, já nas primeiras páginas romanescas de M. de

Assis, o descompasso que há entre o comportamento e as ideologias defendidas em solo

brasileiro: o liberalismo econômico versus o sistema patriarcal do século XIX; o

discurso das igualdades entre os homens versus as condições de vida do subalterno.

Ainda de acordo com o crítico já há nestes romances iniciais a presença da realidade das

diferenças e desigualdades sociais. Contudo, este fato se apresenta individualmente

representado nas figuras das personagens e ainda não se apresenta como uma mazela

social. Todavia, a retratação destas personagens surge como um plano micro que já

possibilita a percepção da crítica ao plano macrossocial.

Em Ressurreição o amor entre Félix e Lívia sofre obstáculos que não são

produzidos por elementos externos ao casal. O maior obstáculo do romance advém do

ciúme extremo manifestado por Félix: “A vida solitária e austera da viúva não pôde

evitar o espírito suspeitoso de Félix. Creu nela a princípio. Algum tempo depois

duvidou de que fosse puramente um refúgio; acreditou que seria antes uma

dissimulação” (ASSIS, 2008, p. 314). Assim, como veremos em Dom Casmurro, há o

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mote shakespeareano em Ressurreição. Entretanto, no Otelo de Shakespeare a

personagem masculina, que é ciumenta ao extremo, mata a própria mulher por acreditar

que esta o tinha traído. No drama, a personagem principal, o mouro de Veneza ocupava

no passado uma posição subalterna e por doentio ciúme destrói todas suas conquistas.

A tragédia de Shakespeare foi publicada em meados de 1622. Mas, em sua

composição há a data de 1604. Na peça, Otelo era mouro e, portanto, apresentava a

subalternidade por sua origem. Porém, por meio de seus méritos de exímio soldado

consegue alcançar o posto de general e respeito no reino de Veneza. Esta ascensão

provoca a inveja de Iago diante do sucesso do mouro. Iago planeja dois planos contra

Otelo. No primeiro, descobre que Otelo era amante de Desdêmona (descendente da

nobreza) e acusa o mouro de utilizar de meios espúrios (bruxaria) na sedução da jovem.

Otelo consegue defender-se da acusação provando que o amor dos dois era genuíno. O

segundo golpe, contudo, fora mais grave. Otelo se casa com Desdêmona e parte para a

Ilha de Chipre para defender os domínios do reino de Veneza. Iago aproveita a

oportunidade para gerar em Otelo a desconfiança da fidelidade de sua esposa, alegando

que esta teria um caso com seu tenente Cássio. As tramas de Iago levam Otelo a

assassinar a esposa e depois, percebendo seu erro encerrar o trágico final com sua

própria morte.

O impulso shakespeariano se faz presente na dúvida carregada como estandarte

pela protagonista, característica que é repetidamente lembrada pelo narrador onisciente.

O foco narrativo atento as duas personas emblemáticas do livro não poupa esforços em

descrever a incerteza de Félix como elemento dominante de seu caráter. O Otelo às

avessas fica claro quando o escritor coloca em seu romance a inspiração contida nos

versos do autor inglês.

Minha ideia ao escrever este livro foi pôr em ação aquele pensamento de

Shakespeare:

Our doubts are traitors,

And make us lose the good we oft might win,

By fearing to attempt. (ASSIS, 2008, p. 236)

Porém, e por isso denomino Otelo às avessas, é exatamente com a caracterização

e a ação dos personagens que a tragédia se distancia do romance de Machado de Assis.

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O mouro, que seria a personagem principal do texto shakespeariano, representa o

indivíduo discriminado, ocupante da base da escala social e que consegue espaço na

hierarquia e que depois, perde tudo o que conquistou. Já no texto machadiano, a

personagem principal tanto de Ressurreição quanto de Dom Casmurro representa o

homem da elite da sociedade brasileira de sua época. Quase sempre estas personagens

que representam o poder são apresentadas nas obras de Machado como indivíduos

problemáticos: tomados de ignorância, pelo egoísmo, de caráter duvidoso, tolos.

Por detrás dessa superfície unida e lisa, os dramas se contorcem. Cada

criatura é um mundo fechado, impenetrável aos outros, que abalroa se os

encontra no caminho. O egoísmo, ora cínico, ora hipócrita, ora ingênuo, é um

dos móveis mais frequente das ações. O universo de Machado de Assis é, em

grande parte, uma expressão do egoísmo. Egoísmo da natureza, que sacrifica

o indivíduo à espécie; egoísmo da sociedade que, para manter os seus

estatutos, não hesita em acorrentar as criaturas a situações desgraçadas;

egoísmos da família, tudo subordinado às suas conveniências; egoísmo de

cada ser, exigindo sempre dos outros muito mais do que lhes dá. (Lúcia

Miguel-Pereira in ASSIS, 2008, p. 65).

Em Ressurreição não poderia ser diferente. No romance, há o desenlace desta

situação desigual entre um homem frio e uma mulher apaixonada (ASSIS, 2008, p.

262). Félix representa a sociedade que vive das aparências e considera banal a

demonstração dos sentimentos. O romance se passa a partir do novelo da vida das

personagens. Da crença no amor de Lívia e na constante dúvida de Félix. A personagem

masculina apresenta caráter duvidoso caracterizado por ações incoerentes e confusas. O

enredo é simples. As personagens protagonistas se encontraram pela primeira vez em

um baile, mas é no reencontro que eles se apaixonam. Um dos amigos de Félix,

Meneses, também se apaixona pela viúva. Raquel, no auge de seus 17 anos se apaixona

por Félix por acreditar que este a salvara de uma enfermidade. Além destas personagens

que giram em torno das duas protagonistas há outras, como Luís Batista, homem casado

que também se apaixona por Lívia e Cecília que é abandonada pelo protagonista no

início da narrativa.

O narrador deixa a personalidade de Félix clara a todo o momento, por exemplo,

quando afirma: “não se trata aqui de nenhum caráter inteiriço, nem de um espírito

lógico e igual a si mesmo” (ASSIS, 2008, p. 237). De caráter incoerente, complexo e

caprichoso. Sua principal característica é a duplicidade de caráter: “Duas faces tinha o

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seu espírito, e conquanto formassem um só rosto, eram, todavia diversas entre si, uma

natural e espontânea, outra calculada e sistemática.” (ASSIS, 2008, p. 237). Desde as

primeiras páginas a narrativa descreve Félix a partir de suas ações frias e calculistas

próprias de quem não poupa esforços para fazer valer seus desejos.

O coração de Félix não era dado às relações duradouras, pois ele facilmente se

enojava de seus novos amores, que se tornavam velhos após uma fugaz passagem de

tempo. E assim no ano novo resolve dar cabo às suas velhas ilusões: “Naquele dia,

aurora do ano, escolhera-o o nosso herói para ocaso de seus velhos amores. Não eram

velhos; tinham apenas seis meses de idade” (ASSIS, 2008, p. 237). E assim, lentamente,

o narrador revela para o leitor traços de sua personalidade, afirmando, ironicamente, ser

Félix um herói, não um romântico, mas um que escolhe um lindo dia de começo de ano

para terminar antigos amores de seis meses de idade.

(...) os meus amores são todos semestrais; duram mais que as rosas, duram

duas estações. Para o meu coração um ano é a eternidade. Não há ternura que

vá além de seis meses; ao cabo desse tempo, o amor prepara as malas e deixa

o coração como um viajante deixa o hotel; entra depois o aborrecimento, mau

hóspede. (ASSIS, 2008, p. 242).

É com essas estratégias que ele termina seu relacionamento com Cecília que fora

para ele um puro cálculo, um passatempo: “(...) o que faço agora não é novidade;

ouviste-me dizer muita vez que a nossa afeição era um capítulo curto. Rias então de

mim; fazias mal, porque era alimentar uma esperança vã.” (ASSIS, 2008, p. 241). Ele

justifica o término do relacionamento deslocando a situação a seu favor e defendendo

que todo amor é ilusão e de pouca duração.

Naquele homem feito de sinceridade e afetação tudo se confundia e

baralhava. Um jornalista do tempo, seu amigo, costumava compará-lo ao

escudo de Aquiles, - mescla de estanho e ouro, - “muito menos sólido”,

acrescentava ele. (ASSIS, 2008, p.237)

No momento em que se perde e se vê frágil e apaixonado, a personagem se abre

e o leitor acostumado com obras de cunho romântico vislumbra a possibilidade de um

amor, de uma tragédia, de uma mudança de caráter. Todavia, não é isto o que ocorre,

pois: “Nem tudo era bom, como acontece nesses livros, que são às vezes verdadeiros

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asilos de inválidos do Parnaso, onde as musas reumáticas e manetas vão soltar os seus

gemidos” (ASSIS, 2008, p. 262).

A espontaneidade não faz parte de suas ações, a frieza e o planejamento prévio

de todas as coisas é o que lhe proporciona felicidade. Ele queria Lívia, contudo desejava

provas concretas de seu amor. Para ele não há espaço para a dúvida, para a pureza ou

para as surpresas de um sentimento. O ceticismo para a vida é a atitude cética perante as

emoções: “Eu amar? Pôr a existência toda nas mãos de uma criatura estranha [...]”. O

viver cético também contamina sua análise das personalidades alheias e assim ele age

quando reflete sobre a mulher “[...] não basta ver uma mulher para a conhecer, é preciso

ouvi-la também; ainda que muitas vezes basta ouvi-la para a não conhecer jamais”

(ASSIS, 2008, p.249). Para Félix a confiança era a condição necessária para que vivesse

o amor. E além de sentir-se seguro era preciso que existisse serenidade e constância.

Fizeste brotar dentre as ruínas uma flor solitária, mas bela; única neste árido

terreno do meu coração. Não basta; é preciso agora um raio que a anime e lhe

conserve o perpétuo viço; essa é a confiança, não de uma hora, mas a de

todos os dias, a que não falece nunca e nos restitui a serenidade dos primeiros

tempos. Sem ela, o meu amor será um largo e inútil martírio (ASSIS, 2008, p.

275).

Outro traço do caráter de Félix que poderia ajudar a entender a sociedade da

época é a intensa preocupação com as aparências, ou seja, simulando a todo tempo um

falso equilíbrio. O posicionamento de Félix perante a situação representa de certa forma

o comportamento esperado, desejado, adequado da elite brasileira. Félix não consegue

ser feliz por seu egoísmo. A vida do protagonista é uma mentira verossímil em que

todos acreditam. A sociedade em que vive coloca a veracidade como um bem de menor

valor, afinal o que vale é a publicidade dos atos e o que eles aparentam e significam no

meio social, vale mais a verossimilhança do que a verdade. Os mascaramentos não

constituem, para esta elite, apenas estratégias, subterfúgios, mas fazem parte da própria

identidade. A simulação alcançou tal nível que se transformou em um traço da

personalidade, em uma filosofia de vida. Esta questão da verossimilhança surge

constantemente na literatura machadiana, é só observar o caso de Bentinho e Capitolina.

Nesta sociedade mais vale o engodo que a verdade. O que importa é o que as

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outras pessoas afirmam como verdade e não o que ocorreu de fato. Assim se dá com o

caso de amor entre Lívia e Félix. Ele descobre elementos que comprovariam a inocência

de Lívia, contudo mantém sua postura fria diante da situação. O amor entre os dois não

deu frutos e morreu antes mesmo de florescer pela incapacidade de Félix em assumir

seus sentimentos e de lutar por eles. Sua fraqueza estava justamente na impossibilidade

de colocar-se acima das conveniências sociais.

A veracidade da carta que impedira o casamento, com o andar dos anos, não

só lhe pareceu possível, mas até provável. Meneses disse-lhe um dia ter prova

cabal de que Luís Batista fora o autor da carta; Félix não recusou o

testemunho nem lhe pediu a prova. O que ele interiormente pensava era que

suprimida a vilania de Luís Batista, não estava excluída a verossimilhança do

fato, e bastava ela para lhe dar razão. (ASSIS, 2008, p. 314)

As aparências eram para Félix a mais absoluta verdade, ou a única que ele

seguia. Não significa que ele não sofria com a situação, aliás, o único sentimento que

ele carregava com intensidade desastrosa era o sofrimento. Esta dor era causada

principalmente por sua consciência amarga, repleta de ceticismo e o egoísmo próprio

dos que não se envolvem por não suportarem a possibilidade de decepção. Qualquer

gesto, as mínimas variações do olhar amado causavam-lhe suspeitas ameaçadoras que

terminavam por turvar-lhe o espírito.

O dia estava esplêndido; uma fresca bafagem do mar vinha quebrar um pouco

os ardores do estio; algumas raras nuvenzinhas brancas, finas e transparentes

se destacavam no azul do céu. Chilreavam na chácara vizinha à casa do

doutor algumas aves afeitas à vida (...). Parecia que toda a natureza

colaborava na inauguração do ano. (ASSIS, 2008, p. 236).

Ao que tudo indica este fragmento poderia bem ser o início de um tradicional

romance romântico: o dia esplêndido, o sol, a brisa do mar que abrandava o estio, as

doces e transparentes nuvens. Os pássaros que cantavam como que homenageando o

novo dia de um novo ano. Porém, como é comum neste romance, as expectativas são

quebradas e o aparente pacto com o leitor é rompido. Na passagem a seguir, as rabugens

de Félix ficam claras e, aliás, o diálogo direto entre narrador e leitor também serviria

com um alerta para as frustrações que seriam provocadas no decorrer da narrativa.

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Tudo nos parece melhor e mais belo, - fruto da nossa ilusão, - e alegres com

vermos o ano que desponta, não reparamos que ele é também um passo para

a morte. Teria esta última idéia entrado no espírito de Félix, ao contemplar a

magnificência do céu e os esplendores da luz? Certo é que uma nuvem ligeira

pareceu toldar-lhe a fronte. Félix embebeu os olhos no horizonte e ficou largo

tempo imóvel e absorto, como se interrogasse o futuro ou revolvesse o

passado. Depois, fez um gesto de tédio, e, parecendo envergonhado de se ter

entregue à contemplação interior de alguma quimera, desceu rapidamente à

prosa, acendeu um charuto, e esperou tranquilamente a hora do almoço.

(ASSIS, 2008, p.236-237).

Está bem nítida a impossibilidade de Félix se deixar levar pelo amor ou pelas

ilusões. O romantismo era, para ele, apenas uma ideia vaga, uma nuvem ligeira a toldar-

lhe a fronte, nada que não pudesse ser destruído pelo tédio. Tamanha era sua frieza que

chegava a envergonhar-se destes pequenos momentos de contemplação da

magnificência do céu e dos esplendores da luz. Sua invencível quimera interior não

permitia o livre divagar e ele voltava para a personalidade inquisidora de sempre. Nem

mesmo os pensamentos mais íntimos da amada escapavam ao seu mirar conservador e

investigativo. O narrador que pode desvendar as intimidades da personagem permite

que o leitor conheça os elementos próprios do caráter de Félix. Esta seria a principal

diferença entre os romances Ressurreição e Dom Casmurro. Enquanto no primeiro há

um narrador onisciente, no segundo, o narrador é também personagem da trama, repleto

de segundas intenções a controlar a narração. O foco narrativo de Ressurreição indica

uma maior intromissão no capítulo IX e o leitor passa a conhecer a intranquilidade de

Félix perante o possível amor:

O amor de Félix era um gosto amargo, travado de dúvidas e suspeitas.

Melindroso lhe chamara ela, e com razão; a mais leve folha de rosa o

magoava. Um sorriso, um olhar, um gesto, qualquer coisa bastava para lhe

turbar o espírito. O próprio pensamento da moça não escapava às suas

suspeitas: se alguma vez lhe descobria no olhar a atonia da reflexão, entrava a

conjeturar as causas dela, recordava um gesto da véspera, um olhar mal

explicado, uma frase obscura e ambígua, e tudo isto se amalgamava no ânimo

do pobre namorado, e de tudo isto brotava, autêntica e luminosa, a perfídia da

moça. (ASSIS, 2008, p. 264-265).

Afinal, o que realmente Félix via em Lívia que o deixara apaixonado? Será que

conseguia ver Lívia como ela realmente era ou percebia somente aquela que estava em

seu íntimo, em seu ideal padronizado de mulher. Ele queria aquela que observava à

distância e não a que estava ao seu lado. Tudo indica que o medo do protagonista era

provocado pela possível frustração ao conhecer a mulher real. Talvez, essa mulher

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pudesse destruir a estátua passiva que ele criara mentalmente.

O corpinho apertado desenhava naturalmente os contornos delicados e

graciosos do busto. Via-se ondular ligeiramente o seio túrgido, comprimido

pelo cetim; o braço esquerdo, atirado molemente no regaço, destacava-se pela

alvura sobre a cor sombria do vestido, como um fragmento de estátua sobre o

musgo de ruína. Félix recompôs na imaginação a estátua toda, e estremeceu.

(ASSIS, 2008, p. 249).

Enfim, Félix significava o homem comum, o trivial. Era o herói representativo, o

homem da elite brasileira do século XIX encarado pelos olhos críticos do escritor.

Aquele que preferia a comodidade de um casamento arranjado ao amor e seus riscos. A

segurança era para Félix o manter as aparências. A confiança não seria fruto do amor,

mas do tempo. Lívia seria constantemente observada, vigiada e ao primeiro traço

obscuro ou de desconfiança deveria ser descartada.

A obra não está completa – continuou Félix -; metade apenas. Fizeste brotar

dentre as ruínas uma flor solitária, mas bela; única neste árido terreno do meu

coração. Não basta; é preciso agora um raio que anime e lhe conserve o

perpétuo viço; essa é a confiança, não de uma hora, mas a de todos os dias a

que não falece nunca e nos restitui a serenidade dos primeiros tempos. Sem

ela, o meu amor será um largo e inútil martírio. (ASSIS, 2008, p. 275)

É interessante observar a atitude de Félix perante a vida, sua incapacidade de seguir seu

coração e sua inescrupulosa capacidade de trair a todos e a si mesmo e depois conseguir

dormir o sono tranquilo dos justos e esquecer-se de tudo: “Uma hora depois do baile, a

viúva, a dança, tudo se lhe desvaneceu do espírito, graças a um sono tranquilo e

profundo, como essas nuvens douradas do ocaso que a noite absorve ou dissipa”

(ASSIS, 2008, p. 249). O seu amor por Lívia representava apenas uma simples nuvem

dourada do ocaso dissipada pela obscuridade de sua personalidade incerta. Seu amor era

sustentado pela presença, a simples distância servira para apagar de seu coração a

existência de Lívia em sua vida.

Félix é que não iria parar no claustro. A dolorosa impressão dos

acontecimentos a que o leitor assistiu, se profundamente o abateu,

rapidamente se lhe apagou. O amor extinguiu-se como lâmpada que faltou

óleo. Era a convivência da moça que lhe nutria a chama. Quando ela

desapareceu, a chama exausta expirou. (ASSIS, 2008, p. 313).

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Nem mesmo o claustro vivenciado pela viúva após as seguidas frustrações

vividas conseguiu amolecer o coração de Félix. Ele não sentira remorsos pela tristeza

que causara a ambos. Como sempre o som de seu coração é abafado por uma lógica

dominada pelas aparências e por um ceticismo sórdido: “A vida solitária e austera da

viúva não pôde evitar o espírito suspeitoso de Félix. Creu nela a princípio. Algum

tempo depois duvidou de que fosse puramente um refúgio: acreditou que seria antes

uma dissimulação” (Machado de Assis, 2008, p. 314). Assim, ele cumpre sua existência

como um cidadão que possuía todos os elementos considerados pela sociedade como

essenciais para encontrar a felicidade. Todavia, era um espírito infeliz como muitas

personagens masculinas machadianas. Desistira do amor antes mesmo de se entregar,

antes mesmo de amar e termina seu relacionamento com Lívia por meio de uma carta

que também expressa a sua covardia:

Lívia

O que vou dizer é indigno, bem o sei; mas é ainda mais cruel do que indigno.

O nosso casamento é fatalmente impossível. Não tens nenhuma culpa direta

nem indireta na minha resolução. Esta carta, que me condena, será a tua cabal

defesa. Adeus (ASSIS, 2008, p. 303).

Todas estas personagens, estes homens pusilânimes não conseguem alcançar a

felicidade pelo comodismo de se submeter às conveniências sociais, pelo medo da

infelicidade, padecem pelo receio de lutar. O coração de Félix reavivado pela sedutora e

bela heroína sentira tão somente um impulso, ressuscitara sem levar consigo, contudo, o

sentimento de confiança próprio dos amantes.

Dispondo de todos os meios que o podiam fazer venturoso, segundo a

sociedade, Félix é essencialmente infeliz. A natureza o pôs nessa classe de

homens pusilânimes e visionários, a quem cabe a reflexão do poeta: “perdem

o bom pelo receio de o buscar”. Não se contentando com a felicidade exterior

que o rodeia que haver essa outra das afeições íntimas, duráveis e

consoladoras. Não a há de alcançar nunca, porque o seu coração, se ressurgiu

por alguns dias, esqueceu na sepultura o sentimento da confiança e a

memória das ilusões. (ASSIS, 2008, p. 314).

Toda esta exposição do caráter de Félix pode parecer uma construção

maniqueísta da personagem. Porém, quem conhece os textos machadianos acaba por

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perceber que suas personagens são psicologicamente complexas. Em alguns momentos,

é possível vislumbrar em Félix um esforço para fugir de sua própria condição e viver

um amor livre, louco e feliz. Contudo, as amarras sociais e as marcas profundas que

formaram sua identidade o impedem de seguir os impulsos pulsantes de seu coração.

As narrativas de Machado deixam claro o ideal da sociedade que relaciona êxito

social com felicidade. É possível observar a angústia e tensão em que vivem as

personagens na tentativa de aliar os dois ideais e neste ponto as que mais sofrem são as

personagens femininas. A ambição é característica comum exigida em maior ou menor

grau em diferentes situações. As que ambicionam a elevação na classe social são as que

mais são cobradas. Elas vivem o dilema entre o amor e a elevação social e sempre são

impulsionadas para a simulação. Por vezes, retirando alguns casos específicos como o

de Lívia, estas mulheres são colocadas em situações de favor e abrigadas por famílias

abastadas e para estas quase sempre há a complexa dúvida entre ter que decidir entre a

felicidade advinda do amor e a de passar a ocupar um espaço mais elevado na hierarquia

social. Isto se dá, pois, na sociedade de aparências, o melhor meio de elevação social

está justamente no matrimônio, tal como se observa nos romances A mão e a luva,

Helena e Iaiá Garcia.

Por outro lado, para se passar do amor ao casamento, o homem e a mulher se

entregam a diversos jogos sociais. As várias formas do jogo são baseadas em

posições opostas e complementares, que definem sua posição dentro da

sociedade: a liberdade e a prisão, o sentimento e a razão. À multiplicidade de

experiências que o homem pode ter, por ser livre, corresponderá na jovem

solteira ao uso, caso queira a liberdade, de múltiplas máscaras. A aceitação de

qualquer experiência por parte da mulher, aliás, requer obrigatoriamente a

dissimulação; esconder é a sua atitude habitual, mesmo porque o próprio

recato que namorado/noivo/marido exige dela já é um véu que cobre seus

legítimos sentimentos. (ASSIS, 2008, p. 128)

Lívia, conforme é possível constatar em passagens esparsas no romance, tinha se

casado por amor. Contudo, este amor teria sido, de certa forma, uma decepção, pois ela

buscava intensidade e o marido serenidade. Seu marido também seguia o ideal social da

simulação dos sentimentos, da reclusão das manifestações românticas. Lívia buscava o

êxtase emocional provocado por um amor intenso “um êxtase divino, uma espécie de

sonho em ação, uma transfusão absoluta de alma para alma;”. O casamento, naquela

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época, significava controle, tranquilidade e passividade de uma união estável em todos

os sentidos: “um sentimento moderado, regrado, um pretexto conjugal sem ardores, sem

asas, sem ilusões...” (ASSIS, 2008, p.273).

Estou explicando a situação da minha alma – continuou ela. – foi aflitiva e

triste; não lha ocultei. Riu-se de mim. Era um homem apático e frio; honesto,

é verdade, e bom coração, mas falávamos língua diversa e não nos podíamos

entender. Confiei todavia na influência do amor. (...) Tinha feito da nossa

vida conjugal um deserto; e se a minha alma clamava contra o destino, minha

consciência me acusava de um erro, o erro de haver perturbado a paz

doméstica a troco de um sonho que não veio. Não me faço melhor do que

sou, bem vês; mas uma parte da culpa não será da natureza que me fez tão

pueril? Tal é o meu receio agora – continuou Lívia depois de alguns segundos

de silêncio -; às vezes cuido que não vim ao mundo para ser feliz nem para

dar a felicidade a ninguém. Nasci defeituosa, parece. Serás tu capaz de

desfazer a apreensão ou corrigir o defeito? (ASSIS, 2008, p. 274)

Lívia é o verdadeiro estereótipo de uma heroína romântica com sua pureza e

impulsividade para encarar os desafios e frustrações do amor. E o protesto não foi só

com os lábios, foi também com os olhos – uns olhos aveludados e brilhantes, feitos para

os desmaios do amor. (ASSIS, 2008, p. 248). O leitor fica conhecendo a personagem

pelos olhos ora do narrador ora de Félix. Os olhares coincidem em admirar seus dotes

físicos que recordam as donzelas, aparentemente indefesas, dos livros de cavalaria. Era

um modelo de graça antiga, bela, não lhe faltava nem mesmo a languidez do olhar que

seduzira os olhos de Félix e de tantos outros.

Félix examinou-lhe detidamente a cabeça e o rosto, modelo de graça antiga.

A tez, levemente amorenada, tinha aquele macio que os olhos percebem antes

do cantacto as mãos. Na testa lisa e larga, parecia que nunca se forma a ruga

da reflexão; não obstante, quem examinasse naquele momento o rosto da

moça veria que ela não era estranha às lutas interiores do pensamento: os

olhos, que eram vivos, tinham instantes de languidez; naquela ocasião não

eram vivos nem lânguidos; estavam parados. (ASSIS, 2008, p. 248-249).

O relacionamento entre Félix e Lívia fora marcado pelas vontades de Félix. Por

três vezes seguidas ele termina sua relação com Lívia: a primeira pela semente da

discórdia lançada por Luís Batista, a segunda por ciúmes de Meneses e a terceira por

causa de uma carta falsa e anônima que lançava suspeitas sobre a fidelidade de Lívia

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pelo primeiro marido. Félix não dá direito de defesa para Lívia. O tratamento dado à

mulher é o de submissão e ela deveria demonstrar total passividade diante das

determinações. Contudo, a última palavra na ligação dos dois quem dá é ela,

demonstrando que não seguira o ideal social de passividade feminina:

O destino ou a natureza não nos fez um para o outro. O casamento entre nós

seria uma cerimônia apenas. Seria mais; seria o nosso infortúnio, e mais vale

sonhar com a felicidade que poderíamos ter do que chorar aquela que

houvéssemos perdido. (ASSIS, 2008, p. 311).

E assim, o último e derradeiro golpe nas ilusões do leitor romântico. Talvez, este

leitor fosse verdadeiramente o leitor idealizado por Machado de Assis, o que ele

desejava frustrar com sua literatura. O desenlace desta situação desigual poderia

terminar feliz ou trágica, mas não tediosa como terminou. O leitor romântico poderia

imaginar a queda de Lívia e imaginar que ela viesse a cometer algum tipo de sacrifício,

mas não foi o que aconteceu. Ao contrário visualiza a queda de Félix que pela primeira

vez se vê atônito perante a atitude de Lívia.

O desenlace desta situação desigual entre um homem frio e uma mulher

apaixonada parece que devera ser a queda da mulher: foi a queda do homem.

(...) Ironia da sorte chamará o leitor a este desfecho de uma situação que,

algumas semanas antes, tão outra se lhe afigurava. Chame-lhe antes lógica da

natureza, porque o coração de Félix, que aparentava ser de mármore, era

simplesmente da nossa comum argila. (ASSIS, 2008, p. 262).

Enquanto Félix é o homem de duas faces e representante fiel da sociedade

simuladora, Lívia apresenta a solidez de caráter marcada por uma personalidade forte.

“A alegria tornou a florir no rosto e no peito da viúva. Ela possuía a memória da

felicidade, não a das tristezas. O que eram reminiscências de infortúnio apagou-se com

o tempo; a serenidade dos primeiros dias foi só o que lhe ficou.” (ASSI, 2008, p. 295).

Fica visível que enquanto os senhores simulados carregam o peso, o remorso de uma

vida de aparência (é o que ocorre com Félix e com Bento Santiago); a viúva carrega

apenas as memórias felizes de sua existência autêntica. Ela não simula nem dissimula e

deixa que suas emoções sejam facilmente percebidas. Talvez esta leveza em

transparecer seus sentimentos tenha causado a confusão de Félix tão acostumado a viver

numa sociedade em que a transparência de caráter é considerada negativa. Todavia,

Lívia não se esconde, pois ela acredita no amor, no sentimento verdadeiro que está

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acima das conveniências sociais:

Lívia, porém, não dissimulava nem hesitava; deixava transparecer no rosto o

que sentia no coração. Jogava com as cartas na mesa sem previsão nem

cálculo. Expansiva e discreta, enérgica e delicada, entusiasta e refletida, Lívia

possuía esses contrastes aparentes, que não eram mais que as harmonias do

seu caráter. Os próprios defeitos dela nasciam de suas qualidades. (ASSIS,

2008, p. 261).

O tempo marca fisicamente a todos no romance, mas a Lívia ele afeta de forma

desigual possivelmente contando com o aliado da tristeza. Ainda assim havia encanto e

feitiço em sua figura. A beleza de Lívia não estava em sua tez tal como pensava o

materialista Félix. Lívia era bela em seu interior e este não envelhecia e nem sofria a

decadência provocada pelo tempo. Sua alma não perdera o encanto, a integridade jovial

de seu ser estava acima de qualquer vaidade e por isso a velhice não lhe causava medo.

Ela não vivia das aparências.

Talvez o tempo lhe respeitasse a beleza, a não ser a catástrofe que lhe enlutou

a vida. Já na meiga e serena fisionomia vão apontando sinais de decadência

próxima. Os poucos que lhe frequentam a casa não reparam nisso, porque a

alma não perdeu o encanto, e é ainda hoje a mesma feiticeira amável de outro

tempo. Ela, sim, ela vê que a flor inclina o colo, e que não tarda o vento da

noite a dispersá-la no chão. Mas do mesmo modo que a beleza lhe não

acordara vaidades, assim a decadência lhe não inspira terror. (ASSIS, 2008,

p. 313).

Um aspecto bem característico da ficção machadiana é o julgamento das

personagens por parte do narrador. Este, conhecendo os mais íntimos traços das

personalidades presentes na trama, descreve mais minuciosamente os vícios do que as

virtudes. É deste modo que o leitor conhece Cecília caracterizada pela natureza volúvel

de seu caráter perante o amor. Ela se assemelha a uma versão feminina de Félix no que

se refere à curta duração de suas paixões.

Cecília não era hipócrita quando dizia gostar de um homem; qualquer que

fosse a natureza dos seus afetos, ela os sentia sinceramente; mas era raro que

sobrevivessem vinte e quatro horas à causa que lhos inspirara. Não se lhe

desmentira a constância durante os seis meses de intimidade com Félix; mas

se ela era amante para querer a um só homem, era independente para o

esquecer depressa (ASSIS, 2008, p.250).

Cecília é personagem secundária na narrativa. Na patriarcal sociedade do século

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XIX, seu comportamento não é visto com bons olhos. Contudo, o interesse deste estudo

em abordar sua presença no livro se justifica pelo lugar social ocupado, por sua

fragilidade e pela luta pela sobrevivência empreendida por ela. Cecília é sustentada por

seus amantes, ora por um ora por outro. Ela simula seus próprios sentimentos para

conseguir meios para viver. E a simulação era tão forte que suas identidades acabam

tornando-se volúveis.

Outra personagem que sofre com as críticas morais do narrador é Viana. Ele

também é personagem secundária na narrativa. O interesse por ela se justifica pelas

marcas da subalternidade que a caracteriza e por exemplificar a política do favor tão

presente na literatura machadiana. Viana, o irmão de Lívia, decide aproximar os dois já

pensando numa forma de receber favores do futuro cunhado: “O parasita, que parecia

empenhando em preparar uma aliança de família com o médico (...)” (ASSIS, 2008, p.

260). O próprio narrador descreve Viana como um parasita consumado. Ele tinha mais

capacidade que preconceitos, ou seja, conseguia facilmente simular suas emoções em

busca de um único objetivo: a sobrevivência. Viana, apesar da aparente insignificância

na narrativa, é a personagem que representa a epistemologia da classe dominante do

país no século XIX, a sociedade das aparências. Haja vista que, conforme diz o

narrador, ele parecia seguir a máxima do autor português, Sá de Miranda, que diz do

valor das aparências numa sociedade que as valoriza e um tipo de elite para a qual o

bem mais valioso era o que fisicamente podia ser visto.

Viana era um parasita consumado, cujo estômago tinha mais capacidade que

preconceitos, menos sensibilidade que disposições. Não se suponha, porém,

que a pobreza o obrigasse ao ofício; possuía alguma coisa que herdara da

mãe, e conservara religiosamente intacto (...). Mas esses contrastes entre a

fortuna e o caráter não são raros. Viana era um exemplo disso. Nasceu

parasita como outros nascem anões. Era parasita por direito divino. Não me

parece provável que houvesse lido Sá de Miranda; todavia, punha em prática

aquela máxima de um personagem do poeta: “Boa cara, bom barrete e boas

palavras custam pouco e valem muito...” (ASSIS, 2008, p. 239).

Assim, Viana não possuía personalidade definida, conseguia mudar de opinião se

necessário fosse com intenção de agradar àqueles que poderiam favorecê-lo de alguma

forma. E Félix se apresentava como uma oportunidade que não poderia ser

desperdiçada. O que mais chama a atenção em Viana é que sua situação não exigiria

dele este tipo de atitude. Aparentemente, o personagem possuía alguns bens que herdara

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de sua mãe. Contudo, não considerava a opção de viver destes bens. Era um parasita

desde que tinha nascido. Sua natureza era a subalternidade41 e a simulação, sua forma de

sustento. Com suas habilidades conseguia moldar-se com objetivo de agradar, de

simular e de seduzir. Reconhecia o valor do dinheiro e não se abalava com o

temperamento de Félix.

Como Félix não lhe animasse a conversa no terreno em que ele a pôs. Viana

entrou a elogiar-lhe os vinhos.

— Onde acha o senhor vinhos tão bons? Perguntou depois de esvaziar um

cálix.

— Na minha algibeira.

— Tem razão; o dinheiro compra tudo, inclusive os bons vinhos. (ASSIS,

2008, p. 20).

Aparentemente, as personagens de Machado de Assis apresentam caráter

duvidoso e passam toda a narrativa vivendo de ilusões e simulações. Esta situação

poderia parecer uma apropriação por parte do autor de personagem que funcionem

como joguetes, entretanto, ainda que assim sejam quem os torna meros títeres é a

sociedade e não o escritor. Machado de Assis apenas encena na literatura o que estava

escancarado perante seus olhos e fruto da exigência contingencial que ele observava.

O grande choque provocado no leitor não é somente um recurso estilístico

empregado pelo autor. Ao analisar Ressurreição, a pesquisa procurou alcançar uma

guinada epistemológica. A escolha por trabalhar com esse romance e com ele pensar a

questão da subalternidade pode, a princípio, parecer incongruente. As personagens

principais com que esta tese trabalha não podem ser consideradas tout court subalternas.

Talvez, Lívia possa ser considerada uma subalterna por sua condição de viúva e de

mulher na sociedade patriarcal do século XIX. Contudo, ainda assim, como pensar em

Lívia como uma subalterna dissimulada? Por isso, é importante esclarecer alguns

pontos:

1 – a dissimulação não é a única arma do subalterno. Buscando a sobrevivência em um

41

Esta tese utiliza o termo subalterno ou subalternidade em seu sentido mais amplo tal como o

define Spivak: “às camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão

dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no

estrato social dominante” (SPIVAK, 2010, p.12). Neste sentido, há uma gama de personagens subalternas

na literatura machadiana, o negro tanto escravizado quando o liberto, “mulher como subalterna, não pode

falar e quando tenta fazê-lo não encontra os meios para se fazer ouvir” (SPIVAK, 2010, p.15).

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regime de privações, o indivíduo em situação de subalternidade pode utilizar-se de

outras armas: pode lutar, pode esconder-se, pode dissimular e simular sua condição.42

2 – o trabalho com a análise de dois personagens, Félix e Lívia, proporcionou uma

reflexão sobre a complexidade existente na realidade de uma sociedade fundada sob o

signo do favor e sob a ótica da verossimilhança. O romance Ressurreição sempre

apresentava, nas análises feitas, motivos para que estivesse no conjunto de textos que

deveria estar presente na tese. Contudo, como abordar um romance em que as

personagens principais são representantes da elite brasileira? É neste ponto que se

observa uma nova guinada. Lívia não é dissimulada, tal como é definido pelo narrador:

Lívia, porém, não dissimulava nem hesitava; deixava transparecer no rosto o

que sentia no coração. Jogava com as cartas na mesa sem previsão nem

cálculo. Expansiva e discreta, enérgica e delicada, entusiasta e refletida, Lívia

possuía esses contrastes aparentes, que não eram mais que as harmonias do

seu caráter. Os próprios defeitos dela nasciam de suas qualidades. Era crédula

à força de ser confiante, ríspida com tudo o que lhe parecia baixo ou fútil.

Tinha a imaginação quimérica, às vezes – o coração supersticioso, a

inteligência austera, mas compensava esses defeitos, se o eram, por

qualidades capitais e raras. (ASSIS, 2008, p.261)

Contudo, ela é subalterna e como tal, assume o posicionamento combativo de,

perigosamente, enfrentar a sociedade patriarcal de frente. Claro, que esta atitude tem um

preço e para Lívia é a solidão e em determinados momentos o ostracismo. E por este

motivo, Lívia seria crucial para entender um processo de reação subalterna que ainda

que não seja o desenvolvido reflexivamente neste trabalho, merece ser apresentado. E

no caso de Félix fica ainda mais fácil defender sua presença como elemento de análise.

Ele representa o reverso da dissimulação. Félix é o representante da elite e que ainda

assim não é senhor de suas vontades. Vive simulando sua existência, vivendo da

verossimilhança e das fachadas. Ele prefere perder o amor genuíno de Lívia a sofrer

qualquer tipo de censura social.

42

Neste sentido, poder-se-ia assinalar que algumas personagens machadianas em situação subalterna (um

bom exemplo seria José Dias) se apresentam com características semelhantes às personagens picarescas.

Os pícaros se apresentam de forma tradicional em romances picarescos de língua espanhola, tais como:

La vida de Lazarillo de Tormes, y de sus fortunas y adversidades (1554) de autor anônimo, La vida del

Buscón llamado Pablos (1626) de Quevedo, e La Pícara Justina (1605) de F. López de Úbeda.

Geralmente, estas narrativas apresentam um personagem principal que narra suas experiências e

peripécias valorizando a astúcia como estratégia de sobrevivência. O pícaro é, costumeiramente,

caracterizado pela ingenuidade inicial que aos poucos, de acordo com as dificuldades existentes, vai

assumindo uma postura dissimulada.

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Estamos salientando este episódio do romance porque é ele que nos pode

conduzir ao problema ético da conduta do homem ciumento no universo

romanesco de Machado. A carta – pressente acertadamente Félix – deve ter

sido escrita por Luís Batista, também pretendente aos favores de Lívia e

preterido, e portanto não merecia crédito ou confiança, escrita que foi pela

pena da inveja ou do orgulho ferido. Mas isso não tinha importância para

Félix, porque para ele contava mais a verossimilhança da situação criada pela

carta do que a verdade proporcionada pelo exame detido dos fatos.

(SILVIANO SANTIAGO in ASSIS, 2008, p. 128)

O esforço empreendido para analisar as complexas personagens criadas pelo

escritor esteve o tempo todo atravessado por demandas sociais, contingenciais e

políticas. A verossimilhança defendida por Silviano Santiago descreve uma forma de

vida, uma cultura propagada pela elite patriarcal brasileira e que acaba afetando, em

uma espécie de efeito cascata, todos os espaços e âmbitos sociais. A aparência acaba por

influenciar também o sensível, os amores, as relações sentimentais. Félix é simulado e

Lívia, representando uma figura subalterna, deveria se subordinar aos mandos e

desmandos sociais. Porém, ela se nega a viver a simulação. Lívia deseja o autêntico, o

verdadeiro, o amor.

O que será apresentado a seguir é uma leitura de Dom Casmurro que tenta

perceber no texto literário aspectos da sociedade brasileira do século XIX abordando a

tensão entre a elite e a classe dos subalternos composta, sobretudo, por agregados,

escravos, alforriados e mulheres e a relação entre o narrador e personagens. Neste

contexto, o leitor será guiado por um narrador amargurado que narra as negatividades e

mazelas resultantes de uma vida simulada em que verossimilhança vale mais do que

verdade. Sendo assim, Dom Casmurro é uma geografia das simulações presentes na

sociedade narrada pelo livro.

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Dom Casmurro

O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma.

Confrontados com a ausência de tudo, os homens abstêm-se do sonho,

desarmando-se do desejo de serem outros. Existe no nada essa ilusão de

plenitude que faz parar a vida e anoitecer as vozes. (MIA COUTO, 1987, p.

19)

Dom Casmurro foi publicado em 1899 e se destaca pela abordagem de um

narrador de primeira pessoa, de posicionamento duvidoso, que termina por manipular

toda a narrativa. Já no início o leitor se depara com o narrador-personagem na sua

madurez, tomado pelo tédio e pela amargura de uma existência vazia: o filho morrera e

a mulher que ele amara também falece, após um longo exílio distante do protagonista.

Neste primeiro momento ocorre a cena em que o protagonista e narrador recebe a

alcunha de Dom Casmurro.

O livro é publicado na segunda metade do século XIX, numa época de euforia

gerada pelo cientificismo. Neste período também ocorrem transformações que

marcariam profundamente o cenário nacional, tais como: a abolição da escravatura

(1888), a proclamação da república (1889), a necessidade da vinda de imigrantes. Era

um momento de importação de ideias principalmente advindas da Europa. O

liberalismo, o socialismo, as teorias científicas se desenvolveriam no Brasil e sofreriam

mutações com o clima dos trópicos. O cenário do romance é a cidade do Rio de Janeiro

com referências aos costumes, às ruas e personagens da cidade.

No caso específico de Dom Casmurro a ambição de Machado de Assis é retirar o

leitor de um lugar tranquilo e de passividade e o convidar a ser partícipe do relato,

punindo ou inocentando Capitu. Quando escreve Ressurreição o autor, diferentemente

do que ocorre em Dom Casmurro, coloca as incertezas no coração de Félix, que se

apresenta como um infeliz representante do homem da elite social do século XIX. Em

Dom Casmurro a ousadia é maior, o interesse do escritor é inserir a dúvida no leitor.

Machado almeja retirar o leitor do aparente estado de letargia alterando sua condição

psicológica pelas constantes provocações do texto. Porém, a arquitetura do texto se dá

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de tal forma que nada é evidente, todo o processo de assimilação e interpretação é de tal

complexidade que exige muito da recepção.

Considere uma passagem curiosa do romance Dom Casmurro, geralmente

deslocada no romance e, por isso, acaba sendo considerada de pouca importância. No

capítulo intitulado Os vermes, o escritor apresenta sua percepção do estado letárgico do

receptor. Os vermes do romance apenas roem e roem livros sem darem a devida atenção

ao que estão roendo. Devoram palavras, frases e livros inteiros sem qualquer deferência.

Impossível não comparar esta passagem com o papel do leitor e com o comportamento

deste diante dos livros, o qual é ironicamente explicado pela metáfora do “verme

gordo”:

Catei os próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos

textos roídos por eles.

- Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos

absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos,

nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos.

Não lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado

palavra, repetiam a mesma cantilena. Talvez esse discreto silêncio sobre os

textos roídos, fosse ainda um modo de roer o roído (ASSIS, 2008, p. 948-

949).

O autor mostra possuir uma imagem totalmente singular de seus leitores. Em

diversos momentos ele se dirige ao receptor ora com cumplicidade, ora com ironia, ora

com um tom de sarcasmo. Porém, um traço é similar em todas suas narrativas: nada é

dado de graça a quem almeja ler seus romances. Há intensas estratégias de dissimulação

que induzem o leitor a acabar se perdendo em muitas de suas armadilhas narrativas já

que se sente num labirinto.

De forma jocosa podemos perceber a referência que faz ao leitor em crônica de

1888 em que, ao relatar um fato do cotidiano, um diálogo entre trabalhadores dos

bondes, utiliza dessa situação fugaz e comum para apropriar-se do vocábulo “carapicu”

para referir-se a seu leitor: "Que te dizia eu? Fiz uma viagem à toa; apenas pude apanhar

um carapicu ... " (ASSIS, 2008, p.829). A estratégia se faz com o sentido objetivo de

dizer que eram poucos os seus leitores. Porém, cabe refletir se eram poucos os leitores

reais ou se eram poucos os que cumpriam as exigências ideais do escritor? "Aí está o

que é o leitor: um carapicu este se criado; carapicus os nossos amigos e inimigos”

(ASSIS, 2008, p. 829).

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Os leitores pensam com razão que são apenas filhos de Deus, pessoas,

indivíduos, meus irmãos (nas prédicas), almas (nas estatísticas), membros

(nas sociedades), praças (no exército), e nada mais. Pois são ainda uma certa

cousa,- uma cousa nova, metafórica, original (ASSIS, 2008, p. 828)

O narrador é o próprio Bentinho e por isso a narrativa está direcionada por suas

memórias, logo por construções, talvez, filtradas pela imaginação e pela incapacidade

de a memória ser fiel ao realmente acontecido. O velho e amargurado Dom Casmurro é

quem narra toda a história e é a própria personagem que deixa isto claro quando insere a

dúvida nas expectativas do leitor.

No caso de Machado, a reconstituição do passado obedece a um plano

predeterminado (cujo exemplo concreto dentro do tecido narrativo seria a

reconstrução real da casa de Matacavalos, que mostra em si toda a

artificialidade do processo machadiano) e sobretudo a um arranjo

convincente e intelectual de sua vida. Frisemos os dois últimos adjetivos:

convincente, porque pretende persuadir alguém, o leitor, de alguma coisa;

intelectual, porque depende da reflexão constante do narrador, e não trai um

desejo de se deixar invadir passivamente pelo passado, por impressões

fugidias e passageiras, delicadas. O narrador machadiano, ao contrário do

narrador proustiano, é um ressentido, medroso do passado: 'Aí vindes de

novo, inquietas sombras’, citando Goethe logo no início. (SILVIANO

SANTIAGO in ASSIS, 2008, p. 131)

O foco narrativo em primeira pessoa já apresenta questões problemáticas como a

subjetividade que afeta o narrado e a incapacidade da memória em recordar tudo como

realmente ocorrera. De certa forma, Bentinho se constrói enquanto instância narrativa

apresentando a todo tempo pistas de sua inconsistência enquanto narrador,

demonstrando-se um verdadeiro articulista na tentativa de justificar suas atitudes. “Mas

eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina hás de

reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.” (ASSIS,

2008, p. 130). Neste ponto, observamos como o narrador de Dom Casmurro se

comporta. Com o recurso da Retórica, ele se apropria de tudo e de todos para convencer

os outros e a si próprio de suas razões. Analisando a fundo, é possível perceber que não

é Capitu que está no banco dos réus e sim o próprio Casmurro. E para escapar ele se

vale de qualquer recurso de argumentação. Contudo, observando o texto machadiano

percebe-se que não só o narrador faz uso de elementos retóricos em sua narrativa.

Machado de Assis também utiliza as citações com maestria como argumentos que

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fundamentem suas posições. O uso das citações é uma forma encontrada por Machado

para produzir a sua estética dissimuladora. Se por um lado, a narrativa ganha

argumentos de autoridade; por outro, o autor rebaixa, usa e abusa do discurso alheio a

seu favor e em busca de seus interesses. É uma estratégia de embustes que direciona os

sentidos do leitor para que encontre somente o que o autor deseja.

(...) gostaria de chamar a atenção para o procedimento, recorrente na ficção

de Machado de Assis, ao qual já me referi: desenraizar determinada passagem

de seu contexto habitual, às vezes mutilando-a, às vezes citando-a na íntegra,

e aplicá-la a uma situação que a rebaixa. (MARTA DE SENA, 2008, p. 144).

Muito mais do que apenas rebaixar, Machado se apropria de outras vozes e as

utiliza como estratégia de rebaixamento e de engrandecimento do seu próprio texto e de

outras vozes, subalternas, que não se faziam ouvir. A mesma estratégia é mimetizada em

sua protagonista, todavia com objetivo diverso. Bentinho faz uso de argumentos

retóricos para justificar os seus posicionamentos do passado. Tal comportamento pode

ser encontrado em outra personagem: Félix é a fruta dentro da casca, é Bentinho em

outra narrativa. Contudo, a característica de uma personagem manipuladora é

intensificada em Dom Casmurro, pois o narrador é o próprio interessado em articular os

fatos.

Duas atitudes, entre outras, são típicas de Dom Casmurro, quando analisa os

que o rodeiam: a) joga a culpa de toda calúnia nos outros, isentando-se

aparentemente de qualquer responsabilidade, colocando-se ainda na

qualidade de vítima; b) empresta aos outros contradições entre o que

chamaremos por enquanto de interior e exterior. (SILVIANO SANTIAGO in

ASSIS, 2008, p. 132)

O protagonista do romance é uma das personagens e um dos narradores mais

complexos da literatura machadiana. Há outros narradores em primeira pessoa, mas

nenhum que se compare a Bento Santiago. Sua personalidade é mutante. Na infância há

um Bentinho caracterizado pela leveza do menino peralta que viverá intensos dramas

desde a adolescência. Uma de suas grandes dificuldades é consequência de uma

promessa de sua mãe: o menino deveria fazer seminário e se ordenar padre. Porém, já

nesta época ele nutria um amor infantil por sua vizinha Capitu. Assim, a promessa da

mãe transforma-se em sacrifício para o filho.

Já neste começo, na mais tenra infância, o pequeno Bentinho apresenta

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característica que serão amadurecidas no sisudo e melancólico Casmurro: o ciúme e a

dúvida plantados em sua pele pelo agregado José Dias. Quando sua mãe adoece, o leitor

se depara com um Bentinho egoísta que deseja, ainda que seja por pouquíssimo tempo,

a morte de Dona Glória para que pudesse ficar livre da promessa e do seminário: “(...) o

Terror me segredou ao coração, não estas palavras, pois nada articulou parecido com as

palavras, mas uma ideia que poderia ser traduzida por elas: “mamãe defunta, acaba

seminário”” (ASSIS, 2008, p. 1003).

Por vezes, o leitor pode observar em Bentinho um comportamento colérico,

podendo agir por impulso em determinadas situações: como quando deseja a morte da

mãe ou quando planeja matar prima Justina só pelo fato desta a fazer duvidar das

intenções de Capitolina: “(...) não a matei por não ter a mão ferro nem corda, pistola

nem punhal; mas os olhos que lhe deitei; se pudessem matar, teriam suprido tudo (...)”

(Assis, 2008, p. 1016). Mas, também é facilmente verificável a sua capacidade de agir

com frieza.

Como intelectual consciente e probo, espírito crítico dos mais afilados,

perscrutador impiedoso da alma cultural brasileira, Machado de Assis

assinala ironicamente nossos defeitos. Mas este é um engajamento bem mais

profundo e responsável do que o que se pediu arbitrariamente a Machado de

Assis. E pensar que se pode falar da filosofia de Machado acreditando que a

base de suas ideias se encontrava no ‘ressentimento mulato’ ... (SILVIANO

SANTIAGO in ASSIS, 2008, p. 139)

A insegurança de Bentinho é alimentada por uma série de fatos que ele interpreta

como provas. O seu discurso vai construindo uma Capitu adúltera. Os fatos descritos

pelo narrador nada provam, mas em sua imaginação são provas irrefutáveis da traição.

Esta dúvida gera em Bentinho um bloqueio no que diz respeito ao relacionamento com

o filho e com a esposa e até mesmo com seu grande amigo Escobar. Quais seriam as

provas do adultério de Capitu? Todos os argumentos do narrador são questionáveis, pois

não se baseiam em provas. Bentinho só conta com o recurso da argumentação para

buscar convencer o leitor. Um fato considerado evidência de que a esposa o tinha traído

é apresentada pelo narrador durante o velório do amigo: “(...) A confusão era geral. No

meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente

fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas (...)” (ASSIS,

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2008, p. 1054).

Nas personagens masculinas de Machado de Assis há sempre o desejo extremo

de marcar a passagem pela vida com algum grande feito. E com Bentinho não era

diferente. Por isso, ele resolve escrever um livro. O desejo que o protagonista tem de

escrever um livro revela ao leitor mais um traço irônico da pena da galhofa do autor.

Isto, porque a princípio ele desejara escrever uma história dos subúrbios, contudo

desiste pelas dificuldades e opta por escrever sua própria biografia. Os subúrbios não

eram tão importantes. Deste modo, escrevendo sobre si ele queria unir as duas pontas de

sua vida.

As inspirações para escrever um livro autobiográfico surgem das leituras que

Bentinho faz. No segundo capítulo surge uma frase que vai se repetir ao longo do livro e

que está relacionada aos motivos que levaram o protagonista ao desafio da escrita:

“Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao

poeta, não o do trem, mas o do Fausto: Aí vindes outra vez, inquietas sombras...?”

(ASSIS, 2008, p. 933). Foram estas inquietas sombras que atormentaram Bentinho e o

levaram a buscar meios de unir as duas pontas de sua vida, o presente senil e

melancólico com o passado pueril e feliz. E foram as personagens históricas

representadas pelas imagens em que sugeriram que o melancólico Bento Santiago

escrevesse um livro sobre sua própria vida.

Cabe mencionar que em Machado de Assis, nenhum detalhe é apenas uma

figuração, todas as descrições possuem função específica na narrativa. Sendo assim,

uma leitura atenta e curiosa levaria o leitor a perceber que a referência a Nero, Augusto,

Massinissa e César remete a histórias de figuras históricas marcadas pelo estigma da

traição. “Nos quatro cantos do teto as figuras das estações, e ao centro das paredes os

medalhões de César, Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo... Não

alcanço a razão de tais personagens” (ASSIS, 2008, p. 932). O narrador fingidor assume

uma aparente inocência ao dizer desconhecer a razão dos medalhões. Contudo, para quem está

atento às armadilhas propostas pelo texto machadiano, funciona como mais uma forma de

guiar a recepção pelos caminhos criados pelo narrador.

Construído como texto autobiográfico e como uma narrativa intencional, no

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livro há inúmeros momentos em que o leitor pode perceber que o narrador não é

confiável. Primeiramente, Dom Casmurro assim como Memórias Póstumas de Brás

Cubas e Memorial de Aires podem ser lidos como ficções que se apropriam de recursos

das autobiografias para mimetizar estratégias destas literaturas. Sendo assim, narrativas

autobiográficas, ficcionais (como as mencionadas) ou não, trabalham com a memória e

esta não assume fielmente dos fatos acontecidos. Essa função da memória é assumida

pelo narrador quando confessa: “Talvez abuso um pouco das reminiscências osculares;

mas a saudade é isso mesmo: é o passar e repassar das memórias antigas.” (ASSIS,

2008, p.968). Esta saudade carregada de melancolia marca a vida do protagonista que

tenta reconstruir o que fora com a escrita de sua própria história. Deste modo, fica claro

que sua memória é repleta de imaginação: "A imaginação foi a companheira de toda a

minha existência” (ASSIS, 2008, p. 975). Pois, em alguns momentos não consegue

lembrar-se de detalhes importantes de sua própria vida, sem mencionar que as memórias

são carregadas de subjetividade.

Como eu invejo os que não esqueceram a cor das primeiras calças que

vestiram! Eu não atino com a das que enfiei ontem. Juro só que não eram

amarelas por que execro essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido ou

confusão. E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda

bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu,

quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço em

chegando ao fim é cerrar os olhos e evocar todas as coisas que não achei nele.

[...] É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho

as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas. (ASSIS, 2008,

p. 994)

Por tratar-se de uma espécie de autobiografia (levando em consideração que o

autor ficcional é quem conta a história e quem ficcionalmente a escreve) que se realiza

inteiramente no plano da ficção, já que o escritor Machado de Assis leva o narrador a

retomar a sua vida para recontá-la, acentua-se em Dom Casmurro o processo de

dissimulação que se estabelece com a confusão gerada pela criação de um autor fictício.

Quem assina o livro é o autor empírico, mas quem escreve e narra é a personagem

principal do romance. Sendo assim, o texto é marcadamente subjetivo e direcionado por

esta única voz que cria as personagens e que fala por elas. O narrador, que é quem

aciona as memórias, é autoritário e comanda outras vozes presentes na narrativa. Neste

sentido, o livro revela uma mis-em-scene da situação dos subalternos. As personagens

que não possuem voz própria no romance representam grupos que também não possuem

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voz na realidade brasileira do século XIX.

Seu problema ético-moral é óbvio, sua reconstituição do passado é egoísta e

interesseira, medrosa, complacente para consigo mesmo, pois visa a liberá-lo

dessas ‘inquietas sombras’ e das graves decisões de que é responsável. O

remorso (outro vocábulo constante na pena de Machado crítico) deve rondar

suas últimas horas. (SILVIANO SANTIAGO in ASSIS, 2008, p. 134)

Pelas razões expressas nos parágrafos acima, a análise das personagens

subalternas em romances de Machado de Assis encontra em Dom Casmurro uma

espécie de empecilho, afinal, como analisar personagens que são construídas por um

narrador que as molda de acordo com suas conveniências. Até Dom Casmurro, a análise

conseguia encontrar fagulhas de vozes que eram intensificadas pelo recurso da

dissimulação que possibilitava a estas personagens a manutenção de suas identidades.

Porém, numa narrativa em primeira pessoa em que o narrador é ao mesmo tempo

protagonista e autor, ainda que ficcional, do texto fica complicado encontrar espaços

mínimos de abordagem da dissimulação e da subalternidade. Por isso, o caminho aqui

empreendido é outro: analisar a personagem Bentinho e partindo desta observar e

refletir sobre as possibilidades de, ainda neste espaço opressor protagonizado por uma

única voz, encontrar elementos que confirmem estratégias dissimuladoras que

propiciem o balbuciar de outras vozes.

O narrador apresenta sua versão da história como verdade, além disso, é a única

versão que o leitor conhecerá. É impossível para quem lê encontrar a versão da história

contada por Capitu. Este narrador manipulador tenta com todos os esforços conduzir a

leitura do livro utilizando para isto suas artimanhas pelo viés da simulação. Por vezes

ele é incisivo e utiliza estratégias de convencimento que fogem do simples recurso da

bajulação ou da sensibilização. Um dos recursos de efeito mais direto é o da repetição

de fatos numa tentativa de incutir no leitor o que o narrador-protagonista considera

como verdade: “Há conceitos que devem incutir na alma do leitor à forca de repetição”.

(ASSIS, 2008, p.963). O objetivo do narrador é ocupar todos os espaços até que não

sobre nenhuma brecha para que a imaginação do leitor possa intervir no texto, que sabe

que, como observa o narrador: “tudo se pode meter nos livros omissos”. (ASSIS, 2008,

p.994).

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Capitu, apesar de todas as suas estratégias de dissimulação, permanece em

posição de submissão a Bentinho. O leitor não pode esquecer o fato do narrador ser o

próprio protagonista do romance. Ficamos sabemos da história de Capitu pela voz de

Bento Santiago. E afinal, quem é Bento Santiago? A personagem poderia ser

interpretada como a voz patriarcal da elite brasileira do século XIX. Neste espaço, o

lugar ocupado por Capitu é o da subalterna. Esta posição trazia muita dor para a

personagem e isto fica claro quando o leitor observa seu aborrecimento ao ouvir o

pregão do preto que vende cocadas: “(...) o pregão que o preto foi cantando, o pregão

das velhas tardes, tão sabido do bairro e da nossa infância (...) lhe deixara uma

impressão aborrecida.” (ASSIS, 2008, p.950). E este singelo pregão dizia: “Chora,

menina, chora, \Chora, porque não tem vintém.” (ASSIS, 2008, p.950). Não ter vintém é

uma transnominação que simboliza o fato da menina não fazer parte da elite. Esta toada

representava sua triste realidade que deveria ser repetida como forma de deixar clara a

sua posição na sociedade, por isso a canção era conhecida: “(...) ela a sabia de cor e de

longe, usava repeti-la nos nossos jogos da puerícia, rindo, saltando, trocando os papéis

comigo, ora vendendo, ora comprando um doce ausente.” (ASSIS, 2008, p. 951). Até

este momento, a brincadeira era só uma brincadeira. Era divertido até que ela percebe

que o jogo não era um simples fazer de conta infantil. O jogo de puerícia refletia sua

real condição e a realidade era ainda mais cruel, pois não havia troca de papéis. Ela se

dá conta do significado da letra da canção: “Creio que a letra, destinada a picar a

vaidade das crianças, foi que a enojou agora, porque logo depois me disse: — Se eu

fosse rica, você fugia, metia-se no paquete e ia para a Europa.” (ASSIS, 2008, p. 951).

Claro que Capitu luta contra as amarras sociais. A arma utilizada é a dissimulação. Ela é

bem sucedida em seu jogo, porém o narrador insiste em colocar Capitu em seu lugar. A

astúcia de Capitu em perceber suas condições e ficar incomodada é logo condenada

pelo narrador:

Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já ideias atrevidas, muito menos

que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática

faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de

salto, mas aos saltinhos. Não sei se me explico bem. Suponde uma concepção

grande executada por meios pequenos.

É assim que Bentinho descreverá Capitu ao longo de 148 capítulos. O leitor não

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pode desconsiderar o fato de que todas as características de Capitu e até mesmo seus

mais recônditos sentimentos são revelados na narrativa pelo narrador casmurro. Como

forma de manter a subalternidade de Capitu, após um longo tempo, vinte e dois

capítulos depois de contar o ocorrido, Bentinho volta a mencionar o pregão do preto das

cocadas e afirma que procurou um músico para escrever a partitura: “Justamente,

quando contei o pregão das cocadas, fiquei tão curtido de saudades que me lembrou

fazê-lo escrever por um amigo, mestre de música, e grudá-lo às pernas do capítulo.”

(ASSIS, 2008, p. 995). Porém, Bentinho reflete sobre o pregão e percebe que a canção

somente se torna lembrança para os que a viveram. Por isso, é necessário ter padecido e

vivenciar as repetidas ações de humilhação, tal como Capitu, para que o apregoado faça

sentido: “Já agora creio que não basta que os pregões de rua, como os opúsculos de

seminário, encerrem casos, pessoas e sensações; é preciso que a gente os tenha

conhecido e padecido no tempo, sem o que tudo é calado e incolor.” (ASSI, 2008, p.

995). Ele volta a falar sobre o pregão outras vezes, como na ocasião resgatada de uma

reunião familiar:

Gostava de música, não menos que de doce, e eu disse a Capitu que lhe

tirasse ao piano o pregão do preto das cocadas de Mata-cavalos... — Não me

lembra. — Não diga isso; você não se lembra daquele preto que vendia doce,

às tardes... — Lembra-me de um preto que vendia doce, mas não sei mais da

toada. — Nem das palavras? — Nem das palavras. A leitora, que ainda se

lembrará das palavras, dado que me tenha lido com atenção, ficará espantada

de tamanho esquecimento, tanto mais que lhe lembrarão ainda as vozes da

sua infância e adolescência; haverá olvidado algumas, mas nem tudo fica na

cabeça. Assim me replicou Capitu, e não achei tréplica. Fiz, porém, o que ela

não esperava; corri aos meus papéis velhos. Em São Paulo, quando estudante,

pedi a um professor de música que me transcrevesse a toada do pregão; ele o

fez com prazer (bastou-me repetir-lho de memória), e eu guardei o

papelzinho; fui procurá-lo. Daí a pouco interrompi um romance que ela

tocava, com o pedacinho de papel na mão. Expliquei-lho; ela teclou as

dezesseis notas. (ASSIS, 2008, p. 1024)

E desta vez, após a insistência do protagonista, Capitu não só toca e canta a

canção como também revela haver nela um sabor particular: “Capitu achou à toada um

sabor particular, quase delicioso; contou ao filho a história do pregão, e assim o cantava

e teclava.” (ASSIS, 2008, p. 1042).

A lembrança do pregão é importante para o livro, por isso aparece em momentos

diferentes da narrativa. Ainda que o próprio narrador afirme que o tema não seria assim

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tão importante: “Em si, a matéria é chocha, e não vale a pena de um capítulo, quanto

mais dois (...).” (ASSIS, 2008, p. 1046), é preciso perceber que a repetição em um livro

de Machado de Assis não ocorre por mero acaso. Em outro momento, Bentinho retoma

o assunto: “Capitu e eu tínhamos jurado não esquecer mais aquele pregão; foi em

momento de grande ternura, e o tabelião divino sabe as coisas que se juram em tais

momentos, ele que as registra nos livros eternos.” (ASSIS, 2008, p. 1046). Havia então

um juramento entre os dois para que não se esquecessem do pregão. Qual seria o motivo

de manter na lembrança um episódio tão banal. Fato é que os dois se esquecem. Capitu

assume o esquecimento e Bentinho simula lembrar-se: “Mas hás de crer que, quando

corri aos papéis velhos, naquela noite da Glória, também não me lembrava já da toada

nem do texto? Fiz-me de pontual ao juramento, e este é que foi o meu pecado; esquecer,

qualquer esquece.” (ASSIS, 2008, p. 1046). Então, a escrita da música e da partitura

servia como memória auxiliar, como uma forma de manter o juramento e a

subalternidade de Capitu.

A narrativa também coloca Capitu em seu lugar de submissa quando a

desconfiança de Bentinho chega ao auge. Após a morte de Escobar, Bento Santiago

começa a desconfiar fortemente da paternidade de Ezequiel. As semelhanças do menino

com o amigo ou a paranoia desse narrador chegaram ao ponto em que torna insuportável

o convívio familiar entre Betinho e Capitu. Tudo piora no momento em que o

protagonista tenta envenenar o filho. Após a tentativa fracassada, ele acusa Capitu de

adultério. Ela fica profundamente magoada e chega a cogitar uma separação: “– Confiei

a Deus todas as minhas amarguras – disse-me Capitu ao voltar da igreja -; ouvi dentro

de mim que a nossa separação é indispensável, e estou às suas ordens”. (ASSIS, 2008,

p. 1066). Capitu disse tudo isso com uma tristeza no olhar, era o último intento de

provocar uma reação contrária no marido: “Os olhos com que me disse isto eram

embuçados, como espreitando um gesto de recusa ou de espera”. (ASSIS, 2008, p.

1066, grifo meu). O adjetivo embuçado significa disfarçado e mais uma vez, talvez a

última, o leitor observa Capitu apresentada pelo narrador como uma dissimulada. O

desfecho seria óbvio, a separação. Seria o mais plausível depois da humilhação sofrida.

Porém, Bento Santiago prefere as aparências e no capítulo intitulado “A solução” ele

planeja uma viagem familiar para a Europa: “Aqui está o que fizemos. Pegamos em nós

e fomos para Europa, não passear, nem ver nada, novo nem velho; paramos na Suíça”.

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(ASSIS, 2008, p. 1067). Note que o narrador utiliza a primeira pessoa do plural para

reger os verbos que utiliza. Assim, ele falsamente apresenta a ideia da viagem ter sido

uma decisão conjunta. Porém, ao chegar na Suíça, o Dom Casmurro deixa a mulher e o

filho e parte de volta para o Brasil. Capitu ainda tenta manter uma relação amorosa com

o homem que amava: “Capitu começara a escrever-me cartas, a que respondi com

brevidade e sequidão. As dela eram submissas, sem ódio, acaso afetuosas, e para o fim

saudosas; pedia-me que a fosse ver.” (ASSIS, 2008, p. 1067). Bentinho nunca mais

procurou a esposa e para manter a imagem do casamento viajava para a Europa apenas

de fachada: “Embarquei um ano depois, mas não a procurei, e repeti a viagem com o

mesmo resultado.” (ASSIS, 2008, p. 1067). Quando os conhecidos perguntavam por

Capitu ele simulava que tinha estado com ela: “Na volta, os que se lembravam dela,

queriam notícias, e eu dava-lhas, como se acabasse de viver com ela; naturalmente as

viagens eram feitas com o intuito de simular isto mesmo, e enganar a opinião.” (ASSIS,

2008, p. 1067). A simulação permanece e o casamento segue à distância. Até o

momento de sua morte, Capitu continua valorizando a imagem do marido que a

abandonou: “A mãe falava muito em mim, louvando-me extraordinariamente, como o

homem mais puro do mundo, o mais digno de ser querido.” (ASSIS, 2008, p. 1070)43

.

A posição de submissão da esposa permanece por toda a narrativa.

O narrador de Dom Casmurro utiliza as personagens como peças de um

arquitetado jogo de xadrez, armando seu discurso de forma a provar o valor de sua

própria existência e ao mesmo tempo comprovar sua tese da culpabilidade de Escobar e

Capitu. Este narrador que assume o lugar do escritor é o organizador dos modos de

interação entre leitor e texto. Para manter sua versão da história Bentinho assume

posicionamentos autoritários. O narrador se vale de argumentos retóricos como

estratégia de convencimento do leitor.

43

A voz que fala no fragmento anterior é a de Ezequiel. Um dos fatos interessantes é que ao visitar o pai

Ezequiel fica admirando um dos bustos pintados na parede. Não era qualquer busto, era o de

Massinissa: “Ao entrar na sala, dei com um rapaz, de costas, mirando o busto de Massinissa, pintado

na parede” (ASSIS, 2008, p. 1070). Estaria esta alusão repetida ao rei da Numídia figurando na

narrativa como uma mera coincidência? (Ver nota 43). Tratando-se de Machado de Assis, nada do que

ocorre em seus textos se dá por mero acaso ou por descuido. A repetida alusão ao Rei da Numídia,

agora pelos olhos de Ezequiel, necessita ser observada. O objetivo de Machado de Assis é chamar a

atenção do leitor atento para este personagem histórico e para o que ele simboliza na narrativa. O

envenenamento de um(a) inocente? A falsa acusação de traição? Ou a acusação sem provas? Cabe ao

leitor decidir se buscará ou não uma interpretação do fato.

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Machado de Assis – podemos concluir – quis com Dom Casmurro

desmascarar certos hábitos de raciocínio, certos mecanismos de pensamento,

certa benevolência retórica – hábitos, mecanismos e benevolência que estão

para sempre enraizados na cultura brasileira, na medida em que foi ela

balizada pelo ‘bacharelismo’, que nada mais é, segundo Fernando de

Azevedo, do que ‘um mecanismo de pensamento a que nos acostumara a

forma retórica e livresca do ensino colonial’, e pelo ensino religioso.

(SILVIANO SANTIAGO in ASSIS, 2008, p.138)

Retórica é, pois, basicamente um método de persuasão, de cujo uso o homem se

vale para convencer um grupo de pessoas da sua opinião. Não seria este um dos

principais interesses da prosa de Dom Casmurro como vimos mostrando? E de que

outra maneira se poderia justificar sua constante necessidade de trazer para a arena de

discussão o leitor? Por um momento, é possível detectar uma ponta de remorso na fala

de Bentinho: “Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a

primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca,

nem os de cigana oblíqua e dissimulada” (ASSIS, 2008, p. 1072). Percebe-se o

sentimento de perda, a solidão eterna da protagonista. Ele até mesmo chega a apresentar

a dúvida que existe em seu coração: “O resto é saber se a Capitu da praia da Glória já

estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum

caso incidente” (ASSIS, 2008, p.1072). Este possível incidente poderia ser o gerador do

remorso de Dom Casmurro, seu ciúme incorrigível, improvável, mas verossímil: “Jesus,

filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX,

vers. I: ‘Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te a ti com

a malícia que aprender de ti’”. Mais uma vez a verossimilhança vence a batalha, possui

mais valor a aparência. Ainda que tenha em seu foro íntimo a suposta certeza da traição,

Bentinho não se vinga de Capitu: “Não se vingou de Capitu, apenas defendeu sua honra.

Não mentiu a seus amigos, apenas lhe escondia o deslize da esposa. Talvez se sentisse

até generoso.” (SILVIANO SANTIAGO in ASSIS, 2008, p. 138). Assim, ele consegue

dar uma satisfação para sociedade sem demonstrar a fraqueza de um comportamento

autêntico; ele prefere manter a falsidade:

Embarquei um ano depois, mas não a procurei, e repeti a viagem com o

mesmo resultado. Na volta, os que se lembravam dela, queriam notícias, e eu

dava-lhes, como se acabasse de viver com ela; naturalmente as viagens eram

feitas com o intuito de simular isto mesmo, e enganar a opinião. (ASSIS,

2008, p. 138)

Uma vida caracterizada pela simulação e, portanto, desperdiçada. A redenção do

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narrador só é possível com a parceria do leitor, por isso os embustes, as negaças –

estratégias de convencimento. Até mesmo esta hipotética dúvida pode ser um

instrumento retórico, pois logo depois, o advogado retorna com a tese da infidelidade de

Capitu utilizando a metáfora da fruta dentro da casca.

Contudo, mesmo nestas condições de manipulação do narrador, as personagens

subalternas e sem voz conseguem expressar suas subjetividades a ponto de provocar no

leitor a dúvida. Há personagens, como José Dias, que exploram a simulação para

conseguirem sobreviver e que por isso desconhecem a situação de miséria em que

vivem, tal como aponta a epígrafe retirada do texto de Mia Couto. Contudo, há também

os que, como Capitu, sofrem com a situação de subalternidade em que vivem, por não

aceitarem as condições que são a eles impostas pela sociedade, por não estarem

dispostos a ocupar passivamente os espaços que a eles foram relegados.

É interessante observar a importância desprendida pelo autor a José Dias, uma

personagem subalterna. Ele é o simulado que manipula todos. Já começa com a própria

entrada dele na família de Bentinho. Fingia que era uma coisa que não era. Ele se

passava por médico homeopata quando na verdade era um impostor. Conseguiu,

ninguém sabe como, curar o feitor e uma mulher escravizada. Após o feito, o pai de

Bentinho pede que ele fique, contudo ele resolve partir. A partida, porém, era apenas um

golpe. Disse que voltaria dali a três meses, porém retorna após duas semanas.

Era nosso agregado desde muitos anos; meu pai ainda estava na antiga

fazenda de Itaguaí, e eu acabava de nascer. Um dia apareceu ali vendendo-se

por médico homeopata; levava um Manual e uma botica. Havia então um

andaço de febres; José Dias curou o feitor e uma escrava, e não quis receber

nenhuma remuneração. Então meu pai propôs ficar ali vivendo, com pequeno

ordenado. José Dias recusou, dizendo que era justo levar a saúde à casa de

sapé do pobre. (ASSIS, 2008, p. 935).

A importância de José Dias é tamanha que a personagem surge antes do

romance. “Dom Casmurro começou na imprensa com José Dias” é o título de artigo de

Letícia Malard (MALARD, 2006). Neste artigo, a pesquisadora apresentará a

informação da publicação de um texto de Machado de Assis intitulado O agregado e

que sendo anterior à publicação do romance Dom Casmurro traz alguns capítulos do

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livro elevando ao papel de protagonista o agregado José Dias. Nesta tese, defende-se

que o indivíduo subalternizado de maior importância no romance Dom Casmurro é José

Dias. Muito mais do que Capitu, José Dias move as peças que articularão toda a

narrativa. Assim, a informação do artigo de Malard corrobora com a importância da

personagem nesta pesquisa e no romance de Machado de Assis.

Aos 15 de novembro de 1896, no número 1 do periódico República, Rio de

Janeiro, Machado de Assis publicava o texto “Um agregado”, acrescentando,

entre parênteses: “Capítulo de um livro inédito” (ASSIS, 1969, p. 251). A

publicação corresponde – com muitas modificações, cortes e acréscimos – a

trechos dos capítulos III, VII, III, IV, V, II, IV, nessa ordem, de Dom

Casmurro, ou seja: partes dos capítulos “A denúncia”, “D. Glória”, “Um

dever amaríssimo” e “O agregado” propriamente dito. Quase todos os

romances de Machado antes foram publicados na íntegra em revistas ou

jornais, por capítulos. Excetuam-se o primeiro, Ressurreição, Esaú e Jacó e o

último, Memorial de Aires. Quincas Borba, por exemplo, teve duas versões

integrais, com profundas alterações. (MALARD, 2006, p. 157)

A primeira vez em que o leitor fica sabendo da existência de José Dias no

romance é quando este reaviva a memória de Dona Glória sobre a promessa que fizera:

Bentinho deveria ir para o seminário e ordenar-se padre. Além disso, o leitor o conhece

como aquele que primeiramente acusa Capitu e que planta no coração do protagonista a

semente da desconfiança. A primeira acusação contra Capitu foi feita por ele – ‘Olhos

de cigana oblíqua e dissimulada’ -, e é o mesmo José Dias, à semelhança de Luís Batista

em Ressurreição, que inspira a primeira crise de ciúme, afirmando que Capitu não ficará

quieta ‘enquanto não pegar um peralta da vizinhança, que case com ela’. Também é o

agregado que, de certa forma, alerta para o leitor atento sobre o significado dos

medalhões presentes na casa de Matacavalos. É algo já citado pela crítica a importância

de compreender os medalhões da residência de Bentinho: “Nos quatro cantos do teto as

figuras das estações e ao centro das paredes os medalhões de César, Augusto, Nero e

Massinissa44, com os nomes por baixo...” (ASSIS, 2008, p. 932). Esta informação

44

A professora Marta de Senna alerta para uma figura destoante no grupo de medalhões:

Massinissa. “Junto a César, Augusto e Nero, porém, o narrador introduz a figura menos conhecida do rei

Massinissa da Numídia. Aliado dos romanos, Massinissa é casado com Sofonisba, cartaginesa irmã de

Aníbal, educada para odiar Roma. Compelido pelo vitorioso Cipião a entregar a mulher para ser

submetida à vergonha pública em Roma, Massinissa dela se compadece e, para poupá-la do que seria um

ultraje bem pior que a morte, manda-lhe uma taça de veneno, que ela toma de bom grado. O episódio está

em Tito Lívio e foi retomado em várias tragédias (por Corneille, entre outros) e em várias óperas. É

possível que numa dessas versões Massinissa envenene a mulher por ter ela participado de uma

solenidade em honra de Cipião.” (SENNA, 2008, p. 62). Ainda que exista a versão da história que afirme

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poderia passar sem que despertasse o receptor para o sentido dela. O próprio narrador

despista qualquer suspeita afirmando: “Não alcanço a razão de tais personagens.”

(ASSIS, 2008, p. 932). Todavia, nada no texto machadiano é por acaso. E o agregado é

quem chama novamente a atenção do leitor para os medalhões quando vai explicar para

Capitu quem eram aquelas figuras. Ao narrar a vida das personagens, ele só apresenta

César e o faz contando a história da pérola que o imperador presenteara sua amada:

“Um homem que dava a uma senhora uma pérola do valor de seis milhões de

sestércios!” (ASSIS, 2008, p.964). O narrador se aproveita deste fato para chamar a

atenção para a ambição de Capitu: “A pérola de César acendia os olhos de Capitu.”

(ASSIS, 2008, p. 964). Uma frase de José Dias indica para o leitor o tema da traição:

“Tu quoque brute?” (Assis, 2008, p. 964 – grifo do autor). Esta frase faz referência ao

fato de César ter sido traído até mesmo por aquele em quem mais confiava.

No segundo momento em que o narrador fala sobre José Dias, o leitor descobre

que ele adora os superlativos, uma maneira para dar mais importância às suas ideias e na

ausência destas, uma forma de prolongar as frases. Além disso, há um capítulo

específico para ele intitulado “O agregado”. É personagem de extrema importância na

narrativa. Uma das características mais marcantes dele era o cálculo, a capacidade de

ludibriar, de fazer valer sua vontade sem, contudo, levantar suspeitas.

Com o tempo, adquiriu certa autoridade na família, certa audiência, ao

menos; não abusava, e sabia opinar obedecendo. Ao cabo, era amigo, não

direi ótimo, mas nem tudo é ótimo neste mundo. E não lhe suponhas alma

subalterna; as cortesias que fizesse vinham antes do cálculo que da índole.

(ASSIS, 2008, p.936).

Todas as ações do agregado são calculadas. O narrador conta um feito em que

ele afirmara que tinha amigos na Europa e que só não partia, pois a família abaixo de

Deus era tudo. Tio Cosme o provoca e pergunta: - Abaixo ou acima. José Dias responde

que abaixo e agrada à dona Glória, matriarca da casa. Tal comportamento também pode

ser observado quando, após ouvir sobre o casamento de Bento Santiago e Capitu, ele se

que Massinissa tenha assassinado a esposa por ela ter participado da solenidade em honra de Cipião, o

fato não justificara sua morte e nem representava em si uma traição. O autor, neste momento, implanta a

dúvida no entendimento do leitor. Seria Capitu vítima de uma injustiça, assim como Sofonisba e

Desdêmona?

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arrepende de seu parecer sobre a noiva e passa a vê-la como um anjo, um anjíssimo:

“Cuidei o contrário, outrora; confundi os modos de criança com expressões de caráter, e

não vi que essa menina travessa e já de olhos pensativos era flor caprichosa de um fruto

sadio e doce...” (ASSIS, 2008, p. 133). Contudo, posteriormente, ele muda sua

percepção não por uma correção de análise, mas sim por perceber que Capitu adulta

tornar-se-ia esposa de seu ‘senhor’. Bentinho já percebera esta capacidade de simular

que ele possuía: “E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham

antes do cálculo que da índole” (ASSIS, 2008, p. 936). O narrador carrega na tinta ao

descrever o agregado como uma personagem que molda seu caráter à situação em que

se encontra e que utiliza muito bem a linguagem a seu favor.

Era magro, chupado, com um princípio de calva; terias os seus cinquenta e

cinco anos. Levantou-se com o passo vagaroso do costume, não aquele vagar

arrastado dos preguiçosos, mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo

completo, a premissa antes da consequência, a consequência antes da

conclusão. Um dever amaríssimo. (ASSIS, 2008, p. 935).

É também o próprio José Dias que afirma que Bentinho será feliz: “‘Tu serás rei,

Macbeth!' — 'Tu serás feliz, Bentinho!'. O problema está na comparação com Macbeth.

É de conhecimento do leitor atento que esta é uma alusão às três bruxas que dialogam

com Macbeth. Uma delas afirma que professa que ele será rei, porém nenhuma delas

afirma que será feliz. O regicida Macbeth vive sob a constante ameaça.

Por muito tempo a tese que prevaleceu foi a da certeza do adultério e da

inocência de Bentinho. Isto se dá, pois os modos de leitura são alterados com o tempo.

As leituras são marcadas pelas ideologias determinadas pelos contextos históricos,

sociais e políticos e, como afirma Zilberman, “a flexibilidade de cada texto decorre da

habilidade em responder de modo distinto a cada leitor ou aos segmentos variados de

público; decorre igualmente da propriedade de o destinatário intervir na obra.”

(ZILBERMAN, 2001, P.91). De acordo com a estudiosa do texto machadiano, o leitor

possui papel fundamental na construção semântica do texto, posto que “despertado o

imaginário por força da leitura, nada mais pode contê-lo ou domá-lo.” (ZILBERMAN,

2001, P. 27).

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A construção da personagem Bentinho é a elaboração de um ser inocente e

constantemente enganado e manipulado por todos na narrativa. O discurso de Bentinho

caracteriza-se por argumentos, comprovações e sugestões próprias do discurso do

advogado e do promotor. Do advogado que quer absolver de culpa o seu cliente e do

promotor que quer provar a culpabilidade de Capitu. Deste modo, o discurso utilizado

por Bentinho coloca o leitor na condição de juiz. Marcado por essa astúcia, o romance

passa a refletir sobre o próprio julgamento e sobre a própria lei. Motivada por essas

artimanhas, a recepção crítica do romance considerava inquestionável a culpa de Capitu.

Este fato leva a reflexão sobre o porquê desta certeza. A dúvida só se tornou mais forte

no momento em que os subalternos passam a ocupar algum espaço e a ter alguma voz.

Pelos motivos apresentados até aqui, é possível perceber que Dom Casmurro é

muito mais do que a história de personagens subalternas, de um narrador suspeito ou de

uma história de amor, desilusão e dor. Analisando o processo de recepção do romance, é

perceptível que se trata também da história do leitor e de suas inúmeras formas de ler

um livro.

As mudanças que ocorreram nas interpretações possíveis do romance podem

servir de possibilidade de análise da sociedade e de seus costumes em cada época.

Embora não seja foco deste estudo fazer uma pesquisa do real empírico ou do leitor

ideal do romance de Machado de Assis, é interessante refletir sobre como o leitor é

transformado em personagem, em cúmplice no livro. O cuidado com que o narrador

aborda o leitor em determinadas passagens e a ironia aplicada em outras.

É pertinente observar que o escritor busca um tipo de leitor, que o narrador

procura outro e que o livro possui uma infinidade de leitores possíveis. Neste aspecto

reside a riqueza da literatura machadiana: o leitor ideal de Machado está sempre em

processo de construção e se enriquece pelas múltiplas leituras que são feitas de tempo a

tempo. A narrativa machadiana está sempre em busca de um leitor com a capacidade

adequada de digerir suas letras, pois sempre há mais e mais interpretações que podem

ser feitas de seus livros. Esta que está sendo empreendida neste trabalho é apenas mais

uma que visa a abordagem da subalternidade e da Estética da dissimulação.

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Espelhos: o calculismo em A mão e a luva e Helena

É isto, vamos, é isto... Ideia só! Ideia sem pernas! As outras pernas não

queriam correr nem andar. (ASSIS, 2008, p.971).

O fragmento acima foi retirado do capítulo do livro Dom Casmurro denominado

“Ideia sem pernas e ideia sem braços”. O título escolhido pelo autor resume bem o

raciocínio de Schwarz ao elaborar o tema de As ideias fora de lugar, que fora criticado

posteriormente, não estava fundado na realidade brasileira e sim nesta mesma realidade

vista pelos olhos machadianos. Pode-se dizer que Machado, bem antes de Schwarz, vira

na sociedade brasileira uma absorção de ideias importadas da Europa de forma

inadvertida. O escritor observara o grande falseamento e impostura com que as

ideologias liberais europeias eram acolhidas em solo brasileiro pela elite escravocrata e

paternalista da época. Esta noção de ideias fora de lugar expressa uma visão que

poderia explicar o comportamento habitual das autoridades políticas brasileiras, ou seja,

a imensa distância que há entre determinadas formações discursivas sobre o Brasil (com

dimensões quase ficcionais) e a prática. Este tipo de mascaramento perverso impera no

Brasil até mesmo nos dias de hoje.

Era este senso crítico que impedia Machado de se alegrar com euforia diante de

grandes fatos da história oficial do Brasil, por isso não se sentira eufórico diante do

episódio da abolição da escravatura ou diante da alteração de regime político: da

monarquia para a república. Já podiam ser identificadas no autor as posições críticas que

constantemente são vistas como pessimismo ou até mesmo, em algumas análises, como

passividade.

Mais tarde, quando vem a escrever os seus primeiros romances, estes se

alimentam da ideologia antiliberal. Para Machado, portanto, já não se tratava

aqui de uma posição inicial e irrefletida, mas do resultado da experiência,

com a parte de realismo – se não de verdade – que acompanha as desilusões.

(SCHWARZ, 2012, p. 85)

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Alguns críticos poderiam levantar a hipótese do pouco espaço ocupado pelos

negros e subalternos na obra de Machado de Assis. Poderiam também questionar a total

ausência dessas personagens nos grandes salões da casa grande. Contudo, nenhuma

alternativa anterior conseguiria desmerecer a capacidade crítica do autor na construção

de seus romances. A construção ficcional machadiana não fugia completamente à

realidade que o autor observava com atenção. O que ele criticamente observava era

complexamente elaborado e apresentado em seus livros, sem perder a oportunidade de

lançar duras críticas à sociedade elitista, escravocrata e paternalista da época

apropriando-se de seus representantes e os lançando em sua ficção quase sempre com

pena de galhofa. Basta que o leitor observe o desfilar de tipos que surgem como

personagens cruciais em sua trama. A maioria delas como personagens principais ou de

grande importância nos eventos narrados. Schwarz (2008, p. 85) faz menção a esse fato,

quando diz: “Sirvam de exemplo o byronismo debiloide de Estevão, o infeliz namorador

de A mão e a luva, ou o patriotismo repentino de certa dama, que manda o filho à guerra

do Paraguai, a fim de lhe evitar um casamento inferior (Iaiá Garcia)”.

O objetivo deste tópico é abordar romances que são considerados românticos e,

por isso, são menos valorizados por alguns críticos. O primeiro romance a ser analisado

será A mão e a luva, tentando pensar como nele o escritor faz do calculismo a arma

utilizada pelo subalterno para alcançar seus objetivos. No caso específico desse

romance, o comportamento calculista da protagonista funcionou perfeitamente para

manter sua subjetividade e sua existência. Já no caso do segundo romance a ser

analisado, Helena, a vida de dissimulações sufoca a protagonista e acaba levando-a à

morte.

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Belas e viçosas, mas em vaso de Sèvres

O romance A mão e a luva, publicado em 1874, não poderia ser classificado

como complexo quando analisado pela riqueza de elementos, posto que o detalhamento

de ambientes e o enredo da narrativa não são suas características mais interessantes. A

princípio é a história de Guiomar, uma jovem que, em determinado momento de sua

vida, depara-se com o dilema proposto pela aparente indecisão entre três opções de

pretendentes: Jorge, Estêvão e Luís Alves. Estevão é o romântico que ama Guiomar

com total entrega. Jorge, sobrinho da madrinha de Guiomar, é um rapaz ambicioso que

assim como a protagonista busca ascensão social. Luís e Jorge são amigos e se

distanciam por determinado tempo.

O tempo passa e os amigos se reencontram já formados. Luís Alves, buscando as

facilidades de uma carreira política, abriga em sua casa o amigo Estevão que ainda

estava iniciando na carreira de advogado. Para surpresa do amigo, a casa de Luís é

vizinha à de Guiomar. Estevão e Guiomar se reaproximam e o rapaz nutre esperanças de

um romance, de um namoro e de um casamento. A mãe de Guiomar havia morrido e a

baronesa, sua madrinha, acolhe a afilhada e a protege como a uma filha. Dos três

pretendentes, porém, Estevão era o que tinha menos pontos a favor e o que nutria o

sentimento mais forte e mais arrebatador pela protagonista. Jorge, por outro lado, era

sobrinho da baronesa, estava mais próximo de Guiomar e ainda tinha o apoio influente

de Mrs. Oswald. Luís, contudo, era o mais esperto, o mais dissimulado. Amigo de

Estevão, percebera os erros deste e observara os erros de Jorge e preservava seus

sentimentos em segredo. E foi dissimulando e de maneira secreta que Luís se

aproximou de Guiomar e equilibradamente revelou a ela seu amor.

Considere-se que Estêvão jamais poderia agradar à protagonista. Havia nele o

romantismo exacerbado que poderia ser agradável em um romance, em uma historieta.

Desde o início do romance, ele é apresentado como aquele que busca morrer por dor de

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amor, por um namoro gorado. Por vezes, é possível inferir que a postura do rapaz

funciona como uma metáfora do leitor ou leitora de Machado de Assis.

As referências, embora negativas e associadas a uma visão de mundo e a um

gosto manifestadamente retrógrados, são apresentadas de modo bastante

simpático, fazendo de Estevão o principal foco de identificação do leitor e

quem sabe da própria crítica que, diante de Ressurreição, cobrara de

Machado um romance mais ortodoxo (GUIMARÃES, 2004, p. 143-144).

Em sua primeira incursão na escrita de romances, o autor sofrera algumas

críticas que foram direcionadas à forma e ao tema de suas narrativas. Não havia em

Machado, todavia, os puros ares do Romantismo então vigente. Sua prosa fugia às

convenções do estilo e era fiel aos seus próprios interesses. Estêvão é a personagem que

agrada ao leitor que na época de publicação do livro estava ávido por um herói pintado

nos moldes legitimados do Romantismo, contudo, é também aquele que apresentava a

frouxidão de ânimo que o impossibilitava de lutar dignamente por qualquer objetivo.

Estêvão era mais ou menos o mesmo homem de dois anos antes. Vinha

cheirando ainda aos cueiros da academia, meio estudante e meio doutor,

aliando em si, como em idade de transição, o estouvamento de um com a

dignidade do outro. As mesmas quimeras tinha, e a mesma simpleza de

coração (...). (ASSIS, 2008, p. 323).

A mão e a luva nasce com o objetivo de abrandar a expectativa frustrada que

fora o romance Ressurreição. Na época em que escreveu o livro, Machado de Assis já

possuía reconhecimento e status, pois, em 1867, recebera a Ordem da Rosa, no grau de

cavaleiro; era primeiro-oficial e chefe da seção da Secretaria de Agricultura e assumira

o posto de auxiliar do diretor do Diário Oficial. Porém, ainda assim, buscava a empatia

com os que o liam.

A forma de tratamento utilizada pelo autor, na advertência de 1874, é uma

estratégia para tentar convencer o leitor da falsa leveza da obra: “O que aí vai são umas

poucas páginas que o leitor esgotará de um trago, se elas lhe aguçarem a curiosidade ou

se lhe sobrar alguma hora que absolutamente não possa empregar em outra coisa – mais

bela ou mais útil.” (ASSIS, 2008, p. 317). Contudo, o autor não consegue escrever um

romance de costumes e utiliza uma de suas personagens para alertar quem folheia suas

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páginas. Como Estêvão representa o leitor, aquele que criticara o autor pela ausência de

romantismo em suas obras, Machado o utiliza para enviar suas farpas aos seus

receptores não idealizados. O leitor que ele buscava deveria ser crítico e atento. O leitor

ávido, devorador de páginas, não conseguiria entender as densas laudas da narrativa

machadiana.

Tinha leitura de uma e outra coisa, mas leitura veloz e à flor das páginas.

Estêvão não compreenderia nunca esse axioma de lorde Macaulay – que mais

aproveita digerir uma lauda que devorar um volume. Não digeria nada; e daí

vinha o seu nenhum apego às ciências que estudara. Venceu a repugnância

por amor-próprio; mas, uma vez dobrado o cabo das Tormentas disciplinares,

deixou a outros o cuidado de aproar à Índia. (ASSIS, 2008, p. 323).

Guiomar era prática e também se aliava a uma ética pragmática. O

posicionamento da protagonista a desvia do ideal romântico de heroína. Vista pelos

olhos de Estêvão, ela era exatamente como as donzelas que ele idealizava: “Via-lhe o

perfil, em cada aberta que deixavam as árvores, um perfil correto e puro, como de

escultura antiga” (ASSIS, 2008, p. 325). A idealização de Estêvão chega ao ponto de

comparar Guiomar a um “(...) serafim de Klopstock, a uma fada de Shakespeare, a tudo

quanto na memória dele havia mais aéreo, transparente, ideal” (ASSIS, 2008, p. 326).

Parece que Machado de Assis gostava desse tipo de remissão a obras dos grandes

autores. Em Memórias póstumas de Brás Cubas, o protagonista faz uso do mesmo

recurso, sendo que desta vez a homenageada é a cândida Marcela:

(...) cândida – cândida e outra coisa, que eu nesse tempo não entendia muito

bem; mas agora, relembrando o caso, penso que era um riso misto, como

devia ter a criatura que nascesse, por exemplo, de uma bruxa de Shakespeare

com um serafim de Klopstock. Não sei se me explico. (ASSIS, 2008, p.647).

Explica, pois a fada de Shakespeare também está presente em Dom Casmurro

quando Bentinho ouve uma voz que determina que ele seria feliz em referência ao seu

casamento: “Tu serás feliz, Bentinho; tu vais ser feliz”. Ao ouvir esta voz, Bentinho

comenta com José Dias que logo relaciona a frase com a que está presente no Macbeth

de Shakespeare. Contudo, nesse caso, a voz não é bem de uma fada e sim de uma

feiticeira. E as bruxas da obra de Shakespeare enganam Macbeth, assim como Marcela

engana Brás Cubas, como Bentinho se sente enganado por Capitu e tal como dissimula

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Guiomar.

Por ter o espírito tão cândido, Guiomar percebe logo no início que seria

impossível escolher Estêvão como marido. Faltava nele o impulso necessário para adiar

a virtude em busca de um ideal. Ele não simulava, não dissimulava. Deste modo, ele

não poderia ser o amado de uma mulher que tão alto mirava:

Suas aspirações políticas deviam naturalmente morrer em gérmen, não só

porque lhe minguava o apoio necessário para as arvorecer e frutificar, mas

ainda porque ele não tinha em si a força indispensável a todo o homem que

põe a mira acima do estado em que nasceu. Eram aspirações vagas,

intermitentes, vaporosas, umas visões legislativas e ministeriais, que tão

depressa lhe namoravam a imaginação, como logo se esvaneciam, ao resvalar

dos primeiros olhos bonitos, que esses, sim, amava-os ele deveras. Opiniões,

não as tinha; alguns escritos que publicara durante a quadra acadêmica eram

um complexo de doutrinas de toda a casta, que lhe flutuavam no espírito, sem

se fixarem nunca, indo e vindo, alçando-se ou descendo, conforme a recente

leitura ou a atual disposição de espírito (ASSIS, 2008, p. 323).

O segundo pretendente de Guiomar é Jorge. Esse é um pouco mais incisivo que

Estêvão. Possuía a simulação necessária para viver sem precisar trabalhar. Personagem

calculista que conhecia as palavras e fazia delas um bom uso retórico. Ele também

contava com o apoio de sua tia (a baronesa e madrinha de Guiomar) e de Mrs. Oswald,

que era viúva e dama de companhia da baronesa: “Tal era a pessoa cujos interesses

defendia Mrs. Oswald, por amor da baronesa, e não menos de si própria. A baronesa

também tinha os seus sonhos, como ela mesma disse, e esses eram deixar felizes

aquelas duas crianças.” (ASSIS, 2008, p. 341).

Assim, Jorge possuía as melhores aliadas, pois a influência da madrinha sobre as

decisões da sobrinha era quase decisiva. Guiomar se sentia na obrigação de agradar sua

benfeitora que lhe propiciara as melhores condições de vida e afeto, assumindo, então,

um papel que poderia ser comparado ao de uma mãe. Jorge possui um nome, a maior

das heranças que seu pai deixou para o filho. Por isso, poderia seguir a carreira política

e contar com o apoio da tia, porém ele prefere seguir suas pequenas ambições e

continuar vivendo dos espólios do pai.

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O terceiro pretendente, Luís Alves, representava a melhor materialização do

ideal almejado por Guiomar. Era objetivo, obstinado, dissimulado e, por vezes, frio. Ele

é advogado e ambiciona o acesso à carreira pública e, além disso, soube ser habilidoso

no jogo da conquista e seduziu a protagonista por, aparentemente, jogar seu próprio jogo

com segurança de seus atos. Guiomar “(...) queria um homem que, ao pé de um coração

juvenil e capaz de amar, sentisse dentro em si a força bastante para subi-la aonde a

vissem todos os olhos.” (ASSIS, 2008, p. 365-366). O objetivo da protagonista,

portanto, era unir duas qualidades essenciais a uma união promissora, o amor e a

comodidade. A felicidade para ela não poderia vir carregada de infortúnios, pois não

poderia viver uma vida de privação por causa do amor: “Pedia amor, mas não o quisera

fruir na vida obscura; a maior das felicidades da Terra seria para ela o máximo dos

infortúnios, se lha pusessem num ermo.” (ASSIS, 2008, p. 365). Luís Alves seria o

parceiro ideal, pois possuía o nome e a ambição necessária para alçar voos mais altos.

O proceder de Luís Alves, sóbrio, direto, resoluto, sem desfalecimentos, nem

demasias ociosas, fazia perceber à moça que ele nascera para vencer e que a

sua ambição tinha verdadeiramente asas, ao mesmo tempo que as tinha ou

parecia tê-las o coração. Demais, o primeiro passo do homem público estava

dado; ele ia entrar em cheio na estrada que leva os fortes à glória. Em torno

dele ia fazer-se aquela luz, que era a ambição da moça, a atmosfera, que ela

almejava respirar. Estêvão dera-lhe a vida sentimental, - Jorge a vida

vegetativa; em Luís Alves via ela combinadas as afeições domésticas com o

ruído exterior. (ASSIS, 2008, p. 371).

O casamento de Guiomar não caberia nos padrões românticos de escolha. Uma

relação tão importante quanto esta não poderia ser fruto apenas de sentimentos, de

emoções ou idealizações romantizadas. Guiomar é uma subalterna, uma agregada na

casa da baronesa; contudo, não era uma agregada qualquer, pois havia nela a ambição, o

talento e a inteligência. Portanto, o casamento era, antes de qualquer coisa, um cálculo.

Guiomar, representando outras mulheres da época, percebia na troca de alianças uma

troca de situação, uma oportunidade de ascensão política e econômica. Claro que esta

visão calculista do amor não era privilégio dos agregados e não se dava apenas entre

cônjuges de classes diferentes, mas também e, principalmente, entre os que ocupavam a

mesma classe: a elite brasileira. O casamento também funcionava como uma forma de

manutenção do status quo da sociedade, uma forma de prevenir a alteração de posições,

uma espécie de dança das cadeiras. Porém, neste caso específico, casar-se era a

oportunidade de ter status social, de possuir um nome e de sair da condição de

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agregada.

Guiomar queria sair da condição do favor. Estêvão não poderia fornecer meios

para que a protagonista alcançasse todos os sonhos que sua ambição produzia; Jorge,

por sua vez, era sobrinho da baronesa e como era um bon vivant, não ofereceria a ela

possibilidade de mudança de situação já que continuaria vivendo de favor; Luís com sua

ambição seria o que a levaria no ponto mais alto de seus sonhos. Contudo, apesar de sua

afeição por Luís, ela precisava manter sua discrição e dissimular seus sentimentos –

qualidade tão valorizada na época.

Guiomar, no meio das afeições que a cercavam, sabia manter-se superior às

esperanças de uns e às suspeitas de outros. Igualmente cortês, mas

igualmente impassível para todos, movia os olhos com a serenidade de

isenção, não namorados, nem sequer namoradores. Ela teria, se quisesse, a

arte de Armida; saberia refrear ou aguilhoar os corações, conforme eles

fossem impacientes ou tíbios; faltava-lhe porém o gosto, — ou melhor,

sobrava-lhe o sentimento do que ela achava que era a sua dignidade pessoal.

(ASSIS, 2008, p. 342)

Antes de tomar sua decisão, ela precisava dissimular para manter em suas rédeas

os três pretendentes. O narrador destaca sua capacidade de utilizar a arte de Armida, ou

seja, a arte de encantar e ao mesmo tempo esconder suas reais intenções. A dissimulação

é tática utilizada por pessoas da elite, contudo, nos fragilizados, a técnica adquire o

patamar de arte. Guiomar dissimula para conseguir tempo. A escolha deveria passar pelo

cálculo, pois deveria conciliar uma gama de interesses: o de ser amada, o de conseguir

alcançar a posição social desejada e o de não desagradar a madrinha – o que, de certa

forma, não deixa de caracterizar uma das amarras do favor. Por isso, a necessidade de

refletir. A decisão a ser tomada pode ser a solução para a realização de seus sonhos ou

uma forma de intensificar seus infortúnios. Sua reflexão a leva a imaginar. Mas, engana-

se o leitor que vir nesses devaneios aspectos de uma heroína romântica: “Nada disso era

nem fazia; e por mais longe que velejasse levaria entranhadas na alma as lembranças da

terra” (ASSIS, 2008, p. 351). Ela velejava pelo mar da imaginação sem deixar de mirar

a terra firme.

Guiomar refletiu ainda muito e muito, e não refletiu só, devaneou também,

soltando o pano todo a essa veleira escuna da imaginação, em que todos

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navegamos alguma vez na vida, quando nos cansa a terra firme e dura, e

chama-nos o mar vasto e sem praias. A imaginação dela porém não era

doentia, nem romântica, nem piegas, nem lhe dava para ir colher flores em

regiões selváticas ou adormecer à beira de lagos azuis. (ASSIS, 2008, p. 351)

Luís Alves, por sua vez, admira Guiomar e com o tempo passa a amá-la,

contudo é o que apresenta maior controle dos sentimentos. Estevão e Luís se tornaram

amigos na época de faculdade, o primeiro de origem mais humilde e o segundo de

família mais abastada. Desde o início Estevão confessara para Luís o seu dilema por

amar tanto a protagonista que o desprezara. O amor era tão forte que em alguns

momentos Estevão desejara a morte, o suicídio.

(...) é pelos olhos do personagem (Estevão) que o leitor assiste à vitória de

Guiomar e Luís Alves, assim como é o seu sofrimento que apela à simpatia

do leitor, ainda que se dê em registro cômico. A comicidade associada ao

personagem tem um objetivo: despertar a identificação do leitor com Estevão

para corrigir, pelo riso, as ideias que o leitor eventualmente compartilhe com

o personagem, caracterizado por Machado como quintessência do

romantismo (GUIMARÃES, 2005, p. 143, grifo nosso).

Guiomar passou a amar Luís, a sua serenidade e a capacidade de controlar os

sentimentos. Estas qualidades tão admiradas na sociedade de elite da época

impressionaram a protagonista que entrega seu coração a quem ela considerou mais

capacitado a proporcionar-lhe um lar seguro e as flores do amor em vasos de Sèvres.

Contudo, havia o fato de Guiomar ser uma subalterna vivendo às dispensas da baronesa

e, portanto e ter de acatar as vontades da dona da casa, para quem a felicidade estava no

matrimonio de sua afilhada com seu sobrinho. E ainda havia Mrs. Oswald que, mesmo

vivendo de favor na casa, era muito influente e também desejava que a protagonista se

casasse com Jorge.

Todavia, é por desejo da baronesa que Guiomar se casa com Luís. Prevendo os

sentimentos da afilhada e o possível sofrimento de um casamento sem amor, a dona da

casa, que recebera os pedidos de Luís e de seu sobrinho, escolhe o que mais agradava à

sua protegida. Com isso, o ambicioso Jorge logo se recupera da perda e segue sua vida

enquanto o apaixonado Estevão se agarra ainda mais à ideia do suicídio. Após o

casamento, a protagonista revela os motivos de sua escolha:

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Vi que você era homem resoluto, disse a moça a Luís Alves, que, assentado, a

escutava. Resoluto e ambicioso, ampliou Luís Alves sorrindo; você deve ter percebido

que sou uma e outra coisa. A ambição não é defeito. Pelo contrário, é virtude; eu sinto

que a tenho, e que hei de fazê-la vingar. Não me fio só na mocidade e na força moral;

fio-me também em você, que há de ser para mim uma força nova. Oh! sim! exclamou

Guiomar. E com um modo gracioso continuou: Mas que me dá você em paga? Um

lugar na câmara? Uma pasta de ministro? O lustre do meu nome, respondeu ele.

Guiomar, que estava de pé defronte dele, com as mãos presas nas suas, deixou-se cair

lentamente sobre os joelhos do marido, e as duas ambições trocaram o ósculo

fraternal. Ajustavam-se ambas, como se aquela luva tivesse sido feita para aquela mão

(ASSIS, 2008, p. 387).

Em Guiomar podemos ver a adaptabilidade e resiliência da protagonista que

consegue manipular seus sentimentos e sua vida em benefício próprio para conseguir

alcançar a ascensão de classe. Para conseguir este feito são necessários os cálculos, até

mesmo os insensíveis. Contudo, é necessário pontuar a necessidade de lutar por sua

própria sobrevivência e, assim, Guiomar consegue tomar as rédeas de sua própria

existência, utilizando de sua aparente fragilidade para vencer. Como pondera

SCHWARZ (2012, p. 88), “Guiomar, em A mão e a luva, adapta-se com sagacidade

louvável aos sentimentos de uma baronesa, a quem preza grandemente e que a acabaria

por adotar. São os cálculos e a maleabilidade da moça a razão de ser do romance”

(SCHWARZ, 2012, p. 88).

O plano de A mão e a luva, a princípio, não atrai leitores mais exigentes. A

história gira em torno da vida de Guiomar e seus pretendentes, conforme diz o próprio

autor: “(...) o desenho de tais caracteres – o de Guiomar, sobretudo – foi o meu objeto

principal, senão exclusivo, servindo-me a ação apenas de tela em que lancei os

contornos dos perfis. Incompletos embora, terão eles saído naturais e verdadeiros?”

(ASSIS, 2008, p.317). Guiomar analisa os pretendentes e escolhe aquele que melhor lhe

convém para casar-se. Até este ponto seria uma narrativa interessante somente pelo fato

de assemelhar-se a uma obra que funciona como um novelo em que as ações vão se

desvelando com o tempo. Poderia atrair a atenção de leitores que se interessam por este

tipo de literatura repleto de enlaces.

A julgar pelo seu plano, A mão e a luva é um passatempo ligeiro e indulgente

– da indulgência que têm consigo mesmo as boas famílias. Uma menina de

origem humilde, que será adotada pela madrinha rica, hesita entre seus três

pretendentes: o primeiro é romântico e fraco, o segundo é sem graça e

sobrinho da baronesa, à qual a menina deve a posição em sociedade, e o

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terceiro é forte, além de conquistar o coração à sua amada (SCHWARZ,

2012, p. 95).

Poderia, inclusive, parecer certo conformismo por parte do autor em retratar uma

situação demasiadamente burguesa. Os enlaces e desenlaces, as conquistas e frustrações

amorosas só possuem a função de manter as coisas da forma como estão. “Resulta uma

espécie de conformismo insolente, expedito, antepassado da modernização reacionária

de nossos dias, em que inteligência, vitalidade e antipatia se dão as mãos” (SCHWARZ,

2012, p. 95). Tudo não passaria de um enredo romântico se a protagonista não fosse

Guiomar uma personagem subalterna, mas forte e que, por sua situação de fragilidade

econômica e social, precisa usar de todos os subterfúgios para conseguir a tal almeja

ascensão de classe. É assim que a inteligência e a dissimulação imperam na

personalidade da personagem que “Usando de “tino e sagacidade”, (...) procura

substituir-se junto à madrinha à filha que esta perdeu. Sai bem da empresa, e deixa de

ser “a simples herdeira da pobreza de seus pais”” (SCHWARZ, 2012, p. 96).

O que é valorizado na sociedade brasileira narrada nos romances machadianos?

Há sempre a valorização da falsa moral, dos valores e costumes que estão acima dos

sentimentos, das aparências, das máscaras tratadas como etiqueta social. Os valores

estão ligados à capacidade de fingir e de simular. O ambiente, portanto, é propício e

exige dos indivíduos em situação de subalternidade a capacidade de simulação e de, por

meio desta, alcançarem a dissimulação preservando assim sua identidade. É por isso,

que todo o processo de dissimulação não obscurece as qualidades de Guiomar como

heroína do romance machadiano.

É justamente neste processo que se encontra a grande capacidade de persuasão

da protagonista que seduz até mesmo o narrador que a descreve com tamanha maestria

que torna sua descrição uma das mais admiradas pelos leitores de Machado de Assis. A

personalidade mesclada da protagonista que busca o amor, mas que visa encontrá-lo não

em qualquer senda e o fato de pensar o amor como decorrente de um cálculo, um frio

cálculo. Este paradoxo estava presente na personalidade da heroína: o amor poderia vir

desde que acompanhado de refinamento; que fosse fruto da etiqueta e não do

arrebatamento dos apaixonados românticos. As flores representativas da sensibilidade

do coração de Guiomar e de suas emoções deveriam, por isso, estarem plantadas em

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vaso de Sèvres, ou seja, na mais refinada cerâmica francesa e não na natureza sem o

abrigo e o conforto de uma bela casa burguesa. Flores belas e viçosas, mas sobre um

móvel raro, próximas a cortinas de caxemira.

Guiomar amava deveras. Mas até que ponto era involuntário aquele

sentimento? Era-o até o ponto de lhe não desbotar à nossa heroína a castidade

do coração, de lhe não diminuirmos a força de suas faculdades afetivas. Até

aí só; daí por diante entrava a fria eleição do espírito. Eu não a quero dar

como uma alma que a paixão desatina e cega, nem fazê-la morrer de um amor

silencioso e tímido. Nada disso era, nem faria. Sua natureza exigia e amava

essas flores do coração, mas não havia esperar que as fosse colher em sítios

agrestes e nus, nem nos ramos do arbusto modesto plantado em frente de

janela rústica. Ela queria-as belas e viçosas, mas em vaso de Sèvres, posto

sobre móvel raro, entre duas janelas urbanas, flanqueado o dito vaso e as

ditas flores pelas cortinas de caxemira, que deviam arrastar as pontas na

alcatifa do chão. Machado (ASSIS, 2008, p. 165)

Não se pode deduzir a personalidade da personagem buscando apenas elementos

extratextuais. Só conhecemos a subjetividade de Guiomar por aquilo que está descrito

na voz do narrador que exibe ao leitor o interior da personagem. Por esse artifício, é

possível conhecer seus anseios, seus sentimentos, suas intenções. Todavia, nem mesmo

o narrador onisciente conhece ao certo todas as peculiaridades de uma subjetividade tão

dissimulada. Sendo assim, não se pode determinar com certeza os sentimentos de

Guiomar ou a intensidade destes mesmos sentimentos. É detectável a capacidade da

protagonista em aliar os ponteiros de acordo com suas necessidades, pois ela sabe que o

amor, ainda que verdadeiro, é fruto também de um cálculo. Guiomar não gosta de

surpresas, prefere o amor seguro explicitado na figura de um bom matrimonio,

financeira e representativamente representado na escolha de um membro de família

tradicional.

Paixão desatinada e cega, sentimento involuntário, amor silencioso e tímido,

são expressões que trazem à cena o ponto de vista do Romantismo, para o

qual o afeto (natureza) se não é incondicional está degradado (pela coação

das conveniências). Ora, Guiomar amava deveras, mas sem desatino,

cegueira ou timidez, e o seu sentimento é involuntário só em parte

(SCHWARZ, 2012, p. 103).

A ambição desmedida é constantemente valorizada na elite brasileira descrita

nas obras de Machado de Assis. Contudo, esta ambição não é bem vista no coração do

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subalterno. Sendo assim, é preciso deixá-la escondida dos olhos dos membros de

famílias abastadas, pois este sentimento, em pessoas que são seus dependentes, os

amedronta. É preciso ser ambicioso e ao mesmo tempo simular a ausência deste

sentimento. A ambição funciona como um segredo de combate, pois deve-se manter a

sensação de segurança daqueles que estão em posição hierárquica superior no sistema. A

personagem feminina que vive do favor não deve de forma alguma ambicionar o amor

de membros da família que a acolhe. Porém, pode viver o amor em um casamento

arranjado. É assim que a frieza e a ambição de Guiomar deixam de ser vistas como

defeitos e passam a ser reconhecidas como qualidades.

A nota picante vem na reabilitação perversa de noções muito marcadas:

espírito frio, desdém pela vida modesta e rústica, anseio por conforto e

riqueza convertem-se em qualidades, com o prestígio extra de saírem de um

combate em que representavam a clareza, contra a imitação acrílica

(SCHWARZ, 2012, p. 103).

Mas, como revelar suas verdadeiras intenções e emoções numa sociedade de

aparências? Além disso, há o fato da personagem ser uma subalterna, uma agregada

numa família de elite tradicional. Desta condição surge a necessidade da postura

dissimulada de Guiomar na busca de conseguir a tão sonhada ascensão de classe. O que

caracteriza a personagem não simplesmente valer-se do cálculo nem sempre

perfeitamente bem sucedido. Nos momentos em que o cálculo falha é que nos

deparamos com a humanidade de Guiomar: suas emoções que podem ser dissimuladas,

todavia existem.

Machado, por meio do narrador, permite-nos perceber os dilemas internos da

personagem. Nesse sentido, a densidade na construção das personagens machadianas

assusta, em especial, aquelas em condição de subalternidade.

Nas obras de Machado de Assis as mulheres são piores que os homens, mais

perversas. Não que os homens sejam bons, está claro, mas são mais animais,

se posso me exprimir assim, mais espontâneos. As mulheres não: há em

quase todas elas uma inteligência mais ativa, mais calculista; há uma dobrez,

uma perversidade e uma perversão em disponibilidade, prontas sempre a

entrar em ação. Talvez nisto se possa ver ainda uma boa prova da forte

sensualidade (ANDRADE, apud ASSIS, 2008, p. 48).

Considere-se que o calculismo quase sempre está reservado aos subalternos. No

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jogo das simulações, as personagens dependentes necessitam manter uma postura de

quase completa assimilação e anulação. Na citação tirada de texto de posicionamento de

Mario de Andrade, essa postura fica evidente. Contudo, avaliando a estratégia comum

em textos críticos, o que Andrade percebe na criação machadiana, decorre da intenção

de interpretar, talvez com outro ponto de vista, o texto citado. No trecho de Andrade, há

um julgamento de valor: “as mulheres são piores que os homens”. Afinal, o que seria

pior? No entanto, concordo com Mario de Andrade quando afirma haver, nas

personagens femininas machadiana, uma dobrez mais refinada que a apresentada pelas

personagens masculinas, pois penso que esta poderia ser caracterizada pela própria

dissimulação. Contudo, esta mesma capacidade de dissimular o caráter pode ser

encontrada em personagens que representam a elite patriarcal brasileira. Aliás, este

caráter dúbio é observado em Bentinho, em Brás Cubas, em Félix e em quase todas as

personagens masculinas de Machado de Assis.

Quando se analisa com critério as personagens subalternas do autor é preciso

observar que estas apresentam personalidades de complexidade extrema. É quase

impossível determinar com precisão suas ações. Elas vivem, existem e agem de forma

paradoxal e daí surge a riqueza de suas participações nas narrativas. Por mais que

muitos estudiosos apresentem argumentos que defendam a pouca presença destas

personagens em condição de subalternidade na obra machadiana, o que interessa

ressaltar, nesta tese, é a qualidade destas aparições. Afinal, o realismo e o senso crítico

de Machado o impediam de colocar estas personagens em locais que não ocupavam fora

da ficção.

A capacidade de dissimular até mesmo o amor que verdadeiramente nela existia

tornava Guiomar uma personagem forte. A análise do enredo sem levar em consideração

a posição subalterna da protagonista levaria o leitor à percepção de um romance sem

muita complexidade. Contudo, o brilhantismo de Machado está em apresentar uma

subalterna como protagonista e com personalidade forte. A força de Guiomar estava

justamente na capacidade de utilizar o cálculo, no calculismo que surgira até em

situações de tensão extrema. A capacidade de dissimular até mesmo no momento em

que necessitava manter sua personalidade, defender seus interesses e suas emoções foi o

que a proporcionou alcançar o desenlace vitorioso e satisfatório. Esta situação, contudo,

não se repetirá na construção da personagem Helena, do romance de mesmo nome.

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Inclassificável

Não classificarei como realista antirromântico ‘o romancista e contista

Machado de Assis, ironista sutil e perscrutador fundamente [sic] pessimista

das almas, em que se descobriram elementos de Swift, Maupassant, e

Thomas Mann. É um inclassificável ‘fora das tendências de sua época,

embora seus personagens e ambientes sejam brasileiros e da época. Já foi

muito traduzido. Sua intemporalidade ‘será, um dia, problema difícil para os

teóricos da crítica literária (CARPEAUX, 1977, p.159).

Ao pensar em realismo na obra literária de Machado de Assis é necessário

sempre repensar, refletir e defender por meio de argumentos convincentes a afirmativa.

O que é essencial nesta etapa é também relativizar o conceito de real. Este processo de

relativização já está sendo feito desde o início desta etapa da pesquisa. A diferenciação

entre o real imediato e o real possível, entre o Realismo e os Novos Realismos ou de

forma particular o realismo machadiano como algo a ser conquistado. Todas estas

relativizações e processos de reconceitualização se fazem necessários pela própria

peculiaridade presente na literatura machadiana. Cabe lembrar também que, para

Machado de Assis, as caracterizações e rótulos não conseguiam abarcar o todo vivo que

é a literatura. Após todas as tentativas de categorizações, a narrativa do autor segue seu

caminho inclassificável.

Tem-se acusado Machado de Assis de ser pouco brasileiro. Acusação gratuita

e superficial, já que a sua obra, quer pela língua, quer pelo ambiente, quer

pela índole das personagens, reflete – sem copiar servilmente – o meio social

do Império e dos primeiros anos da República. Mas acusação que, a ser feita

de boa-fé, se origina talvez num engano explicável; se se enquadra

perfeitamente em sua terra, o romancista destoa da paisagem literária. Dentro

do desenvolvimento da ficção é que é difícil situá-lo. Não teve predecessores

que o explicassem, como não teve, rigorosamente, continuadores que se

mantivessem no alto plano em que tão à vontade se instalou; (LÚCIA

MIGUEL-PEREIRA in ASSIS, 2008, p. 58)

O próprio autor fornece falsas pistas para o leitor quando afirma no início do

romance sua passageira verve romântica. O maior desafio encontrado pelo leitor no

processo de interpretação da literatura de Machado de Assis advém da dificuldade de

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definir os elementos irônicos de seu texto. A ironia machadiana se faz presente até

mesmo na apresentação do livro. Quando revela o ar romanesco da narrativa, ele o faz

de forma irônica. Esta declaração se apresenta como mais um dos despistes do autor, um

embuste, uma bruxaria, uma negaça de capoeirista que quando diz que vai não vai.

Esta nova edição de Helena sai com várias emendas de linguagem e outras,

que não alteram a feição do livro. Ele é o mesmo da data em que compus e

imprimi, diverso do que o tempo me fez, correspondendo assim ao capítulo

da história do meu espírito naquele ano de 1876. (ASSIS, 2008, p. 391).

A tentativa de relacionar a reflexão sobre Novos Realismos e Estética da

dissimulação visa alcançar um aprofundamento da complexa questão da voz subalterna.

Afinal, qual seria o objetivo do autor ao escrever um livro que não seguisse os

parâmetros estéticos vigentes para a produção artística e literária da época? Não

poderia, se tratando de Machado de Assis, refletir somente um mero capricho. Até

mesmo por isso a crítica ferrenha do autor perante o Realismo que se apresentava diante

de seus olhos como algo insonso e inerte.

Resta-me concluir, e concluir aconselhando aos jovens talentos de ambas as

terras da nossa língua, que não se deixem seduzir por uma doutrina caduca,

embora no verdor dos anos. Este messianismo literário não tem a força da

universalidade nem da vitalidade; traz consigo a decrepitude. Influi, decerto,

em bom sentido e até certo ponto, não para substituir as doutrinas aceitas,

mas corrigir o excesso de sua aplicação. Nada mais. Voltemos os olhos para a

realidade, mas excluamos o Realismo, assim não sacrificaremos a verdade

estética. [...] Ora, o realismo dos Srs. Zola e Eça de Queirós, apesar de tudo,

ainda não esgotou todos os aspectos da realidade. Há atos íntimos e ínfimos,

vícios ocultos, secreções sociais que não podem ser preteridas nessa

exposição de todas as coisas (ASSIS, 2008, p. 1242).

Entre o que era e o que poderia ser, Machado de Assis observava no momento de

transição de paradigmas uma possibilidade, uma dádiva. O problema é que as dádivas

quando caem em mãos desavisadas acabam por perder o valor perante àqueles que não

as enxergam. Por isso, o ceticismo em alguns momentos toma conta das reflexões do

autor. Mas, no fragmento apresentado é possível vislumbrar um certo ar de otimismo:

Finalmente, a geração atual tem nas mãos o futuro, contanto que lhe não

afrouxe o entusiasmo. Pode adquirir o que lhe falta, e perder o que a

deslustra; pode afirmar-se e seguir avante. Se não tem por ora uma expressão

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clara e definitiva, há de alcançá-la com o tempo; hão de alcançá-la os idôneos

(MACHADO DE ASSIS, 2008, vol. 3, p.1242).

Mesmo que apresente entusiasmo com a ideia de uma novidade, Machado de

Assis observa com certo desdém os novos tempos. O novo paradigma apresenta novas

roupagens para elementos antigos. O problema do autor está justamente neste ponto: o

novo não seria verdadeiramente novo, pois, ainda que o conceito tenha mudado e

apresentado novos elementos formais, os indivíduos eram os mesmos com as mesmas

limitações. “É desenganar. Gente que mamou o leite romântico pode meter dente no

rosbife naturalista; mas em lhe cheirando a teta gótica e oriental, deixa o melhor pedaço

de carne para correr à bebida da infância. Oh! Meu doce leite romântico!” (ASSIS,

2008, vol. 4, p. 946). O problema do autor é com os exageros e com as limitações

impostas à arte pelos próprios literatos que acabam se encantando com novas posturas.

Não peço, decerto, os estafados retratos do Romantismo decadente, pelo

contrário, alguma coisa há no Realismo que pode ser colhido em proveito da

imaginação e da arte. Mas sair de um excesso para cair em outro, não é

regenerar nada; é trocar o agente da corrupção. (MACHADO DE ASSIS,

2008, vol. 4, p.1241).

O Realismo criticado por Machado de Assis e que se faz presente de forma

pungente na literatura de Eça de Queirós é aquele exagerado, que almeja levar a

literatura para outro patamar – o da simples fotografia mecânica do Real imediato. Sua

pena vai de encontro às práticas estéticas que utilizam o literário como “reprodução

fotográfica e servil das coisas mínimas e ignóbeis” (ASSIS, 2008, vol.3, p. 1233). A

forma, o estilo, não deve escravizar as personagens. A máxima de Machado é que o

escritor seja homem de seu tempo e de seu país e isto não é, necessariamente, descrever

paisagens. Por isso, a paisagem social e psicológica são elementos essenciais em sua

literatura.

Outros escritores terão mostrado mais paisagem brasileira; nenhum mostrou

mais paisagem brasileira; nenhum mostrou mais profundamente o homem

brasileiro. Na sua obra, melhor do que em qualquer outra, encontramos uma

imagem de conjunto mais expressiva do fenômeno brasileiro normal, isto é,

da gente e da terra em suas manifestações normais, quotidianas, corrente. O

seu regionalismo carioca não o limita, pelo contrário: porque a capital do país

sempre foi o ponto de convergência, a súmula, o índice de todo o país.

(PEREIRA, apud ASSIS, 2008, p. 31).

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É por baixo da cortina do melodrama que se observa a real intenção do autor. A

contradição tão comum ao Romantismo, os fracassos, as tragédias, os dramas

acompanhados da morte – todos estes elementos não funcionam em Helena como um

recurso meramente estilístico. Há em Machado de Assis um ideal maior relacionado

com questões que se inserem numa revisão da subalternidade ou do espaço relegado

àqueles que se encontram nesta condição. A morte da protagonista, neste contexto,

funciona como uma vontade, um poder e um dos poderes mais nobres – o poder de

decidir-se pela própria vida. É este direito que não é dado à heroína criada por Eça de

Queirós. Ao passo que Helena contraria o paradigma romântico, Luísa é apenas uma

escrava das circunstâncias e das regras do Realismo. Machado chega até mesmo a

afirmar que a personagem não passa de um títere: “(...) a Luísa é um caráter negativo, e

no meio da ação ideada pelo autor, é antes um títere do que uma pessoa moral” (ASSIS,

2008, p. 1234). Fica claro que este maniqueísmo na construção das personagens

incomoda o bruxo do Cosme Velho. Afinal, Luísa é o ponto mais frágil da narrativa de

Eça, podendo inclusive ser considerada uma presença subalterna. Luísa é a mulher

burguesa que sofre com a monotonia de um casamento por conveniência e que vê no

adultério a possibilidade de realizar em sua vida o que observava na literatura que lia:

“Repito, é um títere; não quero dizer que não tenha nervos e músculos; não tem mesmo

outra coisa; não lhe peçam paixões nem remorsos; menos ainda consciência” (ASSIS

2008, p. 1234). Luísa é um títere, pois não morre com o peso de sua própria consciência

ou por remorso. Ela morre para atender a uma moralidade externa, um desejo do autor.

É desta ausência de poder no processo de decisão que descende “a inanidade de caráter

da heroína” (ASSIS, 2008, p. 1234).

Tomando por base as críticas citadas acima e refletindo sobre a presença da

realidade na obra machadiana, esta pesquisa se vê obrigada a discordar dos pontos de

vista presentes na análise de Afrânio Coutinho quando observa no autor uma primazia

dos valores estéticos. Enquanto para COUTINHO (2004) a realidade funcionaria para

Machado de Assis como mais um elemento utilizado com objetivo estilístico, a reflexão

aqui empreendida observa em suas obras uma relação intrínseca entre estética e política.

Sua obra é dominada pelo senso estético, pelos valores estéticos. O que nela

predomina não é a preocupação social, sem embargo de estar presente a

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imagem do social, a sociedade do seu tempo (...). Mas, a realidade, o meio,

para ele, constituíam apenas a base, a matéria-prima que, à imagem de todos

os grandes artistas, ele transfigurava e transformava em arte. Para ele, a

verdade histórica existia para ser transmutada em verdade estética.

(COUTINHO, 2004, p. 24)

Uma das críticas mais recorrentes aos romances de Machado de Assis é a

afirmação da ausência ou quase ausência de personagens subalternas em posição de

prestígio em suas narrativas. Contudo, quem seria Helena? Reitero que é nas sutilezas

da dobra que se estabelece o poder de derrisão da literatura machadiana. É visando

pensar quem seria Helena e sua representatividade nas linhas do romance que se propõe

empreender uma análise específica da personagem.

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O espelho quebrado

(…) apesar do perigo constante de invasão e rapina por seus algozes, e

certamente por isso mesmo, o desafio de Helena, Luís Garcia, Capitu e outros

tantos era afirmar a diferença no centro mesmo dos rituais da dominação

senhorial. (CHALHOUB, 1998, p.99)

Podemos enquadrar didaticamente Helena na primeira fase da produção de

Machado. É o terceiro romance escrito pelo autor que: “(...) ainda aprendiz de feiticeiro,

não explicitava com tanta acidez o seu ceticismo e suas críticas corrosivas”

(NASCIMENTO, 2002, p.55). Mas, Segundo Camargo: “De fato, essa distinção o

obriga a ser dois: o ingênuo escritor da ‘primeira fase’, e o cínico e irônico escritor da

‘segunda fase’ (CAMARGO, 2005, p.29)”. A tese aqui defendida é obrigada a concordar

com o tom de ironia na afirmação de Camargo: seria uma reflexão simplista considerar

os romances da chamada primeira fase como ingênuos. Estão sendo considerados livros

de uma época em que o modelo estético seria o Romantismo. Mas, creio que para o

bruxo do Cosme Velho estas divisões seriam meras trocas de tabuletas. Por isso, alguns

críticos são forçados a tentar enquadrar o autor em determinada escola literária ou o

consideram romântico, naturalista, realista, todos os termos seguidos da expressão avant

la lettre.

Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Das que então fiz, este me

era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e

diferentes páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco de mocidade e fé

ingênua. É claro que em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra

pertence ao seu tempo. (ASSIS, 2008, p.391)

Pode ser que os que considerem esta fase do autor como “ingênua”, levem em

consideração a advertência acima. Mas, antes de tomar conclusões apressadas, o leitor,

tal como já mencionei anteriormente, deve levar em consideração o tom ambíguo da

orientação do autor, pois não significa que Helena estivesse determinado a ser lido

somente com os princípios estéticos mais marcantes de uma época, a do Romantismo,

mas sim que determinadas leituras do romance só poderiam ocorrer anos mais tarde

definindo, assim, o caráter atemporal da obra literária.

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Helena é um romance que apresenta ao leitor a história do Brasil em meados do

século XIX, descrevendo sua situação política, social e econômica. Os fatos

apresentados na narrativa se dão durante a década de 1850. Entretanto, como assinala

Chalhoub, há na obra duas temporalidades ou historicidades: “Machado escreveu tal

romance em 1876, evocando práticas sociais e o ‘clima’ vigentes na década de 1850”.

Por isso o autor teve possibilidade de analisar e fazer a “(...) denúncia, dos

antagonismos e da violência inerentes às relações sociais vigentes durante ‘o tempo

saquarema’”. Segundo Chalhoub (2003): “Os capítulos iniciais do romance, e

especialmente o segundo, são uma cuidadosa descrição da ideologia senhorial”. É

possível perceber nestes capítulos a situação da classe senhorial e seus valores. Entre

estes, talvez o mais valorizado seja a chave para que possamos entender o paternalismo

em Helena: a vontade do chefe de família, sim “a vontade do chefe de família, do

senhor proprietário, é inviolável e é essa vontade que organiza e dá sentido às relações

sociais que a circundam (...)”. A vontade do senhor é tão forte que a família de Estácio,

filho do Conselheiro Vale, é obrigada a aceitar Helena; não seria só uma simples divisão

de herança, não, a “filha” bastarda viveria em comunhão com os demais membros da

família e todos deveriam tratá-la “com desvelo e carinho, como se de seu matrimônio

fosse”45

.

A narrativa se inicia com a morte do conselheiro Vale “O conselheiro Vale

morreu às 7 horas da noite de 25 de abril de 1859. Morreu de apoplexia fulminante,

pouco depois de cochilar a sesta” (ASSIS, 2008, p.391). Qual seria o motivo de iniciar o

romance com uma morte? Nada em Machado ocorre por acaso. O conselheiro morto

continuar a fazer valer sua voz, sua vontade: “a vontade senhorial carrega tamanha

inércia que continua a governar aos vivos postumamente”46

. Isto revela uma sociedade

que vive de glórias passadas, de uma tradição que valoriza o que foi. O regime

patriarcal é caracterizado pela inércia, por lugares sociais que são sempre ocupados

pelos mesmos grupos. É possível perceber isto no momento em que o narrador

apresenta ao leitor o conselheiro. Ele inicia falando do grande número de pessoas

presentes no enterro “(...) cerca de duzentas pessoas acompanharam o finado até a

morada última, achando-se representadas entre elas as primeiras classes da sociedade”

45

As citações apresentadas neste parágrafo estão presentes em CHALHOUB, 2003, p.37. 46

As citações apresentadas neste parágrafo estão presentes em CHALHOUB, 2003, p.37

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(ASSIS, 2008, p. 391). A presença das primeiras fileiras da hierarquia social no funeral

não está relacionada à importância do morto que não fizera grandes coisas em vida e

sim à representatividade de sua família pelas relações e manutenção da imagem passada

“O conselheiro, posto não figurasse em nenhum grande cargo do Estado, ocupava

elevado lugar na sociedade, pelas relações adquiridas, cabedais, educação e tradições de

família” (ASSIS, 2008, p. 391). O conselheiro representa uma parcela significativa da

sociedade patriarcal que, assim como Brás Cubas, passara inerte e ainda assim

conseguira manter o status social.

Em Helena, o cenário desenhado em torno da abertura do testamento do

conselheiro do Vale é descrição exemplar, se bem que levada às fronteiras do

absurdo, de um ritual de afirmação da vontade senhorial: o conselheiro é tão

conhecedor de suas prerrogativas – “a estrita justiça é a vontade de meu pai”,

diria Estácio [H278] – que resolve não só legar seus bens, mas também seus

sentimentos em relação a Helena. (CHALHOUB, 1998, p. 95).

A palavra do pater familias é apoiada pelas instituições que compõem o cenário

social e político da época. Uma instituição forte que se utiliza de diversos elementos

para manter os lugares definidos e para que não sejam alterados os status é a religião. O

catolicismo fortalecia o ethos do paternalismo vigente e estabelecia os lugares

subalternos (o lugar do negro, da mulher, dos agregados era estabelecido fisicamente e

ideologicamente). O posicionamento inferiorizado do subalterno era reforçado por

instituições que deveriam atuar em sua defesa: “(...) a ambiência católica faz ressaltar no

paternalismo os aspectos que, segundo Machado, ela deveria coibir: a opressão, o

desrespeito, a venalidade a desconfiança, a permanente disposição à violência etc.”

(SCHWARZ, 2012, p. 118).

Helena é apenas um dos exemplos de presença feminina na obra ficcional de

Machado de Assis. Contudo, seguindo o pensamento expressado por Lúcia Miguel

Pereira de que os tipos femininos do autor são representações autobiográficas, é

possível defender a tese de que, entre estas, Helena seria a mais importante.

A heroína representa a figura de mulher que vive através do favor numa

sociedade arquitetada para tornar sua presença nula, uma simples sombra. Contudo,

“(...) a vigência do enredo da dominação paternalista não significava que os

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subordinados estavam passivos, incapazes de perseguir objetivos próprios,

impossibilitados de afirmar a diferença” (CAMARGO, 2005, p.48). E é esta a postura

que a protagonista assume, a de quem não se submete facilmente à ordem que a oprime.

Sendo assim, ela se expõe ao risco de “afirmar a diferença no centro mesmo dos rituais

da dominação senhorial”. (CAMARGO, 2005, p.48). Helena agia de tal forma que

armava os elementos da equação de um modo que parecesse que as outras personagens

(em particular Estácio) controlavam os resultados. Na verdade a moça já conhecia

previamente os cálculos e resultados. Assim ela agiu quando queria cavalgar e deveria

pedir autorização a seu “irmão”. Helena inverte o jogo e quebra as regras, mentindo ao

afirmar que não sabia montar e que desejava aprender.

De acordo com Camargo: “A personagem, que se mostrava bondosa e

compassiva, cheia de virtudes, como espelho de boa moça e boa filha, de acordo com os

padrões morais românticos, irá mostrar-se mais ambiciosa, e até mesmo mentirosa, falsa

e dissimulada (...)” (CAMARGO, 2005, p.38). Porém, o posicionamento do crítico

deixa de levar em consideração que, ainda que as atitudes da protagonista sejam

marcadas pela mentira, cabe repensar se estaria Helena somente cumprindo um papel.

Não seriam as mentiras, a falsidade, a dissimulação, valores da sociedade e da época

apresentada na narrativa? Camargo também afirma que:

Assim, Helena, por exemplo, entra em uma família que não é a sua e, uma

vez instalada, faz de tudo para tornar-se membro dessa família, mimetizando

os gostos e caprichos de cada um dos outros membros, agradando a todos,

disfarçando-se em algo que não é senão a fabricação de um outro eu”.

(CAMARGO, 2005, p. 31)

A análise da personagem apresentada por Camargo está correta. Helena fabricara

outro eu, vivera um engano, uma máscara, um espelho. Contudo, cabe refletir sobre a

razão deste processo. Vivendo em uma sociedade paternalista e opressora, a heroína

encontrara uma forma de sobreviver ao regime sem expor-se de forma direta. Por isso,

ela mimetiza o próprio funcionamento social da época, a sociedade da simulação e da

verossimilhança, em que o parecer é superior ao ser.

Além das qualidades naturais, possuía Helena algumas prendas de sociedade,

que a tornavam aceita a todos, e mudaram em parte o teor da vida da família.

Não falo da magnífica voz de contralto, nem da correção com que sabia usar

dela, porque ainda então, estando fresca a memória do conselheiro, não tivera

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ocasião de fazer-se ouvir. Era pianista distinta, sabia desenho, falava

corretamente a língua francesa, um pouco a inglesa e a italiana. Entendia de

costura e bordados e toda a sorte de trabalhos feminis. Conversava com graça

e lia admiravelmente. Mediante os seus recursos, e muita paciência, arte e

resignação – não humilde, mas digna -, conseguia polir os ásperos, atrair os

indiferentes e domar os hostis. (ASSIS, 2008, p. 403).

As qualidades apresentadas acima poderiam ser facilmente interpretadas como

as requeridas de uma heroína romântica. Todas estão relacionadas ao ideal de mulher

buscado pelo romantismo. Porém, este recurso nada mais é que um ardil utilizado pelo

autor para anuviar o leitor das reais características de Helena. As que mais interessam

nesta tese são as que estão relacionadas com a dissimulação, são os “(...) predicados

próprios a captar a confiança e a afeição da família” (ASSIS, 2008, p. 403). Ela era

“frívola com os frívolos, grave com o que o eram” (ASSIS, 2008, p. 403), mas “O que a

tornava superior (...) era a arte de acomodar-se às circunstâncias do momento e a toda a

casta de espíritos, arte preciosa, que faz hábeis os homens e estimáveis as mulheres”

(ASSIS, 2008, p. 403). Esta arte não faz estimáveis os homens, pois estes já gozam de

prestígio social próprio de uma sociedade que coloca a mulher em situação de

subalternidade. Contudo, a capacidade de acomodar-se é um requisito para a

sobrevivência pacífica do subalterno em um meio social que o submete. E assim, ela

“conseguia polir os ásperos, atrair os indiferentes e domar os hostis” (ASSIS, 2008, p.

403).

No início, havia certa resistência por parte dos servos, estes viam com receio a

chegada de uma parenta desconhecida. Afinal, neste cenário tão delimitado, a inclusão

de um diferente poderia alterar toda a configuração da casa e dificultar ainda mais a

vida dos dependentes. Contudo, o posicionamento da filha bastarda do conselheiro

conquista a todos. Sua simplicidade era mesmo gratuita e desinteressada.

(…) Dos próprios escravos não obteve Helena desde logo a simpatia e boa

vontade; esses pautavam os sentimentos pelos de D. Úrsula. Servos de uma

família, viam com desafeto e ciúme a parenta nova, ali trazida por um ato de

generosidade. Mas também a esses venceu o tempo. Um só de tantos pareceu

vê-la desde princípio com olhos amigos; era um rapaz de dezesseis anos,

chamado Vicente, cria da casa e particularmente estimado do conselheiro.

Talvez esta última circunstância o ligou desde logo à família do seu senhor.

Despida de interesse, porque a esperança da liberdade, se a podia haver, era

precária e remota, a afeição de Vicente não era menos viva e sincera;

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faltando-lhe os gozos próprios do afeto, — a familiaridade e o contato, —

condenado a viver da contemplação e da memória, a não beijar sequer a mão

que o abençoava, limitado e distanciado pelos costumes, pelo respeito e pelos

instintos, Vicente foi, não obstante, um fiel servidor de Helena, seu advogado

convicto nos julgamentos da senzala. (ASSIS, 2008, p.404)

O leitor conhecerá as características mais íntimas de Helena quando passar a

observar o seu comportamento. A descrição feita pelo narrador é importante, mas quase

sempre passa pelo filtro romântico. As ações é que revelam uma mulher que foge dos

moldes dos romantismos e até mesmo do ideal feminino da época. Ela se coloca fora

dos padrões, dos estereótipos de mulher e até mesmo do que era esperado de um

subalterno, de um agregado. Helena consegue por meio da dissimulação se desprender

por vários momentos das amarras do favor. Ela possui opinião própria, rompe com o

tradicionalismo, condena a falsa moral da elite brasileira e demonstra o seu

descontentamento para com o regime escravista e patriarcal.

Em uma das passagens mais interessantes da narrativa, Helena faz um passeio a

cavalo com Estácio e durante a cavalgada encontram um preto dividindo uma laranja

com duas mulas. Pela cena, o narrador admite a possibilidade de que o homem seja uma

pessoa escravizada pela simplicidade de suas vestimentas. Aparentemente, seria uma

cena comum, todavia passa a ser focalizada por Estácio.

O preto de quem Estácio falara, estava sentado no capim, descascando uma

laranja, enquanto a primeira das duas mulas que conduzia, olhava

filosoficamente para ele. O preto não atendia aos dois cavaleiros que se

aproximavam. Ia esburgando a fruta e deitando os pedaços de casca ao

focinho do animal, que fazia apenas um movimento de cabeça, com o que

parecia alegrá-lo infinitamente. Era homem de cerca de quarenta anos; ao

parecer, escravo. As roupas eram rafadas; o chapéu que lhe cobria a cabeça,

tinha já uma cor inverossímil. No entanto, o rosto exprimia a plenitude da

satisfação; em todo o caso, a serenidade do espírito. (ASSIS, 2008, p. 413-

414).

Estácio logo utiliza a cena para fazer um discurso didático para a irmã sobre a

superioridade dos valores da riqueza. O rapaz deixa clara sua visão elitista e patriarcal

da vida: “(…) A riqueza compra até o tempo, que é o mais precioso e fugidio bem que

nos coube. Vê aquele preto que ali está? Para fazer o mesmo trajeto que nós, terá de

gastar, a pé, mais uma hora ou quase.” (ASSIS, 1997, p.18). Por meio da cena descrita e

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das atitudes de Estácio é possível percebê-lo como representação dos homens da elite

patriarcal brasileira que pode ser caracterizada pela visão utilitária da vida.

— Valem muito os bens da fortuna, dizia Estácio; eles dão a maior felicidade

da Terra, que é a independência absoluta. Nunca experimentei a necessidade;

mas imagino que o pior que há nela não é a privação de alguns apetites ou

desejos, de sua natureza transitórios, mas sim essa escravidão moral que

submete o homem aos outros homens. (ASSIS, 2008, p. 413).

A atitude esperada de uma mulher passiva em uma sociedade patriarcal seria a

de calar-se ou de concordar com os posicionamentos do irmão, porém Helena não é o

que se espera do estereótipo feminino. Ela se aproveita deste discurso de Estácio para

também utilizar a cena e analisá-la sob outro ponto de vista. Ela defende um

pensamento complexo sobre o tempo e ainda reafirma a dignidade do indivíduo

escravizado. Há uma humanização daquele indivíduo que era considerado um animal

pela elite escravocrata. Ela se vale de argumento sobre o modo de aproveitamento do

tempo. Discute que a questão não é fazer do tempo algo que se possa dominar. O tempo

do senhor é o mesmo tempo daquele que possui o escravizado; a forma de seu

aproveitamento é que pode ser diferente. O narrador evidencia a serenidade e satisfação

de que desfruta o escravizado naquele raro momento de um dia em que vive sua

liberdade.

A reflexão feita pela protagonista sobre a relatividade do tempo e seu uso

provoca um choque em Estácio que a compara a um homem. Naquela sociedade

patriarcal, somente um homem poderia expressar-se desta forma.

— Tem razão, disse Helena: aquele homem gastará muito mais tempo do que

nós em caminhar. Mas não é isto uma simples questão de ponto de vista? A

rigor, o tempo corre do mesmo modo, quer o esperdicemos, quer o

economizemos. O essencial não é fazer muita coisa no menor prazo; é fazer

muita coisa aprazível ou útil. Para aquele preto o mais aprazível é, talvez,

esse mesmo caminhar a pé, que lhe alongará a jornada, e lhe fará esquecer o

cativeiro, se é cativo. É uma hora de pura liberdade. (ASSIS, 2008, p. 414).

As ações da protagonista revelam uma personalidade contestadora e

demasiadamente crítica que se concilia com uma postura doce e educada. Essas

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qualidades impressionam Estácio. No momento em que Dr. Camargo sugere que Estácio

entre para o ramo da política, este chega ao ponto de afirmar que iria consultar Helena

sobre o assunto, pois “há nela muita reflexão escondida, uma razão clara e forte, em boa

harmonia com as suas outras qualidades feminis” (ASSIS, 2008, p.420). O

posicionamento de Estácio causa certo desconforto em Dr. Camargo que chega a

questionar: “Helena! – disse ele com alguma hesitação. – Que vem fazer sua irmã neste

negócio?” (ASSIS, 2008, p. 420). O que assusta Dr. Camargo é o fato de Estácio dar

tanta importância aos conselhos de uma mulher, ainda mais em se tratando de política –

assunto que naquela época era do âmbito e de interesses específicos do gênero

masculino.

No livro fica evidente a forma como Helena manipula as pessoas dissimulando

suas emoções. Com seu comportamento doce, ela consegue realizar seus desejos, expor

seus argumentos e convencer as pessoas. Uma das ações mais interessante da

protagonista, como já acentuado, é quando ela resolve cavalgar. Helena usa o cálculo

para fazer valer sua vontade. Ela queria cavalgar, mas não seria prudente ir sozinha, por

isso diz que queria aprender a cavalgar e logo seu irmão se coloca à disposição para

ensiná-la. Estácio explica para a irmã a necessidade de dominar, no primeiro momento,

o medo e esta responde com uma explicação filosófica: “— O medo? O medo é um

preconceito dos nervos. E um preconceito desfaz-se; basta a simples reflexão.” (ASSIS,

2008, p. 411). Ele questiona a irmã de onde tirava aquelas ideias e ela responde: “Não

são ideias, são sentimentos. Não se aprendem; trazem-se no coração.” (ASSIS, 2008, p.

411). Este conjunto de ações é necessário pelo fato de Helena estar localizada em

posição não muito diferente da que possuía o escravizado na hierarquia social.

Segundo Chalhoub existiriam na hierarquia da classe senhorial brasileira duas

posições de base: uma seria a escravidão assegurada pela força e a outra seria a dos

dependentes, “que viviam de favores” e que “viam-se envolvidos na teia complexa do

favor, que garantia a subordinação da pessoa por meio de mecanismos de proteção com

contraprestação de serviços e obediência”. (CHALHOUB, 2003, p. 48) Helena, como já

dito, é uma representante da classe dos dependentes. “(...) Conselheiro Vale, que lega a

seus herdeiros a moça Helena, logo revelada à família como filha natural do morto. Esse

capítulo marca a construção da personagem feminina como uma mulher escrita”

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(CAMARGO, 2005, p. 37). Antes da morte e do respectivo testamento do Conselheiro

Vale, Helena não existia, era uma anônima representando diversos outros anônimos. O

gesto do seu protetor proporciona à protagonista a ascensão social marcada pelo

recebimento de um título e um nome. E até mesmo por isso, a protagonista vive um

conflito que Chalhoub descreve:

Enfim, uma metade de Helena estava na posição de compreender

inteiramente o sofrimento de um dependente – papai Salvador -, ao passo que

a outra metade não podia deixar de reconhecer e se sentir grata pela proteção

oferecida por um senhor/proprietário – papai Vale, o Conselheiro. Num

momento, o próprio Salvador, ao descrever a situação, afirma que ‘o pai

lutava com o pai’. (CHALHOUB, 2003, p. 37).

Talvez o conflito fosse ainda mais profundo e complicado. Afinal era Helena que

lutava contra Helena. A pobreza financeira da verdadeira e a pobreza de espírito a que

deveria se submeter aceitando a máscara da segunda. O conflito vivido pela

protagonista é provocado pela necessidade de viver simulando para continuar

desfrutando das benesses do sistema paternalista. Contudo, os benefícios não surgem

sem uma contrapartida e o preço a ser pago seria o de seguir com o processo de

simulação. Helena, todavia, não consegue se submeter por muito tempo à situação. Em

grande parte, o que a faz desistir da simulação é a aproximação de seu pai verdadeiro.

Ainda a propósito do pai de Helena, Camargo afirma: “E é lá que mora o pai, chamado

Salvador, mais uma ironia machadiana, já que o pai é sua perdição” (CAMARGO,

3005, p.). Tal como afirma Camargo, há uma ironia no nome do pai, mas há também um

paradoxo. Salvador é a perdição para a mascarada e simulada Helena, mas, por outro

lado, é a salvação da verdadeira Helena e a morte da máscara com que tentara exercer

com artifícios que lhe causavam imensa dor.

Outro ponto da narrativa que gera discussão é a morte da heroína. Seria possível

partir da tese de que a morte de Helena seria um recurso romântico? Porém, seguindo a

linha de pensamento da reflexão aqui empreendida, pode-se pensar que a morte da

protagonista funcionaria como um trunfo apresentado pelo autor: para que a

personagem fizesse parte daquela sociedade, era preciso que a verdadeira Helena

morresse e ficasse a simulada. Há várias personagens que representam esta grande

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parcela da sociedade escravocrata e paternalista que consegue viver a verossimilhança,

mas a máscara não ficava bem em Helena, não se encaixava, assim como também não

se encaixou em Prudêncio47

, personagem do romance Memórias Póstumas de Brás

Cubas. Na primeira, o ato de tentar ser o que não era causou-lhe dor, desespero, aflição

e humilhação; no segundo, tornou-o motivo de chacota.

Mesmo não sendo possível a Helena redimir-se do mal causado, ela

permanecerá como ferida cravada e gravada na memória de todos. A

imortalidade viria através da morte. (...) Helena é quem permanecerá na

memória das pessoas da família e será ‘canonizada’ pela crítica literária como

aquela que morreu envergonhada pelos atos que cometeu. (CAMARGO,

2005, p.65)

Na citação acima é possível perceber uma crítica às ações da protagonista

enquanto atuava com face dissimulada. Em vida, Helena consegue manipular todas as

outras personagens utilizando para isto a linguagem das sutilezas. O romance ressalta

um conjunto de hábitos na protagonista que dão a ela condição de agradar até mesmo

àqueles que lhe têm aversão. Porém, ao morrer, ela consegue frustrar o leitor fugindo

dos frames românticos e mantendo sua postura, já que prefere morrer a negar sua

origem e continuar seguindo a vontade paternalista da família abastada. Talvez esse ato

extremo não fosse necessário para que fosse redimida. Até mesmo seguindo a tradição

de muitas narrativas românticas seria possível que ela conseguisse o perdão e tivesse um

amor correspondido pela total ausência da sombra de uma relação incestuosa.

Todas as descrições da personagem Helena estão carregadas de elementos

românticos, contudo, ao mesmo tempo, sempre estão acompanhadas de críticas ao

Romantismo. A cena da morte de Helena é a representação da genialidade machadiana

na descrição e na utilização das tintas valorizadas pelos autores românticos. Os

elementos da cena apresentam vários loci communis que caracterizariam a morte de uma

heroína romântica. Há o desespero de Estácio que, ainda que não fosse religioso, faz

uma prece para Deus pela vida de Helena, uma prece genuína “sem hipocrisia nem

dúvida”.

47 Helena, por inadequação ao sistema e por não conseguir usar a máscara, acaba se anulando e

sofrendo de tal forma que a morte foi a solução encontrada. Prudêncio, por sua vez, não consegue

utilizar a máscara de senhor e assume até o fim da narrativa a posição de subalternizado.

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Estácio saiu dali, para ir, longe, desabafar o desespero; desceu à chácara,

vagou por ela delirante, a soluçar como uma criança, ora abraçado a uma

árvore, ora ajoelhado e pedindo a Deus a vida de Helena. O coração do moço

não conhecia o fervor religioso; mas a imagem da morte deu-lhe o que a vida

lhe levara, e ele rezou, rezou sozinho, sem hipocrisia nem dúvida. (ASSIS,

2008, p. 504)

Há o choro de todas as personagens. A presença do capelão, a subida trôpega de

Estevão pelas escadas e o beijo derradeiro e único dos dois apaixonados. A pena de

Machado possui a capacidade de construir uma cena do mainstream Romântico como

poucos. O quadro pintado apresenta o estereótipo de uma morte romântica com

maestria.

Um escravo veio chamar Estácio à pressa; ele subiu trôpego as escadas,

atravessou as salas, entrou desvairado no quarto, e foi cair de joelhos, quase

de bruços, junto ao leito de Helena. Os olhos desta, já volvidos para a

eternidade, deitaram um derradeiro olhar para a terra, e foi Estácio que o

recebeu, — olhar de amor, de saudade e de promessa. (ASSIS, 2008, p. 505).

Porém, a crítica de Machado de Assis se faz presente nas entrelinhas, nos

detalhes. O último beijo daquela cena não foi o dos apaixonados e sim o de um pai em

uma filha. Talvez, a cena da morte de Helena seja a mais linda das descrições

românticas construídas por Machado de Assis. Todas as cores do romantismo pintadas

em tons carregado, porém o frame final desconstrói todo o quadro. Helena morre com

direito ao último suspiro: Adeus! — suspirou a alma de Helena, rompendo o invólucro

gentil. Era defunta. (ASSIS, 2008, p. 505). Estácio fica consternado como um bom

protagonista romântico: “— Perdi tudo, padre-mestre! gemeu Estácio.” (ASSIS, 2008,

p. 505). Mas, enquanto o noivo está transtornado, a futura noiva e seu pai já aguardam o

casamento futuro: “(...) a noiva de Estácio, consternada com a morte de Helena, e

aturdida com a lúgubre cerimônia, recolhia-se tristemente ao quarto de dormir, e recebia

à porta o terceiro beijo do pai.” (ASSIS, 2008, p. 505). Dr. Camargo beija a filha

Eugênia no momento em que Helena é sepultada. Este derradeiro beijo desconstrói toda

a cena detalhista anterior. Os nomes na literatura machadiana não são escolhidos de

forma aleatória. Eugênia é a bem nascida.

A derrota de Helena, a sua morte, é a única solução possível – não apenas

para resolver uma situação sentimental impossível, mas para demonstrar que

apenas triunfam os privilegiados da sorte, os bem dotados de nome e situação

social. (...) Os vencedores são os que se lançam para o futuro, sem remorsos

ou compromissos. Helena não se liberta do passado, por isto condena a si

própria. Não se submete inteiramente às regras que seus parceiros

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estabelecem para que ela entre no jogo cínico do mundo a que ascende. O

dinheiro do pai adotivo garantiria sua vitória, um casamento oportuno.

(ALMEIDA, apud Assis, 1998, p. 5)

Eugênia é o oposto de Helena. A protagonista não consegue fingir, não consegue

dissimular e por isso, não poderia ser bem sucedida no casamento com um senhor da

elite. Já Eugênia é a representante feminina da elite brasileira. Helena não apresentava

sinais de doença alguma. Porém, quando percebe sua situação e as dificuldades que

enfrentaria ao viver naquela sociedade da verossimilhança, ela adoece, desmaia e, logo

depois, morre.

— Não posso ser outra coisa a seus olhos, prosseguiu a moça, tristemente.

Quem o convencerá de que a declaração de seu pai não foi obtida por

artifícios de minha mãe? Quem lhe dará a prova de que, cedendo aos rogos

de meu pai, não fiz mais do que executar um plano preparado já? São dúvidas

que lhe hão de envenenar o sentimento e tornar-me suspeita a seus olhos.

Resista quem puder; é-me impossível encarar semelhante futuro! (...) Ela

fitou no moço uns olhos de corça moribunda; as pernas fraquearam, e o corpo

esmorecido iria a terra, se lho não sustivessem as mãos de Estácio. (ASSIS,

2008, p. 503)

Ela não pertence àquele espaço, seria sempre um estorvo para a família Vale48

.

Por isso, a solução mais centrada na situação real de uma mulher em situação de

subalternidade, que se apaixona pelo senhor patriarcal e que não consegue dissimular é

a morte. Eugênia é a personagem que merece triunfar naquela sociedade, é a que merece

os beijos do pai e, portanto, merece as benesses do poder patriarcal. Assim, a mais bela

cena romântica se transforma em uma severa crítica à sociedade de aparências e aos

modus operandi da elite patriarcal brasileira do século XIX.

A morte de Helena pode ser entendida como um recurso utilizado pelo autor para

demonstrar que não existem para o subalterno apenas os caminhos da simulação ou da

dissimulação, porque é possível manter as suas identidades. Mas, para isso, há um preço

e nem todos estão dispostos a pagar.

A construção da personagem Helena revela grande importância quando analisada

48 O título inicial do livro seria Helena do Vale e isto evidenciaria de forma mais forte a presença da voz

patriarcal no romance. Contudo, a mudança para Helena reforça o estudo do caráter da protagonista.

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a partir dos estudos da subalternidade, primeiro, porque o romance de Assis coloca uma

subalterna como protagonista; segundo, por deixar clara a condição de similaridade

entre o agregado e o escravizado. Esta relação de similaridade é constatada até mesmo

no modo como a protagonista se comporta em relação aos escravizados. Helena não se

coloca de forma alguma em uma posição de superioridade. Entre a heroína e Vicente há

uma amizade sincera, coisa difícil de ser encontrada em cenário carregado de interesses.

Tal como alerta Chalhoub: “Escravidão e paternalismo, cativeiro e dependência pessoal,

pareciam duas faces de uma mesma moeda” (CHALHOUB, 2003, p. 135).

A questão da escravidão, nos textos machadianos, está presente em dimensões

que se inserem em um plano maior a questão do subalterno, tal como ocorre quando

Helena se iguala ao escravizado. Como subalterna, buscando sobreviver em um meio

hostil e opressor, a protagonista acaba também utilizando “as negociações pelas quais os

subalternos, sejam eles escravos ou negros e mulatos forros, sejam agregados de uma

forma geral, conciliam seus desejos e necessidades sem infringir a ‘lei’ senhorial (...)”

(VITAL, 2012, p.24).

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Brás Cubas e o riso irônico

A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar,

pago-te com um piparote, e adeus (ASSIS, 2008, p. 626).

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se

poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. (...)Moisés, que também

contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo; diferença radical entre este livro e o

Pentateuco. (ASSIS, 2008, p. 626)

Assim começa o romance e já no início do livro percebemos o tom debochado e

impudico da obra e seus alvos: primeiro, ataca o leitor (e quem seria esse leitor?),

segundo, a religião – a classe senhorial e suas tradições. Machado cria “um narrador

voluntariamente importuno e sem credibilidade” (SCHWARZ, 2000, p. 19), entretanto o

mune de pompa e de linguagem requintada. Não é um homem qualquer que toma a

palavra e sim um cidadão (ainda que morto), um representante da alta sociedade

brasileira.

O riso é característica presente em Memórias Póstumas de Brás Cubas e tem o

poder de rebaixar os valores considerados altos: “(...) trata-se da satisfação maligna de

rebaixar e vexar, de anunciar que os desplantes do narrador não vão se deter diante de

nada, que não ficará pedra sobre pedra (...)” (Camargos, 2005, p.21).O riso destruidor

de Brás (e de Machado) é tão bem dissimulado que faz com que seu leitor (ou leitora),

da época, de sua própria futilidade, risse de si enquanto acreditava estar rindo do outro.

Sendo assim, como acentua Nascimento (2002), “somente rasgando a cortina é que se

percebe a peça que o autor nos prepara. Seu humor (para além de negro) é um corte que

ri. Um riso ainda e sempre a esvair-se das chagas do corpo social brasileiro” (p.62).

A técnica do narrador machadiano utilizada para narrar a história de Brás Cubas é

a afronta demolidora da elite brasileira e do próprio narrador, pois é possível dizer que o

desrespeito por si mesmo é similar ao que ele tem pelos outros. Machado de Assis,

através do seu texto, faz tremer as bases da infra-estrutura da classe senhorial,

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paternalista e escravocrata, brasileira. Chalhoub lembra em seu livro o tratamento que o

narrador machadiano em Memórias Póstumas de Brás Cubas dá ao leitor e ao crítico de

sua obra. No capítulo LXXII, é descrito o leitor como um sujeito magro, amarelo,

grisalho, estrábico, míope, calvo e corcunda. Ironicamente, descreve o crítico como

aquele que “vira e revira as palavras, examina-as por dentro e por fora, e finalmente

desanima de tentar entender os seus significados”. O teórico afirma que o romance

machadiano é de difícil leitura e compreensão, pois “(...) é marcado pelo tom ambíguo

de suas frases, termos e intenções.” (Chalhoub, 2003, p.48)

A volubilidade do narrador de Memórias póstumas de Brás Cubas revela uma

elite brasileira do século XIX também volúvel e inconstante. Esse narrador que é ao

mesmo tempo um representante da classe mais alta na hierarquia social e um morto

demonstra a mais fina capacidade irônica de Machado de Assis. A “mobilidade

camaleônica do narrador” (SCHWARZ, 1997, p. 187) possibilita duras críticas ao grupo

de que ele faz parte. Mas essa atitude só lhe é possível por fazer parte do grupo que

critica e por estar morto. O defunto-autor traz para a narrativa um aspecto inusitado e

faz um pacto com o leitor de não representação da realidade. No entanto, o romance

poderia ser caracterizado como um dos mais realistas e críticos da carreira literária

machadiana. Seguindo esta pista, Ronaldes de Melo e Souza vê o romance como uma

expressão tragicômica e analisa o narrador como um mímico-dramático “que difere

sempre de si mesmo, que se despersonaliza a fim de personificar cada um dos papéis

disponibilizados pela diversidade qualitativa da atuação histórica dos homens”.

(SOUZA, 2006, p.10). Por vezes, é possível encontrar em Brás Cubas uma espécie de

bobo da corte que imbuído de sua máscara a utiliza para desferir duros golpes em seu

público. Cabe, neste momento, questionar quem é o sujeito que fala no decorrer da

narrativa. De quem é a voz que fala no romance?

‘Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; eu não tenho

que fazer; e, realmente, expedir magros capítulos para esse mundo sempre é

tarefa que distrai um pouco da eternidade...’ Fala Brás Cubas? Fala um

homem que morreu para a vida e só conservou a paixão de analisar ou a

mania de escrever, como o Trigorin de Tchekhov, sujeito dúbio que é ao

mesmo tempo Brás Cubas e Machado de Assis. E esse homem escrevia livros

como só um morto poderia escrever, porque vivia fora do mundo, no seu

subterrâneo eterno. (AUGUSTO MEYER IN ASSIS, 2008, p. 30)

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Os bobos, os loucos, as crianças e os que estão no limiar entre vida e morte

gozam de certa liberdade para falar o que pensam. O que dizer então de um bobo que é

ao mesmo tempo um defunto-autor? A voz narrativa pertence a um “poeta camaleônico”

(SOUZA, 2006, p. 10) que tal como na cena do delírio se converte em uma infinidade

de papéis sempre com o mesmo objetivo: destruir todos os valores, tradições e

ideologias da elite patriarcal e escravocrata brasileira. Talvez por isso possa se

considerar o nome Brás como uma forma onomatopaica de representar a destruição

empreendida pelo autor.

Brás se despersonaliza no momento em que passa a ser a representação de seu

próprio caráter em falsidade: “pressupõe-se uma pessoa, particularmente uma pessoa

sem personalidade” (SOUZA, 2006, p. 70). Ele passa a representar uma persona ao

mesmo tempo que se mostra como um “fingidor de toda persona correspondente a

qualquer posição ideológica” (SOUZA, 2006: 70). Assumindo um complexo recurso de

simulação, o narrador deixa de ser o que conduz a história para que sua máscara ocupe

esta função. O protagonista é assim, nas mãos do autor, um títere que serve para expor a

falsidade reinante no meio social. Nas mãos do autor, ele se faz porta-voz do cinismo

machadiano.

Tamanho é o processo de simulação nesta obra de Machado de Assis que Bosi

chega ao ponto de discordar do termo máscara: “eu considero problemática a utilização

da noção de máscara porque naturalmente supõe que atrás dela exista a cara

propriamente dita. E uma das grandes novidades do Machado de Assis é a ausência de

uma cara atrás da máscara” (BOSI, 1982, p. 334). Quando o simulador alcança por

completo o seu ideal de representação, fica impossível retornar ao que era. Esta

impossibilidade também se mostra em Bentinho e seu desejo de retornar a ser o que

fora. Os simuladores passam a ser a máscara e o que representavam passa a ser a

subjetividade destes entes.

Roberto Schwarz (1997) também alerta para o caráter volúvel do narrador: “O

que vemos é que, quase que de frase a frase, o narrador vai mudando de personagem.

Quer dizer, num momento ele é metódico e esclarecido, noutro ele está na moda, noutro

ele é irreverente...” (SCHWARZ 1997, p. 43). Se Macunaíma é o herói sem nenhum

caráter da literatura brasileira, Brás Cubas é o herói que possui várias subjetividades e

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que muda de máscaras conforme a situação. Schwarz relaciona a volubilidade do

protagonista com a realidade sociopolítica da sociedade brasileira do século XIX. O

Brasil vivia a agonia do sistema escravocrata e do governo monárquico. Há uma

mudança no caráter nacional no que seria a identidade brasileira. Além disso, a

intelectualidade brasileira importava as ideias modernizantes da Europa e as tentava

adaptar à cor e geografia local. Isto tudo tentando manter a elite patriarcal, as amarras

do favor e das relações governadas por interesses.

No que diz respeito ao ideário liberal, encontramos uma variação de

apreciações correlata. Necessário à organização e à identidade do novo

Estado e das elites, ele representa progresso. Por outro lado não expressa

nada das relações de trabalho efetivas, as quais recusa ou desconhece por

princípio, sem prejuízo de conviver familiarmente com elas. Daí um

funcionamento especial, sem compromisso com as obrigações cognitiva e

crítica do Liberalismo, o que abala a credibilidade deste último e lhe

imprime, a par da feição esclarecida, um quê de gratuidade, incongruente e

iníquo. Esta complementaridade entre instituições burguesas e coloniais

esteve na origem da nacionalidade e até hoje não desapareceu por completo

(SCHWARZ, 1997: 37-38).

Rindo de si era ao mesmo tempo rir de toda uma classe. Assim, Brás Cubas se

converte em “retrato de um personagem que se revela em seu próprio ser a natureza

ambígua e reticente da condição humana” (SOUZA, 2006, p. 118). Ao rebaixar todos,

parte do seu próprio autorebaixamento para atacar o bacharelismo: “Bacharelo-me”.

Sua formação era de fachada tal como ocorria com outros que viviam em Portugal uma

vida boêmia e voltavam com o diploma do curso de Direito: “estudei-as muito

mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel” (ASSIS, 2008, p. 654). Os

rapazolas da elite brasileira faziam a formação em Portugal, entretanto este processo

não era, sob o ponto de vista do narrador, em disciplinas relacionadas à prática jurídica:

Tinha conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; era um

acadêmico estróina, superficial, tumultuário e petulante, dado às aventuras,

fazendo romantismo prático e liberalismo teórico, vivendo na pura fé dos

olhos pretos e das constituições escritas. (ASSIS, 2008, p. 654).

Brás Cubas ri de si mesmo com tamanha naturalidade que parece até mesmo

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estar rindo de outro. De certa forma, esse outro de que ele ri pode ser caracterizado

como ele mesmo no passado, enquanto estava vivo, o “eu de outrora” chega ele a

afirmar. Mas pode ser também o eu que ele representa, ou seja, o estereótipo de um

homem da elite patriarcal. Essa estratégia é vista por Souza quando diz que “a ironia

suprema do narrador machadiano decorre do reconhecimento de que o ser do mundo e

do homem se manifesta como duplicidade originária, e não como unicidade

ontoteológica” (SOUZA, 2006, 35). O riso da personagem é um diagnóstico da doença

social que assolava a realidade nacional.

Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia, que

Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de

transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, – de um riso descompassado e

idiota (ASSIS, 1996, p. 28).

Isto tudo só é possível por se valer de sua autoridade de defunto: “talvez espante

ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a

franqueza é a primeira virtude de um defunto” (ASSIS, 1997: 94). A morte para Brás

Cubas caracteriza a liberdade assim como a morte de Helena, embora de forma

diferente. O protagonista se vê livre das amarras sociais e da necessidade de simular o

tempo todo. Durante a vida é preciso seguir o protocolo, o trato social:

Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente

pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se,

despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de

ser! (ASSIS, 2008, p. 658).

Este pensamento corrobora a tese desenvolvida por Schwarz (1997, p.58) de

“universalização da volubilidade”. Machado deixa claro que ninguém escapa do

processo de fingimento vivido pela sociedade, seja senhor ou escravizado, senhor ou

subalterno, todos fingem ser o que não são e fingem sentir o que não sentem. A

volubilidade corrompe todas as esferas, a filosofia sem prática, o discurso que destoa da

ação. No âmbito humano e pessoal, todos estão corrompidos e, conforme afirma

Schwarz, a volubilidade “é o pendor permanente de todos; designaria, neste caso, uma

insuficiência metafísica do ser humano. Por outro lado, não lhe faltam também as

conotações de cor local, mais genéricas do que uma propensão de fulano ou sicrano,

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mas nem por isso universais” (p. 59).

Brás Cubas não possui um corpo, é só uma voz e, portanto, a personagem se

constitui enquanto discurso. Ele não existe como uma entidade viva, visível e física. A

única coisa que a personagem possui na narrativa é a possibilidade de falar. A lógica que

estrutura o texto é a razão cínica e debochada do narrador. A voz patriarcal, a voz do

senhor morto permanece, possuindo o poder de sua palavra, assim como ocorre em

Helena com a voz do conselheiro Vale. Porém, ainda que seja ressaltada a força do

discurso patriarcal, é interessante a forma utilizada por Machado de Assis para guerrear

contra a situação opressora em que vive. Ele não ataca diretamente o sistema de

hierarquias fixas da sociedade brasileira do século XIX, assim como não constrói heróis

subalternos no sentido clássico do termo. Contudo, ele faz uso de todo artifício para

desmoralizar ou para revelar os defeitos da elite e, particularmente, do senhor patriarcal.

Retorno ao questionamento que já fiz anteriormente para interrogar sobre a voz que se

ouve no romance. O romance é, realmente, um monólogo dominado pelo narrador que

representa a elite brasileira. A análise de Augusto Meyer, inserida na edição do romance

publicada em 2008, no romance discute aspectos da questão levantada:

‘Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa contração

cadavérica...’ Sempre me pareceu uma confissão esta frase. Poder ser que, ao

escrevê-la, apenas pensasse em falar pela boca de Brás Cubas,

desenvolvendo a lógica moral da personagem. Mas assim mesmo, seria uma

confissão indireta ou inconsciente. Caso normativo dos escritores de ficção;

eles se confessam através de encarnações imaginárias, indiretamente, com

uma sinceridade mais honesta do que na correspondência ou nos cadernos

íntimos. O verdadeiro Dostoiévski, por exemplo, se revela muito mais na

obra literária do que no Journal d’un écrivain. (AUGUSTO MEYER IN,

ASSIS, 2008, p. 30).

E quem seria melhor para ocupar este papel de narrador que um morto

representante do próprio grupo que critica. Se fosse o caso de se buscar um títere na

obra machadiana, seria possível encontrá-lo ocupando o papel de um representante da

elite patriarcal e em um dos pontos mais altos da hierarquia social. A voz do senhor na

obra de Machado somente funciona como uma artimanha para desmontá-la com a pena

da galhofa e a tinta da melancolia de uma vida artificial e vazia. Se cobravam de

Machado de Assis a presença da cor local em seus romances, poderia ser questionado se

há algo mais peculiarmente brasileiro no século XIX que o processo de fingimento, do

que o regime simulação social a que todos estavam sujeitos:

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(...) no escravismo para a produção interna e no liberalismo para a

comercialização externa do produto do mercado liberal. O disfarce é uma

exigência do comércio exterior. Dissimulando o que é e simulando o que não

é, a elite brasileira do século XIX detém lucro duplicado, não gastando para

produzir nem se desgastando para vender. No jogo cínico da dissimulação e

da simulação, a oligarquia nacional nada tem de volúvel, porque se mantém

sempre na mesma e única posição ideológica de dominação (Souza 2006:

27).

A maior referência à cor local surge do escancaramento de uma sociedade que

visava apresentar o progresso por meio da absorção de ideias avançadas, mas que seguia

mantendo um sistema escravocrata.

A imagem do escravizado na narrativa é representada por Prudêncio, e é através

deste que Brás aprende a ser “senhor”.

Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as

mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe

ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro

lado, e ele obedecia, - algumas vezes gemendo, - mas obedecia sem dizer

palavra, ou, quando muito, um - "ai, nhonhô!" - ao que eu retorquia: - "Cala a

boca, besta!" (ASSIS, 2008, p. 696).

A cena é uma das mais tristes da narrativa machadiana, exatamente porque o uso

do humor (ou falso humor) permite que leiamos traços da realidade perversa referida. A

escrita assume claramente o recurso da dissimulação que faz da descrição da brincadeira

do menino Brás um recurso hábil para leitura do contexto social vigente:

Prudêncio não era apenas um brinquedo; era um brinquedo que era um

cavalo. E o menino Brás reproduz, antecipando, o esquema social no qual

está inserido. O menino é realmente o “pai do homem”: Eis Brás Cubas a

fazer os primeiros ensaios de sua cavalgada no universo da ordem

escravocrata”. (NASCIMENTO, 2002, p.57).

Em cena anterior, observamos o menino Brás fazendo suas pilhérias infantis como

quando quebra a cabeça de uma escravizada, porque essa lhe negara uma colher do doce

de coco que estava fazendo, e, não contente com a maldade, ainda estraga o doce que

ela estava fazendo, culpando-a por isso. Os atos praticados pelo menino Brás reiteram o

ditado: “Onde há criança, adulto não leva a culpa”. E onde há escravizados?

Outra cena do romance que chama atenção é quando Brás observa seu antigo

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“cavalo”, o alforriado Prudêncio, a bater com chicote em outro negro. Nesta situação,

mais uma vez o autor revela sua maestria, pois, se Machado colocasse na cena um

branco chicoteando um negro, a situação não causaria qualquer estranhamento; se

colocasse um negro chicoteando um branco, a cena seria inverossímil.

Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo

depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um

preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia

somente estas únicas palavras: — “Não, perdão, meu senhor; meu senhor,

perdão!” Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com

uma vergalhada nova. (ASSIS, 2008, p.696).

A grande contradição para o protagonista está no fato de ser “um preto que

vergalhava outro”. A maestria está em colocar um negro chicoteando outro negro, pois a

cena instiga a pergunta: por que esta cena não é aceita pela sociedade? Por que choca

tanto? Por que a cena de um escravizado sendo chicoteado por um senhor branco não

choca tanto? O mais interessante é que, mesmo na posição de homem livre e

proprietário de escravizado, Prudêncio é um mero repetidor, um títere. E pior, como

títere, continua na posição de subalternizado em relação ao senhor. Ao ser interpelado

por seu antigo senhor, o que Prudêncio faz? Como senhor deveria assumir seu

posicionamento e a postura senhorial. Contudo, além de obedecer, ele ainda chama Brás

Cubas de nhonhô: “— Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede.” (ASSIS, 2008,

p.696). Assim, fica claro que Prudêncio simplesmente imita um papel, o de opressor:

“Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, —

transmitindo-as a outro.” (ASSIS, 2008, p. 696). O que era oprimido, ao experimentar a

liberdade e a capacidade de também escravizar, acaba repetindo ações e simulando

posições: “(...) comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de

mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!”. (ASSIS, 2008, p. 696). Porém, perante a

sociedade patriarcal representada na personagem Brás Cubas, Prudêncio continuava

sendo o moleque da casa, maroto na tentativa de imitar o senhor. Prudêncio possui o

chicote, a carta de alforria e ainda é proprietário de pessoas escravizadas, porém isto o

torna senhor? Ele apenas repete o que vivenciou como escravizado e quando o

verdadeiro senhor aparece, esse toma dele o chicote e o coloca em seu lugar de

subalternizado.

Brás Cubas, na condição de morto, possui uma posição privilegiada para narrar e

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para distribuir suas farpas. Segundo Walter Benjamin, “(...) é no momento da morte que

o saber e a sabedoria do homem e, sobretudo sua existência vivida – (...) assumem pela

primeira vez uma forma transmissível” (BENJAMIN, 1987, p.207). Por isso, o

protagonista sabiamente afirma que sua campa foi o berço. Machado reconhece com

satisfação o posicionamento interessante de seu narrador e já afirma com um tom

sarcástico os objetivos de Brás “Não digo mais para não entrar na crítica de um defunto,

que se pintou a si e a outros, conforme lhe pareceu melhor e mais certo” (ASSIS, 2008,

p.625). A pena da galhofa e a tinta da melancolia aliadas às “rabugens do pessimismo”

fazem da narrativa um turbilhão de ataques à classe senhorial. Porém, é possível ler em

suas páginas um tom provocativo de quem acredita na arte literária, no poder do

sensível em alterar estados negativos da alma humana ou tal como defende Schiller,

uma crença no poder pedagógico da arte: “Ao martelar semanalmente nas páginas da

Revista brasileira, oito anos antes da abolição, as corrosivas memórias do cadáver

insepulto de Brás Cubas” (ASSIS DUARTE in BERNARDO, G., MICHAEL, J.,

SCHÄFFAUER, M.[Org.], 2010).

Há em Machado de Assis o interesse em criticar de forma tão incisiva a elite

brasileira que por vezes suas literaturas se apresentam com tons melancólicos ou de

decepção. A falsidade do texto, a dissimulação está no humor, na condição de morto,

condição aparentemente impossível, que mascara os piparotes aplicados contra o leitor.

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Prudêncio: o simulador

O olhar que o colonizado lança sobre a cidade do colono é um olhar de luxúria, um

olhar de inveja. Sonhos de posse. Todas as modalidades de posse: sentar-se à mesa do

colono, deitar-se no leito do colono, com a mulher deste, se possível. O colonizado é

um invejoso. (FANON, 1979, p. 29)

Memórias Póstumas de Brás Cubas foi escrito no primeiro momento como

folhetim e saiu na Revista Brasileira de março a dezembro de 1880. Foi publicado como

livro no ano seguinte pela Tipografia Nacional. É marcado por temas fortes como a

escravidão, as relações entre classes sociais, o cientificismo e o positivismo. A filosofia

surge com a apresentação de uma nova corrente filosófica, o humanitismo que faz

referência à dialética do senhor e do escravo de Hegel, à lei do mais forte. “Ao

vencedor as batatas” pode ser considerada a síntese do humanitismo, criado por

Joaquim Borba dos Santos, e que será aprofundado em romance posterior Quincas

Borba, de 1891.

O caráter fortemente crítico da obra para com a sociedade patriarcal e

escravocrata se apresenta na estratégia de fazer de Brás Cubas, metaforicamente, um

espelho da elite brasileira da época. Para este grupo de “senhores” do século XVIII (o

seleto grupo de leitores e leitoras de Machado de Assis) – rir de Brás Cubas é rir da

própria desgraça, rir-se de si mesmo. Ainda que tenha um capítulo com especial menção

à condição da personagem principal, que pode ser ampliada para o que esta personagem

representa, a elite escravocrata, o capítulo “Das negativas” pode ser visto como uma

síntese de todo o livro porque composto de negativas e de não realizações.

Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do

emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade

é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão

com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a

semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer

pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que

saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do

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mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste

capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o

legado da nossa miséria. (ASSIS, 2008, p. 758)

O vazio, a monotonia e a melancolia estão presentes em cada linha do livro. Até

mesmo a busca de Brás Cubas por um emplasto capaz de acabar com a melancolia é

vazia, pois é impulsionada por um desejo não de simplesmente ajudar as pessoas que

sofrem deste mal, mas sim de engrandecer a figura do próprio Brás e da família Cubas.

O nome e a aparência para esta família são sempre valores, pois são considerados como

o que há de mais importante. Essa visão está presente em vários textos do autor e está

trabalhado de forma mais explícita no conto “Teoria do medalhão”.

A vida de caprichos do jovem Brás Cubas e a de vazio melancólico do velho Brás

estão presentes tanto no enredo da obra quanto em sua proposta literária. A própria

forma narrativa é conduzida de forma que o leitor fique à mercê deste narrador

rabugento e cheio de vontades, como ele mesmo indica no capítulo “Ao leitor: “A obra

em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar,

pago-te com um piparote, e adeus” (ASSIS, 2008, p.626).

A concretização de desejos sórdidos e de muitas vontades é o motor que move a

narrativa e é também a engrenagem mestra das ações da personagem principal,

representante metonímica da classe senhorial. Assim, Brás usa e abusa de sua condição

para ter tudo o que deseja e submete ainda submetidos às suas vontades as pessoas de

classes “inferiores”, seus dependentes, economicamente ou culturalmente.

Com sarcasmo o narrador cria uma situação fantasiosa e faz a suposição que se

Dona Plácida falasse no momento de seu nascimento diria:

- Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristia naturalmente lhe

responderiam: - Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura,

comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com

o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã

resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na

lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia. (ASSIS,

2008, p. 701)

A situação de D. Plácida não é diferente da vivida por qualquer agregado porque

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pode ser comparada até mesmo à condição do escravizado. O lema viver para servir e

servir para viver revela-se um círculo vicioso que se repete como uma espécie de

herança de geração para geração. Brás Cubas usa Dona Plácida para acobertar a relação

com Virgília, sua amante. O protagonista suborna a velha beata pobre com cinco contos

de réis para que esta assuma o papel de moradora de uma pequena casa na Gamboa,

casa que era utilizada pelos amantes em seus encontros. O mesmo se repete no uso que

faz do moleque Prudêncio, tornando-o cavalo e brinquedo durante a infância. Na idade

adulta sendo considerado “homem livre”, o ex-escravizado continua seguindo, como já

dito, as ordens do senhor. Se esta e outras cenas aparecem em romances e contos de

Machado de Assis, como negar que em sua literatura haja evidentes provas do seu

interesse pela situação do negro no Brasil do século XIX? A narrativa machadiana

atualiza, de forma irônica, os processos de formação da sociedade brasileira e do país,

indicando contradições e desmandos que persistem ainda. A pena do escritor desfere

duros golpes na sociedade escravocrata, embora faça isso de forma dissimulada e

indireta, disfarçando suas reais intenções.

Pode ser dito que sua obra está marcada pela originalidade da pela incompletude,

pelo estilo fragmentário, pela dubiedade e veia cômico-trágica-irônica do narrador e

pela intervenção direta com o leitor (quase sempre invasiva). Com estas características o

estilo machadiano rompe com o realismo de Flaubert, marcado pela tentativa de

neutralidade do narrador, e com o naturalismo de Zola, que buscava retratar a realidade

de forma objetiva e com uma visão minuciosa de dados da realidade. Tal como explica o

autor:

Há na alma deste livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e

áspero, que está longe de vir dos seus modelos. É taça que pode ter lavores de

igual escola, mas leva outro vinho. Não digo mais para não entrar na crítica

de um defunto, que se pintou a si e a outros, conforme lhe pareceu melhor e

mais certo. (ASSIS, 2008, p. 625).

Feitas as observações necessárias sobre as características do romance, é

necessário voltar os olhos para o objetivo primordial da discussão que vimos

empreendendo: as personagens em situações de subalternidade e de modo particular

neste capítulo, da personagem Prudêncio. Ele é um simples objeto, um joguete que

aparece apenas em cenas esparsas ao longo da obra nos capítulos XI, XXV, XLVI e

LXVII. Por sua vez, a última aparição, como já comentado, é a mais cômica e

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significativa de todas as outras.

Prudêncio é personagem secundária do romance até mesmo por sua condição

subalterna. Entretanto, para o que se pretende como discussão, é personagem de maior

interesse e isto se dá exatamente pelo fato de estar submetido a todo tempo à voz

senhorial: no início da narrativa, por sua condição de escravizado e, posteriormente, por

seu comportamento já como “homem livre”. Prudêncio também pode representar uma

projeção irônica, crítica e sarcástica - porém bastante realista - da situação do negro na

condição futura de ex-escravizado. Nessa situação em que não está condição de

escravizado, mas muito menos senhor, ainda viveria por muito tempo à sombra do

senhor, tentando em vão imitá-lo e continuando a obedecê-lo por força da repetição e da

tradição.

Neste tópico do trabalho, a tentativa empreendida será a de comprovar, por meio

de observação de ações e características apresentadas pelo narrador, que Prudêncio

assume o papel de simulador. Como já mencionado anteriormente, a simulação é o

processo que se dá no primeiro estágio das artes da sobrevivência e da de se fazer ouvir

utilizadas pelo indivíduo subalterno. Ocorre que a personagem aqui analisada não

consegue ultrapassar esta condição por força de ações tantas vezes repetidas que acabam

gerando uma tradição de subserviência.

No capítulo intitulado “O menino é pai do homem”, Brás, ainda criança, aprende

as primeiras lições de fidúcias de homem representante da elite. É neste momento que

conhecemos Prudêncio. É exatamente neste capítulo que é possível observar a

importância do subalterno no processo de formação da elite. No trato com a escrava ,

Brás usa e abusa de suas vontades e por mero capricho foge de suas responsabilidades e

culpa justamente aquela que seria a sua vítima. Já no trato com Prudêncio, o

protagonista vai além de aprender a ser senhor. Ensina ao escravizado a tradição de

servir por meio da mera repetição de ações. Quebrando a cabeça da escravizada,

agredindo o escravizado e reduzindo-o à condição de animal, Brás acaba por receber a

alcunha de “menino diabo”. Entretando, observa-se a total passividade dos pais que

consideram as traquinagens do menino como atitudes normais.

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A aprendizagem do menino prossegue por meio da observação. É em um jantar

em que estava reunida a seleta sociedade da época (“o juiz-de-fora, três ou quatro

oficiais militares, alguns comerciantes e letrados, vários funcionários da administração”

[ASSIS, 2008, p.641] ) o ensino prossegue. Em clima de total descontração, Brás ouve a

conversa dos adultos que falam sobre banalidades e entre elas surge o assunto de

compra e negociação de escravizados, tratado como cotidianidade, efemérides sem

nenhuma importância – ou com mera importância financeira.

Um sujeito, ao pé de mim, dava a outro notícia recente dos negros novos que estavam a vir,

segundo cartas que recebera de Luanda, uma carta em que o sobrinho lhe dizia ter já

negociado cerca de quarenta cabeças, e outra carta em que... Trazia-as justamente na

algibeira mas não as podia ler naquela ocasião. O que afiançava é que podíamos contar, só

nessa viagem, uns cento e vinte negros, pelo menos. (ASSIS, 2008, p. 642)

Assim, por meio da repetição de atitudes e da observação do protagonista, a cena

se mostra como um déja-vu. Agora, o menino fez-se homem e na condição de senhor, as

traquinagens executadas enquanto menino se tornam coisas sérias – atos de adulto. Por

isso, observa as conversas sobre a negociação da divisão de herança, envolvendo a

posse de um escravizado que se fazem com a maior naturalidade. O ser humano é

negociado pelos herdeiros da mesma forma como são divididos objetos quaisquer.

- Ora, mano, deixe-se dessas coisas, disse Sabina, erguendo-se do sofá; podemos arranjar

tudo em boa amizade, e com lisura. Por exemplo, o Cotrim não aceita os pretos, quer só o

boleeiro de papai e o Paulo...

- O boleeiro não, acudi eu; fico com a sege e não hei de ir comprar outro.

- Bem, fico com o Paulo e o Prudêncio.

- O Prudêncio está livre.

- Livre?

- Há dois anos.

- Livre? Como seu pai arranjava estas coisas cá por casa, sem dar parte a ninguém! Está

direito. Quanto à prata... creio que não libertou a prata? (ASSIS, 2008, p.676)

É também por meio da repetição e da observação que o ex-escravizado assume a

posição de “homem livre” (livre da escravidão formal, mas não da servidão cultural e da

situação de subalternidade). É macaqueando que Prudêncio repete quase que

literalmente as ações do menino Brás, enquanto este o fazia de cavalo. Brás observa

uma cena e, no primeiro momento, se sente surpreso com um acontecimento tão bizarro.

Porém, logo depois, reconhece na cena um reflexo de suas próprias ações do passado:

Prudêncio, já na condição de homem livre e senhor de escravos, estava repetindo as

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ações que sofrera com Brás no passado.

Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e

ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na

praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras:

- "Não, perdão meu senhor; meu senhor, perdão!" Mas o primeiro não fazia cada súplica,

respondia com uma vergalhada nova.

- Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!

- Meu senhor! gemia o outro.

Cala a boca, besta! replicava o vergalho. (ASSIS, 2008, p. 696)

Brás percebe que o vergalho era o seu cavalo, o moleque da casa, seu joguete de

infância, que agora, na condição de senhor, repete suas ações. Prudêncio simula ser

aquilo que verdadeiramente não é. Esta simulação é tão forte que ele sem ao menos

perceber, repete inconscientemente as mesma ações que ocorreram no passado – só que

agora ele passa da condição de vítima para a de algoz, da condição de escravizado para

a de “senhor”. Um senhor, porém, ao avesso que na condição de “homem livre”

continua pedindo bênção a seu nhonhô do passado e seguindo suas ordens.

- É sim, nhonhô.

- Fez-te alguma cousa?

- É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia

lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.

- Está bom, perdoa-lhe, disse eu.

- Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. (ASSIS, 2008, p.696)

Limitado a simular, imitar, Prudêncio não alcança o estágio da dissimulação. Na

condição de senhor ele está fadado a repetir as ações que observava e de que fora vítima

no passado. Perante a lógica da discriminação e diante do sofrimento de formas de visão

estereotipantes, pode surgir no negro um insuportável desejo de também ser branco.

Assim, Prudêncio mimetiza comportamentos, discursos e ideologias. Ele já não é negro,

no sentido cunhado pela dinâmica escravagista, tampouco é branco. O que acontece nos

processos de assimilação é o deslocamento de lugares e condições sociais fragilizadas

encenadas com um sarcasmo ácido e extremamente crítico de uma situação que é

dramática, pois é real.

(…) era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir,

desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e

ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as subtilezas do

maroto! (ASSIS, 2008, p. 696).

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Repetindo a ação e a violência recebida do antigo dono, Prudêncio reforça

elementos da relação senhor/escravizado e da sociedade escravocrata, apresentando-se

como um ridículo repetidor de uma fantasia desconjuntada de senhor. Brás Cubas é

extremamente cínico ao narrar o episódio: “(...), aliás, seria matéria para um bom

capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco." (ASSIS, 2008,

p. 696). Onde estaria a alegria deste capítulo? O próprio narrador alerta para a

complexidade da cena: “Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só

exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio, achei-lhe um miolo

gaiato, fino, e até profundo”. (ASSIS, 2008, p. 696). A ação revela muito mais do que

está sendo apresentado. Superficialmente, seria um capítulo alegre; mas só

superficialmente. Prudêncio toma a atitude de senhor com todas os aspectos negativos

deste tipo de caráter, desta máscara. Exteriormente, ele seria uma espécie de traidor,

desumano e sórdido. Porém, o autor utiliza de negaças que fazem com que o leitor sinta

compaixão desta personagem que se constrói como um simples títere, macaqueando

comportamentos do branco. Esta é só uma das sutilezas do bruxo e sua crítica alcança a

todos. Sua visão não maniqueísta do mundo instaura uma poderosa razão cética e cínica

diante dos fatos mais pungentes da realidade brasileira.

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É bem, e o resto?

‘Mas eu não sou flautista! ’, dirias tu. Tu o és, infinitamente mais

maravilhoso do que aquele homem de quem tratamos. Ele tinha necessidade

de instrumentos para encantar os homens pela virtude que emanava de sua

boca (...) Quanto a tu, tu não diferes dele, salvo no que, sem instrumentos

(áneu orgánon), com palavras sem acompanhamento (psiloîs lógois),

produzes esse mesmo efeito... (Derrida, 1997, p.66)

No romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, Brás Cubas morre buscando

encontrar um emplasto que levaria seu nome e de sua família à glória. A sua obsessão é

levada ao extremo na tentativa de fabricar o anti-hipocondríaco destinado a aliviar a

melancólica humanidade. A personagem de Machado fracassa, mas o seu criador é

glorificado pela sociedade leitora que era tão criticada em seus romances. Cabe, então

perguntar: por que o leitor de Machado não se reconhecera nas duras críticas

apresentadas pelo autor em suas narrativas? Talvez pelo fato de o Bruxo do Cosme

Velho ter encontrado a fórmula de um remédio, o Phármakon (escritura) que Platão

almejava destilar em seu Fedro. O Phármakon era uma oferenda oferecida por Theuth

ao Rei egípcio Thamous. Theuth afirma que o Phármakon (escritura) seria um

conhecimento (tò máthema) que tornaria os egípcios mais instruídos, possuindo assim

um remédio para a memória (mnéme) e a instrução (sophía). Entretanto, o Rei percebeu

a ambiguidade do presente, pois o Pharmákon (escritura) tornaria as almas esquecidas,

pois já não utilizariam a memória espontânea. Desta forma, o Phármakon não auxiliaria

a memória e sim a rememoração; também não produziria instrução (sophías dè) e sim a

aparência (alétheian), pois ele era, ao mesmo tempo, remédio e o veneno, a verdade e a

falsidade.

Machado, mestre no jogo de manejar as ambiguidades elementares da escritura, a

utiliza a seu favor fazendo transparecer o que ele quer que transpareça e para esconder o

que ele quer que fique escondido. Derrida afirma que: “Um texto só é um texto se ele

oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composição e a regra de seu

jogo” (DERRIDA, 1997, p.7). A escrita machadiana cumpre seu papel textual ocultando

a regra de sua composição através das dissimulações. Como observa Derrida (1997, p.

7), “A dissimulação da textura pode, em todo caso, levar séculos para desfazer o seu

pano. O pano envolvendo o pano. Séculos para desfazer o pano. Reconstituindo-o,

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também, como um organismo”. É nesse jogo de camada em camadas, de pano em pano,

desfazendo e reconstruindo, como um organismo vivo, que a obra machadiana deixa o

leitor, que não possui os quatro estômagos, impossibilitado de digerir sua obra, perdido

em meio aos palimpsestos que são formados constantemente. O bruxo, na condição de

Pharmakeús, sem utilizar de nenhum subterfúgio que não fosse a linguagem, enfeitiça,

encanta, e cega impossibilitando a visão plena de seus objetivos. Consequentemente, o

fio da narrativa não se rompe, mas envolve como um casulo e movimenta, indica o

caminho e conduz aquele que participa do jogo da leitura à sua armadilha, à sua teia.

O trabalho que agora é apresentado para avaliação começou já em minhas

primeiras leituras de Machado de Assis ainda na adolescência. Naquela época, já tentava

progredir na minha formação, tateando o texto machadiano com certa dificuldade. O

léxico empregado pelo escritor era para mim um grande desafio e o primeiro trabalho

foi o de entender o texto, compreendê-lo no sentido mais raso do termo. A cada leitura,

um glossário; a cada glossário, um mundo de significados. Já na Faculdade de Letras,

uma disciplina me proporcionou mais um dos quatro estômagos apontados por Machado

de Assis e necessários para a interpretação de sua obra. O nome da disciplina não

poderia ser mais intrigante, Machado de Assis afrodescendente, ministrada pelo

professor Eduardo Assis Duarte. Descobri a existência de um novo Machado, mais

parecido comigo, mais próximo da minha realidade, mais palpável. Antes desta época,

já havia buscado os livros do escritor em inúmeros lugares e eles me provocavam

assombro e prazer. Havia entrado num grupo seleto de leitores. Participava de qualquer

conversa em que aparecesse o nome do escritor, tentava ler o que surgia sobre ele e

sempre relia as fontes literárias. Porém, nada me causara mais surpresa que o próprio

autor que me fora revelado nas aulas daquele curso. Primeiramente me ative à sua

imagem física e depois à sua postura profissional, política e intelectual. Onde estava

este autor desconhecido que não encontrara antes? É certo que o Machado desconhecido

estava nas entrelinhas de seus textos, por isso, ler seus livros é sempre para mim um

estímulo à descoberta. Exatamente como ocorre com outros leitores:

(...) venho descobrindo para mim e revelando aos leitores um novo e

diferente Machado de Assis. Enfatizo a palavra ‘descobrindo’ – não se trata

de invenção, uma criação deliberada de um Machado de alguma maneira

mais adequado ao nosso próprio tempo, mas uma descoberta de algo, de

alguém que já está ali. Claro que as constantes mudanças do nosso tempo me

ajudaram a encontrar este novo Machado – isto é óbvio (...). Isto é parte da

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sua grandeza como escritor, do seu constante fascínio. (GLEDSON, 2006, p.

10)

Buscava encontrar evidências de uma estética desenvolvida na literatura

machadiana que estivesse relacionada a origem do escritor. Durante a leitura e seguindo

este foco, ficou evidente as razões do processo dissimulador presente nas narrativas. A

partir daí, fui conseguindo provas suficientes para contestar a tese de absenteísmo, de

antimulatismo e de passividade que alguns críticos tentam atribuir ao autor. Os mesmos

artifícios de dissimulação que Machado retratava em suas personagens subalternas eram

empregados na construção de suas obras. A crítica machadiana está marcada por alguns

vícios de leitura que levam anos para que sejam alterados, como se para cada época

fosse dada a dádiva de se observar um número determinado de aspectos. Na verdade, a

crítica machadiana revela a seus leitores muito mais do que características presentes nos

livros. Revela também, em forma de reflexo, o caráter de cada época que se propõe

analisar o autor.

Porém, além da leitura viciada de diferentes eras da crítica machadiana, a grande

dificuldade em ver em Machado de Assis a figura de um subalterno que alcança o

sucesso surge da luta do autor em posicionar-se fora da margem do poder. O epíteto de

bruxo do Cosme Velho não poderia fazer dele um marginalizado, algo que ele realmente

não foi apesar de sua origem humilde ser sempre muito destacada. No entanto, o

escritor, assim como suas personagens, conseguiu vencer as resistências de uma

sociedade caracterizada pelo regime escravocrata e patriarcal em que qualquer mudança

de classe era um empreendimento quase impossível. Um momento em que as ideias

externas eram maquiavelicamente apropriadas desde que servissem à ideologia da elite

brasileira do século XIX.

Uma das apropriações de pensamentos e ideias exteriores que menos se

adaptaram ao nosso contexto foi a do liberalismo spenceriano, porque precisa ser

considerada a distância abismal entre o discurso e as práticas sociais em fins do século

XIX. Expressões do sociólogo inglês, tais como “luta pela existência” e “sobrevivência

do mais apto” que indicam ecos do darwinismo social são ridicularizadas pela literatura

machadiana na apresentação da filosofia criada por Quincas Borba – o humanitismo. A

ideia de que “vença o mais forte” não funciona em solo brasileiro, posto que os

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indivíduos não lutavam com as mesmas armas. A sobrevivência dos mais aptos, trazida

principalmente pelo evolucionismo de Darwin, talvez não pudesse ser aplicada ao ser

humano e, principalmente, aos membros de uma sociedade tão hierarquicamente

marcada como a brasileira do século XIX.

(...) Por conseguinte, a reprodução biológica “higiênica” tornara-se crucial

para o futuro da espécie humana. Além disso, outros significados haviam

aderido aos narizes. (...) Difundia-se a ideia de que a aparência e o tamanho

dos narizes marcavam superioridade ou inferioridade racial. (...) Naquele

início da década de 1880, de fato, Machado parecia perplexo com o esforço

de políticos e intelectuais brasileiros para enfatizar em solo pátrio tais

derivações racistas do darwinismo social (...). (CHALHOUB, 2003, pp. 129)

Machado observava com agudez crítica e ácida as novas ciências,

principalmente quando estas carregavam em seu cerne teorias preconceituosas e

discriminatórias como verdades comprovadas. Quando sua inteligência apontava o

perigo das novas ideias cientificistas, ele se valia da ironia e do riso para combatê-las.

Sua arma era o veneno destilado em suas narrativas que chegavam em doses de conta-

gotas aos olhos do leitor.

Onde os deslumbrados enxergavam a redenção, ele tomava recuo e anotava a existência de um problema específico. (...). O ensaio sobre “A nova geração”,

de 1879, insistia justamente na maneira pouco apropriada pela qual os poetas

vinham assimilando a tendência europeia recente. Aqui e ali, procurando

explicitar impropriedades, Machado encontrava fórmulas para a comicidade

objetiva deste processo. O conjunto das anotações esboça uma problemática

de muito alcance, e compõe, ou abstrai, no que diz respeito ao funcionamento

da vida intelectual, a matéria literária das Memórias (SCHWARZ, 2000, p.

152).

Muitas das novas ideias apresentadas somente serviam para justificar atitudes de

exploração e apagamentos de alguns grupos sociais. E era contra estas ideias que

Machado se servia da pena que, na maioria das vezes, era a da galhofa para que seu riso

destronante abalasse algumas verdades ideologicamente construídas. O autor, como um

cidadão de origem subalterna, não admitia o fato da não existência e utilizava a

insistência e a dissimulação para alcançar os postos de mais destaque da hierarquia

patriarcal. Tal como defende Slavoj Zizek, o não existir não pode significar passividade

e nem sempre apresenta um significado que é antônimo de existência: “o contrário da

existência não é a inexistência, mas insistência, o que não existe continua a insistir,

lutando para existir” (ZIZEK, 2003, p.37-38). Por vezes, o não existir pode sim assumir

o papel de oposição ao existir ou de oposição àqueles que existem. Os marginalizados

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de qualquer espécie insistem e resistem apesar daqueles que querem minar suas

identidades. E uma das formas mais interessantes de resistência consiste no conjunto de

estratagemas presentes em uma forma particular de uma Estética da existência, a

Estética da Dissimulação.

Os conceitos estéticos, só começaram a me interessar no momento em que

percebi suas raízes existenciais; pois no decorrer da vida, as pessoas – sejam

simples ou sofisticadas, inteligentes ou tolas – são constantemente

confrontadas com o belo, o feio, o sublime, o cômico, o trágico, o lírico, o

dramático, a ação, as peripécias, a catarse, ou, para falar de conceitos menos

filosóficos, com a agelastia, o kitsch ou o vulgar; todos esses conceitos são

pistas que conduzem a diversos aspectos da existência inacessíveis por

qualquer outro meio. (KUNDERA, 2006, p. 98 – grifo do autor).

Falar em estética pode ser um ato que remete ao passado e que acaba

delimitando muito o campo de estudos. Não que a disciplina seja em si limitada, mas

sua utilização ficou marcada pelas abordagens quase sempre europeizantes que foram

feitas dela. Todavia, como se vem demonstrando, muitos questionamentos podem ser

levantados sobre a estética e sobre a utilidade do conceito. De acordo com Klucinskas e

Moser, a estética sofreu nos últimos tempos uma dura crise sobre a aplicabilidade do

comceito: "Esses livros lançam um olhar crítico sobre a estética enquanto disciplina de

pesquisa. Eles preconizam a necessidade de renovar a estética ou anunciam seu fim.”

(KLUCINSKAS & MOSER, 2007, p. 24). A crise da estética enquanto disciplina

filosófica surge da história do conceito e de suas abordagens mais tradicionais e,

portanto, mais excludentes.

Voltemo-nos agora para a estética propriamente dita. Dada a instabilidade de

seu objeto privilegiado, quase exclusivo, ela é levada a se colocar questões

desestabilizantes. Poderia ela continuar a se conceber e a se legitimar antes

de tudo como uma teoria (filosófica) da arte (obras e experiências)? Sua

existência de disciplina acadêmica e, sobretudo, de subdisciplina filosófica

estaria ainda assegurada? (KLUCINSKAS & MOSER, 2007, p. 21)

A tese aqui desenvolvida escolheu o caminho de repensar o conceito

reafirmando a sua aplicabilidade. A pesquisa também explorou a autonomia da estética

em relação à filosofia. A abordagem aqui empreendida tenta ampliar os limites do

pensamento estético e a aproximação deste com estratégias de existência e de

manutenção de identidades. Fugir dos espaços limitados, das fronteiras criadas em

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busca de novos significados: “lugares que se opõem a todos os outros, destinados, de

certo modo, a apaga-los, neutralizá-los ou purificá-los. São como que contraespaços”.

(FOUCAULT, 2013, p.20 – grifo do autor). O esforço desenvolvido nesta tese se

assemelha, portanto, ao que empreendeu Machado de Assis: fundar espaços

impensáveis para indivíduos em situação de subalternidade.

Pois bem, sonho com uma ciência – digo mesmo uma ciência – que teria por

objeto esses espaços diferentes, esses outros lugares, essas contestações

míticas e reais do espaço em que vivemos. Essa ciência estudaria não as

utopias, pois é preciso reservar esse nome para o que verdadeiramente não

tem lugar algum, mas as hetero-topias, espaços absolutamente outros; e,

forçosamente, a ciência em questão se chamaria, se chamará, já se chama

“heterotopologia”. (FOUCAULT, 2013, p.20-21 – grifo do autor)

A intenção desta pesquisa foi a desenvolver a heterotopologia, pois a ciência que

se pretendeu estudar, a estética escolhida se constitui enquanto um heterotopo. Sendo

assim, ela se configura como um lugar outro, um contraespaço, marginal, periférico e,

por isso, inexistente. Todavia, este lugar só inexiste aos olhos de quem não quer ver, de

quem não pode ver. Deste modo, uma pesquisa que se aninha no contraespaço e que

ambiciona estudar o heterotopo acaba sendo contaminada pelo objeto estudado. O texto

acadêmico nem sempre consegue abrigar de forma satisfatória a heterotopologia. As

narrativas machadianas se encontram também neste lugar por apresentarem estratégias

de ocupação de espaços, lugares delimitados, classificados.

Na literatura de Machado, os subalternos estão ali, sorrateiramente impregnando

as páginas com suas faces, suas passagens quase sempre em momentos cruciais da

narrativa. Embora suas existências não alterem definitivamente os fatos, eles se fazem

presentes. Até mesmo as ausências revelam a existência sofrida dos que ocupam lugares

de pouco ou nenhum destaque nas narrativas e, de forma ainda mais sofrida, em suas

próprias vidas.

Os senhores, nas narrativas machadianas, também são tratados como não

existências. Dom Casmurro que desperdiça a vida por ciúme; Félix que com suas

artificialidades não sabe amar; Jacobina que não existe além ou aquém da farda que

veste; Brás Cubas que está morto e apresenta um discurso vazio que é ao mesmo tempo

tudo o que resta de seu autor. O jogo de Machado é perigoso mas muito interessante,

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ainda que apresente o subalterno em lugar de destaque, ele transforma o senhor em

personagens vazias e as ridiculariza quando não as mata.

Essas considerações finais retomam o título do capítulo final do livro Dom

Casmurro: “É bem, e o resto?”. O título demonstra a habilidade de Machado de Assis

em colocar a oralidade na boca do narrador almejando uma aproximação íntima com o

leitor. Neste capítulo, Bento Santiago termina a narrativa com a seguinte frase: “Vamos

à História dos subúrbios” (ASSIS, 2008, p. 1072). O leitor atento, ao ler esta frase final,

se lembrará do começo do livro em que o narrador no capítulo II ao justificar as razões

que o levaram a escrever afirma que desejava escrever uma História dos subúrbios:

Quis variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudência,

filosofia e política acudiram-me, mas não me acudiram forças

necessárias. Depois, pensei em fazer uma História dos

subúrbios, menos seca que as memórias do padre Luís

Gonçalves dos Santos49

, relativas à cidade; era obra modesta,

mas exigia documentos e datas, como preliminares, tudo árido e

longo. Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a

falar-me e a dizer-me que, uma vez que eles não alcançavam

reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contasse

alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras

viessem perpassar ligeiras (...). (ASSIS, 2008, p. 933).

O narrador de Dom Casmurro e protagonista da narrativa não deu muita

importância ao trabalho árido e longo que seria a realização desta empreitada. Por isso,

Bentinho desiste de escrever e resolve, por sugestão dos bustos, escrever a própria

biografia. Magistralmente, Machado de Assis coloca na voz de um representante da elite

o profundo descaso pelos subúrbios. Ao passo que sua personagem despreza o tema,

Machado de Assis acaba por escrever uma história dos subúrbios e a insere nas

entrelinhas de suas narrativas. O bruxo do Cosme Velho não só escreve uma história

dos subúrbios cariocas como também escreve uma história dos subúrbios e das

inúmeras periferias do Brasil.

49

Esta nota não é do autor e sim desta tese para explicar que o livro mencionado na narrativa é: Memórias

para servir à História do Reino do Brasil. O livro escrito por Luís Gonçalves dos Santos (1767-1844) que

também era conhecido como Padre Perereca é composto por dois volumes. O livro apresenta fatos

históricos e se inicia com a transladação da corte imperial para o Rio de Janeiro. Há um teor

propagandístico da Regência de D. João no Brasil.

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Machado de Assis era um cidadão que se destacava no meio da classe social que

ocupava. Nas fotos dele que não foram alteradas, é possível perceber que sua

afrodescendência estava marcada na pele. Mesmo assim, muitos críticos acabam criando

um mito do “antimulatismo” do autor. Eles caracterizam sua postura cética com um

posicionamento passivo perante os problemas sociais de seu tempo, principalmente os

relacionados à questão da escravidão. Todavia, se ele não pode ser considerado um

abolicionista tout court, é impossível caracterizá-lo em qualquer forma de

agrupamentos. A sua severidade crítica o levara ao limite do pessimismo, porém, este

caráter não significava passividade. Machado de Assis criticou a escravidão sobretudo

no âmbito literário, lutou contra a escravidão em seu posto no Ministério da Agricultura.

Também se emocionou com a abolição e logo percebeu que era só mais uma troca de

tabuletas. A abolição não significaria igualdade de condições, a tradição da

inferioridade do negro ainda permaneceria por muitos anos. Como cobrar a consciência

da negritude de um subalterno que, empoderado, conseguira chegar a uma posição

privilegiada após duras penas?

Nossa intelectualidade e, principalmente as ideias de um autor negro, estavam

confinadas e eram financiadas pela elite brasileira. Os autores e pensadores brasileiros

viviam, de certa forma, nas amarras de um mecenas e, no caso específico de Machado

de Assis, até tornar-se um autor de sucesso, o seu sustento vinha do cargo público que

ocupava. Ainda que conseguisse, por seu brilhantismo, utilizar artifícios dissimuladores,

esta condição de dependente marca sua trajetória como escritor, crítico e pensador.

Finalmente, é preciso que se ressalte a ligação empreendida nesta tese com a

questão da identidade narrativa. Há na literatura machadiana e até mesmo em fatos de

sua tão rara e controversa biografia alguns pontos que estão sensivelmente ligados com

o autor desta pesquisa. Esta afirmativa pode parecer um pouco absurda, posto que o que

está diante dos olhos do leitor é um trabalho acadêmico. Porém, se explica quando se

assume o compromisso de fazer da tese um exercício criativo. Escrever é sempre um

processo que envolve um sujeito, ainda mais quando essa escrita conclama elementos da

teoria e crítica literárias.

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Uma tese, mais que qualquer outro gênero textual, é um fazer caracterizado pela

multiplicidade de vozes, em discurso entrecortado por citações e alusões conscientes ou

inconscientes. Há sempre embate, diálogo e, por vezes, apropriação. Muitos embates

foram estabelecidos na realização desta pesquisa, mas também diálogos frutificantes e

essenciais surgiram. Durante o percurso, o grande risco foi o de se perder perante

trabalhos já cristalizados na crítica machadiana e ser anulado por presenças tão

marcantes. Talvez, a maior descoberta durante o longo período de análise empreendido

não seja a do autor ou a de elementos presentes na narrativa. O que melhor se descobre

num trabalho desta envergadura é a si mesmo. A literatura é instrumento primordial para

o autoconhecimento.

O escritor costuma dizer: “meu leitor” apenas pelo hábito contraído na

linguagem artificial dos prefácios e dedicatórias. Na verdade, cada leitor é,

quando lê, o leitor de si mesmo. A obra do autor não passa de uma espécie de

instrumento ótico que ele oferece ao leitor para permitir-lhe que consiga

discernir o que, sem tal obra, provavelmente não teria visto dentro de si. A

conformidade entre o íntimo do leitor e o que diz a obra constitui a prova da

verdade desta, e vice-versa... (PROUST, 1970, p. 184)

Muitos conhecimentos me foram revelados no embate com a narrativa de

Machado de Assis, entre estes o mais importante foi encontrar-me em suas entrelinhas

ou em traços de caráter de narradores, personagens e até mesmo do próprio autor.

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