(2) Roberto Cardoso de Oliveira - Antropologia e a Crise Dos Modelos Explicativos

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    TEMAQUEMEFOIDADO desenvolver nesta conferncia, embora bastanteoportuno dada atualidade dos problemas que gera, em si mesmoequvoco devido ao carter polissmico do termo crise. Por essa razo,

    comearia minhas consideraes sobre o conceito de crise, pelo menos na formapela qual ele tem sido utilizado na antropologia. Posteriormente, procurarei dis-tinguir modelo explicativo que estou entendendo aqui como equivalente aparadigma de teoria. Finalmente concluirei por uma tentativa de avaliao davocao explicativade alguns paradigmas constitutivos de nossa disciplina frenteao carter compreensivo inerente ao prprio mtierdo antroplogo. Minhaexpectativa de que possamos, juntos, aprofundar o exame do tema proposto,pois as idias que apresentarei a seguir no devem ser tomadas seno comopontos de referncia capazes de orientar o debate, porm jamais limit-lo.

    * * *

    A noo de crise passou a habitar o horizonte das cincias sociais e noapenas da antropologia nessas ltimas dcadas a partir do celebrado livro deThomas Kuhn, A estrutura das revolues cientficas, cuja primeira edioremonta ao incio dos anos 60. Tratava-se ento de uma crise de paradigmas, naqual, no modo de ver de Kuhn, a histria das cincias paradigmticas (isto , dashard sciences) constitua uma sucesso de crises, que somente poderia ser superadapela substituio do paradigma vigente na cincia normal por um novo, resultadode uma espcie de revoluo cientfica. Muito se escreveu em decorrncia daposio desse historiador da cincia, originalmente um fsico, que a rigor procu-rava renovar a histria da cincia, trazendo ao debate argumentos, inclusive, deforte apelo sociolgico como o do paradigma se assentar em comunidades deprofissionais (idia, alis, j antecipada por seu compatriota Charles Pierce hpelo menos um sculo). No vejo necessidade de evocar aqui todos os elementosque constituem o conceito kuhniano de crise e de paradigma uma vez que sobastante conhecidos de todos ns , seno apenas associ-los para qualificar umtipo de crise, que poderamos chamar de crise epistmica (1).

    A antropologia, enquanto disciplina autnoma, j com alguma anterioridadepreocupava-se com a idia de uma eventual crise que, segundo alguns membros dacomunidade de antroplogos, se avizinhava diante do previsvel desaparecimento

    Antropologia e a crise

    dos modelos explicativosROBERTOCARDOSO DEOLIVEIRA

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    de seu objeto de estudo. Seria legtima essa preocupao, ou sequer cabia lev-laa srio? Claude Lvi-Strauss soube lev-la a srio, mas para exorciz-la. Todos selembram de seu curto mas interessante artigo, no qual procura mostrar que em

    hiptese alguma o crescente processo de depopulao das etnias indgenas doplaneta, ou mesmo a incorporao dos povos ditos primitivos em grandes civili-zaes (sobretudo civilizao europia), podem por em risco o futuro da disci-plina, uma vez que ela no se define por seu objeto concreto (no caso, as socie-dades aborgenes), mas pelo olhar que ela deita sobre a questo da diferena.Questo essa sempre presente onde quer que identidades tnicas se defrontem.Lvi-Strauss (1962:26) conclui seu artigo dizendo que enquanto as maneirasde ser ou de agir de certos homens forem problemas para outros homens, haverlugar para uma reflexo sobre essas diferenas, que, de forma sempre renovada,continuar a ser o domnio da antropologia.

    Ou, como diria um filsofo como Merleau-Ponty (1960:150), como fa-zendo eco ao pensamento de Lvi-Strauss: A etnologia no uma especialidadedefinida por um objeto particular, as sociedades primitivas; uma maneira depensar, aquela que se impe quando o objeto [o] outro, e exige que ns nostransformemos (o artigo entre colchetes meu e exprime minha interpretaodo texto de Merleau-Ponty).

    O argumento elaborado por Lvi-Strauss serve para nos convencer assimimagino de que pelo menos o propalado desaparecimento daqueles que tmsido o foco privilegiado da pesquisa antropolgica, os povos aborgenes, no

    pode ser responsvel por um eventual desaparecimento da disciplina por falta deobjeto... Mas a maior importncia do argumento est na transposio do proble-ma do plano dos objetos concretos ao plano das modalidades de conhecimentode qualquer objeto empiricamente observvel. Passa-se, assim, ao planoepistemolgico no qual, alis, se travam atualmente as polmicas mais interes-santes e, certamente, mais proveitosas para o prprio desenvolvimento de nossadisciplina. Gostaria, aqui, de circunscrever a problemtica da crise da antropolo-gia, ou de como ela percebida nas comunidades de profissionais da disciplina,no mais nos centros metropolitanos (onde a antropologia teve a sua origem e sedisseminou para a periferia), mas para pases onde ela foi obrigada a se adaptar anovas condies de existncia, tais como a precariedade institucional (falta de

    bibliotecas, ausncia de tradio universitria, limitao oramentria etc.), emque pese tais pases terem servido (este o termo) de campo de pesquisa paraantroplogos provenientes daqueles centros. Essa adaptao, a que tenho cha-mado de estilo (num projeto ora em curso sobre a estilstica da antropologia,que coordeno na UNICAMP), oferece reflexo algo que considero muito impor-tante para o progresso da disciplina entre ns e em pases congneres. Trata-seda investigao comparada entre antropologias perifricas, de maneira a propiciar oalargamento do horizonte da disciplina nas reas no-metropolitanas, graas apre-enso de seus diferentes estilos, a par de proporcionar a oportunidade de um

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    saudvel intercmbio entre suas respectivas comunidades de profissionais. Limi-tar-me-ei aqui por falta de tempo a mencionar pelo menos um pas irmo, oMxico, onde a questo da crise no deixou de ter sua repercusso.

    O colega Esteban Krotz, antroplogo da Universidade Autnoma deYucatan, organizou um simpsio na Cidade do Mxico, em 1990, devotado reflexo sobre o conceito de crise na historiografia das cincias antropolgi-cas, com quase uma dezena de participantes, cinco dos quais apresentando tex-tos, finalmente publicados num opsculo de pouco menos de 50 pginas (Krotz,1982). Todavia, a pequena extenso da coletnea no desmerece a qualidade dostrabalhos postos disposio do leitor. Eles indicam um conjunto de tpicos quemereceram a ateno dos antroplogos mexicanos e que, em sua maioria, nonos so estranhos. Vamos nos valer aqui de pelo menos uma das contribuies

    do seminrio, precisamente a de seu organizador, uma vez que ele nos ofereceum quadro interessante das diferentes percepes da crise no espao ocupadopela disciplina no Mxico. Com seu texto Crise da antropologia e dos antroplogos,Krotz procura estabelecer, portanto, uma distino entre os diferentes sentidosque essa crise pode ter em seu pas. Mostra que vrios tipos de crise podem seridentificadas no Mxico. Dentre os atores intelectuais que falam da crise mexica-na, distingue inicialmente trs deles que, em sua opinio, no estariam suficien-temente familizarizados com a disciplina para sobre ela se manifestarem: soliteratos, como Octavio Paz; colegas de outras disciplinas, portanto sem forma-o em antropologia; e funcionrios de alguma maneira ligados rea de aplica-o da disciplina e que, no Mxico sabemos ns desempenham papel signifi-

    cativo no financiamento do trabalho antropolgico certamente em escala muitomais avanada do que ocorre nos demais pases latino-americanos (o Estadoocupa um espao extraordinariamente amplo na sociedade mexicana e poucacoisa se faz sem o seu apoio). H, ainda, aqueles que possuem maior familiaridadecom a antropologia, mas cuja posio pessoal crtica contamina sua avaliao dadisciplina: em regra so pessoas envolvidas em seus trabalhos de tese, cuja forma-o nem sempre adequada gera nelas frustrao e ansiedade bastante perturbadorasde seu juzo crtico. H, finalmente, os profissionais da disciplina, dentre os quaisidentifica trs tipos de atores, cujas avaliaes que fazem da antropologia devem a meu ver ser levadas a srio. Krotz (1982:11) assim os descreve: a) quandose esgotam, aps intenso esforo, debates sem perspectiva de soluo, situaoque leva ao esgotamento os prprios antroplogos (exemplo: a discusso sobreo campesinato durante os anos setenta); b) quando se sentem desarmados frentea problemas sociais e culturais relativamente novos e/ou politicamente relevan-tes (exemplo: os novos movimentos sociais); c) quando verificam na literaturaespecializada estrangeira e/ou em instituies nacionais fenmenos que inter-pretados posteriormente como rupturas geracionais ou como meros modismos,parecem tornar to profundamente obsoletos sucessos cientficos recentes quepem em dvida o potencial da disciplina por inteira.

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    O ponto de vista esboado por Krotz, medida em que leva em conta osdistintos atores sociais que habitam o campo da antropologia, seja em seu cen-tro, seja em suas proximidades, permite distinguir igualmente certa variedade derepresentaes dessa mesma crise, ampliando, assim, o prprio horizonte da anlisede um fenmeno bem mais complexo do que poderia parecer inicialmente. Ape-sar da realidade mexicana ser substancialmente diferente da brasileira, ainda queas antropologias que vigoram tanto num quanto noutro pas tenham indiscut-veis similaridades (que infelizmente aqui no teremos tempo de examinar), ocerto que esse quadro elaborado por Krotz lana uma boa luz sobre considera-es que sempre podemos fazer propsito da propalada crise que, para alguns,sonda a disciplina entre ns. Entretanto, reconhecendo a importncia da distin-o feita por Krotz relativamente comunidade mexicana de antroplogos, emsua percepo da crise da disciplina, cabe reconhecer igualmente que no fica

    claro se a crise est situada em eventual esgotamento doparadigma, seja ele qualfor, ou se se trata de inadequao ou superao de teoriasrelativas s realidadesou problemas investigados. Essa uma questo que eu gostaria de examinaragora, especificamente com relao ao exerccio da antropologia em nosso pas.

    * * *

    Tenho para mim que muito daquilo que se diz no Brasil sobre crise naantropologia, segue de perto o que Krotz observou no Mxico. Os atores inte-lectuais se dividem claramente entre os que estariam relativamente familiariza-dos com a disciplina, sem jamais t-la praticado (dentre esses estariam colegas deoutras disciplinas das cincias sociais ou das humanidades, interessados pela an-tropologia), e aqueles que nela militam profissionalmente. No possuo evidnciaalguma de que estes ltimos tenham se impressionado com qualquer ameaa decrise. Se eventualmente um ou outro membro da comunidade tenha se preocu-pado com a questo, isso seria um caso isolado. Mesmo porque aqueles colegasinteressados em discutir a disciplina em nvel epistemolgico, ou seja, procuran-do dar conta dos paradigmas que a compem (ou compuseram a antropologiaao longo de sua histria), praticamente tm considerado a noo de crise comouma idia pouco fecunda para a apreenso da disciplina, pelo menos em suaatualidade. Eu me situo dentre esses ltimos e meus trabalhos (2) sempreprocuraram conduzir uma reflexo sobre a disciplina abstendo-se de qualquer

    nfase maior em suas eventuais crises, passadas ou presentes, simplesmente (eaqui est o argumento) porque mesmo as turbulncias que a antropologia sofreuem passado recente, no foram de molde a contamin-la no nvel epistmico.Para ilustrar sucintamente o exposto, lembraria aos colegas pelo menos duascrises que tiveram lugar no pas, uma que tocou profundamente a comunidadeuniversitria (refiro-me s conseqncias do regime autoritrio no interior docorpo docente de inmeras universidades), outra (esta especificamente prejudi-cial etnologia indgena) que transformou a FUNAI no maior obstculo pesqui-sa etnogrfica, dificultando, quando no impedindo, para muitos jovens etnlogos

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    o exerccio do trabalho de campo junto s populaes indgenas por ela tutela-das. Mesmo assim, no se pode dizer que a antropologia entrou em qualquertipo de crise disciplinar ou metadisciplinar.

    Entendo, portanto, que aquilo que poderamos chamar de crise volto adizer: no plano epistemolgico, e no no da organizao do trabalho cientfico,na qual se incluiriam crises institucionais s se observaria nos termos em queKuhn a vem colocando. A saber, quando um paradigma sucede ao outro noprocesso histrico de transformao da cincia; ou, melhor, das cincias duras,ou hard sciences. Dispenso-me de alongar-me sobre o pensamento kuhniano arespeito, pois suas idias tm sido bastante divulgadas mesmo no meio das softsciencescomo o nosso. Diria apenas e aqui reproduzo idias que venho repisan-do j h algum tempo que a antropologia moderna est constituda por umelenco de paradigmas simultneos, ou, para usar uma expresso de Stocking Jr.(1980:419), trata-se de um equilbrio poliparadigmtico. Todavia, menos doque tomar em conta a antropologia como um todo, isto , os seus diferentesramos, tenho focalizado a antropologia social (ou mesmo cultural, em sua acepomoderna), o que confere s minhas preocupaes um teor bastante diferente dasdesse competente historiador da disciplina. Cinjo-me, assim, como tm demons-trado meus escritos desde 1984, quando ministrei a conferncia da XIVReu-nio Brasileira de Antropologia a procurar equacionar os paradigmas que com-pem, em sua justaposio e simultaneidade, a matriz disciplinarda antropolo-gia (3). Voltarei ao tema mais adiante para dar conta aos colegas de como pensohoje essa questo, agora relacionada com a chamada crise da disciplina.

    Neste momento creio que ser oportuno ilustrarmos com um bom exem-plo a relao que tem lugar no interior da disciplina, na qual paradigmas e teoriasconvivem numa interao contnua. Penso que podemos exemplificar essa rela-o entre paradigmas e teorias na instncia do parentesco, certamente a maisclssica que podemos identificar na antropologia, responsvel mesmo pelo ama-durecimento da disciplina ao longo de todo um sculo. Qualquer professor deantropologia sabe que as teorias de parentesco desempenharam historicamenteum papel fundamental na formao de sua disciplina, posto que foi precisamentenessa instncia emprica que ela logrou seus sucessos mais slidos, seja comoncleo de muitas das melhores monografias, que se tornaram exemplares para a

    sua consolidao, seja como uma das instncias mais suscetveis de formalizao,portanto capaz de proporcionar antropologia abordagens de carter nomolgico.Seja como for, as teorias de parentesco muitas vezes to desprezadas hoje emdia no ensino da disciplina so parte indispensvel na formao do antroplo-go, pois por meio delas o estudante sempre conseguir um acesso bem maisseguro no domnio da antropologia (4).

    Vejamos o que essas teorias nos ensinam sobre a natureza de nossa disciplina.Sabemos que houve tempo em que se conflitavam duas teorias de parentesco: uma,

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    denominada de descendncia, de inspirao anglo-saxnica, privilegiadorade relaes perpendiculares, facilmente demonstrveis num diagrama de paren-tesco; outra, de aliana, debitria da tradio francesa (de Mauss a Lvi-Strauss),baseada na idia de reciprocidade e marcada por relaes expressas horizontal-mente em nvel de um diagrama no qual o matrimnio constitui ndulos analitica-mente privilegiados. Teorias, to diferenciadas em sua concepo, em lugar delevarem a disciplina a entrar em crise, foram, ao contrrio, responsveis por umadinamizao da antropologia de tal magnitude a ponto de tornarem-se comple-mentares, articulando-se, portanto, entre si, como mostram diferentes autores, aexemplo de Dumont (1971) e Buchler & Selby (1968). So autores que, apesarde inserirem-se em tradies diferentes e especficas (Dumont, no estruturalismofrancs; Buchler & Selby, no empirismo anglo-saxo), chegaram praticamente smesmas concluses no que diz respeito articulao entre teorias respectiva-

    mente originrias de paradigmas historicamente sempre em oposio. A criseque, eventualmente, em algum momento, essas teorias poderiam ter sofrido foirapidamente sanada pela descoberta bvia de que nenhuma delas daria contasozinha da realidade do parentesco e somente com a articulao complementarde ambas a disciplina poderia finalmente deslindar a complexidade do fenmeno.

    Isso nos ensina que as crises em nvel de teorias so sanveis: ou pela elimi-nao de uma por outra; ou pela articulao das mesmas (como no exemplomencionado); ou, ainda, pela convivncia pacfica de teorias contrrias, pormno-contraditrias, das quais, alis, a antropologia est plena. Estas ltimas, gra-as s quais a antropologia conseguiu se consolidar como disciplina respeitvel

    no reino das cincias sociais, so majoritariamente do tipo a que Merton chamoude teorias de mdio alcance (middle range theories) e que no so outra coisapara ns do que aquelas descries analticas, com pretenses explicativas, conti-das nas monografias produzidas sobre tal ou qual sociedade ou cultura. Apesarde muitas delas, ou todas, serem passveis de restries e de crticas, particular-mente quando constrem modelos diferentes sobre uma mesma sociedade e/oucultura, isso no significa que essas teorias no convivam de algum modo, com-pulsoriamente, uma vez que uma no dispe de fora suficiente isto , deargumentos para eliminar a outra. A literatura etnolgica est repleta de exem-plos dessa ordem. Sem qualquer ironia poderamos chamar isso de o afvel con-vvio acadmico entre monografias.

    Essas teorias diferena dos paradigmas, que mais seriam metateorias constituem interpretaes de realidades concretas: seja focalizando sistemas scio-culturais globais, como as monografias clssicas concernentes a tal ou qual povo;seja procurando descrever e analisar sistemas parciais, como o parentesco, a mi-tologia, a religio etc., seja, ainda, atravs da investigao intensiva de um deter-minado tema ou problema, buscando dar conta, holisticamente, de um povo ougrupo social especfico como nas modernas monografias etnolgicas (6). Aquase totalidade da produo antropolgica est orientada (queiram ou no os

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    seus autores) para a construo de teorias de mdio alcance contidas emmonografias competentemente elaboradas. Asgrandes teoriasso raras, na me-dida que ultrapassam instncias empricas especficas para atingir um nvel degeneralidade planetria. Prefiro mencionar, nesse sentido, apenas uma, talvez amais conhecida hoje em dia, a construda por Lvi-Strauss (1949) para dar contado parentesco: seu livro clssico Les structures lmentaires de la parentpode sertomado como boa ilustrao de uma grande teoria.

    * * *

    Vamos agora nos deter um pouco sobre a noo de paradigma e de suautilidade na antropologia. Procurarei ser bastante sucinto, pois tenho tratadodisso com bastante freqncia e no quero estender essa conferncia com longasexplanaes. Contudo, h de se dizer que o meu conceito de paradigma se origi-

    na em sua verso kuhniana, na qual as idias de quebra-cabea (puzzle solving) ede exemplaridade so co-extensivas da de paradigma: a primeira, denotando ocarter fechado e circular dos problemas e de suas solues, ambos devidamenteprevistos pelo paradigma; a segunda, indicando a natureza modelar dessas soluesenquanto inscritas no caso de nossa disciplina em monografias exemplares. Ocarter exemplar dessas monografias significa que as teorias de tal ou qual sistemascio-cultural se amparam, em nvel metaterico, em paradigmas facilmenteidentificveis atravs da investigao epistemolgica. A rigor, essas monografiasexemplares expressam, em grau varivel, seus pressupostos paradigmticos. Mes-mo para Kuhn, que est mais familiarizado com paradigmas constitudos porregras formalizadas, a noo de exemplaridade naturalmente aceita quando setrata de cincias como as sociais ou humanas pouco afeitas formalizao. Masele fala ainda em matriz disciplinar como equivalente a paradigma. No meuentender, entretanto, cabe distingui-las como sendo duas noes.

    Diria, assim, que se matriz disciplinar pode ser sinnimo de paradigma,enquanto encarna o poder matricial de um determinado conjunto de regras (oque faz sentido em cincias marcadas por sucesso de paradigmas ou matrizes);j ao se tratar de conjunto de paradigmas que se do em simultaneidade (e noem sucesso), a idia de matriz disciplinar torna-se bastante til por permitirarticular tais paradigmas numa nica estrutura, inclusive, capaz de absorv-lossem anular nenhum deles (o que ocorre, tipicamente, na antropologia comotenho procurado demonstrar em outras oportunidades). Por isso no pretendoagora mostrar graficamente o que chamo de matriz disciplinar da antropologia.Bastaria indicar que tal matriz constituda por quatro paradigmas bsicos, his-toricamente demonstrveis:

    o racionalista(e estruturalista em sua acepo levi-straussiana), geradono interior da tradio intelectualista europia continental atravs da Escola Fran-cesa de Sociologia;

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    o estrutural-funcionalista, cuja origem se deu na tradio empirista igual-mente europia, porm insular, atravs da Escola Britnica de Antropologia Social;

    o culturalista, tambm abrigado na tradio empirista anglo-saxnica,mas surgido na Escola Histrico-Cultural Norte-americana;

    o hermenutico, vinculado tradio intelectualista europia continen-tal, reavivado, todavia, pelo movimento interpretativistanorte-americano, em tenta-tiva de recuperao tardia de uma perspectiva filosfica do sculo XIX.

    Cabe lembrar, a propsito, que os trs primeiros paradigmas so igual-mente produto desse mesmo sculo, mas como subproduto da Ilustrao, cons-tituindo, o quarto paradigma, reao razo iluminista. A esta reao que se

    tem aplicado o termo ps-moderno, como uma espcie de oposio chamadamodernidade, inaugurada no Iluminismo, perodo de um quase religioso culto razo. O pensador francs Jean-Francois Lyotard (1979) bastante esclarecedornesse sentido. Para justificar o tratamento to sinttico e incompleto que estoudando aqui questo da matriz disciplinar, gostaria de lembrar que tive a opor-tunidade de desenvolver extensamente uma argumentao sobre essa temticanos quatro primeiros captulos do livro Sobre o pensamento antropolgicoj men-cionado. Consistentes ou no, os argumentos l esto disposio do leitorinteressado em aprofundar a questo.

    Mas o certo que nem os trs primeiros paradigmas, inspirados na epistemenaturalista (como o de ver a antropologia como um tipo de cincia natural), nemo quarto, com sua crtica radical ao escopo naturalizante da disciplina, levaram ou esto levando a antropologia crise. Ver com olhos crticos osparadigmasda ordem como denominei os trs primeiros no significa criar uma crise naantropologia, mesmo se se considerar a posio dos mais fanticos ps-modernos,como um Stephen Tyler, por exemplo. Com a introduo pelo paradigmahermenutico de alguma desordem na matriz disciplinar (constituda, original-mente, pelos paradigmas orientados pelas cincias naturais), o que se viu foi pelo menos em meu modo de ver uma sorte de rejuvenescimento da disciplina.E isso graas ao aumento da tenso entre os paradigmas circunscritos na matriz:

    se essa tenso j havia entre aqueles primeiros paradigmas, com a incluso doltimo ela aumentou em escala, dinamizando extraordinariamente a antropolo-gia de nossos dias. Portanto, nunca demais insistir que a hermenutica no veiopara erradicar os paradigmas, hoje chamados de tradicionais. Mas para convivercom eles, tensamente, performando uma matriz disciplinar efetivamente viva eprodutiva. Tenho me valido de uma expresso de Paul Ricoeur, la greffe, ou seja,o enxerto, para exprimir o papel que a hermenutica desempenha na matrizdisciplinar. Um enxerto:

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    de moderao na autoridade do autor (com a eliminao de qualquerdose de autoritarismo);

    de maior ateno na elaborao da escrita (com a obrigatria tematizaodo processo de textualizao das observaes etnogrficas);

    de preocupao com o momento histrico do prprio encontro etnogrfico(com a conseqente apreenso da historicidade em que se vem envolvidossujeito cognoscente e objeto cognoscvel); e, finalmente, porm, no emltimo lugar,

    um enxerto de compreenso sobre os limites da razo cientfica, ou dacientificidade, da prpria disciplina (o que no quer dizer que tal signifique abrirmo da razo e de suas possibilidades de explicao; para ser mais claro, conti-

    nuo acreditando na razo e, para fazer eco s palavras de Habermas, diria que amodernidade ainda no se esgotou para comearmos a levar muito a srio essaps-modernidade).

    Vamos examinar de maneira tpica o que significa dizer de modo noextensivo um pouco mais cada um desses novos elementos que, graas pers-pectiva hermenutica, vieram se instalar no interior da matriz disciplinar comoque a aliment-la com os melhores nutrientes. assim que ao se falar deautor(idade) estamos problematizando algo que nem sempre levado em contapelo pesquisador, portanto podendo ser facilmente transformada emautoritarismo, uma vez que o poder(lembremo-nos de Foucault) sempre pre-sente e do lado da sociedade a que pertence o pesquisador, jamais por eleprprio questionado. Tomemos apenas um aspecto desse encontro etnogrfico,que me parece ser emblemtico por sua natureza crtica: trata-se da relao pes-quisador-informante, na qual o poder do primeiro contamina de resto toda aentrevista. Sabemos, hoje em dia, que se no for levada em conta tal situao,que condiciona o encontro etnogrfico, a investigao antropolgica nunca seriniciada de forma adequada. A condio de estar l(o being therede que nos falaGeertz) (7) por vrias razes, das quais essa apenas uma essencialmentecrtica. Ela gera, por outro lado, uma autonomia que, a rigor, ilusria. Euestive l, portanto sou testemunha do que vi e ouvi, no passa de uma frase

    plena de significados no mnimo dbios! Porque sob a inteno saudvel dopesquisador se responsabilizar pelo fato que descreve e interpreta (ou descrevendointerpreta), esconde-se uma segunda inteno verdade que nem sempreconsciente de dar legitimidade ao seu discurso (quase que dogmatizando-o aoleitor: e isso vale tanto para os seus pares como para o leitor comum). O estar ltende a no admitir dvidas... Eis o seu carter perverso.

    Tal constatao, porm, no quer dizer que o estar aqui (being here) nocarregue em si mesmo suas contradies. Geertz mostra o papel do ambiente

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    universitrio, desde o prosaico corredoronde as palavras so muitas vezesjogadasfora, at o gabinete de trabalho do professor, passando pelas bibliotecas, onde,alis, fazemos uma segunda pesquisa: a library fieldwork. No discutirei aqui

    todos os aspectos assinalados por Geertz, sempre bastante arguto em que pesesua inescapvel tendncia ao preciosismo verbal... Gostaria de limitar-me exclu-sivamente a apontar a instncia do estar aqui, gozando as condies do trabalhode gabinete, como sendo em si mesma problemtica, uma vez que ela neces-sariamente nos conduz dinmica dos jogos de linguagem, prprios de nossadisciplina (ou congneres), de cuja atitude crtica melhor diria: autocrtica no podemos nos furtar.

    O certo que tanto o estar no campo quanto o estar no gabinete, fazemparte de um mesmo processo de busca de conhecimento. Nesse sentido, a sepa-rao nunca to ntida como parece pretender Geertz. Isso porque ns semprelevamos o gabineteconosco quando vamos realizar a pesquisa de campo, tantoquanto trazemos o campoconosco quando voltamos ao nosso lugar de trabalho.Entendo que essa separao, ainda que seja real em termos de topos, de lugar, nodetermina qualquer processo esquizofrnico na personalidade do pesquisador/autor. Lembro-me, poca em que eu ainda fazia etnologia, quantas vezes emmeu dirio de campo eu iniciava verdadeiros ensaios simultaneamente etnografiaque realizava. Mas Geertz est certo quando, ao separar as duas instncias que,bem articuladas, criam o produto antropolgico, do-lhes o destaque devido,como duas faces que so de uma mesma moeda.

    Mas a maior importncia que vejo dentre esses novos elementos que pas-sam a ser absorvidos pela matriz disciplinar (pelo menos assim espero) o dahistoricidade, ou, em outras palavras, da conscincia histrica que passa a habitaro horizonte do pesquisador. Excusado dizer que a obra de Gadamer, Verdadee mtodo, cuja primeira edio alem de 1960, a grande responsvel pela reno-vao do pensamento hermenutico que as cincias humanas e, particularmente,a antropologia, haveriam de incorporar, naturalmente de forma varivel. No casoespecfico de nossa disciplina, o que se verificou foi o recrudescimento de certoscomponentes habituais do fazer antropolgico, mas que, todavia, no chegavama ser tematizados na rbita da disciplina e, por esse motivo, no ganhavam odesenvolvimento que mereciam. Refiro-me, de um modo todo especial, ao

    aprofundamento de uma maior reflexo a respeito da relao sujeito/objeto e deseu mtuo condicionamento histrico. Essa reflexo, entretanto, est longe dese inspirar num historicismo de origem diltheyana, mas, sim, no segundo Dilthey,o hermeneuta. Recuperada essa hermenutica por Gadamer (passando, natural-mente, por Heidegger, seu mestre), d-se um tipo muito especial de articulaoepistmica: a que envolve a histriae a linguagem, como o meio, ou ambiente,em que se edifica a esfera da intersubjetividade. Em poucas palavras, em simpli-ficao s justificvel numa conferncia, em que o tempo extremamente limita-do, diria que histria, linguagem e intersubjetividade formam uma espcie de

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    trip sobre o qual se assentam as bases de uma reflexo a respeito de questestradicionais na antropologia, presentes na obra de nossos clssicos comoMalinowski, Boas ou Evans-Pritchard. Talvez a questo mais central, pois nuclear naconstituio do conhecimento, seja a da relao sujeito cognoscente/objetocognoscvel a que j me referi.

    De que elementos a antropologia se enriquece com a tematizao de ques-tes como a da relao entre observador e observado, pesquisador e pesquisado,antroplogo e informante? Primeiro, pode-se dizer, que ela ganha ao se interro-gar sobre a especificidade de uma relao em que ambas as partes (observador eobservado) esto situadas num mesmo momento histrico, querendo dizer queo sujeito cognoscente no est imutavelmente engessado numa posio intocvelpelo objeto cognoscvel: ele, tanto como o Outro, est inserido na dinmica do

    encontro etnogrfico. Em termos epistemolgicos, diria que a objetividade con-cebida pelo positivismo, na qual o pesquisador daria todas as cartas, puramenteilusria. Segundo, e em decorrncia disso, a relao que se impe entre as partesenvolvidas no processo cognitivo, de monolgica, passa a ser dialgica, alteran-do a prpria prtica da chamada entrevistacom a transformao do pesquisadore de seu informante em interlocutores (significando isso que uma relao carac-teristicamente marcada como uma via de mo nica, passa a ser de mo dupla,conseqncia do dilogo tomado agora como essencial na busca nem sempre edificilmente alcanada, verdade de simetria nas relaes entre pesquisador epesquisado). No faz muito tempo, o Anurio antropolgico(1988) publicouum interessante artigo de Vincent Crapanzano, intitulado Dilogo, no qual esse

    antroplogo, ligado ao movimento interpretativista norte-americano, procuradiscutir o tipo de apreenso gadameriana da realidade examinando seu lugar nointerior da prpria experincia antropolgica. Se na filosofia hermenutica deGadamer o dialogo e, com ele, a compreenso (Verstehen), constitutivo doHomem (da ser ela uma hermenutica ontolgica), para a antropologia a rela-o dialgica conduz as partes envolvidas compreenso dupla o que significaque o Outro igualmente estimulado a nos compreender... Isso se d graas aampliao do prprio horizonte da pesquisa, incorporando, em alguma escala, ohorizonte do Outro. Trata-se da conhecida fuso de horizontesde que falam oshermeneutas. Contudo, gostaria de enfatizar, em nenhum momento o antrop-logo deve abdicar de posicionar-se no interior de seu prprio horizonte, isto ,minimamente no de sua disciplina, ela prpria uma cultura cientficade origemocidental. Portanto, nessa fuso de horizontes o pesquisador apenas abre espao perspectiva do Outro, sem abdicar da sua, uma vez que o seu esforo sersempre o de traduzir o discurso do Outro nos termos do prprio discurso de suadisciplina. H uma sorte de transferncia de sentido de um horizonte para outro.Apesar da suspeio da razolevantada pela hermenutica gadameriana (8), nempor isso essa razo estaria fadada obsolescncia... Apenas estaramos levandoem conta seus limites.

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    E aqui chegamos ltima parte desta exposio, momento em que preci-samente vamos procurar mostrar como a compreenso hermenuticae a explica-o nomolgicapodem ser articuladas, antes de se oporem irremediavelmente como parecem querer os mais impenitentes ps-modernos. Por tudo que argu-mentamos at agora, espero haver deixado claro ao menos minha posio de noreconhecer qualquer crise na Antropologia, muito menos uma que se poderiadenominar de epistemolgica. Isso s seria possvel se o paradigma hermenuticotivesse vindo ainda que tardiamente para eliminar os paradigmas da ordem,comprometidos com a tarefa de explicar a cultura, a sociedade, enfim, o homem,em termos nomolgicos; o que quer dizer naturalizando-osna maioria das ve-zes; e se digo na maioria das vezes, e no sempre, que pelo menos no desdobra-mento lvi-straussiano do paradigma racionalista (desdobramento, portanto, nomais naturalizante, ainda que nomolgico, e, assim, igualmente da ordem) o

    parmetro no mais a cincia natural, porm a lingstica, uma cincia humana.Por conseguinte, em lugar de eliminar todos os paradigmas da ordem, estamosvendo que a hermenutica veio travar com eles uma batalha no de morte, masde vida revivificando-os e introduzindo na matriz disciplinar uma tenso extre-mamente saudvel, em nada parecida com crise.

    A esta altura gostaria de recorrer a dois autores, filsofos, cujas reflexessobre a compreenso e a explicao abrem boas pistas para o trabalho do antro-plogo. So eles, Karl-Otto Apel e Paul Ricoeur. Ambos procuram mostrar, cadaum a seu modo, como o explicar e o compreender podem ser associados emempreendimentos cognitivos especficos. Mais uma vez mencionaria no nos

    permitir, o tempo de que dispomos, ir alm de meras menes das idias dessesautores. No obstante, creio que se justificam a ttulo de sugestes de leiturasmais completas e, certamente, mais avanadas, sempre possveis de serem levadasavante. Pelo menos dois comentrios eu gostaria de fazer inspirado em um e emoutro autor. O primeiro comentrio toma por referncia o ensaio Cientstica,hermenutica e crtica das ideologias, no qual Apel desenvolve a perspectiva deuma mediao dialtica entre a explicao das cincias sociais e a compreensodas tradies de sentido, prpria das cincias histrico-hermenuticas (9). Em-bora suas reflexes estejam orientadas substancialmente para a questo tica (ques-to essa que, dada a sua relevncia, em outras oportunidades eu mesmo a abor-dei e tendo por base o prprio Apel) (10), o que nos interessa agora assinalar que Apel, ao reconhecer a crtica das ideologias(a mesma de que fala Habermas),abre uma via bastante rica para a investigao em cincias sociais e, de modotodo especial, em antropologia. Se as cincias naturais emprico-analticas, admi-tidas habitualmente como cincias, e as cincias hermenuticas do esprito (sociaisou humanas) esto, as primeiras, orientadas pela infindvel busca de objetividade(atravs da qual se exercita a razo instrumental, interventora na natureza) e, assegundas, pela necessidade de estabelecer sentidonas aes observadas (isto em con-seqncia da obrigatria comunicabilidade intersubjetiva com vistas a acordos), o

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    que se conclui que do ponto de vista de nossa disciplina tanto um quantooutro tipo de cincia no deixa de desempenhar importante funo no interiorda matriz disciplinar. Os paradigmas que denominei da ordem, comprometidos

    com a objetividade custe o que custar, podem ser considerados como guardandouma relao dialtica com o paradigma hermenutico, ele prprio inexoravelmentecomprometido com as conexes de sentido inerentes esfera da intersubjetividade.No tomando Apel (e nem Habermas) ao p da letra, poderamos dizer quemediante crtica (e no apenas a crtica das ideologias), que permanentementedeve habitar o espao da matriz disciplinar, o antroplogo estaria semprevisualizando os limites dos diferentes paradigmas componentes da matriz, o queo levaria a transcend-los na prtica da investigao.

    Na transcendncia dos paradigmas, proporcionada pela admisso tcita deque eles se encontram em permanente tenso (chame-a ou no de dialtica), oimportante reconhecer a crescente unidade que marca a articulao entre osparadigmas da ordeme o hermenutico, a partir do momento em que e aquime inspiro em Ricoeur no se trata de uma questo de mtodoo que separa osprimeiros do ltimo paradigma. A explicao, inscrita programaticamente nosparadigmas da ordem, no colide com a compreenso constitutiva dahermenutica. Assim nos esclarece Ricoeur (1986:181): Sobre o planoepistemolgico, primeiramente, diria que no h dois mtodos, o mtodoexplicativo e o mtodo compreensivo. Para falar estritamente, apenas a explica-o metdica. A compreenso sobretudo o momento no metdico que nascincias interpretativas se compe com o momento metdico da explicao. Este

    momento precede, acompanha, fecha e assim envolve a explicao. Em com-pensao a explicao desenvolveanaliticamente a compreenso. Este elo dialticoentre explicar e compreender tem por conseqncia uma relao muito complexa eparadoxal entre cincias humanas e cincias da natureza.

    Para melhor entendermos o exposto nos termos de nossa disciplina, cabeainda algum esclarecimento sobre a questo desse sentido alcanado pela com-preenso. Diria, portanto, que enquanto a explicao d conta daquelas dimen-ses do real suscetveis de tratamento metdico (por mtodos funcionais e/ouestruturais, por exemplo), a compreenso capta o que Ricoeur chama de exce-dente de sentido(surcrot de sens). No difcil para ns apreender, mesmo intui-

    tivamente, o que significa esse excesso de sentido, desde que consideremos quetudo aquilo possuidor de alguma significao que seja irredutvel a mtodos,pode ser de alguma maneira recuperado pela via da compreenso. Alis, por aque nos reencontramos com a distino gadameriana entre verdadee mtodo,segundo a qual toda a verdade(ou simplesmente a veracidade) no se alcanapelo caminho exclusivo do mtodo. Esse algo mais que lhe escapa no s pode,mas deve ser alcanado pela via da compreenso. Se tomarmos isso como umalvo perfeitamente plausvel da antropologia, estaremos admitindo que nossamatriz disciplinar expressa com razovel fidelidade a atual epistemeda disciplina.

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    Para concluir, acrescentaria apenas que a considerarmos por crise um srioobstculo a ser transposto pela disciplina, ela se existe no tem qualquerrepercusso em nvel epistmico. Quero crer que os argumentos at aqui apre-sentados conduzem a essa assero. E gostaria de dizer que no me refiro exclu-sivamente antropologia que fazemos no Brasil, porm disciplina em sua di-menso planetria. Todavia, no poderia dizer o mesmo do ponto de vista deeventuais crises institucionais (que envolvem a organizao do trabalho cientfi-co ou mesmo sua prpria viabilidade em pases carentes de tradio acadmicaou, ainda, submetidos a regimes discricionrios da liberdade intelectual). Entrens, atualmente, a ordem institucional em que pesem as dificuldades da con-juntura econmica ainda bastante favorvel a empreendimentos de pesquisae de ensino avanado, se no na maioria dos departamentos de antropologia dopas, ao menos numa dezena deles, nos quais a disciplina j se consolidou ou est

    a ponto de consolidar-se. Como vem, trago comigo uma viso otimista sobre aantropologia que fazemos no Brasil. S espero que o tempo no me desminta.

    Notas

    1 Com relao sua aplicao nas cincias sociais, h pelo menos dois livros que eugostaria de assinalar por possurem especial importncia para ilustrar o nvel a quechegou o debate em torno de suas idias: trata-se do volume Paradigms & revolutions:applications and appraisals of Thomas Kuhns philosophy of science(1980), no qualvrios autores discutem a utilizao da abordagem kuhniana nas cincias sociais e nashumanidades; e o pequeno livro de Barry Barnes, T.S.Kuhn and social sciences(1982),por meio do qual o autor realiza uma avaliao dos conceitos de paradigma e de cin-cia normal, a par de mostrar seus possveis desenvolvimentos no campo das cinciassociais.

    2 Particularmente os que esto enfeixados em meu livro Sobre o pensamento antropolgico(1988).

    3 A conferncia em que a matriz disciplinar da Antropologia foi esboada pela primeiravez, intitulei Tempo e tradio: interpretando a antropologia, tendo sido publicada noAnurio antropolgico, (1984) posteriormente inserida em Sobre o pensamento antro-polgico.

    4 Considere-se, por exemplo, que as teorias de redes (networks) que h dcadas atrsforam desenvolvidas pela Escola de Manchester, podem ser consideradas como umatransposio dos instrumentos de anlise de relaes primrias, interpessoais, de socie-dades ditas simples, para sociedades complexas, particularmente as urbanizadas. Ambasas teorias, de parentesco e de redes, cobrem instncias praticamente equivalentes doponto de vista terico-metodolgico. No primeiro captulo de meu livro Enigmas esolues(1983) vali-me da oposio complementar das teorias de descendncia e dealiana para mostrar como se d a articulao entre teorias a despeito da diferenaexistente entre seus respectivos paradigmas.

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    5 Louis Dumont, especialmente em seu livro Introduction deux thories danthropologiesociale, de 1971); Ira R. Buchler & Henr y A. Selby, em Kinship and social organization:an introduction to theory and method, publicado em 1968.

    6 S para ilustrar o que entendo a respeito de uma monografia moderna, construdaatravs de uma problemtica central, menciono o livro de Victor Turner, Schism andcontinuity in an African society, Manchester University Press, 1957.

    7 Tanto o being therequanto o being hereso expresses bem apropriadas utilizadas porClifford Geertz em seu interessante Works and lives: the anthropologist as author, StanfordUniversity Press, 1988. A bibliografia a respeito desse movimento, que se chama an-tropologia interpretativa, rene algumas dezenas de bons artigos publicados em revis-tas especializadas estrangeiras. Dentre as revistas nacionais, destaco oAnurio antro-

    polgico(ns. 83, 84, 85, 86 e 88), pioneiro em colocar em discusso no Brasil a questohermenutica.

    8 Recomendo aqui a leitura do pequeno ensaio de Gadamer, The hermeneutics of suspecion,em Hermeneutics: questions and prospects. G.Shapiro & A.Sica (orgs.). The Universityof Massachusetts Press, 1984.

    9 Cf. Roberto Cardoso de Oliveira, O saber, a tica e a ao social, em Manuscrito:Revista Internacional de Filosofia, v. XIII, n.2, p. 7-22, out. 1990; Prcticas intertnicasy moralidad: Por un indigenismo (auto)crtico, em Amrica Indgena, v. L, n. 4, p. 9-25, out./dez. 1990; Antropologia e moralidade, em Revista Brasileira de CinciasSociais. ANPOCS, v. 9, n.24, p. 110-121, 1994.

    Referncias bibliogrficas

    APEL, Karl-Otto. Scientistic, hermeneutics and the critique of ideology. In: Towards atransformation of philosophy. Routledge & Kegan Paul, 1980; ed. espanhola Latransformacin de la filosofia, t. II, Taurus Ediciones, 1985.

    KROTZ, Esteban Krotz (org.). El concepto crisis en la historiografia de las cienciasantropolgicas. Editorial Universidad de Guadalajara, 1982.

    LVI-STRAUSS, Claude. A crise moderna da antropologia. Currier de lUnesco, nov.

    1961. Traduzido e republicado em Revista de Antropologia, v. 10, n. 1/2, 1962.LYOTARD, Jean-Franois. La condition postmoderne. Minuit, 1962.

    MERLEAU-PONTY, Maurice. De Mauss Claude Lvi-Strauss. In: Signes, Gallimard,1960.

    RICOEUR, Paul. Expliquer et comprendre: sur quelques connexions remarquablesentre la thorie du texte, la thorie de laction et la thorie de lhistoire. In: Du texte laction. Essais dhermneutique, II, ditions du Seuil, 1986.

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    STOCKING JR., George. Anthropology in crisis? A view from between generations.In: Crisis in anthropology. View from Spring Hill, 1980, Garland Publish.Inc., 1982.

    Roberto Cardoso de Oliveira, antroplogo, membro do Instituto de Filosofia e CinciasHumanas (IFCH) e do Centro de Lgica, Epistemologia e Histria da Cincia (CLE), ambosda Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

    Palestra feita pelo autor no seminrio Cincia e sociedade: a crise dos modelos, realizadoem 19 de novembro de 1993, na Universidade Federal do Paran.