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2⁰ Simpósio Internacional de História das Religiões
XV Simpósio Nacional de História das Religiões
ABHR 2016
Homens sem mulheres: o cultivo da sociablidade masculina nos “Terços dos
Homens” da cidade de São Carlos - SP
Renan Rossi1
Esta comunicação oral se refere a uma pesquisa que versa sobre novas
configurações de sociabilidade masculina entre leigos católicos, permeadas por uma
específica divisão sexual dos trabalhos religiosos feitos por estes devotos. Trata da
difusão dos grupos de Terço dos Homens, que são coletividades de caráter muitas
vezes restritivo no tocante à divisão de gênero, organizadas em torno de uma
hierarquia interna e que se reúnem semanalmente para se entoar o rosário. Em seu
discurso nativo, os membros destes grupos correlacionam a reza do terço à
execução de um importante serviço religioso o qual não pode ser relegado apenas à
responsabilidade das mulheres, sendo um encargo a ser dividido – mas em ocasiões
distintas para cada um dos gêneros, considerados por eles como apenas dois: o
masculino e o feminino. Busco, outrossim, retratar brevemente algumas questões
sobre a relação entre homens e mulheres no papel de leigos católicos.
Palavras-chave: Masculinidades; Trabalho Religioso; Terço dos Homens
São sete horas da noite e vinte minutos. Chego na igreja e já há alguns
homens sentados, uns poucos em pé. Não são mais do que dez neste momento. Em
sua maioria já grisalhos. Dentre eles, dois coordenadores atribuem uma função para
1 Mestre em Sociologia e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São
Carlos (UFSCar). Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Membro do Núcleo de Estudos de Religião, Economia e Política (NEREP), cuja sede é no Laboratório de Estudos sobre Trabalho, Profissões e Mobilidades (LEST) do Departamento de Sociologia da UFSCar.
aqueles que estão interessados em fazê-la. Tal função constitui-se em puxar o terço,
que é quando alguém inicia as orações, para que outros, em forma de resposta, as
completem.
Outros homens, paulatinamente, vão chegando. Logo são vinte e sete
homens, a contar comigo. Nenhuma mulher. Cumprimentam-se com um breve boa
noite, em tons de informalidade, ou ainda com um Salve Maria, que é também uma
expressão identitária. Os que se sentam mais próximos travam, em voz baixa, algum
diálogo até dar o horário. Os bancos por todos ocupados são os mais próximos do
presbitério, à esquerda do corredor central. O resto da nave está vazia.
O principal coordenador, sentado na primeira fileira, de costas para os outros
homens, tem em seu campo de visão dois altares. Aquele em que se celebram as
missas – o altar-mor – e ainda um outro, mais próximo, que é uma mesinha
improvisada sobre a qual está uma imagem de Nossa Senhora de Fátima. Tanto o
coordenador quanto a maioria dos membros do grupo trazem em seus pescoços um
escapulário padrão feito em tecido de cor azul. Alguns o esqueceram. Até o fim da
noite, serão lembrados de não esquecê-lo novamente. Nas mãos de todos, um
mesmo objeto. Deste não houve quem se olvidasse. O terço. Com o decorrer da
reza, percebo que manuseam suas contas com destreza. Alguns trazem ainda um
livro de orações que estrutura a reunião e compila as jaculatórias a serem
executadas. De todo modo, muitos já as sabem de cor.
Contemplam hoje os mistérios gozozos, que são cinco. O primeiro é
contemplado estando os homens de joelhos. A despeito de muitos já não serem tão
novos, a grande maioria permanece ajoelhada até o findar da última ave-maria e do
glória deste primeiro mistério. Para as próximas quatro levas de dez ave-marias,
muitos permanecem sentados. Alguns, vale notar, voltam a se ajoelhar para a última
rodada de orações, mas, desta vez, não são todos que o fazem. Terminada a reza
do terço e o recitar das jaculatórias, passam para a leitura do evangelho. Para isto,
ficam todos de pé. Findada a declamação do evangelho, voltam todos a se sentar e
é quando algo pouco usual acontece.
Nas igrejas, é comum que após a leitura do texto sagrado, uma única pessoa
se dê o direito de tomar o direito a palavra – normalmente essa pessoa é o
sacerdote – e fazer uma exposição oral acerca das coisas que o texto diz. Não hoje.
Na reunião deste grupo do terço, os homens dividem suas apreensões sobre a
leitura de maneira democrática. Todos podem dizer o que pensam, desde que não
se atente muito contra o horário. O fato de estarem sentados uns de costas para os
outros torna a circunstância um tanto quanto dificultosa, mas, ainda assim, estes
homens buscam se voltar para aquele que está a dizer alguma coisa, ao menos no
caso das falas mais concisas.
Passado tal momento de partilha, o coordenador volta a assumir um papel
mais central, é quando ele, agora de pé e de frente para todos, passa os informes e
exortações ao grupo. Neste dia, em especifico, a admoestação é direcionada no
intuito de mostrar a importância da pontualidade para que as reuniões corram bem.
Não apenas isso, mas também provar como, por meio da pontualidade, as reuniões
terminam mais cedo, o que permite um tempo a mais para que possam cultivar um
espírito de grupo, no sentido de estritarem vínculos. A preocupação do coordenador
é que as reuniões não se encerrem com ares de obrigação, mas como uma forma de
pertença. E, de fato, assim ocorre. Ao invés de voltarem correndo para seus lares,
estes homens passam ainda alguns minutos conversando, amistosamente, de
maneira menos contida, de forma mais aberta e em tons de voz mais altos. Pouco a
pouco, um e outro vão se despedindo, até que o coordenador, por fim, fecha as
portas da igreja. Está encerrada mais uma reunião do Terço dos Homens.
Os trechos acima foram escritos a partir de anotações de meu caderno de
campo. São relativos à primeira noite em que realizei uma visita a um grupo do
Terço dos Homens. Fiquei surpreso por encontrar na fala do coordenador, assim,
explicitamente, traços daquilo que eu levava como minha primeira hipótese. A ideia
de que aquele seria um espaço propício para a sociabilidade destes homens e não
apenas um encontro rotineiro e mecânico. Desde meu mestrado, estou
especialmente interessado em compreender como ocorrem vinculações sociais de
motivação religiosa, em outras palavras, entender como as pessoas são socializadas
em meios religiosos. Primeiramente descritos por Durkheim (2011), os processos de
socialização não são estanques e prosseguem lado a lado com o envelhecimento –
estamos sempre a aprender a viver em sociedade(s) –, sendo assim, percebi no
Terço dos Homens um potencial em ação no cultivo naqueles indivíduos de formas
distintas de se pensar, agir e sentir, denominadas por Durkheim como maneiras de
fazer.
Tendo escolhido o catolicismo como plano de fundo de minhas pesquisas, ao
longo do mestrado procurei analisar a forma como os novos membros do clero
cultivavam – e eram cultivados – nas maneiras de fazer necessárias para a
reprodução de seu papel social. Assim sendo, ocupei-me de suas trajetórias
institucionais, em especial, aquelas próprias ao ingresso e formação no seminário.
Não que esse objeto tenha se esgotado, mas, na ânsia de buscar algo novo,
procuro, desta vez, entender a forma como não só os membros do clero mas
também os leigos católicos são socializados, vindo a construir a quem são e a terem
para si identificações específicas e discursos próprios, ainda que estes possam ser
bastantes e bastante variáveis entre si, já que o catolicismo é tão múltiplo em
carismas quanto em inclinações políticas e ideológicas.
Tendo tais coisas em mente, fiquei especialmente interessado por algo que
de meu conhecimento ainda não foi estudado no âmbito das Ciências Sociais da
Religião no Brasil: os Terços dos Homens. Assim como nos seminários, percebo que
no desenvolvimento das atribuições de seu trabalho religioso, também estes homens
do terço, como são por eles mesmos chamados, frequentam um ambiente
homossocial, em que as mulheres têm pouco ou nenhum acesso. Em momentos
específicos, tanto os membros do clero como estes leigos, tornam-se homens sem
mulheres - o que não deve ser tomado num sentido estrito, de que os homens dos
grupos de terço não se relacionem como mulheres ou que sejam casados, porque
muitos o são e têm suas mulheres; mas, num outro sentido, o de que, assim como
os padres, frequentam ambientes voltados exclusivamente ao sexo masculino no
exercer de suas funções religiosas, de acordo com uma divisão sexual do trabalho
religioso.
Esta pesquisa se encontra em fase de formulação, sendo esta comunicação
oral ao mesmo tempo uma demonstração de interesse, como também uma
possibilidade de receber críticas e sugestões ao andamento do trabalho, que ainda
está a se realizar. Além de socialização, já citada como um dos conceitos-chave com
que virei a trabalhar, adiciono também o de trabalho religioso, a partir do referencial
teórico de Pierre Bourdieu (1992). Entre tantas coisas a serem explicitadas, a
primeira delas, assim concebo, é a de definir em que se constitui esse trabalho
religioso no que toca o catolicismo e como se dá essa sua divisão no que toca
homens e mulheres.
É de conhecimento geral o fato de que a Igreja Católica, ao longo de sua
história, se constituiu processualmente em uma instituição formada por homens, no
que tange o topo de sua hierarquia. Conjeccturas à parte – entre as quais se destaca
a da veracidade ou não da existência de uma Papisa Joana –, temos que a igreja de
Roma, em sua dimensão administrativa, tem sempre homens a desempenhar os
mais importantes cargos de sua organização: papas, cardeais, bispos, padres, etc.
Cada um destes papéis sociais têm em si consolidados certos direitos e funções
específicas a serem desempenhadas.
De maneira complementar a isto, homens e mulheres ocupam outras funções
comuns no seio da comunidade católica. Há monges e monjas, por exemplo.
Homens e mulheres catequistas. Homens e mulheres nos grupos de liturgia.
Homens e mulheres que são ministros da Eucarista. Homens e mulheres que rezam
o terço – juntos ou separadamente. Existem, no entanto, funções não
compartilhadas, que são exclusivas a um sexo. As freiras, como um exemplo. Os
diáconos, como outro. Neste último caso, por quanto tempo? Há de se considerar a
emergência do tema do diaconato, relatada pelos mais diversos noticiários, quando
atribuída ao Papa Francisco, em meados do ano de 2016, uma fala que denota a
possibilidade de se envidarem estudos sobre o papel da mulher no cristianismo
primitivo, verificando então a existência de diaconisas para, assim, reconsiderar a
tradição e se validar historicamente uma reimplementação do diaconato feminino. O
tema despertou furor em alguns grupos católicos, avessos à ideia de que as
mulheres possam se tornar diaconisas e, assim, receberem o direito de ministrar
Celebrações da Palavra, ou ainda batizarem crianças. Já outros grupos de pessoas
se manifestaram favoráveis a essa possibilidade que, em sua visão, denotaria um
necessário avanço na democratização do acesso ao espaço público.
Leonardo Boff (2008), num livro chamado Eclesiogênese: a reinvenção da
Igreja, discutiu essa questão da divisão sexual do trabalho religioso, ainda que não
com este termo, num capítulo denominado Como a Igreja trata as mulheres. Neste
capítulo ele se pergunta se em um contexto de alargamento do campo das
liberdades individuais na contemporaneidade, quais papeis poderiam as mulheres
assumir dentro da Igreja Católica. Para provar que as coisas não são estáteis no que
toca o catolicismo, mas que, muitas vezes, são renegociáveis, o autor dá o exemplo
e uma situação em que o Código de Direito Canônico, em uma versão anterior,
vedava às mulheres a possibilidade de servirem no presbitério ou de interferirem em
processos de beatificação ou canonização. Não poderiam ainda adminstrar
quaisquer bens paroquiais, sendo parte, por exemplo, de um conselho econômico
paroquial. Coisas que em 2016 são possíveis e, em alguns casos, bem comuns.
A realidade é que grande parte da comunidade de fieis é composta por
mulheres e são elas que, no mais das vezes, desempenham papeis os mais
importantes nas atividades de suas paróquias – seja por meio da catequese, ou no
seu envolvimento com pastorais. Em tal contexto, em que as mulheres estão a
ocupar grande espaço no seio da Igreja, Boff se pergunta sobre a questão das
mulheres serem ordenadas, não apenas diaconisas, mas também sacerdotisas,
presbíteras...
Até os dias de hoje, a ordenação é permitida somente aos homens, sendo
estritamente masculina no que tange o sacerdócio ministerial. Para Boff, naquele
mesmo capítulo e livro, tal divisão sexual do trabalho religioso estaria fundamentada
não em objeções como o fato de Jesus ter escolhido apenas homens como seus
apóstolos e nenhuma mulher, como registrado nos evangelhos canônicos; mas
atrelada à permanência de um costume e não de uma tradição doutrinal, uma vez
que a não-ordenação feminina estaria na esfera de um desenvolvimento histórico-
sociológico e não fundamentada em princípios teológicos claros.
Em suma, o acesso ao Sagrado é sempre cheio de interdições e estas
denotam relações de poder. Em termos nativos, Boff (2008) ainda aponta a
existência de dois tipos de sacerdócios – sobre os quais a interdição de gênero atua
de modos distintos, sendo mais acentuada no segundo do que no primeiro. O
primeiro, um empréstimo protestante, é o sacerdócio universal, ao qual as mulheres,
assim como homens leigos, estariam todos convidados, já que compreende um
sentido de vida completo de serviço à divindade. Já o outro sacerdócio – e este
exclui as mulheres –, é o sacerdócio ministerial, próprio dos padres ordenados,
chamados para cumprir com a vontade de Deus em suas vidas, mas também para
serem funcionários da empresa católica, administrando seus cultos, a consagração,
os sacramentos, as comunidades, os rendimentos, enfim. Nota-se, assim, que
apenas uma forma mais geral de sacerdócio é permitida às mulheres, aquele que é
permitido a todo laicato, em outras palavras, a todos os leigos.
No contexto pós-conciliar, ou seja, depois do Concílio Vaticano II, houve um
momento especial em que as questões referentes aos leigos foram discutidas de
modo pormenorizado. Foi durante o Sínodo dos Bispos de 1987, que durou todo o
mês de outubro daquele ano, tendo sido realizado em Roma. Interessante notar algo
registrado pelo papa João Paulo II (2001) no documento Christifidelis laici – vocação
e missão dos leigos na Igreja e no mundo: na ocasião daquele sínodo estiveram
presentes homens e mulheres – leigos e leigas – no papel de auditores e auditrices2.
Na presença dos membros do clero, estes membros do laicato puderam dar uma
visão orgânica de sua própria posição, relatando suas experiências, assim como
conselhos e sugestões. Um dos temas mair abordados naquele encontro foi
justamente o do crescimento da participação dos leigos, dos novos papeis a eles
confiados, dos quais haviam sido cerceados por tanto tempo, ao passo que o clero
tinha um papel mais centralizador dos serviços eclesiais:
Prova-o, entre outras coisas, o novo estilo da colaboração entre sacerdotes, religiosos e fiéis leigos; a participação ativa na liturgia, no anúncio da Palavra de Deus e na catequese; a multiplicidade de serviços e de tarefas confiadas aos leigos e por eles assumidas; o rápido florescimento de grupos, associações e movimentos de espiritualidade e de empenho laicas; a participação cada vez maior e significativa das mulheres na vida da Igreja e o progresso da sociedade (JOÃO PAULO II, 2011, p.8).
Entre as dificuldades que o Papa João Paulo II aponta, na supracitada
exortação apostólica, como sendo relacionadas a esse fenômeno de atribuições de
serviços eclesiais ao laicato, ele aponta a possibilidade dos leigos se deixarem
ocupar demasiadamente de suas funções na igreja e se esquecerem de cumprir com
suas responsabilidades no mundo profissional, econômico, cultural, social e político.
Outra questão por ele levantada, a partir das falas dos bispos e fiéis presentes no
sínodo, é a possibilidade dos leigos levarem suas vidas adotando uma indevida
separação entre fé e vida, no sentido de um agir pautado pela esfera religiosa
quando na igreja, mas pautado, majoritariamente, por outros modos de se portar na
vida secular. Sempre orientado em torno da função dos leigos num contexto
pós-conciliar, uma das principais questões levantadas por esse sínodo foi
justamente sobre o lugar e a função da mulher tanto na Igreja Católica quanto na
sociedade. O sínodo, da forma como retratado no documento papal a que deu
origem, teve o papel de corroborar as conquistas já levantadas pela “teoria” do
Concílio Vaticano II, demonstrando na prática como essas coisas se davam, como
2 O documento em questão faz uso do termo auditrice, e não auditora, para definir essas mulheres que no
âmbito de tal sínodo puderam partilhar suas contribuições para a assembleia de bispos e outros leigos ali
reunidos.
se vê no trecho a seguir, retirado também de tal exortação de João Paulo II (2011,
p.9): “Com efeito, o desafio que os padres sinodais aceitaram foi o de indicar os
caminhos concretos para que a maravilhosa “teoria” sobre o laicato, expressa pelo
Concílio possa conveter-se numa autêntica “praxe” eclesial”. É que muito do que
havia sido discutido no Concílio Vaticano II nunca houvera sido implementado antes,
sendo assim, passados vinte anos do maior concílio ecumênico do século XX,
autoridades da igreja e seus fiéis se puseram a refletir sobre os passos dados. Sobre
o papel das mulheres, poder-se-ia pensar que fossem as mulheres mais presentes
na religião, ao se olhar o perfil das pessoas sentadas numa celebração da missa,
por exemplo, ou se olhar para dados censitários sobre fiéis religiosos, mas Maria
José Rosado Nunes, em um texto de apresentação de dossiê, descontroi tal ideia de
uma maneira efetiva:
Dados estatísticos costumam confirmar a observação do senso comum de que as mulheres investem mais em religião do que os homens. Daí se conclui que elas seriam ‘mais religiosas’ do que eles. Tal visão esconde um enorme equívoco que as atuais formas fundamentalistas das religiões, no Ocidente como no Oriente, vêm desvendar. Na verdade, as religiões são um campo de investimento masculino por excelência. Historicamente, os homens dominam a produção do que é ‘sagrado’ nas diversas sociedades. Discursos e práticas religiosas têm a marca dessa dominação. Normas, regras, doutrinas são definidas por homens em praticamente todas as religiões conhecidas. As mulheres continuam ausentes dos espaços definidores das crenças e das políticas pastorais e organizacionais das instituições religiosas. O investimento da população feminina nas religiões dá-se no campo da prática religiosa, nos rituais, na transmissão, como guardiãs da memória do grupo religioso (NUNES, 2005, 363).
O que se percebe é que, mesmo com a abertura pós-conciliar para que as
mulheres tenham mais acessos aos serviços eclesiais, ainda assim, elas estão
delimitadas daqueles serviços que tem uma maior carga de prestígio, que são
reconditos do Sagrado que apenas uns poucos, homens, os podem executar. Ainda
assim, funções outras, como a gerência de grupos de liturgia, a catequese, as rezas
de terço, entre outros exemplos que se poderia abordar, vão se tornando áreas de
uma forte presença feminina. A cada vez mais as mulheres vão ocupando essas
funções religiosas no âmbito das igrejas católicas, sendo o Terço dos Homens, no
entanto, uma aparente contraposição a esse processo. O seu caráter de
exclusividade masculina, cujo único elemento feminino – porém central – é o culto da
figura de Nossa Senhora, permitiria notar um certo contraponto com os avanços
acima descritos? A respeito da relevância de tal pergunta e de outras, no mesmo e
desvalorizado campo das Ciências da Religião:
A religião é, antes de tudo, uma construção sócio-cultural.
Portanto, discutir religião é discutir transformações sociais, relações de poder de classe, de gênero, de raça/etnia; é adentrar num complexo sistema de trocas simbólicas; é deparar-se com um sistema sócio-cultural permanentemente redesenhado que permanentemente redesenha as sociedades. (SOUZA, 2004, p. 122).
Os fenômenos religiosos não são estáticos mas processuais, inclusive os
acima descritos. Sandra Duarte de Souza (2004) diz que, dessa forma, que a religião
não se trata de um fenômeno estático sequer quando se encontra cristalizado na
forma de organizações religiosas. Ela explicita ainda um voto de que os estudos da
religião venham a ser vistos com um olhar mais atento pelos estudos feministas, ao
que eu acrescentaria a crescente área dos estudos de masculinidades, que também
deve travar novos entrelaçamentos, para que haja uma compreensão multifacetada
da construção dos sujeitos, de seus desejos e histórias.
A construção de muitas formas de masculinidades passa pelo campo do
religioso ou do Sagrado. Como Souza analisa, “os sistemas simbólicos religiosos se
constituem em importantes mecanismos de construção da subjetividade humana,
atuando de maneira estruturada e estruturante” (SOUZA, 2004, p.123).
Os próprios sujeitos reconhecem aqueles elementos que constituem a sua
própria masculinidade ou feminilidade no meio religioso, e acabam por optar, ou
serem cooptados para, algumas funções e não outras. A reza do terço,
tradicionalmente, veio a se constituir uma prática do catolicismo muito própria das
mulheres e pouco envidada pelos homens, se não em ambientes rurais e festivos,
em que toda a comunidade estava reunida. Essa afinidade entre a reza do terço e
alguns perfis de fiéis pode se perceber no trecho a seguir, que retrata a formação
histórica de movimentos de leigos nos Estados Unidos da América:
Possivelmente por causa do caráter democrático e voluntarista da sociedade americana, organizações religiosas de todos os tipos floresceram: a Holy Name Society para os homens, a Altar and Rosary Society para as mulheres, a Sociedade de São Vicente de Paulo para ajudar os pobres, além de organizações étnicas de todos os tipos […]. Cada um desses grupos tinha um propósito predominantemente religioso, mas eles também serviam como organizações sociais e forneciam seguros de vida e ajuda para os membros em necessidade. Junto com a Igreja e a escola, elas se constituíam como um completo mundo católico (HITCHCOCK, 2012, p.436, tradução nossa).
Ao longo da pesquisa, procurarei fazer uma análise histórica inicial da
construção da relação entre mulheres e o terço, para demonstrar melhor as
implicações do Terço dos Homens nesse campo que se desvenda nesse instante
como oportunidade de analisar como se dão as experiências entre homens nestes
grupos. Em termos de recorte, escolho o diocese de São Carlos, no estado de São
Paulo, uma vez é, assim acredito, uma em que esse fenômeno de difusão dos
grupos de reza de terço exclusivos para homens mais encontra expansão no
sudeste. O exemplo desta diocese é também emblemático porque compreende o
caso da pequena cidade de Dois Córregos, onde chegam a se reunir mais de
setecentos homens na principal igreja da cidade, que tem por volta de 26 mil
habitantes; ao passo que as mulheres católicas da cidade se ocupam, ao mesmo
tempo, da reza do terço em uma capela que fica próxima da igreja na qual os
homens fazem suas orações.
Devido ao montante de pessoas ali agregadas, considero este caso como
emblemático para compreender tal fenômeno do crescimento de tais grupos. Meu
intuito é realizar uma pesquisa etnográfica em Dois Córregos em algumas paróquias
da cidade de São Carlos, sede dessa mesma diocese, mas, ao mesmo tempo, estar
atento aos desdobramentos de outros grupos ao longo do Brasil, para isso, farei uso
também das redes sociais acompanhando por meio delas o que se passa nestes
agrupamentos de outros lugares.
Outro de meus objetivos é fazer uma incursão no evento principal dos Terços
dos Homens, aquele que acontece uma vez ao ano na cidade de Aparecida – SP,
onde existe um grande santuário mariano. No ano de 2016, mais de cinquenta mil
homens do terço estiveram reunidos em tal santuário. Para o ano de 2017 e nos
seguintes, tenho a meta de ir até lá, acompanhar de perto as dinâmicas de tal
encontro, registrando e coletando mais informações sobre quem são, o que fazem e
como se constroem esses indivíduos que se denominam homens do terço.
Esta comunicação se propõe como primeiro esboço de estudo de um campo
rico de análise que não tem sido estudado na área das Ciências da Religião e essa
pesquisa se projeta pioneira no intuito de entender tal processo por outras via que
não a dos homens do terço que por ventura sejam intelectuais orgânicos e que
escrevem sobre si mesmos. A visão que têm de si, assim como as falas das fontes
oficiais católicas sobre gênero e estrutura organizacional me interessam no sentido
de serem manifestações de maneiras de pensar, agir e sentir específicas, exteriores
a esses indivíduos. Assim sendo, além da leitura das fontes oficiais, buscarei
estabelecer padrões de coisas ditas nas entrevistas semi-estruturas e etnográficas.
Tais entrevistas me permitirão ainda entender a trajetória de vida desses sujeitos,
além de perguntar a eles como se dão suas relações cotidianas com mulheres e o
seu pensamento acerca do papel delas na igreja. A isso se soma a pesquisa
etnográfica no seu sentido tradicional, mas também na sua possibilidade digital ou
virtual.
Os dados assim recolhidos serão analisados por meio de referenciais teóricos
próprios das Ciências da Religião, porém, procurarei ainda referenciais outros para
melhor compreender esse fenômeno, buscando conceitos e aportes metodológicos
também nos campos de estudos sobre gerações e sobre gênero – em especial, na
area dos estudos sobre masculinidades. Espero assim compreender como se
estruturam os grupos de Terço dos Homens e como se dá a construção identitária e
a socialização ali envidada, atentando ainda para o que eles concebem ser um
homem e, mais exatamente, um homem católico; quais seus papeis e quais os das
mulheres e de todos aqueles que não se enquadram em tal divisão binária.
Referências Bibliográficas
BOFF, Leonardo. Eclesiogênese: a reinvenção da Igreja. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2008. 251 p.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1992.
DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. Petrópolis: Vozes, 2011.
HITCHCOCK, James. History of the Catholic Church – from the Aposticle Age to the Third Millenium. San Francisco, Ignatius Press, 2012.
JOÃO PAULO II, Papa. Christifidelis laici – vocação e missão dos leigos na Igreja e no mundo. 16 ed. São Paulo: Paulinas, 2011. NUNES, Maria José Rosado. Gênero e religião. Estudos Feministas, Florianópolis, vol.13, no.2, maio/ago. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ref/v13n2/26888.pdf>. Acesso em: 20 maio 2016. SOUZA, Sandra Duarte de. Revista Mandrágora: gênero e religião nos estudos feministas. Estudos Feministas, Florianópolis, vol.12, p.122-130, set./dez. 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ref/v12nspe/a14v12ns.pdf>. Acesso em: 20