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2Simpósio Internacional de História das Religiões XV Simpósio Nacional de História das Religiões ABHR 2016 Homens sem mulheres: o cultivo da sociablidade masculina nos “Terços dos Homens” da cidade de São Carlos - SP Renan Rossi 1 Esta comunicação oral se refere a uma pesquisa que versa sobre novas configurações de sociabilidade masculina entre leigos católicos, permeadas por uma específica divisão sexual dos trabalhos religiosos feitos por estes devotos. Trata da difusão dos grupos de Terço dos Homens, que são coletividades de caráter muitas vezes restritivo no tocante à divisão de gênero, organizadas em torno de uma hierarquia interna e que se reúnem semanalmente para se entoar o rosário. Em seu discurso nativo, os membros destes grupos correlacionam a reza do terço à execução de um importante serviço religioso o qual não pode ser relegado apenas à responsabilidade das mulheres, sendo um encargo a ser dividido mas em ocasiões distintas para cada um dos gêneros, considerados por eles como apenas dois: o masculino e o feminino. Busco, outrossim, retratar brevemente algumas questões sobre a relação entre homens e mulheres no papel de leigos católicos. Palavras-chave: Masculinidades; Trabalho Religioso; Terço dos Homens São sete horas da noite e vinte minutos. Chego na igreja e já há alguns homens sentados, uns poucos em pé. Não são mais do que dez neste momento. Em sua maioria já grisalhos. Dentre eles, dois coordenadores atribuem uma função para 1 Mestre em Sociologia e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Membro do Núcleo de Estudos de Religião, Economia e Política (NEREP), cuja sede é no Laboratório de Estudos sobre Trabalho, Profissões e Mobilidades (LEST) do Departamento de Sociologia da UFSCar.

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2⁰ Simpósio Internacional de História das Religiões

XV Simpósio Nacional de História das Religiões

ABHR 2016

Homens sem mulheres: o cultivo da sociablidade masculina nos “Terços dos

Homens” da cidade de São Carlos - SP

Renan Rossi1

Esta comunicação oral se refere a uma pesquisa que versa sobre novas

configurações de sociabilidade masculina entre leigos católicos, permeadas por uma

específica divisão sexual dos trabalhos religiosos feitos por estes devotos. Trata da

difusão dos grupos de Terço dos Homens, que são coletividades de caráter muitas

vezes restritivo no tocante à divisão de gênero, organizadas em torno de uma

hierarquia interna e que se reúnem semanalmente para se entoar o rosário. Em seu

discurso nativo, os membros destes grupos correlacionam a reza do terço à

execução de um importante serviço religioso o qual não pode ser relegado apenas à

responsabilidade das mulheres, sendo um encargo a ser dividido – mas em ocasiões

distintas para cada um dos gêneros, considerados por eles como apenas dois: o

masculino e o feminino. Busco, outrossim, retratar brevemente algumas questões

sobre a relação entre homens e mulheres no papel de leigos católicos.

Palavras-chave: Masculinidades; Trabalho Religioso; Terço dos Homens

São sete horas da noite e vinte minutos. Chego na igreja e já há alguns

homens sentados, uns poucos em pé. Não são mais do que dez neste momento. Em

sua maioria já grisalhos. Dentre eles, dois coordenadores atribuem uma função para

1 Mestre em Sociologia e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São

Carlos (UFSCar). Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Membro do Núcleo de Estudos de Religião, Economia e Política (NEREP), cuja sede é no Laboratório de Estudos sobre Trabalho, Profissões e Mobilidades (LEST) do Departamento de Sociologia da UFSCar.

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aqueles que estão interessados em fazê-la. Tal função constitui-se em puxar o terço,

que é quando alguém inicia as orações, para que outros, em forma de resposta, as

completem.

Outros homens, paulatinamente, vão chegando. Logo são vinte e sete

homens, a contar comigo. Nenhuma mulher. Cumprimentam-se com um breve boa

noite, em tons de informalidade, ou ainda com um Salve Maria, que é também uma

expressão identitária. Os que se sentam mais próximos travam, em voz baixa, algum

diálogo até dar o horário. Os bancos por todos ocupados são os mais próximos do

presbitério, à esquerda do corredor central. O resto da nave está vazia.

O principal coordenador, sentado na primeira fileira, de costas para os outros

homens, tem em seu campo de visão dois altares. Aquele em que se celebram as

missas – o altar-mor – e ainda um outro, mais próximo, que é uma mesinha

improvisada sobre a qual está uma imagem de Nossa Senhora de Fátima. Tanto o

coordenador quanto a maioria dos membros do grupo trazem em seus pescoços um

escapulário padrão feito em tecido de cor azul. Alguns o esqueceram. Até o fim da

noite, serão lembrados de não esquecê-lo novamente. Nas mãos de todos, um

mesmo objeto. Deste não houve quem se olvidasse. O terço. Com o decorrer da

reza, percebo que manuseam suas contas com destreza. Alguns trazem ainda um

livro de orações que estrutura a reunião e compila as jaculatórias a serem

executadas. De todo modo, muitos já as sabem de cor.

Contemplam hoje os mistérios gozozos, que são cinco. O primeiro é

contemplado estando os homens de joelhos. A despeito de muitos já não serem tão

novos, a grande maioria permanece ajoelhada até o findar da última ave-maria e do

glória deste primeiro mistério. Para as próximas quatro levas de dez ave-marias,

muitos permanecem sentados. Alguns, vale notar, voltam a se ajoelhar para a última

rodada de orações, mas, desta vez, não são todos que o fazem. Terminada a reza

do terço e o recitar das jaculatórias, passam para a leitura do evangelho. Para isto,

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ficam todos de pé. Findada a declamação do evangelho, voltam todos a se sentar e

é quando algo pouco usual acontece.

Nas igrejas, é comum que após a leitura do texto sagrado, uma única pessoa

se dê o direito de tomar o direito a palavra – normalmente essa pessoa é o

sacerdote – e fazer uma exposição oral acerca das coisas que o texto diz. Não hoje.

Na reunião deste grupo do terço, os homens dividem suas apreensões sobre a

leitura de maneira democrática. Todos podem dizer o que pensam, desde que não

se atente muito contra o horário. O fato de estarem sentados uns de costas para os

outros torna a circunstância um tanto quanto dificultosa, mas, ainda assim, estes

homens buscam se voltar para aquele que está a dizer alguma coisa, ao menos no

caso das falas mais concisas.

Passado tal momento de partilha, o coordenador volta a assumir um papel

mais central, é quando ele, agora de pé e de frente para todos, passa os informes e

exortações ao grupo. Neste dia, em especifico, a admoestação é direcionada no

intuito de mostrar a importância da pontualidade para que as reuniões corram bem.

Não apenas isso, mas também provar como, por meio da pontualidade, as reuniões

terminam mais cedo, o que permite um tempo a mais para que possam cultivar um

espírito de grupo, no sentido de estritarem vínculos. A preocupação do coordenador

é que as reuniões não se encerrem com ares de obrigação, mas como uma forma de

pertença. E, de fato, assim ocorre. Ao invés de voltarem correndo para seus lares,

estes homens passam ainda alguns minutos conversando, amistosamente, de

maneira menos contida, de forma mais aberta e em tons de voz mais altos. Pouco a

pouco, um e outro vão se despedindo, até que o coordenador, por fim, fecha as

portas da igreja. Está encerrada mais uma reunião do Terço dos Homens.

Os trechos acima foram escritos a partir de anotações de meu caderno de

campo. São relativos à primeira noite em que realizei uma visita a um grupo do

Terço dos Homens. Fiquei surpreso por encontrar na fala do coordenador, assim,

explicitamente, traços daquilo que eu levava como minha primeira hipótese. A ideia

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de que aquele seria um espaço propício para a sociabilidade destes homens e não

apenas um encontro rotineiro e mecânico. Desde meu mestrado, estou

especialmente interessado em compreender como ocorrem vinculações sociais de

motivação religiosa, em outras palavras, entender como as pessoas são socializadas

em meios religiosos. Primeiramente descritos por Durkheim (2011), os processos de

socialização não são estanques e prosseguem lado a lado com o envelhecimento –

estamos sempre a aprender a viver em sociedade(s) –, sendo assim, percebi no

Terço dos Homens um potencial em ação no cultivo naqueles indivíduos de formas

distintas de se pensar, agir e sentir, denominadas por Durkheim como maneiras de

fazer.

Tendo escolhido o catolicismo como plano de fundo de minhas pesquisas, ao

longo do mestrado procurei analisar a forma como os novos membros do clero

cultivavam – e eram cultivados – nas maneiras de fazer necessárias para a

reprodução de seu papel social. Assim sendo, ocupei-me de suas trajetórias

institucionais, em especial, aquelas próprias ao ingresso e formação no seminário.

Não que esse objeto tenha se esgotado, mas, na ânsia de buscar algo novo,

procuro, desta vez, entender a forma como não só os membros do clero mas

também os leigos católicos são socializados, vindo a construir a quem são e a terem

para si identificações específicas e discursos próprios, ainda que estes possam ser

bastantes e bastante variáveis entre si, já que o catolicismo é tão múltiplo em

carismas quanto em inclinações políticas e ideológicas.

Tendo tais coisas em mente, fiquei especialmente interessado por algo que

de meu conhecimento ainda não foi estudado no âmbito das Ciências Sociais da

Religião no Brasil: os Terços dos Homens. Assim como nos seminários, percebo que

no desenvolvimento das atribuições de seu trabalho religioso, também estes homens

do terço, como são por eles mesmos chamados, frequentam um ambiente

homossocial, em que as mulheres têm pouco ou nenhum acesso. Em momentos

específicos, tanto os membros do clero como estes leigos, tornam-se homens sem

mulheres - o que não deve ser tomado num sentido estrito, de que os homens dos

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grupos de terço não se relacionem como mulheres ou que sejam casados, porque

muitos o são e têm suas mulheres; mas, num outro sentido, o de que, assim como

os padres, frequentam ambientes voltados exclusivamente ao sexo masculino no

exercer de suas funções religiosas, de acordo com uma divisão sexual do trabalho

religioso.

Esta pesquisa se encontra em fase de formulação, sendo esta comunicação

oral ao mesmo tempo uma demonstração de interesse, como também uma

possibilidade de receber críticas e sugestões ao andamento do trabalho, que ainda

está a se realizar. Além de socialização, já citada como um dos conceitos-chave com

que virei a trabalhar, adiciono também o de trabalho religioso, a partir do referencial

teórico de Pierre Bourdieu (1992). Entre tantas coisas a serem explicitadas, a

primeira delas, assim concebo, é a de definir em que se constitui esse trabalho

religioso no que toca o catolicismo e como se dá essa sua divisão no que toca

homens e mulheres.

É de conhecimento geral o fato de que a Igreja Católica, ao longo de sua

história, se constituiu processualmente em uma instituição formada por homens, no

que tange o topo de sua hierarquia. Conjeccturas à parte – entre as quais se destaca

a da veracidade ou não da existência de uma Papisa Joana –, temos que a igreja de

Roma, em sua dimensão administrativa, tem sempre homens a desempenhar os

mais importantes cargos de sua organização: papas, cardeais, bispos, padres, etc.

Cada um destes papéis sociais têm em si consolidados certos direitos e funções

específicas a serem desempenhadas.

De maneira complementar a isto, homens e mulheres ocupam outras funções

comuns no seio da comunidade católica. Há monges e monjas, por exemplo.

Homens e mulheres catequistas. Homens e mulheres nos grupos de liturgia.

Homens e mulheres que são ministros da Eucarista. Homens e mulheres que rezam

o terço – juntos ou separadamente. Existem, no entanto, funções não

compartilhadas, que são exclusivas a um sexo. As freiras, como um exemplo. Os

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diáconos, como outro. Neste último caso, por quanto tempo? Há de se considerar a

emergência do tema do diaconato, relatada pelos mais diversos noticiários, quando

atribuída ao Papa Francisco, em meados do ano de 2016, uma fala que denota a

possibilidade de se envidarem estudos sobre o papel da mulher no cristianismo

primitivo, verificando então a existência de diaconisas para, assim, reconsiderar a

tradição e se validar historicamente uma reimplementação do diaconato feminino. O

tema despertou furor em alguns grupos católicos, avessos à ideia de que as

mulheres possam se tornar diaconisas e, assim, receberem o direito de ministrar

Celebrações da Palavra, ou ainda batizarem crianças. Já outros grupos de pessoas

se manifestaram favoráveis a essa possibilidade que, em sua visão, denotaria um

necessário avanço na democratização do acesso ao espaço público.

Leonardo Boff (2008), num livro chamado Eclesiogênese: a reinvenção da

Igreja, discutiu essa questão da divisão sexual do trabalho religioso, ainda que não

com este termo, num capítulo denominado Como a Igreja trata as mulheres. Neste

capítulo ele se pergunta se em um contexto de alargamento do campo das

liberdades individuais na contemporaneidade, quais papeis poderiam as mulheres

assumir dentro da Igreja Católica. Para provar que as coisas não são estáteis no que

toca o catolicismo, mas que, muitas vezes, são renegociáveis, o autor dá o exemplo

e uma situação em que o Código de Direito Canônico, em uma versão anterior,

vedava às mulheres a possibilidade de servirem no presbitério ou de interferirem em

processos de beatificação ou canonização. Não poderiam ainda adminstrar

quaisquer bens paroquiais, sendo parte, por exemplo, de um conselho econômico

paroquial. Coisas que em 2016 são possíveis e, em alguns casos, bem comuns.

A realidade é que grande parte da comunidade de fieis é composta por

mulheres e são elas que, no mais das vezes, desempenham papeis os mais

importantes nas atividades de suas paróquias – seja por meio da catequese, ou no

seu envolvimento com pastorais. Em tal contexto, em que as mulheres estão a

ocupar grande espaço no seio da Igreja, Boff se pergunta sobre a questão das

mulheres serem ordenadas, não apenas diaconisas, mas também sacerdotisas,

presbíteras...

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Até os dias de hoje, a ordenação é permitida somente aos homens, sendo

estritamente masculina no que tange o sacerdócio ministerial. Para Boff, naquele

mesmo capítulo e livro, tal divisão sexual do trabalho religioso estaria fundamentada

não em objeções como o fato de Jesus ter escolhido apenas homens como seus

apóstolos e nenhuma mulher, como registrado nos evangelhos canônicos; mas

atrelada à permanência de um costume e não de uma tradição doutrinal, uma vez

que a não-ordenação feminina estaria na esfera de um desenvolvimento histórico-

sociológico e não fundamentada em princípios teológicos claros.

Em suma, o acesso ao Sagrado é sempre cheio de interdições e estas

denotam relações de poder. Em termos nativos, Boff (2008) ainda aponta a

existência de dois tipos de sacerdócios – sobre os quais a interdição de gênero atua

de modos distintos, sendo mais acentuada no segundo do que no primeiro. O

primeiro, um empréstimo protestante, é o sacerdócio universal, ao qual as mulheres,

assim como homens leigos, estariam todos convidados, já que compreende um

sentido de vida completo de serviço à divindade. Já o outro sacerdócio – e este

exclui as mulheres –, é o sacerdócio ministerial, próprio dos padres ordenados,

chamados para cumprir com a vontade de Deus em suas vidas, mas também para

serem funcionários da empresa católica, administrando seus cultos, a consagração,

os sacramentos, as comunidades, os rendimentos, enfim. Nota-se, assim, que

apenas uma forma mais geral de sacerdócio é permitida às mulheres, aquele que é

permitido a todo laicato, em outras palavras, a todos os leigos.

No contexto pós-conciliar, ou seja, depois do Concílio Vaticano II, houve um

momento especial em que as questões referentes aos leigos foram discutidas de

modo pormenorizado. Foi durante o Sínodo dos Bispos de 1987, que durou todo o

mês de outubro daquele ano, tendo sido realizado em Roma. Interessante notar algo

registrado pelo papa João Paulo II (2001) no documento Christifidelis laici – vocação

e missão dos leigos na Igreja e no mundo: na ocasião daquele sínodo estiveram

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presentes homens e mulheres – leigos e leigas – no papel de auditores e auditrices2.

Na presença dos membros do clero, estes membros do laicato puderam dar uma

visão orgânica de sua própria posição, relatando suas experiências, assim como

conselhos e sugestões. Um dos temas mair abordados naquele encontro foi

justamente o do crescimento da participação dos leigos, dos novos papeis a eles

confiados, dos quais haviam sido cerceados por tanto tempo, ao passo que o clero

tinha um papel mais centralizador dos serviços eclesiais:

Prova-o, entre outras coisas, o novo estilo da colaboração entre sacerdotes, religiosos e fiéis leigos; a participação ativa na liturgia, no anúncio da Palavra de Deus e na catequese; a multiplicidade de serviços e de tarefas confiadas aos leigos e por eles assumidas; o rápido florescimento de grupos, associações e movimentos de espiritualidade e de empenho laicas; a participação cada vez maior e significativa das mulheres na vida da Igreja e o progresso da sociedade (JOÃO PAULO II, 2011, p.8).

Entre as dificuldades que o Papa João Paulo II aponta, na supracitada

exortação apostólica, como sendo relacionadas a esse fenômeno de atribuições de

serviços eclesiais ao laicato, ele aponta a possibilidade dos leigos se deixarem

ocupar demasiadamente de suas funções na igreja e se esquecerem de cumprir com

suas responsabilidades no mundo profissional, econômico, cultural, social e político.

Outra questão por ele levantada, a partir das falas dos bispos e fiéis presentes no

sínodo, é a possibilidade dos leigos levarem suas vidas adotando uma indevida

separação entre fé e vida, no sentido de um agir pautado pela esfera religiosa

quando na igreja, mas pautado, majoritariamente, por outros modos de se portar na

vida secular. Sempre orientado em torno da função dos leigos num contexto

pós-conciliar, uma das principais questões levantadas por esse sínodo foi

justamente sobre o lugar e a função da mulher tanto na Igreja Católica quanto na

sociedade. O sínodo, da forma como retratado no documento papal a que deu

origem, teve o papel de corroborar as conquistas já levantadas pela “teoria” do

Concílio Vaticano II, demonstrando na prática como essas coisas se davam, como

2 O documento em questão faz uso do termo auditrice, e não auditora, para definir essas mulheres que no

âmbito de tal sínodo puderam partilhar suas contribuições para a assembleia de bispos e outros leigos ali

reunidos.

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se vê no trecho a seguir, retirado também de tal exortação de João Paulo II (2011,

p.9): “Com efeito, o desafio que os padres sinodais aceitaram foi o de indicar os

caminhos concretos para que a maravilhosa “teoria” sobre o laicato, expressa pelo

Concílio possa conveter-se numa autêntica “praxe” eclesial”. É que muito do que

havia sido discutido no Concílio Vaticano II nunca houvera sido implementado antes,

sendo assim, passados vinte anos do maior concílio ecumênico do século XX,

autoridades da igreja e seus fiéis se puseram a refletir sobre os passos dados. Sobre

o papel das mulheres, poder-se-ia pensar que fossem as mulheres mais presentes

na religião, ao se olhar o perfil das pessoas sentadas numa celebração da missa,

por exemplo, ou se olhar para dados censitários sobre fiéis religiosos, mas Maria

José Rosado Nunes, em um texto de apresentação de dossiê, descontroi tal ideia de

uma maneira efetiva:

Dados estatísticos costumam confirmar a observação do senso comum de que as mulheres investem mais em religião do que os homens. Daí se conclui que elas seriam ‘mais religiosas’ do que eles. Tal visão esconde um enorme equívoco que as atuais formas fundamentalistas das religiões, no Ocidente como no Oriente, vêm desvendar. Na verdade, as religiões são um campo de investimento masculino por excelência. Historicamente, os homens dominam a produção do que é ‘sagrado’ nas diversas sociedades. Discursos e práticas religiosas têm a marca dessa dominação. Normas, regras, doutrinas são definidas por homens em praticamente todas as religiões conhecidas. As mulheres continuam ausentes dos espaços definidores das crenças e das políticas pastorais e organizacionais das instituições religiosas. O investimento da população feminina nas religiões dá-se no campo da prática religiosa, nos rituais, na transmissão, como guardiãs da memória do grupo religioso (NUNES, 2005, 363).

O que se percebe é que, mesmo com a abertura pós-conciliar para que as

mulheres tenham mais acessos aos serviços eclesiais, ainda assim, elas estão

delimitadas daqueles serviços que tem uma maior carga de prestígio, que são

reconditos do Sagrado que apenas uns poucos, homens, os podem executar. Ainda

assim, funções outras, como a gerência de grupos de liturgia, a catequese, as rezas

de terço, entre outros exemplos que se poderia abordar, vão se tornando áreas de

uma forte presença feminina. A cada vez mais as mulheres vão ocupando essas

funções religiosas no âmbito das igrejas católicas, sendo o Terço dos Homens, no

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entanto, uma aparente contraposição a esse processo. O seu caráter de

exclusividade masculina, cujo único elemento feminino – porém central – é o culto da

figura de Nossa Senhora, permitiria notar um certo contraponto com os avanços

acima descritos? A respeito da relevância de tal pergunta e de outras, no mesmo e

desvalorizado campo das Ciências da Religião:

A religião é, antes de tudo, uma construção sócio-cultural.

Portanto, discutir religião é discutir transformações sociais, relações de poder de classe, de gênero, de raça/etnia; é adentrar num complexo sistema de trocas simbólicas; é deparar-se com um sistema sócio-cultural permanentemente redesenhado que permanentemente redesenha as sociedades. (SOUZA, 2004, p. 122).

Os fenômenos religiosos não são estáticos mas processuais, inclusive os

acima descritos. Sandra Duarte de Souza (2004) diz que, dessa forma, que a religião

não se trata de um fenômeno estático sequer quando se encontra cristalizado na

forma de organizações religiosas. Ela explicita ainda um voto de que os estudos da

religião venham a ser vistos com um olhar mais atento pelos estudos feministas, ao

que eu acrescentaria a crescente área dos estudos de masculinidades, que também

deve travar novos entrelaçamentos, para que haja uma compreensão multifacetada

da construção dos sujeitos, de seus desejos e histórias.

A construção de muitas formas de masculinidades passa pelo campo do

religioso ou do Sagrado. Como Souza analisa, “os sistemas simbólicos religiosos se

constituem em importantes mecanismos de construção da subjetividade humana,

atuando de maneira estruturada e estruturante” (SOUZA, 2004, p.123).

Os próprios sujeitos reconhecem aqueles elementos que constituem a sua

própria masculinidade ou feminilidade no meio religioso, e acabam por optar, ou

serem cooptados para, algumas funções e não outras. A reza do terço,

tradicionalmente, veio a se constituir uma prática do catolicismo muito própria das

mulheres e pouco envidada pelos homens, se não em ambientes rurais e festivos,

em que toda a comunidade estava reunida. Essa afinidade entre a reza do terço e

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alguns perfis de fiéis pode se perceber no trecho a seguir, que retrata a formação

histórica de movimentos de leigos nos Estados Unidos da América:

Possivelmente por causa do caráter democrático e voluntarista da sociedade americana, organizações religiosas de todos os tipos floresceram: a Holy Name Society para os homens, a Altar and Rosary Society para as mulheres, a Sociedade de São Vicente de Paulo para ajudar os pobres, além de organizações étnicas de todos os tipos […]. Cada um desses grupos tinha um propósito predominantemente religioso, mas eles também serviam como organizações sociais e forneciam seguros de vida e ajuda para os membros em necessidade. Junto com a Igreja e a escola, elas se constituíam como um completo mundo católico (HITCHCOCK, 2012, p.436, tradução nossa).

Ao longo da pesquisa, procurarei fazer uma análise histórica inicial da

construção da relação entre mulheres e o terço, para demonstrar melhor as

implicações do Terço dos Homens nesse campo que se desvenda nesse instante

como oportunidade de analisar como se dão as experiências entre homens nestes

grupos. Em termos de recorte, escolho o diocese de São Carlos, no estado de São

Paulo, uma vez é, assim acredito, uma em que esse fenômeno de difusão dos

grupos de reza de terço exclusivos para homens mais encontra expansão no

sudeste. O exemplo desta diocese é também emblemático porque compreende o

caso da pequena cidade de Dois Córregos, onde chegam a se reunir mais de

setecentos homens na principal igreja da cidade, que tem por volta de 26 mil

habitantes; ao passo que as mulheres católicas da cidade se ocupam, ao mesmo

tempo, da reza do terço em uma capela que fica próxima da igreja na qual os

homens fazem suas orações.

Devido ao montante de pessoas ali agregadas, considero este caso como

emblemático para compreender tal fenômeno do crescimento de tais grupos. Meu

intuito é realizar uma pesquisa etnográfica em Dois Córregos em algumas paróquias

da cidade de São Carlos, sede dessa mesma diocese, mas, ao mesmo tempo, estar

atento aos desdobramentos de outros grupos ao longo do Brasil, para isso, farei uso

também das redes sociais acompanhando por meio delas o que se passa nestes

agrupamentos de outros lugares.

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Outro de meus objetivos é fazer uma incursão no evento principal dos Terços

dos Homens, aquele que acontece uma vez ao ano na cidade de Aparecida – SP,

onde existe um grande santuário mariano. No ano de 2016, mais de cinquenta mil

homens do terço estiveram reunidos em tal santuário. Para o ano de 2017 e nos

seguintes, tenho a meta de ir até lá, acompanhar de perto as dinâmicas de tal

encontro, registrando e coletando mais informações sobre quem são, o que fazem e

como se constroem esses indivíduos que se denominam homens do terço.

Esta comunicação se propõe como primeiro esboço de estudo de um campo

rico de análise que não tem sido estudado na área das Ciências da Religião e essa

pesquisa se projeta pioneira no intuito de entender tal processo por outras via que

não a dos homens do terço que por ventura sejam intelectuais orgânicos e que

escrevem sobre si mesmos. A visão que têm de si, assim como as falas das fontes

oficiais católicas sobre gênero e estrutura organizacional me interessam no sentido

de serem manifestações de maneiras de pensar, agir e sentir específicas, exteriores

a esses indivíduos. Assim sendo, além da leitura das fontes oficiais, buscarei

estabelecer padrões de coisas ditas nas entrevistas semi-estruturas e etnográficas.

Tais entrevistas me permitirão ainda entender a trajetória de vida desses sujeitos,

além de perguntar a eles como se dão suas relações cotidianas com mulheres e o

seu pensamento acerca do papel delas na igreja. A isso se soma a pesquisa

etnográfica no seu sentido tradicional, mas também na sua possibilidade digital ou

virtual.

Os dados assim recolhidos serão analisados por meio de referenciais teóricos

próprios das Ciências da Religião, porém, procurarei ainda referenciais outros para

melhor compreender esse fenômeno, buscando conceitos e aportes metodológicos

também nos campos de estudos sobre gerações e sobre gênero – em especial, na

area dos estudos sobre masculinidades. Espero assim compreender como se

estruturam os grupos de Terço dos Homens e como se dá a construção identitária e

a socialização ali envidada, atentando ainda para o que eles concebem ser um

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homem e, mais exatamente, um homem católico; quais seus papeis e quais os das

mulheres e de todos aqueles que não se enquadram em tal divisão binária.

Referências Bibliográficas

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HITCHCOCK, James. History of the Catholic Church – from the Aposticle Age to the Third Millenium. San Francisco, Ignatius Press, 2012.

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