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Superior Tribunal de Justiça HABEAS CORPUS 22.446 - RJ (2002/0058601-0) VOTO-VISTA O EXMO. SR. MINISTRO PAULO MEDINA: Trata-se de habeas corpus , impetrado em favor do angolano Luís Francisco Caquarta visando à revogação de sua expulsão do país, decretada pela Portaria Ministerial n. 136, publicada no DOU de 18 de fevereiro de 2002. O paciente foi preso, preventivamente, em 26/11/1998, por crime de associação destinada ao tráfico de entorpecentes, previsto no artigo 14 c/c art. 18, inciso I, da Lei 6.368/76. A condenação criminal desencadeou a instauração de processo de expulsão que culminou com a publicação da Portaria atacada. Alegam os impetrantes que o processo de expulsão padece de irregularidades, referindo-se ao paciente como incurso nas penas do art. 12, c/c 18, I, da Lei 6.368/76, crime de tráfico, quando a condenação foi pelo crime de associação, previsto no art. 14 da mesma lei. Sustentam que o processo inobservou os princípios do contraditório e ampla defesa, sendo produzida defesa deficiente, por defensor dativo, que concordou com a expulsão do paciente. Aduzem que as autoridades administrativas desconsideraram o fato do paciente possuir filho brasileiro, nascido anteriormente à condenação criminal, bem como manter união estável com a mãe deste, também brasileira, vivendo, ambos, sob sua dependência econômica. Por fim, afirmam que o paciente tem nacionalidade portuguesa, pois nascido quando Angola ainda era colônia de Portugal (doc. fls. 82), o que lhe estenderia os benefícios do § 1º, do art. 12, da CF. A autoridade coatora, nas informações, aduziu preliminar de incompetência do STF, por se tratar de ato praticado pelo Ministro da Justiça, por delegação do Presidente. No mérito, afirma a plena conformidade do ato de expulsão com os preceitos legais, estando fundado em fatos de natureza grave, que demonstrariam a "nocividade " do paciente "ao convívio social brasileiro ". Defende, outrossim, a natureza "política " do ato de expulsão, que escaparia ao controle do Judiciário, limitado ao exame da legalidade deste. Afirma terem sido obedecidas todas as formalidades atinentes ao procedimento expulsório, inclusive o direito de defesa. Quanto ao fato do paciente ter filho brasileiro reputa não demonstrada a dependência econômica deste em relação ao primeiro. Acrescenta que "... o ponto de maior relevância para a decisão do mérito do processo de expulsão, esteou-se no comportamento inadequado, e mantido pelo estrangeiro durante o tempo em que permaneceu no território nacional..." (...) sendo que Documento: 497042 - VOTO VISTA - Site certificado Página 1 de 6

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Superior Tribunal de Justiça

HABEAS CORPUS Nº 22.446 - RJ (2002/0058601-0)

VOTO-VISTA

O EXMO. SR. MINISTRO PAULO MEDINA:

Trata-se de habeas corpus , impetrado em favor do angolano Luís Francisco Caquarta

visando à revogação de sua expulsão do país, decretada pela Portaria Ministerial n. 136,

publicada no DOU de 18 de fevereiro de 2002.

O paciente foi preso, preventivamente, em 26/11/1998, por crime de associação

destinada ao tráfico de entorpecentes, previsto no artigo 14 c/c art. 18, inciso I, da Lei 6.368/76.

A condenação criminal desencadeou a instauração de processo de expulsão que culminou com a

publicação da Portaria atacada.

Alegam os impetrantes que o processo de expulsão padece de irregularidades,

referindo-se ao paciente como incurso nas penas do art. 12, c/c 18, I, da Lei 6.368/76, crime de

tráfico, quando a condenação foi pelo crime de associação, previsto no art. 14 da mesma lei.

Sustentam que o processo inobservou os princípios do contraditório e ampla defesa, sendo produzida defesa deficiente, por defensor dativo, que concordou com a expulsão do paciente. Aduzem que as autoridades administrativas desconsideraram o fato do paciente possuir filho brasileiro, nascido anteriormente à condenação criminal, bem como manter união estável com a mãe deste, também brasileira, vivendo, ambos, sob sua dependência econômica.

Por fim, afirmam que o paciente tem nacionalidade portuguesa, pois nascido quando Angola ainda era colônia de Portugal (doc. fls. 82), o que lhe estenderia os benefícios do § 1º, do art. 12, da CF. A autoridade coatora, nas informações, aduziu preliminar de incompetência do STF, por se tratar de ato praticado pelo Ministro da Justiça, por delegação do Presidente. No mérito, afirma a plena conformidade do ato de expulsão com os preceitos legais, estando fundado em fatos de natureza grave, que demonstrariam a "nocividade " do paciente "ao convívio social brasileiro ". Defende, outrossim, a natureza "política " do ato de expulsão, que escaparia ao controle do Judiciário, limitado ao exame da legalidade deste.

Afirma terem sido obedecidas todas as formalidades atinentes ao procedimento

expulsório, inclusive o direito de defesa. Quanto ao fato do paciente ter filho brasileiro reputa não

demonstrada a dependência econômica deste em relação ao primeiro.

Acrescenta que "... o ponto de maior relevância para a decisão do mérito do

processo de expulsão, esteou-se no comportamento inadequado, e mantido pelo

estrangeiro durante o tempo em que permaneceu no território nacional..." (...) sendo que

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"o diploma legal que rege a situação jurídica do estrangeiro no Brasil não permite o

ingresso de clandestino, proíbe o exercício de atividade remunerada e a permanência do

turista após o vencimento do prazo legal estipulado, bem como a legalização da estada em

tais casos (arts. 38 e 98, da Lei 6.815/80)" - (fls. 128)

Reconhecida a incompetência do Supremo Tribunal Federal para apreciação do

processo, foi o mesmo remetido a este Superior Tribunal de Justiça, distribuído inicialmente para

o Ministro Jorge Scartezzini (3ª Seção) e, posteriormente, para a Ministra Eliana Calmon, que

restabeleceu a liminar anteriormente deferida.

Às fls. 254/318 foram apresentadas novamente as informações, colacionando-se os

documentos que instruíram o processo de expulsão.

Parecer ministerial pela denegação da ordem (fls. 322/327).

A eminente relatora, Ministra Eliana Calmon, afastou as nulidades arguídas pelos impetrantes. Entendeu inexistente cerceamento de defesa e nulidade do processo "porque tempestivamente corrigido o erro quanto ao tipo de crime a que foi condenado o paciente".

Quanto a existência de prole e companheira brasileira reputou não provada a dependência econômica do menor em relação ao pai, desautorizando a incidência da Súmula 01 do Supremo Tribunal Federal.

O Ministro Luiz Fux manifestou divergência, ressaltando que o "...Direito, atualmente, prestigia muito a busca da identidade, a família, ainda que monoparental, que todo preso tem possibilidade de reabilitação" entendendo por conceder a ordem.

O Ministro Gomes de Barros, em voto-antecipado, acompanhou a dissidência instaurada, assinalando que "...a vedação à expulsão de alguém que tenha um filho brasileiro atende (...) interesse maior, sob o aspecto social" que é "o de manter este pai ao alcance da cobrança de alimentar. Se o retiramos do território brasileiro, estaremos tornando

extremamente difícil, senão impossibilitando, a efetivação da possibilidade de o filho cobrar alimentos dos pais."

Pedi vista dos autos para melhor exame da matéria.

Entendo que os vícios do processo administrativo, alegados na impetração, realmente

ocorreram.

Não se pode reputar exercido, na plenitude, o direito de defesa pelo paciente, quando o

defensor dativo limitou-se a produzir manifestação de 01 (uma) lauda, datada de 03 de março de

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2000 (fls. 57), pugnando pela decretação imediata da expulsão.

Existindo filho brasileiro, que é causa excludente de expulsabilidade, nos termos do art.

75, inc. II, letra b, Lei 6815/80, cumpria ao defensor, ao menos, apontá-la, o que não ocorreu.

Por outro lado, produzidas as provas pelas autoridades administrativas, posteriormente à

apresentação da "defesa" , não foi facultada ao expulsando a produção de contra-prova, não

havendo intimação dele ou de seu defensor para requerer qualquer diligência ou se pronunciar

sobre os fatos unilateralmente apurados.

Mister que as assertivas das autoridades administrativas relativas à inexistência de

dependência econômica do filho em relação ao expulsando, fossem submetidas ao contraditório, o

que não ocorreu. Impedido restou o paciente de efetuar a demonstração de que, mesmo preso,

continuou contribuindo para o sustento do menor, como fazem prova os documentos juntados com

a impetração, às fls. 87 a 93.

Procedendo da forma descrita a autoridade coatora não observou o direito fundamental

do paciente ao contraditório e ampla defesa, previstos no inc. LV, art. 5o, CF, nos seguintes

termos: "LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em

geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela

inerentes".

Tenho, por outro lado, ser inocorrente a alegada falta de comprovação da dependência

econômica do filho do paciente. A prova da filiação, certidão de nascimento, foi colacionada aos

autos do processo de expulsão. Milita, dessa forma, em favor do paciente, presunção legal da

efetiva dependência econômica, presunção esta que não foi elidida pela prova produzida

unilateralmente pelas autoridades administrativas.

Como deixei assentado em oportunidade anterior, no julgamento do HC 16.819/PA, "o

ordenamento jurídico brasileiro, em todos os seus níveis, consagra o dever e o direito dos

pais de assistirem, criarem e educarem seus filhos, provendo-lhes o sustento e mantendo-os

em sua guarda."

O art. 229 da Constituição Federal contém a seguinte disposição:

"Art.229 - Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os

filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou

enfermidade."

Disposição semelhante contêm os artigos do Código Civil brasileiro, repetidos pelo Documento: 497042 - VOTO VISTA - Site certificado Página 3 de 6

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Estatuto da Criança e do Adolescente. Transcrevo os dispositivos:

Código Civil

"Art. 231.São deveres de ambos os cônjuges:

(...)

IV – sustento, guarda e educação dos filhos"

"Art 384. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos:

I – dirigir-lhes a criação e educação,

II- tê-los em sua companhia e guarda,"

Estatuto da Criança e do Adolescente

"Art.22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos

menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes o obrigação de cumprir e fazer cumprir

as determinações judiciais."

O entendimento aqui esposado é defendido pelo eminente Ministro Costa Lima que,

reafirmando decisão por ele proferida no extinto TFR, assentou:

"À guisa de conclusão, devo esclarecer, data vênia, que apenas não concordo com

a argumentação do órgão do Ministério Público Federal, baseada em decisões do Pretório

Excelso, segundo a qual o paciente deve comprovar a dependência econômica de seu filho

em relação a ele.

Para bem demonstrar o meu entendimento acerca deste aspecto jurídico, vale

trazer ao presente voto proferido por mim, como Relator no HC 5.674, julgado pelo

plenário do extinto Tribunal Federal de Recursos, DJ de 15.12.83:

'Está no art. 231, IV do Código Civil: 'São deveres de ambos os cônjuges: sustento,

a guarda e educação dos filhos'. À sua vez, o Código de Menores declara que a perda e a

suspensão do pátrio poder regem-se pela lei civil, mas acrescenta, no parágrafo único do

art. 45 que, mesmo nessa hipótese, os pais não ficam exonerados do dever de sustentar os

filhos. Demais disso, pratica o delito de abandono material o pai que, sem justa causa,

deixa de prover à subsistência de filho menor de 18 anos, conforme se lê no art. 244, do

Código Penal. Trata-se de ação pública incondicionada.

Ora, se assim ocorre e se o estrangeiro declara e mostra com certidão de

nascimento, que tem filho brasileiro menor , cumpre à Administração provar que ele não o

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sustenta, que o abandonou . Não é o paciente quem deve comprovar que pratica o crime

de abandono material, porém a Administração, fazendo uso dos meios de que dispõe,

inclusive através de investigação policial. Não compete ao paciente demonstrar que o filho

menor não está sob sua guarda, que não o cria, que não o sustenta, porquanto se trata de

um dever e de um direito, assegurado por lei ao pai." (HC 144 - DF, DJ de 19.03.90)

A conclusão de que o paciente efetivamente colabora para a manutenção e sustento do

filho, à míngua de prova cabal em contrário, se impõe. Saliente-se, outra vez, que a produção da

prova no sentido da dependência econômica foi obstada no processo administrativo.

Demonstrado o atendimento das condições previstas na letra b, do inciso II, do art. 75 do

Estatuto do Estrangeiro, conclui-se pela incidência da excludente, a afastar a possibilidade de

expulsão.

Nesse sentido, decisão exarada pelo eminente Ministro Garcia Vieira, no MS 3999-9,

extraindo-se do voto proferido :

(...)Na hipótese em exame não se trata nem de adoção nem de reconhecimento de

filho brasileiro e sim de nascimento de filho brasileiro (...) Afinal, a família é a base da

sociedade e tem especial proteção do Estado (art. 226, caput, da CF). Expulsar o

impetrante seria destruir sua família e deixar mulher e filho brasileiros ao desamparo . No

RHC n. 6213 - SP, DJ de 13.06.85 o TFR entendeu ser vedada a expulsão ou deportação

de estrangeiro que tem filho brasileiro sob sua guarda e dependência econômica. O

mesmo TFR, no HC n. 5953-DF, DJ de 16.11.84, decidiu que:

'Não encontra suporte legal a prisão administrativa para fins de expulsão de

estrangeiro que comprove possuir cônjuge e filho brasileiros, dele dependentes

economicamente." (MS 3399-9, 1a Seção, DJ de 05.06.95)

Como pode se inferir da manifestação do Ministro Garcia Vieira, a solução de casos

como o ora em análise, deve ser informada pela precedência do princípio de proteção à

família, consagrado no art. 226 da Constituição, que erige a família como base da sociedade,

assegurando-lhe especial proteção do Estado.

O art. 227, em consonância com a disposição constante do artigo anterior, institui, como

dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, dentre outros, o direito à

convivência familiar.

Prevê-se, na hipótese tratada que o paciente, mesmo após o cumprimento integral da

pena ao qual foi condenado, ou seja, após haver saldado sua dívida para com a sociedade

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brasileira, seja expulso do país e impedido de conviver com a filho.

As consequências pessoais e psicológicas advindas da questionada Portaria mostram-se

ainda mais nefastas quando analisadas sob a ótica do filho que, além de privado de convivência

com o pai, vê praticamente exaurida a probabilidade de valer-se do apoio material do progenitor,

ficando impossibilitada a execução de alimentos, como bem ressaltado pelo eminente Ministro

Gomes de Barros.

A Portaria de expulsão importa negativa de reabilitação do indivíduo que um dia

delinquiu, impedindo sua reinserção no convívio social. A determinação da autoridade coatora, a

par de desconforme ao direito, em muito se dissocia de objetivo fundamental da República

Federativa do Brasil, constante do inc. I, art. 3o, CF, qual seja, o de construção de uma sociedade

livre, justa e, sobretudo, solidária"

Por fim, a questão da permanência irregular do paciente, detentor de visto de turista,

aventada exclusivamente nas informações, não tendo sido objeto do processo de expulsão, não

pode ser sequer considerada, sob pena de caracterização de desvio de poder, evidenciada a

ofensa à teoria dos motivos determinantes.

Posto isso, concedo a ordem pleiteada, entendendo nula a Portaria que determinou a

expulsão do paciente do país.

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