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2 Virtude, Razão Prática e Valor Moral da Ação na Ética Aristotélica 2.1 Eudaimonia, razão e moralidade Como dissemos na introdução, nosso objetivo é analisar a estrutura da ética de Aristóteles a partir da relação entre estes três elementos: razão prática, virtude e valor moral da ação. Neste primeiro capítulo, procuraremos mostrar como a concepção aristotélica de eudaimonia traz dentro de si uma relação intrínseca entre racionalidade e moralidade, estabelecida pelo argumento do érgon. A partir desta relação, a virtude será entendida como a harmonização de nossos desejos com o bom funcionamento da razão, visto como “função” do homem. No decorrer de todo o texto, nossa análise se baseará na Ética a Nicômaco, principal obra do estagirita sobre o tema, embora alguns trechos da Ética Eudêmica também venham a ser citados, quando ajudarem a esclarecer um ponto qualquer. Não faremos referência à Magna Moralia, pois, além de não acrescentar, a nosso ver, nenhuma informação relevante para nossa discussão, trata-se de uma obra de autoria contestada. Podemos considerar que a noção de eudaimonia exerce um papel central na ética de Aristóteles. A Ética a Nicômaco, de fato, se inicia com uma investigação sobre este conceito, chegando à conclusão de que a felicidade

2 Virtude, Razão Prática e Valor Moral da Ação na Ética Aristotélica · No decorrer deste trabalho, assim, usaremos o termo “felicidade” como tradução de eudaimonia ,

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Virtude, Razão Prática e Valor Moral da Ação na Éti ca

Aristotélica

2.1

Eudaimonia, razão e moralidade

Como dissemos na introdução, nosso objetivo é analisar a estrutura da

ética de Aristóteles a partir da relação entre estes três elementos: razão prática,

virtude e valor moral da ação. Neste primeiro capítulo, procuraremos mostrar

como a concepção aristotélica de eudaimonia traz dentro de si uma relação

intrínseca entre racionalidade e moralidade, estabelecida pelo argumento do

érgon. A partir desta relação, a virtude será entendida como a harmonização de

nossos desejos com o bom funcionamento da razão, visto como “função” do

homem.

No decorrer de todo o texto, nossa análise se baseará na Ética a Nicômaco,

principal obra do estagirita sobre o tema, embora alguns trechos da Ética

Eudêmica também venham a ser citados, quando ajudarem a esclarecer um ponto

qualquer. Não faremos referência à Magna Moralia, pois, além de não

acrescentar, a nosso ver, nenhuma informação relevante para nossa discussão,

trata-se de uma obra de autoria contestada.

Podemos considerar que a noção de eudaimonia exerce um papel central

na ética de Aristóteles. A Ética a Nicômaco, de fato, se inicia com uma

investigação sobre este conceito, chegando à conclusão de que a felicidade

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humana é “atividade da alma em consonância com a virtude”, e que esta atividade

implica em um “princípio racional”.15 Para o filósofo grego, portanto, o vínculo

entre virtude e racionalidade está estreitamente ligado à eudaimonia.

Este termo costuma ser traduzido como “felicidade”, mas, como observa

Richard Bodéüs, para os gregos ele designa mais um “estado divino exemplar” do

que um sentimento subjetivo de satisfação.16 Trata-se, assim, de algo diferente do

que chamamos de felicidade na era moderna, o que terá importantes

conseqüências na comparação com Kant. Como veremos, a eudaimonia

aristotélica não pode ser compreendida como um simples estado psicológico de

bem-estar, devido, entre outras razões, à sua compreensão como uma atividade, o

que estaria mais de acordo com o espírito grego.17 Daí este termo ser muitas vezes

traduzido como “vida lograda” ou “florescimento” (flourishing, épanouissement,

o que podemos ainda entender como “realização”), que talvez captem melhor, de

fato, o sentido original. Estas expressões refletem a visão aristotélica (e dos

antigos, de forma geral) de que a eudaimonia é uma forma de “boa vida”, mas não

no sentido subjetivo de bom para mim (embora também inclua este aspecto), mas

de verdadeiramente bom, o que já implica, como veremos, a noção de virtude, que

permite a apreensão do verdadeiro bem.

No decorrer deste trabalho, assim, usaremos o termo “felicidade” como

tradução de eudaimonia, como fazem a maioria dos tradutores, pois não deixa de

se tratar do equivalente grego deste conceito moderno, mas tendo sempre em

mente que não se trata de uma tradução exata.18 Como se sabe, o entendimento da

felicidade como vida boa ou lograda é fundamental para o exame da ética

15 ARISTÓTELES, EN I-7 [1098a-1098a20]. 16 ARISTOTE, 2004, p.6 (apresentação por Richard Bodéüs). Ross comenta que o sentido original era “ser protegido por um bom gênio”, mas para o senso comum grego o termo tenderia a designar a boa fortuna, com ênfase na prosperidade ligada a bens externos (ROSS, 1995, p. 198, tradução nossa). 17 Aristóteles considera que a felicidade não pode ser simplesmente a posse da virtude, mas o seu exercício, ou seja, uma atividade (ARISTÓTELES, EN I-8 [1098b30-1099a5]). Como veremos na parte 2, esta concepção difere da visão moderna (com a dos utilitaristas e, a nosso ver, a de Kant), que tende a compreender a felicidade como um “estado de coisas” resultante de nossas ações. 18 Como diz Urmson, todos concordam que “felicidade” não é uma boa tradução para eudaimonia, mas a aceitam na falta de algo melhor (URMSON, 1988, p. 11). Rosalind Hursthouse considera que “flourishing” e mesmo “well-being” captam melhor o sentido original do que “happiness”, embora nenhuma delas seja perfeita: “happiness” seria demasiado subjetivo, mas “flourishing” pode ser aplicado também a animais e plantas, e “well-being” não teria um adjetivo que lhe correspondesse. A autora considera, no entanto, que os dois últimos termos são melhores traduções do que o primeiro devido à objetividade que caracterizaria a noção grega. Hursthouse dá a entender, assim, que a interpretação mais adequada para a eudaimonia seria algo como “felicidade verdadeira” (HURSTHOUSE, 1999, p. 10).

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aristotélica.

Aristóteles também define a eudaimonia como “bem supremo”

(to\ a)/riston) ou “fim” (τέλος) do homem. Esta noção está estreitamente ligada,

portanto, à dimensão dos valores, o que já parece indicar, de certa forma, uma

conexão com o desejo. Vejamos, então, como o conceito de felicidade é

construído, pelo filósofo grego, a partir do de “bem” ou “fim”: logo no início da

Ética a Nicômaco, o “bem” é definido como aquilo que é visado por toda ação.

Aristóteles começa então a investigar como os diferentes bens, ou seja, os fins de

nossas ações, se relacionam entre si. Claramente, existem fins que se subordinam

a outros, sendo, portanto, meios para estes. Esse aspecto torna necessária a

distinção entre bens que são considerados em si mesmos e aqueles que são apenas

meios, estes últimos, obviamente, estando subordinados aos primeiros, que

seriam, portanto, mais desejados. Estes “fins em si” devem necessariamente

existir, para evitar uma progressão ao infinito.19 A partir destas considerações, o

filósofo grego deduz a existência de um sumo bem, cuja investigação seria sem

dúvida útil para a vida humana.

Podemos enxergar aqui um erro lógico da parte de Aristóteles, pois, à

primeira vista, o argumento da progressão ao infinito se aplica apenas a cada

atividade em seu gênero. Um sapateiro, por exemplo, precisa realizar uma série de

fins intermediários (aprender a consertar sapatos, juntar dinheiro para abrir um

estabelecimento etc) para se tornar um sapateiro. Alguém envolvido em outra

atividade – como um soldado – também exercerá ações visando bens que são

meios para seu objetivo último, que seria, digamos, se tornar um bom soldado.

Nada impede, assim, que cada ocupação possua um “bem em si” que lhe seja

próprio, e, portanto, a impossibilidade de progressão ao infinito não permite

deduzir a existência de um único sumo bem, visado por todas as atividades

humanas. Segundo os comentadores, esta falácia lógica já estaria presente nas

primeiras linhas da EN, na passagem de “toda arte e toda investigação, bem como

toda ação e toda escolha, visam um bem qualquer” para “o bem é aquilo a que

[todas] as coisas tendem”.20 Não temos tempo, aqui, para nos envolver nesta

19 ARISTÓTELES, EN I-2 [1094a20]. 20 ARISTÓTELES, EN I-1 [1094a]. Aristóteles estaria cometendo, nas primeiras linhas da EN, a chamada “falácia do menino-e-da-menina”: de fato, a partir da afirmação de que “toda menina gosta de um rapaz”, não é possível deduzir que “há um rapaz de que toda menina gosta”. Este problema foi colocado pela primeira vez, de forma mais explícita, por Peter Geach em seu artigo

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polêmica, mas queremos apenas assinalar como este ponto está relacionado a um

outro problema, que nos interessa de forma mais direta, que é a compreensão da

eudaimonia como um bem “inclusivo” ou “exclusivo”.

W. F. R. Hardie foi provavelmente o primeiro a levantar esta questão de

forma mais explícita,21 depois retomada por outros comentadores, como Zingano.

Segundo este último, a eudaimonia é inclusiva se considerarmos que se trata de

um fim de segunda ordem, ou seja, não é um bem entre outros, mas sim uma

disposição harmoniosa que se estabelece entre nossos fins primários, visados por

nossas ações. A eudaimonia, assim, inclui os outros bens, formando, a partir

deles, um todo coerente.22

Nos exemplos que demos acima, podemos nos perguntar, de fato, em que

medida “ser um sapateiro” e “ser um bom soldado” são realmente fins últimos,

que não se subordinam a nenhum outro. Nada nos impede de perguntar ao

sapateiro por que se esforçou tanto para exercer esta profissão, e obter uma

resposta do tipo “para ganhar dinheiro”, ou “para agradar minha família”. Como

fazem as crianças, podemos ficar eternamente neste jogo, perguntando “e por que

ganhar dinheiro” etc. Será que esta seqüência continuaria para sempre?

Intuitivamente, a única afirmação que parece ser capaz de interrompê-la é: “para

ser feliz”. Esta resposta, de fato, não permite, à primeira vista, nenhuma

instrumentalização. Este ponto será retomado por Aristóteles mais adiante, quando

distingue aqueles bens que são claramente meios – como riqueza e instrumentos

musicais - de outros que parecem ser visados em si mesmos, como é o caso das

History of a Fallacy, em 1958. Em relação a esta questão, nós tendemos a concordar com comentadores como W. F. R. Hardie, que exime o filósofo grego de tal equívoco, considerando que a idéia expressa no primeiro parágrafo da EN conecta-se com a do segundo ([1094a20]), pela qual se existe um fim desejado por si mesmo e tudo o mais é desejado em função dele, então este deve ser o sumo bem, cujo estudo seria sem dúvida importante (HARDIE, 1968, p. 16-17). Nas primeiras linhas da EN, Aristóteles pode estar apenas expressando uma visão do senso comum (“por isso foi dito que...”), não se preocupando tanto, portanto, com o rigor lógico da afirmação; ou, talvez, o uso do termo “bem”, aqui, possa ter uma noção genérica, não se referindo, assim, a um bem em particular: de fato, a partir da afirmação “toda mulher ama um homem”, não é possível deduzir que “há um homem de que toda mulher ama”. Mas é possível, sem problemas, dizer que “toda mulher ama o sexo oposto”, e não há mal nenhum em designar o sexo oposto pelo termo genérico “homem”. A conclusão se torna, então, “toda mulher ama o homem”, onde “homem”, portanto, não designa um homem particular, mas um termo genérico – dizer “o homem é aquilo de que toda mulher ama” é algo diferente de dizer que “há um homem que toda mulher ama”. 21 Hardie, W. The Final Good in Aristotle’s Ethics, publicado originalmente em Philosophy, XL (1965). 22 ZINGANO, 2007, p. 74; p. 490.

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virtudes (honra, inteligência etc).23 Estes últimos não são buscados em vista de

algo que resulte deles, mas, mesmo assim, é possível afirmar que são escolhidos

em função da felicidade. Só esta última pode ser considerada, portanto, um bem

“absoluto”, “perfeito” ou “acabado” (τελείως), ou seja, somente a eudaimonia é

desejada unicamente por si mesma, sem ter em vista nada além de si própria.

Neste sentido é que, como vimos, quando pedimos aos indivíduos para

justificarem seus bens ou fins, cada um tenderá a dar respostas diferentes, de

acordo com sua ocupação e estilo de vida, mas estas justificativas tenderão, no

jogo de “por quês”, a convergir para uma única resposta final: “para ser feliz”.

Somente esta é capaz de evitar a progressão ao infinito, pois tendemos a

considerá-la uma coisa óbvia, uma verdade primária que não remete a mais nada.

À pergunta “e por que você quer ser feliz”, só podemos responder “porque sim”.

É isto o que Aristóteles quer dizer, quando, ainda no início de sua

exposição, ao se perguntar sobre a natureza do sumo bem, afirma que “todos

consideram que é a felicidade”.24 No entanto, o filósofo grego logo se apressa em

acrescentar que há uma divergência em relação à sua natureza: a felicidade do

sapateiro, de fato, será provavelmente algo bem diferente da do soldado. Mais do

que isto, não só cada indivíduo terá uma visão própria sobre este assunto, mas esta

concepção provavelmente será algo complexo: para uma pessoa ser considerada

“feliz”, não basta que tenha um bom emprego, ou dinheiro, ou saúde, mas sim

vários destes bens, e de forma conectada, já que estes fins são, por natureza,

interligados.

É isto o que significa afirmar que a eudaimonia é um fim inclusivo ou de

segunda ordem: a felicidade não é um outro bem que se acrescenta aos demais,

mas sim um conjunto harmonioso de bens inter-relacionados, adquiridos no

decorrer da vida do indivíduo.25 Como diz Zingano, esta concepção permitiria

evitar a falácia lógica implicada na tese de que existe um único sumo bem, pois

23 ARISTÓTELES, EN I-7 [1097b-10]. Este caráter específico das virtudes – são buscadas em si mesmas, mas, ao mesmo tempo, em vista da felicidade – as leva a serem consideradas elementos constitutivos desta última, não possuindo com esta, assim, uma relação instrumental. Este aspecto será mais elaborado por Aristóteles no livro VI, quando diz que a sabedoria prática – necessária para a virtude moral no sentido próprio, como veremos -, não produz felicidade como a medicina produz saúde, mas sim como a saúde produz saúde. As virtudes, assim, são dignas de escolha independentemente dos seus efeitos (ibidem, VI-12 [1144a-10]). 24 ARISTÓTELES, EN I-4 [1095a20]. 25 “It’s clear also that eudaemonia is a composite; the ideal life is note made ideal by just one element that it contains, but has multiple criteria or desiderata” (URMNSON, 1988, p. 13).

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não se trata de apenas “uma” felicidade, numericamente falando: a eudaimonia é

única formalmente, mas múltipla materialmente.26

No entanto, não fica sempre claro que Aristóteles entenda a felicidade

desta maneira. O filósofo grego parece descrevê-la assim durante quase toda a

Ética a Nicômaco,27 mas algo diferente ocorre no livro X, quando é abordado o

tema da atividade contemplativa, vista como forma suprema de felicidade. Neste

caso, teríamos um sumo bem “exclusivo”, ou seja, não apenas formal, mas

substantivo, que se acrescenta aos outros bens. Como diz Hardie, uma coisa é

dizer que o homem sábio organiza sua vida de acordo com um sistema de

prioridades, outra, bem diferente, é dizer que prioridades são essas.28 Veremos

mais adiante que Aristóteles faz uma distinção entre as virtudes morais e as

intelectuais, e que a tese da concepção inclusiva está estreitamente ligada às

primeiras. Como nossa abordagem nos leva a enfatizar, sobretudo, as virtudes

morais, adotaremos a concepção inclusiva. Na conclusão da primeira parte,

voltaremos a mencionar o problema de conciliar as duas caracterizações da

eudaimonia.

Ainda no início da Ética a Nicômaco, após analisar a maneira pela qual os

diferentes fins se concatenam entre si e definir o sumo bem como sendo a

felicidade, Aristóteles começa a investigar qual seria a natureza específica desta

última, a partir das posições existentes sobre o assunto, que, como vimos, são

divergentes. Seguindo um procedimento que lhe é característico, comenta

inicialmente as opiniões correntes, do senso comum, para depois analisar as visões

dos filósofos. As primeiras são organizadas em função de uma distinção entre três

“tipos de vida” (bi/oj): a agradável, a política e a contemplativa. A felicidade da

vida agradável – semelhante à dos animais, segundo Aristóteles – é baseada no

prazer, a do segundo tipo – relacionada a pessoas de maior refinamento – é

baseada na honra, e sobre o terceiro tipo, a contemplativa, ele tratará mais

26 ZINGANO, 2007, p. 104. O número de bens envolvidos seria o suficiente para a obtenção da “autarquia” ou auto-suficiência (άύτάρκειά) do indivíduo. ZINGANO, 2007, p. 417 (Cf. ARISTÓTELES, EN I-7 [1097b6-21]; ibidem, X-6 [1176b6]). GAUTHIER & JOLIF, 1970. p. 53 (tomo II) (tradução nossa): “a felicidade não saberia se adicionar a o que quer que seja para fazer uma soma que valeria mais que ela; ela própria é de fato a soma que inclui todos os bens”. 27 Este aspecto é explicitado pelo próprio autor no trecho em que afirma que a felicidade não pode ser “um bem entre outros”, argumentando que, se assim fosse, sempre se poderia acrescentar-lhe algo, obtendo assim um bem ainda maior (ARISTÓTELES, EN I-7 [1097b16-21]). Desta forma, a própria caracterização da eudaimonia como um bem absoluto implica que ela seja inclusiva. 28 HARDIE, 1968, p. 329.

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adiante.29 O modo de viver baseado na honra é identificado por Aristóteles à vida

política, sendo esta, assim, aquela relacionada às virtudes (pelos menos as éticas,

como veremos mais adiante), sendo, portanto, a que nos interessa mais

diretamente.30

Este vínculo entre ética e política já havia sido estabelecido anteriormente,

quando, ao se perguntar sobre a ciência que tem por objeto o sumo bem, o filósofo

grego respondeu que se tratava desta última.31 Esta relação não parece ser tão

óbvia hoje em dia, mas é preciso considerar que no período clássico não havia

ainda uma cisão tão bem definida entre a vida pública e a privada. A noção de

“indivíduo” estava, então, intrinsecamente ligada à de “cidadão”. Ross considera,

neste sentido, que a ética aristotélica é social e sua política é ética.32 Como diz

Aubenque, é somente no período helênico que os dois conceitos se separam,

levando à elaboração de éticas mais interiorizadas, como as dos epicuristas e dos

estóicos.33 Esta dimensão política e social da ética aristotélica é fundamental para

compreendermos sua relação com a eudaimonia.34

A política, assim, é a ciência do sumo bem. Isto significa que ela sempre

29 ARISTÓTELES, EN I-5 [1095b15-1096a5]. Bodéüs considera que a eudaimonia aristotélica tentará fundir estes três tipos de vida (ARISTOTE, 2004, p. 29, (apresentação de R. Bodéüs)). Mas não há dúvida de que a ética – ligada às virtudes morais – está relacionada à segunda. 30 A relação entre honra e virtude se deve ao fato de que buscamos a primeira em função da segunda, ou seja, do reconhecimento de nosso valor. Mas Aristóteles se apressa em indicar que isto ainda é incompleto, anunciando questões que tratará mais adiante, como a relação da virtude com a atividade e com os infortúnios. 31 ARISTÓTELES, EN I-2 [1094a25-1094b10]. 32 ROSS, 1995, p. 195. 33 “Se a unidade da vida privada e da vida pública caracterizava a era clássica da Grécia, a ruptura dos quadros da cidade em proveito de conjuntos mais vastos arruína tal unidade. Aristóteles ainda sustenta a coincidência entre a virtude do homem público e a do homem privado; entretanto, esta se torna inútil numa sociedade que não espera mais do homem privado que participe nos negócios públicos. (...) É o momento em que a liberdade do homem livre, que até então se confundia com o exercício dos direitos cívicos, se transmuta, na falta de algo melhor, em liberdade interior. (...) Tal atmosfera de retração, ou, como se disse, de ‘abstração’, é característica das filosofias helenísticas” (AUBENQUE, 2008, p. 33). 34 Sobre a relação entre ética e política, Bodéüs comenta que “o bem ultimamente visado pelo ser humano para si próprio, por conferir sentido à sua vida, é necessariamente o que ele deseja também para seus semelhantes, a política sendo a capacidade de dar à vida do outro o mesmo sentido que à sua própria existência” (ARISTOTE, 2004, p. 29, (apresentação de R. Bodéüs), tradução nossa). Hardie enfatiza a maneira pela qual o fim da política seria similar ao do indivíduo, mas superior: “While the good for the state and the good for the individual are the same, the end of the state is ‘something greater and more complete’” (HARDIE, 1968, p. 17). Já Gauthier & Jolif consideram que Aristóteles rejeita a identificação platônica entre ética e política: esta última teria um sentido “arquitetônico”, mais amplo que o usual, e nesta acepção a política é que estaria submetida à ética (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 2; p. 11-12. (tomo II)). Ross tende a concordar com estes últimos: para ele, no início da EN a ética pareceria estar submetida à política, mas no decorrer do texto esta relação se inverteria, e no final a política seria caracterizada mais como um apoio para a vida moral do indivíduo, fornecendo as condições para que os desejos do homem sejam subservientes à razão (ROSS, 1995, p. 195).

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exercerá um papel importante na estruturação dos bens particulares, já que todos

eles convergem, como vimos, para a eudaimonia. Mas isso não quer dizer que a

política seja a ciência de todos os bens. Este aspecto está ligado à rejeição da tese

platônica do “Bem em si”: de fato, após a análise das opiniões correntes sobre a

felicidade - que levou, como vimos, à distinção entre três tipos de “estilo de vida”

-, Aristóteles aborda as visões filosóficas sobre o assunto, se atendo, sobretudo, à

de Platão. A existência de um “Bem em si” é então negada pelo estagirita, pois

para ele o Bem se diz em tantas maneiras quanto o Ser.35 Umas das conseqüências

desta afirmação, justamente, é que não pode existir uma ciência única do Bem,

mas várias ciências que tratam dos diversos fins.36 A política, portanto, é ciência

do sumo bem, sem ser, no entanto, a ciência de todos os bens. Embora esta

caracterização não seja incompatível com a concepção “exclusiva” da eudaimonia

(pois dizer que o sumo bem é substantivo é diferente de afirmar que existe o Bem

em si), podemos considerar que ela reforça a tese inclusiva, pois nesta última a

eudaimonia é vista como um princípio organizador, o que parece ter mais a ver

com a natureza da política.

Depois de refutar a visão de Platão, Aristóteles investiga quais são os bens

visados em si mesmos, o que leva, como já vimos, à caracterização das virtudes

como elementos constitutivos da felicidade, esta última sendo, assim, o único bem

“perfeito” ou “acabado” (teleios), e, portanto, auto-suficiente. O filósofo grego

35 ARISTÓTELES, Meta. IV (Γ) [1003a33]. O Bem, na verdade, se diz exatamente nos mesmos significados do Ser, que são as categorias: esta noção significa, assim, Deus e o intelecto na categoria da essência, a virtude na de qualidade, a justa medida na de quantidade, o útil na de relação, a “ocasião” (καιρός) na de tempo, a “localidade conveniente” (δίαιτα) na de lugar, o ensinar e aprender nas categorias de agir e padecer (AUBENQUE, 2008, p. 163). Isso significa que as diferentes acepções do Bem não podem ser derivadas de um único sentido central e paradigmático, o “Bem em si”, como acreditava Platão. Como diz Ross, “there is no form of good separate from its particular manifestations” (ROSS, 1995, p. 199). Na Ética Eudêmica, temos: “it is clear, then, that neither the Idea of good nor the good as universal is the good per se that we are actually seeking” (ARISTÓTELES, EE I-8 [1218b7]). Desta forma, o “sumo bem” de que fala Aristóteles não deve ser confundido com o bem-em-si platônico. É preciso considerar que embora os diferentes significados do Ser e do Bem não sejam sinônimos, isso não quer dizer que sejam totalmente independentes, o que levaria à homonímia. A solução aristotélica para determinar esta espécie de “meio-termo” entre a sinonímia e a homonímia é a noção de significação focal (expressão cunhada pelos comentadores modernos), pela qual as diferentes categorias se dizem com referência a um conceito central, que é o de substância (ZINGANO, 2007, p. 573). Como diz Hardie, isto significa que o sentido primário é um elemento na definição dos seus sentidos secundários (HARDIE, 1968, p. 63). 36 ARISTÓTELES, EN I-6 [1096a30-35]. Aristóteles considera que as ciências dos diversos bens são múltiplas até mesmo dentro de uma mesma categoria, dando, como exemplo, a da oportunidade na guerra, que é a ciência da estratégia, da medicina para a saúde, na moderação para os alimentos, na educação física para os exercícios. Cf. HARDIE, 1968, p. 61: “in the exercice of its authority over the sciences, politcs dictates only the occasions of their application; but each is an independent technique”.

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chega então a um ponto de sua exposição que é vital, não só para sua própria

concepção, mas também para o tema específico de nossa tese: o famoso

argumento do érgon ou “função”.

Este argumento surge a partir de uma necessidade de explicar melhor o

que é a felicidade, e esta tarefa seria mais simples, segundo o filósofo grego, se

fosse possível determinar qual é a “função” (e)/rgon) do homem: “pois, da mesma

maneira como para um flautista, um escultor ou um outro artista, e em geral para

tudo que têm uma função ou atividade, considera-se que o bem e a perfeição

residem na função, com o homem, se ele tem uma função, seria aplicável o

mesmo critério”.37

A primeira parte do raciocínio talvez ainda fizesse sentido hoje em dia: de

fato, para determinar o que é ser um “bom médico”, é preciso antes compreender

o que é ser médico, ou seja, a natureza de sua atividade. Também parece ser

possível aplicar esta lógica a objetos manufaturados: a função de uma caneta, por

exemplo – escrever – pode ser considerada o bem da caneta, assim como o bem de

um carro consistiria em transportar etc. A dificuldade está em compreender desta

forma os entes naturais, como o homem. Ser homem não é um “ofício”, e também

não parece fazer sentido – a não ser, talvez, dentro de uma concepção religiosa

teleológica - considerar que nós fomos criados com algum tipo de propósito, que

poderia ser visto como nossa função.

É preciso considerar, no entanto, que os gregos tinham uma concepção da

physis diferente da contemporânea. Nossa visão é em grande parte herdeira do

mecanicismo da ciência moderna, pela qual a Natureza pode ser descrita

unicamente em termos de causas eficientes. Os antigos, por outro lado, tendiam a

ter uma visão mais teleológica, e Aristóteles não é exceção. Na Política, por

exemplo, temos:

(...) a natureza de uma coisa é o seu estágio final, porquanto o que cada coisa é quando o seu crescimento se completa nós chamamos de natureza de cada coisa, quer falemos de um homem, de um cavalo ou de uma família. Mais ainda: o objetivo para o qual cada coisa foi criada – sua finalidade – é o que há de melhor para ela, e a auto-suficiência é uma finalidade e o que há de melhor.38

Para os gregos, assim, fazia sentido considerar que o bem de uma árvore é

37 ARISTÓTELES, EN I-7 [1097b20-30]. 38 ARISTÓTELES, Pol. I-1 [1252b32-1253a2]. Diga-se de passagem, esse teleologismo mais explícito, encontrado na Política, é que levará Aristóteles àquelas conhecidas conclusões, pouco aceitáveis hoje em dia, acerca da inferioridade natural das mulheres ou dos escravos.

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dar frutos, ou que o bem do Sol é iluminar e aquecer. Como diz Gauthier, a

“função” é vista pelos antigos como uma forma de compreender o que algo “é”:

O érgon de um ser, sua função ou tarefa própria, é, portanto, a operação para a qual ele é feito, e que, sendo seu fim, define também sua essência; todo ser que tem uma tarefa a realizar existe de fato para esta tarefa, e é na realização desta tarefa que reconhecemos que ele realmente é aquilo que é (...).39

A função do homem, assim, pode ser vista como uma forma de

compreender qual é sua verdadeira natureza, e esta estaria ligada àquilo que lhe é

específico, isto é, a razão.40 Isto, no entanto, apenas nos diz qual é o gênero do

bem humano (atividade racional da alma), mas não sua diferença específica: em

qualquer ofício, de fato, é preciso distinguir o simples exercício de uma atividade

do “bom” exercício, e esta diferença é determinada pela virtude. O bem do

homem, assim, está em uma boa e nobre realização de sua função, ou seja, de

acordo com a excelência que é própria à atividade racional de sua alma. Daí a

conclusão final: “o bem do homem vem a ser a atividade da alma em consonância

com a virtude e, se há mais de uma virtude, em consonância com a melhor e mais

completa entre elas”.41

Alguns comentadores, como Gauthier, questionam que o érgon humano

descrito na Ética a Nicômaco faça de fato referência à concepção teleológica da

physis defendida por Aristóteles em outras obras.42 O filósofo grego, de fato, não

chega a citar explicitamente suas teorias sobre a Natureza na EN.43 Não se pode

39 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 54-55 (tomo II: comentário) (tradução nossa). Cf. ibidem, p. 136: “uma coisa só é o que é se for capaz de realizar sua função” (tradução nossa). Estes comentadores dão como exemplo um olho, que só pode ser considerado como tal se for capaz de enxergar. Como diz MacIntyre, “os argumentos morais dentro da tradição aristotélica – tanto em sua versão grega quanto na medieval – envolvem pelo menos um conceito funcional central, o conceito de homem compreendido como ser que tem uma natureza essencial e uma finalidade ou função essencial; (...) Aristóteles assume como ponto de partida da investigação ética que o relacionamento entre ‘homem’ e ‘viver bem’ é análogo ao que há entre ‘harpista’ e ‘tocar bem a harpa’” (MACINTYRE, 2001, p. 109). 40 ARISTÓTELES, EN I-7 [1097b30]. Isso leva o filósofo grego a esboçar um tema que será mais desenvolvido posteriormente, que é a divisão da alma humana em três partes ou faculdades, aqui ainda descritas como tipos de vida ou atividade: uma vida nutritiva e de crescimento, comum a todos os seres vivos, inclusive às plantas, uma perceptiva ou sensitiva, que também é comum aos animais, e uma racional, específica ao homem. Esta última é também dividida em duas partes ou sub-faculdades – a que “obedece” ao princípio racional e a que o “possui”, esta última também tendo duas acepções: disposição e atividade. Obviamente, a função do homem está ligada a esta última, ou seja, ao exercício ativo. 41 ARISTÓTELES, EN I-7 [1098a5-20]. 42 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 243-244 (tomo I: introdução). 43 Para Gauthier, o que está em questão na ética aristotélica é o bem do homem, e não um bem universal definido a partir da finalidade natural (o autor francês está aqui, provavelmente, visando diferenciar a concepção aristotélica da dos estóicos, que é estabelecida a partir de uma visão mais

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negar, no entanto, que a função do homem é estabelecida a partir de uma

referência naturalista (talvez pudéssemos falar de um “humanismo naturalista”?).

Como diz Julia Annas, o argumento do érgon faz apelo ao desenvolvimento

apropriado da natureza humana,44 o que ocorreria através do bom exercício da

razão. Para Monique Santo-Sperber, Aristóteles se serve do modelo da Natureza

para pensar a idéia de uma normatividade imanente ao próprio homem, ou seja, o

que “deve ser o homem”, o fim que ele persegue.45 Para o ser humano (assim

como para toda espécie viva) o bem consiste, assim, no desenvolvimento e

exercício, em condições favoráveis, das capacidades de sua natureza - neste caso,

da natureza humana racional.

Podemos, agora, nos perguntar qual o papel que exerce o argumento do

érgon dentro da ética aristotélica, e, sobretudo, de que maneira ele se concatena

com o que estávamos acompanhando até agora. Vimos que Aristóteles iniciou sua

Ética a Nicômaco com uma investigação sobre a natureza do bem, e, mais

exatamente, sobre o sumo bem. Neste sentido, a idéia de determinar qual é o bem

específico do homem parece se inserir perfeitamente neste contexto. Se olharmos

mais atentamente, no entanto, perceberemos que houve algum tipo de “quebra”

aqui. Até agora, de fato, o bem estava sendo entendido como aquilo que é visado

por nossas ações, portanto de uma maneira que podemos considerar, até certo

ponto, “subjetivista” – como dissemos, a felicidade do sapateiro é bem diferente

da do soldado, e Aristóteles parecia estar perfeitamente consciente disso: a

determinação formal da eudaimonia como um bem inclusivo pode ser vista como

uma forma de respeitar, justamente, a diferença substantiva entre as felicidades

individuais, ligadas a diferentes ocupações e estilos de vida. Com o argumento do

érgon, no entanto, algo diferente parece ocorrer: o bem, aqui, não é mais

determinado por aquilo que visamos em nossas ações, mas por uma remissão à

natureza humana, portanto de uma maneira mais “objetiva”, por assim dizer.

Como comenta Tugendhat em suas Lições de Ética, neste ponto da EN parece

haver uma ruptura abrupta, pela qual um novo conceito de bem é introduzido: cosmológica). É verdade que os exemplos apresentados para ilustrar o argumento do érgon na Ética a Nicômaco são, sobretudo, atividades humanas ou “ofícios” (a versão francesa de Richard Bodéüs, de fato, traduz érgon por “office”). Mas a divisão da alma humana em três partes claramente visa, como vimos, encontrar aquilo que é específico à natureza humana (não é à toa que neste trecho em particular Aristóteles cita, sim, entes naturais, como o boi, os vegetais etc). 44 ANNAS, 1993, p. 157. Cf. CANTO-SPERBER, 2001, p. 87, tradução nossa: “Aristóteles define a virtude como o estado optimal das potencialidades racionais da natureza humana”. 45 CANTO-SPERBER, 2001, p. 22; p. 76; p. 88-89.

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antes, esta noção era descrita como aquilo a que aspiramos, e agora como “aquilo

para que algo existe”.46 Seguindo a mesma linha, Urmson considera que o érgon

humano pode talvez determinar “o bem do homem”, mas isso é diferente do “bem

para o homem”.47 A diferença entre as duas acepções é facilmente percebida se

pensarmos em sua conexão com o desejo: tendemos a aceitar sem problemas a

idéia de que os fins de nossas ações são desejados por nós e, portanto, em última

instância, a própria felicidade; mas que sentido há em afirmar que desejamos

“exercer de maneira virtuosa a função que temos enquanto seres humanos”?

Na verdade, podemos até considerar que as duas acepções são aceitáveis

intuitivamente (se fizermos a concessão de que para os gregos a noção de “bem

como função de algo” se aplica aos entes naturais). O problema está em identificar

os dois sentidos, o que Aristóteles parece estar fazendo, ao passar de um ao outro

sem comentar que são diferentes. E esta distinção afeta diretamente o assunto que

está sendo tratado – a eudaimonia -, pois somente a primeira acepção parece estar

ligada à felicidade, devido, justamente, à sua conexão com o desejo. Para

compreendermos devidamente o argumento do érgon, é preciso, portanto,

realizarmos estas duas tarefas, conforme comentamos: primeiro, determinar o por

quê deste argumento, ou seja, o papel que exerce dentro da ética aristotélica. E,

segundo, como conciliá-lo com a concepção de eudaimonia que estava sendo

defendida, até aqui, por Aristóteles.

A nosso ver, a introdução desta forma diferente de entender o bem é

considerada necessária, pelo filósofo grego, para estabelecer o nexo entre

felicidade, moralidade e racionalidade, o que não havia ainda sido feito, de forma

clara, até então. De fato, pelo tratamento anterior, nada parece impedir que um

criminoso, por exemplo, fosse feliz, desde que alcançasse seus objetivos e

estruturasse bem sua vida em função deles. Claro, podíamos considerar que a

desonra relativa a esta atividade, o fato das virtudes serem constitutivas da

eudaimonia, ou a dificuldade de organizar este tipo de “bem” de uma maneira

realmente racional, indicassem que uma pessoa viciosa não pudesse ser feliz. Mas

nada na exposição de Aristóteles negava, de forma clara, esta possibilidade. Isto

se deve ao fato, justamente, da descrição feita até então ser ainda demasiadamente

subjetivista, flertando com o relativismo, o que tende a minar a ligação entre

46 TUGENDHAT, 2003, p. 242-243. 47 URMSON, 1988, p. 20.

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eudaimonia e moralidade.

A definição do bem “do homem”, assim, parece ser uma forma encontrada

pelo estagirita de elaborar uma concepção mais objetiva do bem. Esta objetividade

é obtida, como vimos, a partir de uma remissão à natureza humana, o que permite

chegar a uma versão mais racionalista da eudaimonia. Como veremos mais

adiante, esta “atividade racional”, implicada na definição de felicidade que

decorre do argumento do érgon, levará à noção de phrónesis ou de sabedoria

prática, sem a qual um indivíduo não pode ser virtuoso e feliz, no sentido pleno do

termo. A partir desta noção, será possível afirmar que um ladrão bem-sucedido

não possui realmente uma vida lograda, ainda que acredite nisso, pois é

impensável que um homem prudente se torne criminoso.48

Esta é assim, a nosso ver, a função do argumento do érgon dentro da ética

aristotélica: estabelecer uma conexão forte entre eudaimonia e racionalidade,

através de uma noção mais objetiva de bem, elaborada a partir da remissão a uma

dimensão naturalista.49 Resta ainda estabelecer como esta concepção pode ser

compatibilizada com aquela apresentada antes, onde o bem é visto como o que é

visado por nossas ações. Como dissemos anteriormente, que sentido há em

considerar que todo homem “deseja” exercer virtuosamente sua função enquanto

homem?

Em primeiro lugar, é preciso considerar que o bem “do” homem não é,

obviamente, substantivo, isto é, não é algo externo que procuramos obter através

de nossas ações. Fazendo um paralelo com o que vimos acerca da interpretação

inclusiva e exclusiva da eudaimonia, podemos considerar que se trata de um fim

de segunda ordem, ou seja, da maneira pela qual estabelecemos, obtemos ou

organizamos nossos bens primários. A phrónesis, entendida como excelência

racional, poderia, talvez, contribuir para a obtenção e organização (de acordo com

uma ordem de prioridades etc) destes bens. Esta seria uma visão um tanto o

quanto instrumentalista da sabedoria prática, mas, como veremos, Aristóteles dá

abertura para este tipo de interpretação. No entanto, o argumento da “função” com 48 Podemos relacionar este ponto ao comentário de Rosalind Hursthouse que citamos anteriormente (nota 18): o conceito moderno de “felicidade” não é uma boa tradução para eudaimonia por ser demasiado subjetivo. Neste sentido, o argumento do érgon pode ser visto como a maneira encontrada pro Aristóteles para evitar este problema, levando a eudaimonia a adquirir o sentido, julgado mais adequado por esta autora, de “felicidade verdadeira”. 49 Cf. GAUTHIER & JOLIF, 1970. p. 289, tradução nossa: “o que caracteriza a conduta humana não é a procura do bem, agathon, e sim a intervenção da razão: com a razão aparece o bem moral (...)”.

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certeza nos diz bem mais do que isso: não seria preciso, de fato, um raciocínio tão

elaborado para chegar a uma conclusão tão óbvia, a de que o bom exercício da

razão é necessário para a obtenção e estruturação de nossos fins. O érgon é uma

reflexão sobre a natureza do bem: seu objetivo, portanto, não é simplesmente

mostrar como podemos realizar melhor a concepção exposta anteriormente, mas

sim modificá-la e complementá-la.

Podemos considerar que o que é realizado, aqui, é um deslocamento na

compreensão da eudaimonia, da esfera do simples desejo para a esfera da razão e

da moralidade. Será possível afirmar, então, que para ser feliz não basta apenas

satisfazer nossos desejos, é preciso, ainda, desejar bem. Esta mudança não chega,

obviamente, a romper com a visão anterior: a eudaimonia será ainda entendida a

partir de nossos anseios e apetites, mas estes, por sua vez, deverão se conformar à

razão, e, portanto, à moral. A obtenção de nossos fins será então uma condição

necessária, porém não suficiente, para a felicidade, pois estes fins precisarão ainda

ser determinados por um “bom” desejo. Este, como veremos, será aquele no qual

nossas inclinações – para usar um vocabulário kantiano - se harmonizam com a

sabedoria prática. Se entendermos o érgon humano como um bem de segunda

ordem, como dissemos acima, então este não se refere apenas à maneira pela qual

obtemos e organizamos nossos bens primários, mas também, e, talvez, sobretudo,

à maneira pela qual nós os determinamos.50 O homem prudente, phrónimos, será

aquele capaz de enxergar o “verdadeiro bem”. O argumento do érgon, assim,

permite complementar e aperfeiçoar a concepção anterior de eudaimonia,

acrescentando-lhe a dimensão da razão e da moralidade, e tornando possível

concluir, como veremos, que o vicioso bem-sucedido não é realmente feliz,

mesmo que acredite sê-lo.51

Este aspecto será importante na comparação com Kant, pois podemos

considerar que a crítica deste último ao “eudaimonismo” se aplica, sobretudo, à

50 Sem isso, não seria possível diferenciar o prudente da “habilidoso”, como faz Aristóteles. Segundo Aubenque, a habilidade, enquanto capacidade para facilmente realizar fins, combinando os meios mais eficazes de atingi-lo, é indiferente à qualidade do fim. O habilidoso só vê o bem quando a virtude moral o faz voltar-se para o que é bom, e, portanto, é possível ver a prudência como a “habilidade do virtuoso” (AUBENQUE, 2008, p. 101). Cf. HARDIE, 1968, p. 236: “to have pratical wisdom is to be able to envisage good ends and not only to be able to see how they can be attained”. 51 Para ilustrar este ponto, podemos citar este trecho, posterior ao argumento do érgon: “Se as atividades são, como dissemos, o que dá caráter à vida, nenhum homem feliz pode tornar-se desgraçado, pois ele jamais praticará atos odiosos ou ignóbeis” (ARISTÓTELES, EN I-10 [1100b35]).

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concepção que parecia estar sendo exposta no início da Ética a Nicômaco – a

felicidade como satisfação de nossos desejos, organizados de forma coerente e

harmoniosa. A modificação realizada pelo argumento do érgon, no entanto, leva a

uma versão da eudaimonia que não poderia ser completamente descartada por

Kant, pois ela estabelece uma relação intrínseca entre razão e moralidade com a

qual o filósofo alemão, em princípio, concordaria. Como diz Gauthier, “(...) a

moral de Aristóteles não é um ‘eudaimonismo’ no sentido kantiano do termo: o

bem humano (que se pode chamar de felicidade se se quiser) é primeiramente o

bem da razão, é a atividade que a razão, por tê-la reconhecido como sua perfeição

própria, se coloca como fim a ser perseguido”.52 Este aspecto não elimina

completamente a crítica kantiana ao eudaimonismo, pois o argumento do érgon

não chega a romper com a concepção anterior, apenas modificando-a: a atividade

da alma em consonância com a virtude ainda será vista como a felicidade do

homem. No entanto, o fato desta felicidade ser compreendida a partir da relação

entre razão e moralidade será importante em nossa tentativa de aproximar a ética

de Kant da dos antigos, como veremos mais adiante.

No eudaimonismo aristotélico há, assim, uma relação intrínseca entre

desejo e racionalidade, e é exatamente nesta relação que consiste a moralidade.

Podemos nos perguntar, agora, como se dá esta ligação. O desejo, de fato, não

pode ser “diretamente” determinado pela razão - como veremos, este aspecto está

ligado ao fato de que os gregos não possuíam uma concepção de vontade

autônoma, como ocorre em Kant. O processo pelo qual nossas inclinações se

harmonizam com a phrónesis será, portanto, complexo, e não é à toa que o

filósofo grego começa a analisá-lo já no final do livro I, logo após determinar qual

é a função do homem.

Antes de tratar deste assunto, no entanto, Aristóteles ainda aborda outros

temas, relacionados à definição da eudaimonia que acaba de apresentar, e que não

nos interessam diretamente neste momento, mas vamos citá-los aqui rapidamente,

para que nossa análise da exposição feita no livro I não fique incompleta: o

filósofo grego procura, por exemplo, enfatizar a compreensão da eudaimonia

como uma atividade (e)ne/rgeia), e não uma mera posse (dá como exemplo os

Jogos Olímpicos, onde não são necessariamente os atletas mais belos e fortes que

52 GAUTHIER & JOLIF, 1970. p. 297 (tradução nossa).

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vencem, mas os que competem).53 Este ponto será relevante para nós futuramente,

pois deixa claro que a ação não é considerada “boa” apenas por ter sido realizada

por alguém reconhecidamente virtuoso: é preciso, por assim dizer, que a virtude

esteja presente no momento do agir, o que afeta o problema, central em nossa tese,

de determinar de onde é derivado o valor moral do ato. Aristóteles também faz um

rápido comentário sobre a relação entre felicidade e prazer, que ele analisará de

forma mais aprofundada posteriormente (livros VII e X), chegando à conclusão de

que só as ações virtuosas são aprazíveis em si mesmas, e que a felicidade é a mais

nobre e aprazível coisa no mundo.54 Aborda então a questão de como os bens

exteriores afetam a felicidade. Este é um ponto importante, pois se trata de uma

das principais diferenças entre a concepção do estagirita e as de outros autores do

mundo antigo, notadamente os helênicos: para estes, de fato, a virtude tende a ser

vista como uma condição necessária e suficiente para a felicidade – é a chamada

“ataraxia” (a)taraci/a) -, ao passo que para o estagirita as virtudes são condições

necessárias, porém não suficientes,55 o que significa que os bens exteriores

contribuem, de alguma forma, para a eudaimonia.56 Esta contribuição pode se dar

de várias formas; aqui, Aristóteles, apenas introduzindo a questão, se refere ao

fato de que não se pode praticar determinados tipos de ação sem os meios

necessários.57 Este aspecto o leva a abordar outro tema - se uma pessoa pode ser

53 ARISTÓTELES, EN I-8 [1099a-10]. Como comentam Gauthier & Jolif, esta seria uma diferença importante com a concepção platônica, pela qual a felicidade estaria na posse (κτησις) da virtude (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 31-32 (tomo II)). 54 ARISTÓTELES, EN I-8 [1099a20-30]. 55 AUBENQUE, 2008, p. 128-129. 56 Em relação a este ponto, Zingano comenta que as virtudes são causas “próprias” da felicidade, enquanto os bens exteriores são causas “coadjuvantes”. Sem estes últimos, no entanto, não é possível ser feliz (ZINGANO, 2007, p. 90). Segundo Gauthier & Jolif, a atividade virtuosa é a essência da felicidade (gênero + diferença específica), enquanto os bens exteriores seriam atributos ou instrumentos necessários (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 75 (tomo II)). Aristóteles voltará a tocar neste ponto no livro X, comentando que o homem feliz (sendo que aqui a felicidade já é considerada como “contemplação”) também necessita de bens exteriores, como a saúde, mas apenas de forma moderada: “mesmo com recursos moderados, pode-se proceder virtuosamente (...) basta que tenhamos o necessário para isso, pois a vida das pessoas que agem em conformidade com a virtude será feliz” (ARISTÓTELES, EN X-8 [1179a4]). 57 Aristóteles aproveita esta questão para mostrar que sua concepção de felicidade, resultante do argumento do érgon, confirma a definição da política como ciência do sumo bem: o fato de muitas vezes precisarmos de bens exteriores para exercer nossa virtude mostraria que eudaimonia e política estão intrinsecamente ligados, e que o principal empenho desta última é “fazer com que os cidadãos sejam bons e capazes de nobres ações” (ARISTÓTELES, EN I-9 [1099b-1100a]). Segundo Gauthier & Jolif, Aristóteles divide os bens exteriores em duas categorias: a primeira, como vimos, são aqueles necessários para o próprio exercício da virtude, designados pelo termo técnico de “instrumentos” (não se pode ser magnânimo sem dinheiro, por exemplo). A segunda categoria, mais problemática para a ética aristotélica, são aqueles bens que parecem ser necessários

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considerada “feliz” ainda viva ou só depois de morta -,58 e, de forma interligada, o

problema da dignidade do homem virtuoso diante dos infortúnios. Este último

ponto nos interessa mais diretamente, pois, como veremos, o conceito de

“dignidade” é central para a moral kantiana. Em Aristóteles, este aspecto está

ligado ao papel secundário que os bens exteriores exercem em nossa felicidade, se

comparado ao das virtudes (aqueles estando muitas vezes diretamente

subordinados a estas, de forma instrumental, como vimos). Podemos assim

considerar que o argumento do érgon, ao conferir uma dimensão moral à

eudaimonia, reforçou ainda mais aquilo que já havíamos comentado: trata-se de

um conceito de bem diferente da noção moderna de felicidade, no qual se baseia,

como veremos, a crítica kantiana ao eudaimonismo. É possível ser feliz mesmo

diante dos desvarios da fortuna, se nossas ações estiverem de acordo com a

“atividade da alma conforme a virtude”. No entanto, como também já

comentamos, a eudaimomia ainda está relacionada à dimensão do desejo, e, neste

sentido, pode ser aproximada do que entendemos por felicidade. Neste sentido é

que para Aristóteles os bens exteriores contribuem sim para a vida lograda, ainda

que de forma secundária.

Finalmente, no final do livro I, o autor grego começa a analisar a natureza

da virtude, em função de uma divisão da alma humana em três partes. Esta análise

decorre diretamente do argumento do érgon, como o próprio autor procura deixar

claro, ao relembrar a conclusão à que havia chegado: “uma vez que a felicidade é,

então, uma atividade da alma conforme a virtude perfeita, é necessário considerar

a natureza da virtude, pois isso talvez possa nos ajudar a compreender melhor a

natureza da felicidade”.59 Os assuntos que foram tratados anteriormente, que

acabamos de comentar, podem quase ser vistos como uma grande parênteses, em

que foram analisadas algumas conseqüências diretas da definição de eudaimonia a

que se havia chegado, para depois retomar, por assim dizer, o curso principal da

argumentação.

Na verdade, o assunto que é tratado neste último trecho do livro I parece se para a felicidade, mas não para a atividade virtuosa (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 70-71 (tomo II)). 58 A conclusão, em relação a este ponto, é que homens vivos podem ser considerados felizes se satisfizerem as condições apontadas – agir conforme a virtude e sendo suficientemente providos de bens exteriores, por toda a vida (ARISTÓTELES, EN I-10 [1101a15-23]). 59 ARISTÓTELES, EN I-13 [1102a5]. Gauthier & Jolif consideram que esta tradução, tradicionalmente adotada, está equivocada, pois a questão não seria compreender “o que é” a virtude, mas sim como é possível adquiri-la (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 89 (tomo II)).

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referir mais ao livro II, pois não se ocupa mais da eudaimonia, passando a se

concentrar na questão da virtude. A tradução francesa de Richard Bodëus, por

exemplo, divide a primeira e a segunda parte da Ética a Nicômaco neste ponto.

Nós também seguiremos esta repartição temática, considerando assim finalizada

nossa análise da noção de eudaimonia, exposta por Aristóteles no livro I.60

2.2

As virtudes morais como harmonização de nossos dese jos com a

razão

Como já dissemos, o objetivo de nosso trabalho, nesta primeira parte, é

realizar uma análise da ética aristotélica, procurando determinar qual é sua

estrutura a partir da relação entre três elementos: razão prática, virtude e valor

moral da ação. No primeiro capítulo, vimos que o argumento do érgon exerce um

papel fundamental nesta relação, conferindo uma dimensão moral-racional à

felicidade. Como a razão é aquilo que é específico ao homem, ser um “bom

homem” estará ligado à excelência racional. A noção de virtude também surge

nesta definição, enquanto diferença específica que permite distinguir o simples do

bom exercício da razão.

O argumento do érgon, assim, estabelece uma relação intrínseca entre

moral e racionalidade, e, portanto, entre virtude e razão. Mas “virtude”, aqui,

ainda parece possuir um sentido demasiado intelectual. Para analisarmos como o

valor moral da ação é compreendido a partir de elementos aretaicos – um dos

temas centrais de nosso trabalho – é necessário, ainda, determinar como os atos de

um indivíduo podem ser determinados por sua razão. Ora, nossas ações resultam

de nossos desejos, que determinam os fins que buscamos (Aristóteles ainda não

abordou explicitamente a noção de desejo, mas este está implícito em sua

definição de “bem” como aquilo que visamos ao agir). Desta forma, a questão

passa a ser determinar como nossas inclinações podem se acordar61 com a

excelência racional.

60 Como diz Hardie, a divisão da EN em livros não corresponde exatamente àquilo que nós chamamos hoje em dia de “capítulos”. Às vezes há a transição entre assuntos diferentes dentro de um mesmo livro, ou um mesmo assunto dividido em dois sem motivo claro (como ocorre com a amizade, nos livros VIII e IX), algumas passagens são repetidas sem necessidade etc (HARDIE, 1968, p. 1-3). O fato de todos os livros terem o mesmo tamanho sugere, de fato, que o critério de divisão pode ter sido o comprimento do material usado para registrá-los (papiros etc), embora haja claramente um esforço de tratar de um tema diferente dentro de cada unidade de comprimento. 61 Obviamente, ainda não está claro o que entendemos por “em acordo”, mas esta expressão se tornará mais clara no decorrer de nossa análise.

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É exatamente este assunto que Aristóteles aborda ainda no final do livro I,

a partir de uma investigação sobre a natureza de nossa alma. Esta análise é

necessária para compreender a essência da virtude, implicada na definição de

eudaimonia, pois a felicidade é uma atividade de nossa psiqué: assim,

“entendemos por virtude humana não a do corpo, mas a da alma”.62 O filósofo

grego realiza então uma divisão desta em três partes ou faculdades, de maneira

relacionada às formas de vida ou biós que, como vimos, ele citou anteriormente,

ao falar das opiniões correntes sobre a felicidade e no próprio argumento do érgon.

Uma primeira distinção é feita entre uma parte racional e outra desprovida de

razão; esta última é subdividida, por sua vez, em duas: uma de nutrição e

crescimento – comum a todos os seres vivos, inclusive aos vegetais, e que por isso

não faz parte da excelência humana -, e uma que, embora seja irracional,

“participa” da razão. Trata-se da parte apetitiva ou, em um sentido mais geral,

desiderativa. Esta teria três funções – sensação, apetites e movimento -, e, embora

seja irracional, é capaz de ouvir a razão, mesmo que na prática isto nem sempre

aconteça. A existência desta parte de nossa alma é constatada, por Aristóteles, a

partir do fenômeno da incontinência (que será mais desenvolvido no livro VII). Os

impulsos do incontinente, de fato, parecem resistir e se opor à razão, ao passo que

o homem continente é aquele onde “este elemento irracional obedece ao

racional”.63 Como diz Gauthier & Jolif, o caso do incontinente mostra que a parte

desiderativa é distinta da racional, e o caso do continente mostra que a primeira

pode obedecer à segunda.64

Ao dividir a alma humana em três “partes” ou faculdades, Aristóteles

parece estar seguindo de perto a tradição platônica. Na República, de fato, Platão

realiza a conhecida distinção entre a alma apetitiva (e)piqumhtiko/n), ativa ou

irascível (θυµικόν) e racional (logiko/n), cada uma correspondendo a uma virtude,

respectivamente a temperança (σωφροσύνη), a coragem (a)ndrei/a) e a sabedoria

(sofi/a ou fro/nhsij), a quarta virtude, a justiça (dikaiosu/nh), sendo a harmonia

entre elas. É preciso considerar, no entanto, que a tripartição aristotélica difere da

de seu antigo mestre em pontos importantes: como comenta Reale, em Platão esta

divisão, que determina as funções da alma visando explicar o comportamento

62 ARISTÓTELES, EN I-13 [1102a15]. 63 ARISTÓTELES, EN I-13 [1102b10-1103a5]. 64 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 96 (tomo II).

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34

humano, é feita a partir de uma concepção idealista de nossa psiqué, pela qual o

corpo é visto como seu “cárcere”. A posição do estagirita, por outro lado, seguiria

um viés não só psicológico, mas também biológico, procurando determinar quais

são as funções essenciais do fenômeno da vida. Este fenômeno pressuporia

determinadas “operações constantes, nitidamente diferenciadas, e a alma,

enquanto princípio de todos os seres vivos, deve ter capacidades ou partes que

presidem e regulam estas operações”.65 Podemos enxergar aqui, mais uma vez, a

importante dimensão naturalista da ética aristotélica. Outra diferença significativa,

comentada por Gauthier & Jolif, é que para Platão a alma se divide em partes no

sentido próprio do termo, ocupando, inclusive, locais separados (a inteligência se

situaria na cabeça, a irascibilidade no peito, e a concupiscência no ventre),

enquanto para Aristóteles tratar-se-ia mais de uma distinção entre potências ou

faculdades, que possuiriam definições – ou seja, essências – diferentes.66

Os comentadores também discutem se a concepção de ψυχή apresentada

na EN pode ser relacionada àquela que encontramos no mais célebre tratado de

Aristóteles sobre o assunto, o Da Alma. Esta discussão gira em torno da noção de

alma como enteléquia ou “forma” do corpo.67 Esta tese, de fato, não é citada em

nenhum momento da Ética a Nicômaco, e não se sabe ao certo se ela só foi

desenvolvida posteriormente.68 É preciso considerar que as idéias do Da Alma

65 REALE, 2007, p. 80-81. 66 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 94 (tomo II). 67 “A substância formal é a enteléquia, sendo a alma conseqüentemente a enteléquia de um corpo deste tipo” (ARISTÓTELES, DA II-1 [412a20]). Esta descrição da alma se insere dentro da teoria hilemórfica de Aristóteles, pela qual forma e matéria constituem um composto e só podem ser separadas por abstração. 68 Gauthier et Jolif, por exemplo, consideram que ao escrever seu principal tratado de ética Aristóteles “nem suspeitava” de sua teoria da enteléquia (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 56 (tomo II)). Já Nuyens desenvolveu a famosa tese da “posição intermediária”, pela qual a concepção de alma apresentada na Ética a Nicômaco se situa entre o platonismo dos primeiros escritos do estagirita e o que vemos no Da Alma, pois na EN ainda é aceita a distinção entre alma e corpo, mas a relação entre as duas não é mais degradante e contra a natureza (ou seja, a alma não é mais prisioneira do corpo) (NUYENS, 1973). Esta posição foi adotada por outros comentadores, como Ross, e rejeitada por outros, como Hardie, que considera que as duas obras – Ética a Nicômaco e Da Alma – estão de acordo quanto à descrição da natureza humana (HARDIE, 1968, p. 73). Hardie cita duas passagens da EN – 1178a19-21 e 1177b26-9 - em que Aristóteles descreve a natureza humana como um composto (suntheton), provavelmente se referindo à alma e ao corpo, o que pressuporia a doutrina da entelequia. Tendemos a concordar, no entanto, com a posição de Bodëus, para quem o “composto”, aqui, é aquele entre razão e desejo, o que é bem mais relevante para a ética aristotélica (ARISTOTE, 2004, p. 528 (nota do tradutor Bodëus)). A nosso ver, se levarmos em conta apenas o trecho que se situa no final do livro I, a tese da concepção intermediária é a mais adequada: por um lado, há com certeza uma ligação intrínseca entre alma e corpo, pois, como disse Reale, as divisões da psiqué são descritas a partir de suas funções no fenômeno da vida – isto é particularmente claro no caso da parte vegetativa, responsável pela nutrição e crescimento. Por outro lado, corpo e alma parecem ser tratados como entidades

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podem, mesmo assim, já ter sido desenvolvidas, pois na Ética a Nicômaco

Aristóteles não parece estar preocupado em ser muito preciso nestas questões: de

fato, ao afirmar que o político deve estudar a alma – pois a política é a ciência do

sumo bem –, ele acrescenta que este estudo deve ser “apenas o quanto baste para

as questões que estamos discutindo. Uma precisão maior exigiria, talvez, um

esforço maior do que necessitamos para os nossos objetivos”.69 Mais adiante, ao

introduzir a divisão principal da alma entre racional e irracional, nos diz que a

natureza específica desta distinção – o que remeteria diretamente às discussões do

Da Alma - “não tem importância alguma na discussão presente”. 70 O filósofo

grego já havia adiantado que faria referência, aqui, aos escritos exotéricos – ou

seja, destinados ao grande público -, que, podemos supor, não têm o mesmo grau

de formalismo e rigor técnico dos textos esotéricos, internos ao Liceu.71

Estas questões, assim, não são relevantes para a presente discussão, que é

essencialmente ética: o que realmente importa, na tripartição da alma apresentada

aqui, é que a parte responsável por nossas ações – a desiderativa –, embora seja

irracional, é capaz de se harmonizar com nossa parte racional. Como diz Zingano,

para Aristóteles “o desejo humano é tal que sempre tem de poder acolher

razões”.72 Não seria nenhum exagero afirmar que é exatamente nesta capacidade

que se funda a ética aristotélica.

O que faz que exista uma ordem moral e que esta ordem seja própria ao homem, é a dualidade de sua natureza: abaixo da razão, há no homem uma i-razão [irraison] e a moral nasce quando a sabedoria, tendo reconhecido o fim da razão, o impõe à i-razão: então nasce de fato o bem moral (kalon), então nasce o dever (dei), e eles nascem do imperativo pelo qual a razão prescreve à i-razão perseguir o bem que é dela própria, da razão: a obrigação moral não é outra coisa para Aristóteles que este imperativo da razão.73

É interessante observar como a linguagem utilizada por Gauthier & Jolif,

aqui, lembra Kant: “imperativo”, “prescrição”, “obrigação”, “dever” etc. De fato,

a aproximação que realizaremos entre o filósofo grego e o alemão passa pela separadas (o que contraria a tese monista da entelequia), pois, como vimos, o estagirita afirma entender por virtude humana “não a do corpo, mas a da alma”. 69 ARISTÓTELES, EN I-13 [1102a25]. 70 ARISTÓTELES, EN I-13 [1102a30]. 71 Como diz Bodëus, não se sabe ao certo que escritos exotéricos seriam estes: “ces remarques écartent expressément, comme superflues aux besoins de la politique, les théories approfondies qu’Aristote lui-même développe sur l’âme en sa qualité de naturaliste. En échange, le philosophe renvoie le politique à des arguments dits ‘extérieurs’ dont il va faire usage. On ne sait pas exactement à quoi identifier ces arguments” (ARISTOTE, 2004, p.95 (nota do tradutor Bodëus)). 72 ZINGANO, 2007, p. 106. 73 GAUTHIER & JOLIF, 1970. p. 297, tomo I (tradução nossa).

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relação intrínseca que existe, para ambos, entre moral e racionalidade, o que leva

a noção de “razão prática” a ocupar um lugar central nas duas éticas. No entanto,

o uso destes termos tipicamente kantianos pode ser considerado, como veremos,

exagerado, pois o desejo aristotélico, embora suscetível de “ouvir” a razão, não

pode ser diretamente determinado por esta - ou seja, não pode obedecer-lhe de

uma forma tão imediata, como ocorre com a vontade em Kant. Como já dissemos,

nossa tese consiste em procurar demonstrar que, levando-se em conta esta

diferença – a concepção kantiana de uma vontade autônoma, que não existia para

os antigos -, é possível ainda enxergar uma estrutura similar nas duas éticas.

O ponto que está sendo tratado aqui, portanto, é essencial para nossa tese:

Aristóteles está analisando como nossas ações podem ser determinadas por razões,

e é nesta determinação que estará, como veremos, o seu valor moral. Para que isto

ocorra, é necessário que nossos desejos estejam harmonizados com estes

preceitos, o que leva à noção, central para a ética aristotélica, de “desejo racional”

(βούλησις). A virtude será compreendida, justamente, a partir desta harmonização.

No final do livro I da Ética a Nicômaco começa a se delinear, portanto, a relação

entre razão prática, virtude e valor moral da ação, que é o tema central de nosso

trabalho.

É preciso considerar que esta acepção de virtude, enquanto acordo da parte

desiderativa de nossa alma com a racional, é um pouco diferente da do termo

“virtude” que vimos no argumento do érgon. Ali, de fato, tratava-se simplesmente

do bom exercício da razão, enquanto aquilo que é específico ao homem. Aqui,

estamos falando de como nossos apetites podem se harmonizar com este

exercício. É preciso distinguir, assim, duas espécies de virtude, as intelectuais

(dianoétikai) e as morais (éthikai), ambas incluídas, portanto, no gênero de

“virtude” implicada na função do homem. Encontramos aqui, mais uma vez, a

distinção apresentada anteriormente entre vida contemplativa e vida política:

vimos que a felicidade desta última – intrinsecamente ligada à ética para

Aristóteles – está na honra, mas um tipo específico de honra, relacionada às

virtudes. Estas são, assim, as virtudes éticas, das quais o filósofo grego passará a

se ocupar daqui em diante, até o livro VI, em que falará da sabedoria prática, que,

embora seja uma virtude intelectual, está estreitamente ligada às excelências

morais.

No início do livro II Aristóteles começa a investigar o processo pelo qual

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nossos desejos podem se harmonizar com a razão humana, já levando em conta a

diferença, que acaba de ser estabelecida, entre as virtudes morais e as intelectuais.

Estas últimas, por sua natureza, podem ser adquiridas pelo ensino, mas não as

primeiras, que resultam do “hábito” (e/(qoj, também traduzido por “costume”), daí,

justamente, a proximidade etimológica com h(/qoj, “caráter” ou “moral”. É preciso

considerar que esta pode não ser uma boa tradução – como comenta Hardie, ações

habituais são aquelas que realizamos de forma um tanto o quanto automática,

quase sem nos darmos conta, o que não parece ser o caso dos atos virtuosos. O

comentador sugere que algo como “treino” talvez fosse uma tradução mais

apropriada, embora ainda não inteiramente correta, pois há algo de mecânico nos

atos treinados, e, como veremos, o agente virtuoso deve ter conhecimento e

realizar escolhas.74 Esta forma de compreender o “hábito”, no entanto, pode estar

próxima do sentido visado por Aristóteles, pois este termo parece estar sendo

utilizado para designar um estágio inicial do desenvolvimento das virtudes, onde

talvez caiba uma descrição mais mecânica, baseada na mera repetição. Daí,

justamente, o estagirita estabelecer, ainda no início do livro II, que as virtudes são

como as artes, ou seja, são adquiridas pelo exercício75 – é o tipo de coisa que “só

se aprende fazendo”, como dizemos popularmente. O filósofo grego conclui,

assim, que “tornamo-nos justos praticando atos justos, moderados agindo

moderadamente, e igualmente com a coragem, etc”.76

Obviamente, não podemos chamar uma pessoa de virtuosa apenas porque

ela age desta ou daquela maneira: a simples exterioridade da ação não nos diz qual

é o seu mérito. Como veremos mais adiante, este mérito estará ligado à disposição

interna do agente. Este aspecto se relaciona a questões que serão discutidas

posteriormente, como a da voluntariedade e a compreensão da virtude própria a

partir da phrónesis, ou seja, da capacidade de agir por razões, e não apenas por

costume. Aqui, no entanto, Aristóteles ainda está falando do processo pelo qual

adquirimos as disposições adequadas, que são necessárias, como veremos, para

74 HARDIE, 1968, p. 104. Hardie é seguido, neste aspecto, por Urmson, que considera que “treino” (training) é uma melhor tradução do que “hábito” (habituation). O comentador cita como exemplo o hábito de vestir uma meia antes da outra quando nos vestimos, o que, obviamente, não serve para desenvolver nenhum tipo de disposição (URMSON, 1988, p. 25). 75 ARISTÓTELES, EN II-1 [1103a30]. 76 ARISTÓTELES, EN II-1 [1103b]. Mais adiante, temos: “pelos atos que praticamos em nossas relações com outras pessoas, tornamo-nos justos ou injustos; pelo que fazemos em situações perigosas e pelo hábito de sentir medo ou de sentir confiança, tornamo-nos corajosos ou covardes” (ibidem, II-1 [1103b12-20]).

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podermos posteriormente agir por razões. Portanto, a idéia por trás do princípio de

que “só se aprende fazendo” não é, obviamente, que a simples repetição mecânica

de uma ação seja suficiente para a considerarmos virtuosa, mas sim que esta

repetição é capaz de gerar as disposições adequadas. Como comentam Gauthier &

Jolif, para ser virtuoso não basta realizar as mesmas obras que o homem virtuoso,

é preciso realizá-las como ele as faz. E esta “maneira” de realizá-las estaria ligada

às disposições subjetivas, à “pureza de intenção” do agente.77 A aquisição destas

disposições, assim, é que seria o objetivo do processo. Como diz o estagirita,

“nossas disposições morais nascem de atividades semelhantes a elas”.78 As

virtudes éticas podem ser geradas, assim, por ações que são as mesmas que,

posteriormente, serão realizadas por virtude. Como dizem, mais uma vez,

Gauthier & Jolif: “a virtude, uma vez adquirida, nos faz realizar (e de uma

maneira mais perfeita, 1104b2) os mesmos atos pelos quais nós a adquirimos”.79

A diferença entre as ações que engendram a virtude e as que se seguem dela

estaria, assim, na disposição íntima do agente.80 Podemos considerar que toda esta

discussão está relacionada à relação entre ética e política, à qual Aristóteles faz

novamente referência, considerando que os bons legisladores são justamente

aqueles que conseguem incutir, nos cidadãos, hábitos que os tornam bons.81

Podemos nos perguntar, agora, o que seria esta “disposição adequada”,

capaz de ser incutida nos indivíduos pelas atividades ligadas aos costumes. Esta

questão remete, portanto, à investigação realizada um pouco mais adiante, acerca

do gênero da virtude: Aristóteles considera que tudo o que há na alma são

“paixões” ou “afecções” (πάθη), “faculdades” ou “capacidades” (δύναµις), e

“disposições” ou “estados” (e(/cij), e a virtude, portanto, deve necessariamente ser

uma delas.82 O método utilizado para determinar qual delas se baseia na questão

do mérito: de fato, não somos louvados ou censurados por nossas paixões, e nem

pela faculdade de tê-las. As virtudes, assim, só podem ser disposições, ou seja,

“nossa posição em relação às paixões”.83

77 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 128, tomo II. 78 ARISTÓTELES, EN II-1 [1103b20-25]. 79 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 124, tomo II (tradução nossa). Cf. ibidem, p. 114, tomo II. 80 “the actions that produce virtue are not in their inner nature but only in their external aspect like those that virtue produces” (ROSS, 1995, p. 201). 81 ARISTÓTELES, EN II-1 [1103b5]. 82 ARISTÓTELES, EN II-5 [1105b20]. Tratam-se das qualidades, citadas nas Categorias (VIII), que são inerentes a um sujeito físico (ARISTÓTELES, Categ. VIII [8b25-11a40]). 83 ARISTÓTELES, EN II-5 [1105b25-1106a-15].

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É preciso, obviamente, compreender melhor esta última expressão. Como

diz Zingano, “a disposição é o modo pelo qual o homem se comporta

relativamente às emoções”, e, mais adiante, acrescenta que se trata do “modo

como sentimos as emoções”.84 A idéia de Aristóteles parece ser a de que, embora

não possamos ser elogiados ou censurados pelo simples fato de ter as paixões, ou

pela capacidade de tê-las, nós podemos, sim, ser julgados por ter um

comportamento bom ou mau em relação a estas.85 Podemos enxergar este ponto

como uma tendência estabelecida de sentir as emoções - “toda disposição é um

comportamento estável em relação às emoções”86 -, daí, justamente, a hexis ser

muitas vezes traduzido por um “estado” de caráter. Hardie comenta, neste sentido,

que disposições são definidas em termos de ocorrências – ou seja, tendências a

reagir de determinada maneira em determinadas circunstâncias.87 Mais adiante,

afirma que as virtudes, enquanto qualidades disposicionais adquiridas, só podem

ser definidas em termos de suas manifestações concretas, e estas definições se

expressam em afirmações hipotéticas que mencionam as condições destas

manifestações – por exemplo, dizer que um vidro é frágil significa dizer que, em

determinadas situações, como ao sofrer o impacto de um martelo, ele se

quebrará.88 Podemos assim considerar que uma pessoa é considerada “corajosa”

quando pressupomos que ela agirá de forma corajosa em circunstâncias que

exijam esta qualidade. Neste sentido é que as virtudes são “disposições” – ou seja,

tendências a agir de determinada maneira quando a ocasião se apresenta. Estas

disposições seriam adquiridas, como vimos, pelo hábito, ou seja, por ações que se

repetem em uma certa direção, de acordo com os costumes. Este “treino” fixaria

em nós maneiras específicas de nos comportarmos em relação às emoções,

produzindo tendências de reagir às circunstâncias. Podemos considerar, assim,

que a aquisição da virtude - pelo menos neste estágio inicial - se dá quando

determinados estados de caráter se estabilizam em nós, tornando-se propensões.

84 ZINGANO, 2007, p. 145; p. 156. Zingano traduziu o termo grego πάθη por “emoção”, ao invés de “paixão”. 85 ZINGANO, 2007, p. 156. 86 ZINGANO, 2007, p. 156. 87 Hardie analisa as várias acepções do termo “qualidade” em Aristóteles, concluindo que “to have a quality is to have, or to lack, a capacity or liability or tendency, whether natural or acquired, to respond in certain ways, whether actively or passively, to environmental conditions” (HARDIE, 1968, p. 98). 88 HARDIE, 1968, p. 107. Mais abaixo, na mesma página, temos: “To say that glass is brittle is to say that when hit in a certain way it breaks. To say that a man is generous is to say that, in suitable circumstances, he will act generously”.

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Como diz Zingano, a distinção entre uma disposição (διάθεσις) e um estado (e(/cij)

é apenas de grau: “a disposição é um estado tornado fixo”.89

Podemos ficar tentados, aqui, a ver a disposição como uma

“potencialidade”, o que remeteria a outras obras de Aristóteles, notadamente a

Metafísica. Este termo não parece se aplicar aqui, no entanto, pois, como vimos, a

disposição é uma qualidade adquirida, portanto em ato, mas que se manifesta, em

termos de ação, em determinadas ocasiões. A questão da “potencialidade”, porém,

se torna mais relevante se pensarmos na maneira pela qual estes estados ou

disposições fazem referência à “natureza”. Vimos, de fato, que a ética aristotélica

possui uma importante dimensão naturalista, introduzida, sobretudo, através do

argumento do érgon: o bem do homem está relacionado aquilo que é específico à

sua constituição, ou seja, a racionalidade. As virtudes éticas foram definidas,

justamente, a partir da capacidade de nossa alma desiderativa em “ouvir” ou se

“conformar” à razão. Como afirmaram Gauthier & Jolif em uma passagem que

citamos anteriormente, a moral aristotélica nasce deste dualismo da natureza

humana, que é racional e irracional. Podemos nos perguntar, assim, como esta

dimensão naturalista se liga à tese de que as virtudes são culturalmente adquiridas.

Aristóteles trata deste assunto logo no início do livro II, ao afirmar que

“não é, portanto, nem por natureza nem contrariamente à natureza que as virtudes

se geram em nós; antes devemos dizer que a natureza nos dá a capacidade de

recebê-las, e tal capacidade se aperfeiçoa com o hábito”. 90 Os comentadores

consideram, em geral, que esta passagem remete a uma distinção, realizada pelo

filósofo grego na Metafísica, entre potências racionais e irracionais. As racionais -

ou potências da alma - são “de contrários”, ou seja, suscetíveis de se atualizar em

dois sentidos diferentes, enquanto as irracionais, encontradas nos seres

inanimados, o fazem de uma só forma.91 Isto significa que as potências da alma só

podem se atualizar se algum fator novo intervir, “conduzindo-as”, por assim dizer,

para esta ou aquela direção.92 É exatamente este o papel que exerceria o hábito. O

89 ZINGANO, 2007, p. 376 (nota). 90 ARISTÓTELES, EN II-1 [1103a25]. Cf. HARDIE, 1968, p. 100: “what is natural is the capacity to acquire virtue by habituation”. 91 “Since some such principles are present in soulless things, and others in things possessed of soul, and in soul and in the rational part of the soul, clearly some potentialities will be non-rational and some will be accompanied by reason. (...) And each of those wich are accompanied by reason is alike capable of contrary effects, bu one non-rational power produces one effect” (ARISTÓTELES, Meta. IX (Θ) [1146a36-1146b6]). 92 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 108 (tomo II).

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exercício de determinados tipos de atividade permitiria, assim, que a potência

racional se torne ativa de uma maneira específica, “transformando em estado

habitual uma das duas possibilidades às quais se abria a capacidade natural”.93

Neste sentido é que Aristóteles comenta que as virtudes, assim como as artes, são

geradas e destruídas pelas mesmas causas e pelos mesmos meios: dependendo das

atividades que caracterizam nosso hábito, nos tornamos justos ou injustos,

corajosos ou covardes, temperantes ou intemperantes.94

Baseado nestas considerações, Zingano faz uma distinção entre virtudes

naturais e morais: as primeiras seriam as inclinações com as quais nascemos;

teríamos, assim, tendências naturais para a justiça, coragem etc, e, pela repetição

dos atos em uma direção, nos tornamos justos, corajosos etc.95 Somente então,

neste último caso, seria possível falar de virtudes morais (neste sentido é que,

como vimos, Aristóteles considera que não somos louvados ou censurados por

termos paixões ou pela capacidade de tê-las, mas somente por nossas disposições,

adquiridas pelo hábito). No entanto, as virtudes disposicionais também podem ser

chamadas de naturais, por serem atualizações das potências racionais de nossa

alma: “a noção de virtude natural não designa somente as inclinações com as

quais nascemos, mas também, em segundo lugar, de modo mais geral, o modo de

ser natural de nossas virtudes, o que inclui as virtudes adquiridas graças à censura

e correção”.96

Desta forma, embora as virtudes morais sejam fruto dos costumes, elas

possuem uma relação com a natureza humana, pois o hábito direciona e atualiza

potencialidades de nossa constituição. Esta relação é essencial, pois, como vimos,

a ética aristotélica possui uma importante dimensão naturalista, estabelecida pelo

argumento do érgon. No entanto, é preciso lembrar que a “função” do homem nos

diz que seu bem maior está no exercício da razão. Isto significa que a virtude não

93 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 109 (tomo II). Cf. ZINGANO, 2007, p. 262: “uma disposição é um estado psicológico do agente de agir assim antes do que de modo contrário”. 94 ARISTÓTELES, EN II-1 [1103b13-22]. Cf. GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 111 (tomo II) (tradução nossa): “se a virtude é o fruto do hábito, no sentido de que a virtude é a atualização em um certo sentido de uma capacidade natural, e se, por outro lado, esta potência natural, sendo potência racional, é potência dos contrários, é preciso concluir que a atividade e o hábito podem gerar não somente a virtude, mas também seu contrário, a saber o vício”. 95 ZINGANO, 2007, p. 404 (nota). 96 ZINGANO, 2007, p. 401. O comentador cita uma passagem da Ética a Nicômaco – [1151a18] – em que o filósofo grego afirma que as virtudes disposicionais são “naturais ou habituais” (ή φυσική ή έθιστή). Este aspecto levará Zingano a dizer que os estados adquiridos pelo hábito, que nos levam a agir em uma certa direção, podem ser chamados de “segunda natureza” ou “natureza prática” (ibidem, p. 200; p. 263).

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pode ser apenas um hábito ou uma potência natural. É preciso ir além, e

considerar aquele ponto em que começamos a agir não somente por inclinações,

mas por razões.

Vimos, de fato, que pela concepção teleológica dos gregos, compartilhada

por Aristóteles, a verdadeira natureza de um ente pode ser vista como o “estágio

final” de seu desenvolvimento. Como comenta Bodéüs, a virtude natural não

expressa realmente a natureza racional do homem.97 Desta forma, quando o

filósofo grego confere à cultura um papel central no processo de aquisição das

virtudes, é preciso considerar que não se trata, aqui, de qualquer cultura. De fato,

o hábito deve incutir nos indivíduos aqueles estados que tornem possível,

posteriormente, o bom exercício da racionalidade. Como comenta, mais uma vez,

Zingano, para Aristóteles a razão não pode operar a não ser que existam

previamente as disposições morais adequadas: é o exercício e o hábito que

decidirá se “o domínio das emoções estará apto ou não ao aperfeiçoamento pela

razão”.98 Este aspecto está diretamente relacionado à análise da alma humana, que,

como vimos, o filósofo grego realiza no final da parte I: a parte desiderativa é

“capaz de obedecer à razão” (peitarchikon tou logou), como um filho ouve seu pai,

mas nada garante que ela irá, de fato, ouvi-la. Ela só o fará se for educada para

isso (exatamente como na relação entre pai e filho, o que mostra como a metáfora

de Aristóteles é feliz). Como diz Hardie, quando somos crianças tendemos a

obedecer às regras a partir de punições ou recompensas, mas, com o tempo,

passamos a segui-las por considerá-las corretas e razoáveis.99

Estas questões estão ligadas, diretamente, ao tema central de nossa tese.

Como dissemos, nosso objetivo é analisar a relação entre razão prática, virtude e

valor moral da ação, aproximando, neste sentido, as concepções de Kant e de

Aristóteles. A idéia seria mostrar que a principal diferença entre as duas consiste

97 ARISTOTE, 2004, p. 34, (apresentação de R. Bodéüs). Bodéüs comenta a diferença, estabelecida por Aristóteles, entre uma ação justa “por acidente” e aquela que é realmente justa por ser deliberada, citando, como referência, uma discussão da parte V sobre a natureza do ato justo (ARISTÓTELES, EN V-9 [1137a4-30]). 98 ZINGANO, 2007, p. 146; p. 155. Cf. ibidem, p. 379: “o homem virtuoso precisa previamente ter os bons hábitos para então poder fazer operar em seu interior o ato racional que instaura a prudência”. 99 HARDIE, 1968, p. 106. Cf. ibidem, p. 37: “in ethical matters the faculty of insight and understanding can develop only in those who have learned how to conduct themselves and have acquired a character formed by habituation (ethismos)”. Cf. ZINGANO, 2007, p. 379: “se quem ouve um argumento não tiver a alma previamente preparada pelos costumes a agir bem, ele não escutará nem mesmo o compreenderá”.

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na noção kantiana de uma vontade autônoma, desconhecida pelos antigos. Apesar

disso, ambos estariam concentrados em determinar como nossas ações podem ser

determinadas por nossa razão prática.100

Não podemos nunca esquecer, portanto, que, para o filósofo grego, todo o

complexo processo de formação dos estados disposicionais pelo hábito, que

descrevemos acima, visa viabilizar a operabilidade da razão prática. Neste sentido

é que ele afirma que a virtude só pode ser considerada “perfeita” ou “completa”

quando o indivíduo passa a agir a partir de razões: “depois de ter adquirido razão,

haverá uma diferença no seu modo de agir e sua disposição, e, apesar de continuar

semelhante ao que era, passará a ser virtude no sentido estrito”.101 Mais adiante,

afirma que “na parte moral há dois tipos, que são a virtude natural e a virtude em

sentido estrito, e esta última envolve sabedoria prática”.102 Como vimos, a

“virtude natural” (fusikh/ a)reth) deve ser entendida, aqui, como incorporando

também as disposições morais adquiridas pelo hábito. O termo “κυρίως”,

traduzido na versão que estamos usando como “sentido estrito” da virtude, é

aquilo que Zingano chama de “próprio”, “virtude própria”. 103 Desta forma,

somente quando a prudência ou sabedoria prática passa a operar é que o indivíduo

pode ser considerado de fato (“propriamente”) virtuoso. No entanto, a prudência

só pode operar se já existirem as disposições morais adequadas: citando mais uma

vez Zingano, “a virtude moral própria somente pode engendrar-se se o agente

possuir previamente a virtude natural”.104 A virtude no sentido estrito, assim, é

alcançada a partir dos estados que adquirimos através do hábito: “a virtude própria

100 Em Kant, este processo pode ocorrer de forma mais direta, pois a vontade é capaz de seguir a simples representação da lei, ou seja, princípios racionais - se isto não ocorre sempre na prática, é porque estas representações competem com as inclinações sensíveis no predomínio sobre a vontade. A moral kantiana consistirá assim, grosso modo, em uma discussão sobre como nossa vontade pode se tornar o mais “pura” possível, ou seja, ser determinada exclusivamente pela razão. Em Aristóteles, embora o objetivo seja, como procuraremos argumentar, similar, o processo não pode se dar de forma tão direta, devido, justamente, à ausência de uma concepção de vontade. Daí decorrem duas conseqüências principais: primeiro, nossas inclinações, embora suscetíveis de “ouvir” a razão, não podem se conformar completamente a ela. Isto significa que sempre haverá um elemento irracional em nossas ações, ou seja, elas sempre visarão algum fim desejado – daí, justamente, a dimensão eudaimônica da ética aristotélica, e dos antigos em geral. Segundo: o processo pelo qual se dará esta conformação é longo e complexo, por isso a ênfase muito maior dada por Aristóteles à cultura e à educação, em comparação a Kant. 101 ARISTÓTELES, EN VI-13 [1144b12-13]. 102 ARISTÓTELES, EN VI-13 [1144b15-20]. 103 Ross, na versão oficial de Oxford, usa uma forma similar à nossa tradução em português, excellence in the strict sense (ARISTOTLE, 1995, p. 1807), enquanto Bodéüs traduz como virtude no “sentido forte”, sens fort (ARISTOTE, 2004, p. 339). 104 ZINGANO, 2007, p. 401. Cf. ibidem, p. 379: “o homem virtuoso precisa primeiramente ter os bons hábitos para então poder fazer operar em sue interior o ato racional que instaura a prudência”.

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é a virtude natural tornada perfeita pela apreensão de razões”.105

Mais adiante, ao falar da prudência, discutiremos como se dá este

aprimoramento da virtude disposicional a partir da apreensão de razões. Por ora, o

que nos interessa salientar é que a educação realizada pelo hábito aponta nesta

direção, ou seja, visa gerar em nós aquelas disposições que tornarão

posteriormente possível ao indivíduo agir a partir da phrônesis ou sabedoria

prática. Talvez possamos considerar que os costumes realizam uma espécie de

“ponte” entre nossa natureza racional e o exercício ativo desta potencialidade.

Esta visão estaria de acordo com a compreensão do érgon como um estágio final

ou uma “realização” (flourishing, épanouissement). Esta ligação, no entanto, não

pode ser realizada por qualquer costume. Neste sentido, podemos considerar que,

quando Aristóteles enfatiza o papel do hábito na aquisição da virtude, ele está se

referindo àquele tipo de cultura específica que pode ser encontrado nas cidades-

estado gregas.

A tese de que os costumes são importantes para que nossa natureza

racional se realize também pode ser compreendida como uma tentativa, da parte

de Aristóteles, de “sintetizar”, por assim dizer, as principais teorias sobre a

aquisição da virtude que existiam em sua época. De fato, a idéia de que a virtude

possui uma dimensão naturalista é característica da sociedade aristocrática arcaica,

onde a arétè tendia a ser vista como algo inato, um dom da natureza.106 Por sua

vez, a visão de que ela é adquirida culturalmente pode ser relacionada ao

105 ZINGANO, 2007, p. 400 (Cf. ROSS, 1995, p. 202: “the definition of moral virtue involves a reference to an intellectual virtue. Moral virtue is not complete in itself”). O termo τελειον, em grego, pode ser traduzido como “perfeito” ou “completo”. Zingano considera que é preciso distinguir os dois sentidos aqui, a virtude “perfeita” estando para a prudência como a virtude “completa” está para a felicidade (ibidem, p. 400 (nota)). Esta discussão não interfere diretamente com o que estamos discutindo, e assim não estamos fazendo esta distinção. 106 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 108 (tomo II). Neste comentário sobre a “síntese” realizada por Aristóteles das diversas visões sobre a aquisição das virtudes, seguiremos, basicamente, a análise de Gauthier & Jolif. Em relação à visão aristocrática, estes autores mostram como ela está relacionada à compreensão originária da areté como a virtude do guerreiro, necessária para a obtenção da glória (ibidem, p. 102). Aubenque comenta, em relação a este ponto, que o naturalismo de Aristóteles é menos etnocêntrico que era o da Grécia arcaica aristocrática, pois se trata da “natureza humana”, e não mais da excelência de uma raça ou classe específica (AUBENQUE, 2008, p. 84). É preciso considerar que não deixa de haver ainda um certo etnocentrismo em Aristóteles, devido, por exemplo, à importância cultural conferida às cidades-estado em comparação com os países “bárbaros”, como já comentamos. Mesmo internamente, é possível enxergar na ética do filósofo grego um certo aristocracismo, ligado, sem dúvida, à forte estratificação da sociedade grega naquela época (Cf. ARISTÓTELES, EN I-5 [1095b15]. Cf. HARDIE, 1968, p. 38: “for he [Aristotle] believes that the mass of mankind have no conception of the best kind of life and make pleasure their paramount aim”). Cf. GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 165 (tomo II), tradução nossa: “a identificação da retidão moral e a raridade é característica da moral aristotélica. (...) ela é um aristocracismo: difícil é a virtude, raros os que saberão atingi-la”.

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humanismo relativista dos sofistas, que procuravam exercer, justamente, este

papel de “educadores”. Já a identificação da virtude com um conhecimento

intelectual – o que implica que ela possa ser ensinada, como uma ciência -, teria

origem, sobretudo, em Sócrates e Platão. Aristóteles está aqui, portanto,

realizando um procedimento que lhe é próprio, ao analisar as diversas opiniões

sobre um determinado assunto e considerar a “parcela de verdade” que pode haver

em cada uma delas. Sua tese, assim, aceita parcialmente as principais visões

existentes em sua época: as virtudes são adquiridas em parte por natureza, em

parte culturalmente e em parte pela apreensão de razões. Como procuramos

argumentar, a ênfase está, sobretudo, nesta última, vista como um “estágio final”

onde as virtudes adquirem seu sentido próprio, se tornando completas ou perfeitas.

Como já dissemos anteriormente, Aristóteles aceita a relação intrínseca entre

razão e moralidade, assim como Kant.

Nossa análise sobre a dimensão do “hábito”, no entanto, ainda não

terminou: vimos, de fato, que as disposições ou estados que devem ser gerados

pelos costumes são aqueles mais adequados para o bom exercício da razão.

Podemos nos perguntar, agora, que estados são estes. Em outras palavras, após

determinar qual é o gênero da virtude moral – a disposição -, é preciso estabelecer

sua diferença específica. Trata-se, segundo Aristóteles, da mesótes (µεσότης), em

geral traduzida por “meio-termo” (moyen, mean). A idéia por trás da mesótes é

que a virtude é destruída (se torna vício) pelos extremos, ou seja, pelo excesso ou

pela falta.107 Para chegar a esta conclusão, é preciso distinguir o meio termo “no

objeto” daquele que é “para nós”. Em ambos os casos, trata-se de uma

propriedade do que é contínuo e divisível,108 onde pode-se sempre tirar uma parte

maior (to pleion), menor (to élatton), ou igual (to ison).109 Quando são partes

iguais, podemos falar de um ponto que será eqüidistante das extremidades, ou seja,

no seu “meio” (méson). Este ponto é que, considera Aristóteles, pode ser

considerado em relação ao objeto (por exemplo, uma reta AC com um ponto B

107 ARISTÓTELES, EN II-6 [1106a25-30]. 108 A tradução francesa de Bodëus também usa o conjuntivo aqui – “continue et divisible”, mas Gauthier & Jolif consideram que o καί possui um sentido explicativo – “divisível porque contínuo” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 137 (tomo II)). Os dois autores comentam, mais adiante, que para Aristóteles as paixões e as ações são movimentos, e o movimento é um contínuo. Neste sentido, como acabamos de ver, elas precisam aceitar o excesso, a falta e o igual (ibidem, p. 140). Cf. ARISTÓTELES, EE II-3 [1220b22]: “we must notice that in everything continuous and divisible there is excess, deficiency and the mean (...). For motion is continuous, and action is motion”. 109 ARISTÓTELES, EN II-6 [1106a25-30].

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eqüidistante de A e C) ou para nós. No primeiro caso o ponto será único, no

segundo haverá uma infinidade,110 pois, considerado em relação a uma pessoa, o

meio-termo não será mais uma simples proporção aritmética: as duas

extremidades serão “demais” ou “muito pouco”, o que varia de acordo com cada

um, pois faz referência a dados subjetivos. O filósofo grego dá como exemplo

uma determinada quantidade de alimento, que pode ser pouca para um atleta, e

muita para uma pessoa comum.111

As disposições podem, assim, ser divididas em três tipos: duas serão vícios

(excesso e carência), e uma, o meio-termo, é uma virtude.112 A virtude, portanto, é

uma mediania em sua essência ou definição, mas, em relação ao sumo bem e ao

mais justo (ou seja, em termos de valor), ela é, obviamente, um extremo.113

Aristóteles passará um bom tempo descrevendo vários casos particulares

de disposições virtuosas com seus respectivos vícios, nos livros II, III e, sobretudo,

IV, e aproveitará para analisar alguns detalhes da teoria: por exemplo, há casos

que não admitem meio-termo,114 outros em que não existe a palavra para designar

a falta ou a carência115 etc. Estas questões não afetam diretamente o assunto de

que estamos tratando.116

O que nos interessará, aqui, é a maneira pela qual este tipo específico de

disposição se relaciona ao exercício da razão, já que, como vimos, o hábito deve

incutir nos indivíduos os estados adequados para a operabilidade da razão prática.

Comentamos anteriormente que as disposições são modos de nos comportarmos

em relação às paixões: neste sentido, podemos entender a mediania como a busca

de um equilíbrio entre o “sentir excessivo” e a apatia, o que se traduz como uma

110 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 138 (tomo II). Como veremos mais adiante, em relação a um sujeito e uma situação específicos só há um meio termo, determinado por uma regra. 111 ARISTÓTELES, EN II-6 [1106b-10]. 112 ARISTÓTELES, EN II-7 [1108b10-15]. 113 ARISTÓTELES, EN II-6 [1107a5-10]. 114 ARISTÓTELES, EN II-6 [1107a10-20]. No fundo, trata-se, pelo menos neste momento, de uma questão retórica: a maldade, a inveja, o roubo etc não admitem meio-termo porque são noções que já designam extremos. Como diz Ross, “there is no mean of an excess or a deficiency, as there is no excess or deficiency of a mean” (ROSS,1995, p. 204). 115 ARISTÓTELES, EN II-7 [1108a5-20]. 116 Muitos autores comentam que esta lista de virtudes é claramente cultural, refletindo os valores da sociedade grega da época (cf. HARDIE, 1968, p. 119; ROSS, 1995, p. 209). Isso não deixa de ser compreensível, até pela ênfase dada pelo filósofo grego ao papel dos costumes na formação das virtudes. Mas é possível enxergar, mesmo assim, uma certa contradição com as premissas naturalistas da ética aristotélica: como comenta Hardie, não é clara a conexão entre esta lista e a discussão sobre o bem do homem no livro I (HARDIE, 1968, p. 122).

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forma moderada de experimentarmos nossas emoções.117 Como diz Zingano, “a

razão prática, para Aristóteles, não pode operar a não ser que existam previamente

as disposições morais, isto é, paixões ou emoções moderadas pelo hábito e pelo

exercício”.118 Já Ross comenta, se referindo ao problema que já abordamos,

acerca dos hábitos capazes de gerar a virtude: “os atos que realizamos quanto

adquirimos as virtudes terão o mesmo caráter de moderação do que aqueles dos

quais a virtude se desenvolve”.119

Podemos nos perguntar, agora, em que medida a razão prática precisaria,

para operar, de disposições moderadas. Para responder a esta pergunta,

precisamos levar em conta algumas características culturais da Grécia no período

clássico. Um dos principais ideais deste período, de fato, é a “justa medida”. As

famosas inscrições sobre o templo de Delfos, atribuídas aos setes sábios, datariam

de 650 a.C. a 550 a.C: “conheça-te a ti mesmo” (γνώθι σαυτόν) e “nada em

demasia” (mhde/n a)/gan). Como comentam Gauthier & Jolif, as duas idéias estão

ligadas: a medida que o homem deve manter em tudo é imposta pelo

conhecimento de sua própria condição.120 Nisso são seguidos por Aubenque:

Conheça teu alcance, o qual é limitado; saiba que tu és mortal e não um deus. O “conhece-te a ti mesmo” não nos convida a encontrar em nós o fundamento de todas as coisas mas, ao contrário, traz à consciência nossa finitude: é a fórmula mais expressiva da prudência grega, ou seja, da sabedoria dos limites.121

Gauthier & Jolif dedicam um bom tempo a mostrar como este princípio

impregnava a cultura grega, podendo ser encontrado na literatura (Homero,

Odisséia, I, 32-34; Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias, 211, 215 – esta obra, de fato,

enfatiza a polaridade entre o excesso, (u(/brij), que leva ao sofrimento e à

destruição, e a justiça (δίκη), que constrói a harmonia), e na dramaturgia

(Eurípedes, Medéia, 1339; Ésquilo, Agamenon, 910). A busca da “proporção

117 Na verdade, a mediania não se aplica somente às paixões, mas também às próprias ações: “de modo análogo, também existe excesso, carência e um meio termo no que diz respeito às ações” (ARISTÓTELES, EN II-6 [1106b25]). O filósofo grego não desenvolve muito este ponto, o que leva alguns comentadores a considerar que a única virtude na qual a mediania se aplicaria às ações seria a justiça, e todas as outras teriam um meio-termo relativo às paixões (Cf. H. von Arnim, die drei aristotelischen Ethiken, apud GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 140-141 (tomo II)). Gauthier & Jolif consideram, no entanto, que um aspecto está indissoluvelmente ligado ao outro: “é regulando a paixão que a virtude regula a atividade” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 142 (tomo II), tradução nossa; cf. HARDIE, 1968, p. 131-132). Desta forma, para Aristóteles todas as virtudes – incluindo a justiça – teriam um meio-terno relativo às paixões e às ações (ibidem, p. 141). 118 ZIGANO, 2007, p. 146 (itálico nosso). 119 ROSS, 1995, p. 200, tradução nossa (itálico nosso). 120GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 138 (tomo II), tradução nossa. 121 AUBENQUE, 2008, p. 264.

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harmoniosa” também pode ser facilmente observada em qualquer escultura do

período clássico – como diz Gombrich em sua História da Arte, “não existe corpo

humano que seja tão simétrico, bem formado e belo quanto o das estátuas

gregas”.122 Este ideal se reflete também na medicina grega, que tendia a ver a

saúde como uma mistura proporcional de qualidades contrárias, e a doença como

um excesso ou uma falta.123 Diga-se de passagem, em suas análises sobre o corpo

e a alma, Aristóteles faz amplo uso do meio-termo como “saúde”, e é possível

supor que a aplicação ética desta noção foi derivada da medicina.124 Na filosofia,

os pitagóricos, para quem a proporção e a harmonia eram conceitos centrais,

talvez tenham sido os primeiros, ainda segundo Gauthier & Jolif, a usar o termo

mesótes.125 Platão, obviamente, se serve com freqüência desta noção, a começar

pela concepção da justiça como harmonia entre as diferentes partes da alma e da

cidade, o que ocorreria, como já comentamos, quando cada uma exerce

devidamente sua função.126

Concluindo, podemos considerar que para os gregos a noção de “justiça” e

de “correção” – portanto de racionalidade - estava estreitamente ligada a um ideal

de equilíbrio e de harmonia, de justa medida e proporção, de afastamento dos

extremos.127 É este ideal, assim, que Aristóteles expressa ao considerar que a

virtude moral está na busca pela mediania nas paixões e nas ações. Veremos mais

adiante que o meio-termo pode ser visto como uma regra estabelecida pela reta

razão.128 Assim, para Hardie “desvios do que é certo podem ser excessivos ou

122 GOMBRICH, 1972, p. 68. Ao expor sua teoria sobre o meio-termo, Aristóteles faz alusão aos artistas – considerados em um sentido obviamente mais amplo do que os escultores, mas com certeza incluindo-os -, comentando que se costuma dizer que nada é possível acrescentar nem tirar das boas obras de arte, pois o excesso e a falta destroem a excelência destas obras, e o meio termo a preserva – daí os bons artistas sempre buscarem a justa medida em seu trabalho (ARISTÓTELES, EN II-6 [1106b5-15]). 123 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 143-144 (tomo II). 124 “Não é inútil se lembrar que a aplicação moral da teoria do justo meio foi sugerida a Aristóteles pelo emprego que fazia dele a medicina” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 144 (tomo II), tradução nossa). 125 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 143-144 (tomo II). 126 PLATÃO, 2006, p. 170-171 [443d]) Cf. Protágoras 343 b, Górgias 506e, Filebo 64e, Leis 756e, Político 283c-285c. 127 Como diz Aubenque, ao analisar a origem da palavra phrónesis: “o traço geral da evolução – ou antes da ausência de evolução – da palavra phronêsis nos parece residir em que a idéia de um ato ou de uma função intelectuais foram freqüentemente associados à idéia de limite, inicialmente entendida num sentido negativo, ou, posteriormente, positivo, de equilíbrio” (AUBENQUE, 2008, p. 249) 128 “A virtude é, então, uma disposição de caráter relacionada com a escolha de ações e paixões, e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, que é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática” (ARISTÓTELES, EN II-6 [1107a]).

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defectivos”, e “o que é certo é definido como estando dentro de certos limites, e

neste sentido é uma mediania”.129 É neste sentido, portanto, que as paixões

moderadas são as mais adequadas para o exercício da racionalidade.130 Elas já

apontam, por assim dizer, nesta direção, e assim o indivíduo habituado a estes

estados já está “preparado” para completar sua virtude moral pela apreensão de

razões. Daí a afirmação do filósofo grego, numa clara alusão ao argumento do

érgon, de que as disposições virtuosas farão o homem desempenhar bem sua

função.131

O processo de harmonização de nossas inclinações com a razão, no entanto,

é mais complexo do que a simples formação de estados disposicionais a partir do

hábito. Vimos, de fato, que para Aristóteles a parte irracional de nossa alma é

capaz de “ouvir” a racional, o que aponta para uma necessidade de transformação

do desejo pela razão. Essa racionalização do desejo seria fundamental para a

futura operabilidade da razão prática. No capítulo seguinte, analisaremos como se

dá a formação do desejo racional (βούλησις), a partir, sobretudo, de elementos

relativos ao fenômeno da responsabilidade moral, como escolha ou decisão

(προαίρεσις) e deliberação (βούλευσις).

129 HARDIE, 1968, p. 142. 130 Podemos considerar que este ideal se perde, em certa medida, no período helênístico. Daí muitas das escolas deste período – como os epicuristas e estóicos – terem uma postura mais radical, visando não a moderação, mas a extirpação das paixões. Como diz Ross, “we must not say, however, that virtue is freedom from pleasure and pain; the tendencies to feel pleasure and pain are not to be suppressed but to be moulded into the right shape. We must learn to take pleasure in the right way and at the right time. Aristotle neither praises nor condemns the tendencies inherent in man” (ROSS, 1995, p. 201). 131 ARISTÓTELES, EN II-6 [1106a20-25]. Este aspecto reforça, assim, aquilo que estamos procurando mostrar no decorrer desta exposição: o tempo todo, Aristóteles parece estar preocupado em estabelecer como nossas ações podem ser determinadas pela razão. Esta preocupação remete diretamente ao argumento do érgon, pelo qual o bem do homem está no cumprimento de sua função, ou seja, no exercício da racionalidade. Ora, podemos considerar que este objetivo, ainda que por motivos ou justificativas diferentes, é compartilhado por Kant. Se aceitarmos, assim, a idéia de que os dois filósofos partem de uma premissa comum – a relação intrínseca entre razão e moralidade -, as principais diferenças entre suas concepções poderiam ser explicadas pela ausência em Aristóteles de uma concepção de vontade autônoma. Para os antigos, nossas ações só podem ser internamente determinadas por nossos desejos, e, portanto, para que possamos “agir conforme a razão”, estes precisam se harmonizar a nosso intelecto. Daí, como vimos, a definição das virtudes morais como uma conciliação da parte desiderativa de nossa alma com a parte racional. A ausência de uma concepção de “vontade” faz com que este processo seja longo e complexo, daí a maior ênfase do filósofo grego na dimensão afetiva da virtude e na educação, tema que abordamos no decorrer deste capítulo. Como já dissemos, os motivos que levam os dois filósofos a estabelecer a relação intrínseca entre razão e racionalidade podem ser diferentes - neste sentido, a palavra “premissa” pode não ser a mais adequada, já que este ponto pressupõe outras questões. Nosso argumento, no entanto, é que a partir do momento em que esta relação é estabelecida, é possível analisar as éticas dos dois autores da maneira como estamos fazendo, considerando que ambos tem um objetivo comum, ou seja, estabelecer como nossas ações podem ser determinadas pela razão.

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2.3

A racionalização do desejo como doutrina “moderada” da vontade

A passagem da dimensão afetiva da virtude moral para a racional se dá a

partir da questão da voluntariedade, que envolve noções como escolha e

deliberação. A justificativa para esta análise estaria no fato de que somente

paixões e ações voluntárias são louvadas ou censuradas.132 Antes de abordar o

elemento racional implicado nesta noção, Aristóteles procura determinar qual é a

sua natureza, ou seja, o que faz com que uma ação possa ser dita voluntária e

outra não. A conclusão à qual chegará é a de que dois pressupostos são

necessários: primeiro, o princípio motor da ação deve estar no próprio agente, e,

segundo, este deve ter conhecimento das circunstâncias particulares em que está

agindo.133

Esta definição faz referência aos dois critérios da ação involuntária,

analisados logo no início da parte III: a compulsão (qumo/j) e a ignorância

(a)/gnoia). O primeiro caso se caracteriza, justamente, pelo fato de o princípio

motor da ação não estar no agente.134 A aplicação deste critério encontra

dificuldades em relação a atos que Aristóteles chama de “mistos” (embrouillés,

mixed), que seriam em princípio considerados involuntários, mas podem ser

voluntários em determinadas circunstâncias: por exemplo, alguém que comete um

ato ignóbil para salvar entes queridos, ou se desfaz de bens preciosos para impedir

que um navio afunde em uma tempestade. O filósofo grego conclui, assim, que os

termos “voluntário” e “involuntário” devem ser aplicados ao momento em que se

dá a ação.135 A análise do segundo critério, a ignorância, também faz alusão às

132 ARISTÓTELES, EN III-1 [1109b30]. Cf. idem, EE II-6 [1223a13]: “it is clear that excellence and badness have to do with matters where the man himself is the cause and source of his acts”. 133 ARISTÓTELES, EN III-1 [1111a20-25]. 134 “É compulsório ou forçado aquele ato cujo princípio motor é externo ao agente” (ARISTÓTELES, EN III-1 [1110a]). Mais adiante, temos: “Que espécie de ações, pois, devem ser chamadas forçadas? São aquelas que, sem restrições de nenhum tipo, a causa é externa ao agente, o qual em nada contribui para tal ação” (ibidem, III-1 [1110b]). 135 ARISTÓTELES, EN III-1 [1110a5-15].

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particularidades das circunstâncias: após realizar algumas distinções - por

exemplo entre involuntário e não-voluntário (que ocorreria quando uma pessoa

não sente remorso após agir por ignorância), e entre agir por ignorância e “na”

ignorância (quando estamos embriagados ou encolerizados)136 -, Aristóteles

investiga o que, exatamente, é ignorado no ato involuntário, e chega à conclusão

de que não se trata dos interesses do agente – isso é o que torna os homens maus -,

ou do universal,137 mas sim das circunstâncias que envolvem a ação.138

Esses aspectos fazem referência a uma importante dimensão da ética

aristotélica, chamada pelos estudiosos de “particularismo”. Trata-se da tese de que

o valor moral de uma ação não é fixo, ou seja, determinado a priori, mas depende

do contexto em que ela se dá. Este ponto já havia sido anunciado pelo filósofo

grego anteriormente, por exemplo quando, ao tratar da mediania, afirmara que o

meio-termo consiste em sentir pelo motivo e da maneira certa, em relação aos

objetos e às pessoas certas, no momento certo.139 Como diz Zingano, “o agente

sempre deve agir em função das circunstâncias”; “não há assim regras e códigos

previamente estabelecidos, que bastaria seguir, mas é preciso decidir caso a caso

(...) a ação moral só revela sua verdade nos casos singulares, imersa nas

circunstâncias no interior das quais se produz”.140 Podemos relacionar este aspecto

a uma tese introduzida por Aristóteles logo no início da Ética a Nicômaco, pela

qual não se deve esperar, nas reflexões sobre a ética, o mesmo grau de precisão de

ciências como a matemática.141 Na parte II, volta a mencionar este ponto, desta

136 ARISTÓTELES, EN III-1 [1110b15-30]. Como diz Urmson, a distinção entre involuntário e não voluntário está no fato de que, no primeiro caso, o agente teria agido corretamente se não estivesse na ignorância (daí, justamente o remorso), ao passo que no segundo caso ele teria agido da mesma maneira; quanto à distinção entre “por” e “na” ignorância, o ponto é que o agente pode ser responsabilizado por este último tipo (por exemplo, por ter ficar bêbado). Aristóteles está, aqui, procurando diferenciar a ignorância justificável da não justificável (URMSON, 1988, p. 46-49). 137 A ignorância do universal – ou, como diz Gauthier & Jolif, “do que deve ser feito o do que devemos nos abster” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 184 (tomo II), tradução nossa), e que, ainda segundo os mesmos comentadores, corresponderia à premissa maior do silogismo prático (ibidem, p. 184) -, terá relevância para o problema da acrasia, analisado pelo filósofo grego na parte VII da EN. 138 ARISTÓTELES, EN III-1 [1111a15-20]. 139 ARISTÓTELES, EN II-6 [1106b20-25]. 140 ZINGANO, 2007, p. 336-337. 141 “Nossa discussão será adequada se tiver a clareza que comporta o assunto, pois não se deve querer a mesma precisão em todos os raciocínios, assim como não se deve exigi-la nos produtos de todas as artes mecânicas. As ações belas e justas, que a ciência política investiga, admitem grande variedade e flutuações de opinião (...) Por conseguinte, tratando de tais assuntos, e partindo de tais premissas, devemos contentar-nos em indicar verdade de forma aproximada e sumária: quando falamos de coisas que são verdadeiras apenas em linhas gerais e com base em premissas da mesma espécie, não devemos esperar conclusões mais precisas” (ARISTÓTELES, EN I-3 [1194b10-25]).

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vez relacionando-o de forma mais explícita ao particularismo:

(...) o tratamento da teoria sobre a conduta se fará em linhas gerais e não de maneira precisa, conforme fizemos ver desde o princípio desta investigação: as explicações que estamos procurando devem estar de acordo com os respectivos assuntos; as questões que dizem respeito à conduta e ao que nos convém não têm fixidez nenhuma, do mesmo modo que nada tem de fixo as que dizem respeito à saúde. E se é assim com a explicação em geral, o exame dos casos particulares será ainda mais carente de exatidão, visto que não há arte ou preceito que abranja a todos eles, senão que as próprias pessoas atuantes devem considerar, em cada caso, o que é mais adequado à ocasião, tal qual acontece na arte da navegação ou na da medicina.142

O final deste trecho deixa clara a relação do particularismo com a visão de

que o próprio indivíduo é o juiz do que deve ser feito em cada situação – tese que

não levará ao relativismo, pois é preciso, ainda, fazer a distinção entre aqueles que

julgam mal e aquele que julga bem, ou seja, o homem virtuoso, o prudente. Como

diz Aristóteles pouco depois, “as ações são ditas justas e temperantes quando são

tais como as que praticaria o homem justo ou temperante”.143 Voltaremos a tocar

neste assunto mais adiante, ao tratar da phrónesis.

O particularismo da ética aristotélica também pode ser relacionado a

determinadas teses ontológicas defendidas pelo estagirita: Zingano comenta, por

exemplo, que esta dimensão deriva, em parte, do caráter indeterminado das

ações,144 mas que é, preciso, ainda, acrescentar o caráter indefinido das

circunstâncias.145 Pierre Aubenque, em seu A Prudência em Aristóteles, passa um

bom tempo analisando esta última tese, relacionada à impotência da forma em

dominar a matéria, o que faz com que o mundo só seja racional em suas partes

superiores.146 Não nos interessa, neste trabalho, investigar esta contrapartida

metafísica do particularismo aristotélico, mas apenas suas implicações éticas.

Trata-se, de fato, de uma importante diferença com a concepção de Kant, que é

fundamentalmente universalista. Na segunda parte de nossa tese, procuraremos

argumentar que essa divergência se deve, sobretudo, ao conceito de uma vontade

142 ARISTÓTELES, EN II-2 [1104a-10]. 143 ARISTÓTELES, EN II-4 [1105b5]. 144 O comentador brasileiro mostra como há dois tipos de contingência para Aristóteles – a contingência natural, “aquilo que é no mais das vezes”, e a indeterminação, “aquilo que não é mais assim do que não assim”. A ação seria indeterminada neste segundo sentido, pelo fato, que já citamos anteriormente, de que a potência racional é uma potência de contrários (ZINGANO, 2007, p. 115-116; p. 122). 145 “Se o caráter indefinido das circunstâncias acrescenta-se à natureza indeterminada da ação, então o particularismo na ética parece impor-se como a boa resposta” (ZINGANO, 2007, p. 137). 146 AUBENQUE, 2008, p. 141; p. 143.

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autônoma, por sua vez ligado à dimensão transcendente da razão kantiana, o que

faz com que a determinação da ação possa se dar a priori, ou seja, prescindindo de

elementos empíricos. Veremos mais adiante, no entanto, que o particularismo de

Aristóteles não impede que sua concepção de razão prática – a phrónesis –

também envolva elementos universalistas.

Vimos, assim, que o particularismo aristotélico começa a aparecer, de

forma mais explícita, quando o filósofo grego analisa o problema da

voluntariedade. Talvez não seja por acaso, justamente, que este último termo só

possa ser devidamente compreendido levando-se em conta ausência de uma

concepção de “vontade” neste autor. Gauthier & Jolif comentam, de fato, que as

noções de “voluntário” e “involuntário” não devem ser aplicadas aqui, por trazer

consigo implicitamente a de vontade, que só foi desenvolvida posteriormente.147

Embora concordemos com esta observação – este aspecto inclusive sendo, como

já dissemos, relevante para nossa tese -, nós preferimos continuar a utilizar aqui

“voluntário”, fazendo, sempre que for necessário, a ressalva de que não possui

exatamente o sentido atual. Trata-se de um termo, de fato, que é utilizado na

maioria das traduções de referência, como a de Oxford (“voluntary”).148 Este

procedimento, a nosso ver, evita entrarmos em uma discussão etimológica que

complexificaria desnecessariamente nossa análise, e que, diga-se de passagem,

não nos sentimos capazes de realizar.

Mesmo mantendo esta terminologia, portanto, podemos considerar que a

noção aristotélica de voluntariedade só pode ser devidamente compreendida se

levarmos em conta a ausência de uma concepção de vontade neste autor. Quando

ele diz, assim, que o princípio motor da ação deve estar no próprio agente, isto

significa, em uma primeira abordagem, que o fim visado é desejado por este

agente. Toda ação, de fato, tem em vista um fim – como foi estabelecido logo no

início da Ética a Nicômaco – e este é colocado pelo desejo.149 Podemos nos

147 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 169-170 (tomo II). Os dois autores traduzem έκον e έκούσιος por “agir de son plein gré”, expressão que pode ser entendida em português, justamente, como “voluntário”, mas que em francês possui um sentido mais fraco do que “volontaire”, podendo, assim, ser entendida como o consentimento do agente na ação - o que coincidiria com a tradução de Bodéüs, “ato consentido”, acte consenti. 148 Alguns autores de língua inglesa contestam esta tradução. É o caso, por exemplo, de Urmson, que prefere usar os termos “intended” e “contrary to intention” (URMSON, 1988, p. 42). 149 Quando abordarmos a visão de Kant, mais adiante, veremos que para ele a razão prática é capaz de gerar fins que lhe são próprios, fins “puramente racionais”, por assim dizer. Esta seria, mais uma vez, uma conseqüência direta de concepção kantiana de uma vontade autônoma, e justamente por isso não a vemos em Aristóteles.

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perguntar, no entanto, como conciliar este aspecto com a relação intrínseca entre

razão e moralidade, que, como vimos, foi estabelecida pelo argumento do érgon.

A partir desta relação, Aristóteles definiu a virtude moral a partir da capacidade da

parte irracional de nossa alma em “ouvir” a racional. O filósofo grego procurou

então ressaltar, na parte II, a importância do hábito na preparação de nossos afetos

para que possa haver esta harmonização. No entanto, podemos considerar que

ainda resta um hiato a ser preenchido, que é, justamente, o momento em que a

parte desejante “ouve” a racional. Se nossas ações são necessariamente fruto de

nossos desejos, então como podem ser resultado da razão prática?

Aristóteles começa a responder a esta questão logo após a análise da

natureza da voluntariedade, de que tratamos acima, ao abordar o problema da

escolha (προαίρεσις), relativa aos meios necessários para a realização da ação.

Podemos considerar, portanto, que esta é a forma encontrada pelo estagirita para

introduzir o elemento racional na determinação de nossos atos: de fato, mesmo

que o fim seja colocado pelo desejo, o agente deve ainda decidir como atingi-lo, o

que implica em uma forma de deliberação, onde as diversas possibilidades à sua

disposição são pesadas, levando, assim, à opção dos meios mais adequados.150

Embora esta deliberação não seja necessária para a voluntariedade - pois

crianças e animais inferiores podem agir voluntariamente sem fazer escolhas151 -,

Aristóteles considera que só podemos falar de responsabilidade moral a partir

desta noção. O filósofo grego faz menção, de fato, à relação íntima da escolha

com a virtude, o que dá a entender que o elogio e a censura de uma ação

voluntária seriam resultantes de nossa capacidade de escolher. Como diz Zingano,

“a escolha basta assim para fundar a responsabilidade moral, ainda que não incida

senão sobre os meios”.152 Isso se deve ao fato, justamente, de que a escolha dos

meios, por ser fruto de uma deliberação, envolve um elemento racional. A ação

passa então a pertencer ao agente em um sentido mais forte, tornando-o

responsável, já que a simples relação fim-desejo pode remeter à natureza do

agente (ainda que trabalhada, como vimos, pelo hábito), portanto a algo mais

150 Hardie: “the deliberation of the agent is indeed addressed to the question, not whether to seek a certain end, but how to achieve it” (HARDIE, 1968, p. 168). 151 ARISTÓTELES, EN III-1 [1111b5-10]. 152 ZINGANO, 2007, p. 307. Mais adiante, temos: “O que faz com que sua ação seja sua é propriamente o fato que podia não fazer o que fez, e ele podia não o fazer não porque podia ter um outro desejo, mas porque podia pesar as razões envolvidas e agir em função do reconhecimento do valor moral aceitável ou censurável de seu ato” (ibidem, p. 309).

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inato.153

Neste sentido, justamente, é que esforço inicial de Aristóteles, ao

introduzir a noção de escolha, consiste em mostrar que esta implica em princípio

racional e pensamento, ou seja, em um cálculo (λόγος) ou reflexão (διάννοια)

sobre que meios adotar para atingir o fim visado - um processo que será chamado

de βούλευσις, “deliberação”.154 Para chegar a esta conclusão, o estagirita realiza o

procedimento característico de estabelecer a diferença específica desta noção:

argumenta, então, que a escolha não pode ser a cólera (anger, ardeur) ou um

apetite – pois estes também estão presentes nos seres irracionais, e o apetite se

relaciona com o que é agradável e doloroso -, e nem com o desejo, pois se pode

desejar o impossível, ou algo que não está relacionado a nosso esforço pessoal.155

Além disso, o desejo se relaciona com os fins, e a escolha com os meios.156 Aqui

aparece, de forma clara, esta célebre doutrina aristotélica, relacionada ao fato de

que a ação possui necessariamente um elemento irracional – nossos fins, assim,

são colocados pelo desejo, e não pela razão, mas veremos mais adiante que este

ponto pode ser complexificado. Finalmente, o filósofo grego descarta a hipótese

de que a escolha poderia ser uma espécie de opinião, pois esta última também

pode se referir a coisas impossíveis, e se distingue por sua verdade e falsidade, ao

passo que a escolha é boa ou má. Por este processo eliminativo, assim, Aristóteles

conclui que a escolha requer um princípio racional e pensamento, e, como seu

próprio nome sugere, consiste em eleger algo de preferência a outras coisas – no

153 “Os fins nos aparecem segundo a natureza, e disso – é dado por suposto – não somos a causa” (ZINGANO, 2007, p. 316). Em relação à questão da responsabilidade moral, Aubenque comenta que Aristóteles desloca a sede da imputabilidade moral da esfera da intenção, como ocorre nas escolas socráticas, para a escolha dos meios. O comentador francês considera que esta é uma forma encontrada pelo estagirita de expressar a visão grega de que a vontade - o desejo racional - nunca é responsável pelo mal, mas sim o mal responsável pela má qualidade do desejo, e, portanto, não julgamos alguém por sua vontade ou desejo, mas por suas escolhas (AUBENQUE, 2008, p. 220; p. 222). Já Gauthier & Jolif fazem uma crítica à noção de responsabilidade moral de Aristóteles, considerando que o autor grego confunde este problema com o da liberdade psicológica: uma coisa é se perguntar se somos livres ao realizar uma ação, outra se somos moralmente responsáveis (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 172-173 (tomo II)). Este problema estaria ligado a uma outra confusão, desta vez entre espontaneidade e liberdade (ibidem, p. 174). Este aspecto poderia, a nosso ver, ser relacionado à ausência de uma concepção de vontade em Aristóteles, mas não temos tempo de desenvolver isso aqui, pois nosso objetivo não é tanto analisar as noções de liberdade ou de responsabilidade moral, mas sim a relação entre razão prática e virtude. 154 ARISTÓTELES, EN III-2 [1111b10-1112a15]. 155 Trata-se, aqui, do desejo racional (βούλησις). O apetite, a cólera (ou paixão) e o desejo racional são todos tipos de desejo, considerado em seu sentido mais amplo (όρεξις). Cf. ARISTÓTELES, DA II-3 [414b2]. 156 ARISTÓTELES, EN III-2 [1111b25-30].

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caso, como já dissemos, os meios relativos à obtenção do fim.157

A partir desta última descrição é que será estabelecido a relação entre

προαίρεσις (escolha) e βούλευσις (deliberação). A segunda seria necessária para a

primeira, a primeira podendo assim ser vista como o resultado da segunda. Essa

afirmação é, no geral, correta, mas o procedimento que leva de uma à outra é mais

complexo, envolvendo conceitos como juízo (γνώµη) e decisão. Acompanhemos,

assim, o raciocínio de Aristóteles, para tentar compreender este processo.

O filósofo grego começa por analisar qual é o objeto da deliberação, e

conclui que só deliberamos sobre aquilo que está ao nosso alcance e pode ser

realizado por nosso próprio esforço.158 Não há, por exemplo, deliberação nas

ciências exatas – este aspecto está relacionado à discussão, que será realizada na

parte VI, sobre a diferença entre o intelecto especulativo, que se refere ao que é

invariável, e o intelecto prático, que se refere àquilo que é contingente. Este ponto

remete, assim, às teses ontológicas ligadas ao particularismo, que mencionamos

anteriormente. De fato, o filósofo grego acrescenta, logo adiante, que só

deliberamos sobre as coisas cujo desfecho é obscuro e indeterminado. Como

comenta Zingano, a deliberação é de “direito” na ação devido ao caráter

ontologicamente indeterminado das circunstâncias.159

Após fazer referência à relação entre deliberação e contingência,

157 Para todo o argumento exposto neste parágrafo: ARISTÓTELES, EN III-2 [1111b5-1112a20]. 158 ARISTÓTELES, EN III-3 [1112a30]. 159 “Aristóteles pode mostrar que, a despeito de seu caráter evanescente no domínio das técnicas e das ciências, a deliberação não é meramente um fenômeno a ser substituído, pois, no domínio da ação, em função da indeterminação das circunstâncias nas quais se produz a ação, ela é um procedimento não só de fato, mas de direito. No campo da ação, que difere em suas condições do campo da técnica, o deliberar não é um mero paliativo, ele é um procedimento racional de decisão” (ZINGANO, 2007, p. 273). O comentador brasileiro parece opor este aspecto da concepção aristotélica à de Platão, para quem a deliberação poderia ser vista como uma espécie de paliativo na ausência da ciência. É interessante observar a relação destas teses metafísicas com outras questões, como por exemplo, a política: Pierre Aubenque comenta, neste sentido, que a deliberação é uma espécie de meio-termo entre a ciência e adivinhação imediata (εύβουλία), ou seja, um saber aproximativo, da ordem da opinião, e que esta caracterização pode ser vista como fruto de um processo de laicização e humanização do saber, ligado à democracia. O caráter indeterminado do mundo – nem caótico, nem inteiramente ordenado – teria como contrapartida a condição humana de criatura entre os animais e os deuses.159 O destino (τύχη) da tragédia grega cede então lugar à deliberação. Para mostrar a ligação desta noção com o processo democrático, Aubenque analisa a evolução etimológica do termo βούλευσις, derivado de βούλή, que se referiria, em Homero, ao Conselhos dos Anciãos, e na Atenas democrática ao Conselho dos Quinhentos. A deliberação aristotélica seria, assim, a forma interiorizada de seu equivalente público, praticada na Assembléia do povo: “a análise de Aristóteles manifesta o vínculo profundo entre uma filosofia da contingência e a prática do sistema democrático, ou seja, deliberativo”; mais adiante, temos: “a democracia deliberativa e, inicialmente, a instituição patriarcal do Conselho dos anciãos fornecem, pois, o modelo da conduta individual prudente” (AUBENQUE, 2008, p. 168; p. 180-181; p. 183; p. 184).

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Aristóteles volta a repetir que só deliberamos sobre os meios, não sobre os fins: de

fato, um médico, um orador ou um estadista não discutem se devem,

respectivamente, curar, persuadir ou assegurar a ordem pública, ou seja, sobre os

fins de suas atividades. Eles dão o fim por estabelecido e investigam quais os

meios que lhes permitem atingi-lo.160 Neste sentido, o fim pode ser considerado

como o princípio que dá origem à deliberação. O filósofo grego faz uma

comparação com o que ocorre nas deduções matemáticas: os princípios primeiros

não podem ser investigados, mas partimos deles para chegar às conclusões. De

forma similar, na deliberação (que também é uma investigação, como a

matemática), o fim exerce esta função de princípio do qual se parte, sem poder ele

mesmo ser deliberado.161 Surge então uma análise retroativa, pela qual se

concatenam os diversos meios necessários para atingir o objetivo visado, até

chegarmos àquele que se encontra, de forma mais imediata, ao nosso alcance. A

percepção deste meio imediato é que poria fim à deliberação.162 Desta forma,

como diz Aristóteles, o que vem em último lugar na análise é o primeiro na ordem

de execução.163 O meio imediato é, assim, o objeto de escolha, aquilo pelo qual

nos decidimos através da deliberação.164

O estagirita passa então a analisar como se dá, exatamente, esta escolha.

Este é um ponto particularmente importante para nossa tese, pois se trata do

momento exato em que ocorre a conexão, por assim dizer, entre desejo e razão,

fazendo com que aquele possa ser influenciado por esta. Em um primeiro

momento, o resultado da deliberação se dá sob forma ainda puramente intelectual,

através de um juízo (γνώµη) de que determinado meio é o mais adequado para

atingir o fim.165 O juízo, assim, é aquilo que fecha propriamente a deliberação. Ele

160 ARISTÓTELES, EN III-3 [1112b10-15]. 161 O fim é, assim, άρχή προαιρέσεως, princípio da deliberação (ARISTÓTELES, EN VI-2 [1139a33-35]). Cf. ZINGANO, 2007, p. 302. 162 “A deliberação é limitada pelo alto: ela parte de um dado, o fim, sobre o qual não deliberamos; ela é igualmente limitada por baixo: ela se interrompe quando percebemos a presença ou a possibilidade de um dos meios considerados, que se torna assim o último: é a sensação que fecha a deliberação” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 204 (tomo II), tradução nossa). Na Ética Eudêmica, temos: “All consider this till they have brought the beginning of the process to a point in their own power” (ARISTÓTELES, EE II-10 [1226b12])). 163 ARISTÓTELES, EN III-3 [1112b25]. 164 ARISTÓTELES, EN III-3 [1113a5]. 165 É preciso considera que, embora possua uma dimensão essencialmente intelectual, o juízo se dá acerca de questões humanas, e neste sentido não se confunde com a ciência. Aubenque comenta, neste sentido, que “julgar não é somente uma qualidade intelectual. O homem de bom julgamento (εύγνώµων) não se confunde com o homem de ciência; ele não tem nenhum conivência com os princípios e não pode se abrigar atrás de nenhuma demonstração. Além disso, sabe que o

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se distingue da decisão (προαίρεσις), pois esta última consiste em decidir agir, e

portanto implica em uma dimensão que não é mais somente intelectual, mas

também desejante, pois o desejo é o motor que nos leva a adotar um determinado

meio para atingir um fim. Como dizem Gauthier & Jolif:

O decidido, é algo deliberado, e é o intelecto que delibera; mas o decidido, não é somente algo deliberado, é também algo desejado, e resta explicar como ele pode ser assim desejado; não é evidentemente em virtude da deliberação (κατά τήν βούλεµσιν), mas em virtude do desejo (κατά τήν βούλησιν); é porque desejamos a saúde que, tendo julgado a partir da deliberação que o melhor meio de alcançá-la é a fricção, passamos a desejar a fricção. O papel do juízo ao qual chega a deliberação é precisamente incluir a fricção, enquanto meio, no desejo da saúde que é o fim.166

A decisão possui assim uma dimensão intelectual e desiderativa, e,

portanto, podemos considerar que a προαίρεσις – a resolução de adotar um

determinado meio que foi julgado o mais adequado pela deliberação para atingir o

fim desejado – é o momento exato em que ocorre esta convergência entre desejo e

razão, que é tão fundamental para a ética aristotélica.167 O juízo, de fato, faz com

que o meio que é seu objeto seja incluído no desejo do fim do qual ele é meio. Em

outras palavras: o fato do objeto escolhido em função da deliberação ser um meio

para um fim desejado faz com que este meio também passe a ser desejado, e agora

nós temos, assim, um desejo baseado em razões. Dessa forma, a própria ação

também se segue imediatamente da deliberação.168 Podemos portanto dizer que

assim como o fim é o princípio da deliberação (a)rxh/ proaire/sewj), a escolha é o

princípio da ação (a)rxh/ pra/cewj), e, portanto, o que Aristóteles está fazendo,

aqui, é descrever como nosso atos podem resultar de nossa razão, ainda que

determinados pelo desejo.

Para compreender melhor este aspecto, analisemos como o desejo é, por verdadeiro nos assuntos humanos não se confunde com o demonstrável. É justamente o reconhecimento dos limites da ciência que faz seu valor propriamente moral” (AUBENQUE, 2008, p. 242). 166 É preciso considerar que a diferença entre juízo e decisão pode ser mais uma distinção de “razão” do que de “fato” (para usa um vocabulário leibniziano), pois aquilo que é julgado como meio adequado passa a ser imediatamente desejado (Cf. GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 206 (tomo II)). Cf AUBENQUE, 2008, p. 196: “por certo, esta escolha [προαίρεσις] é, ela mesma, um desejo (όρεξις), pois somente se quer os meios porque se quer o fim, e a escolha dos meios permanece subentendida à vontade do fim, sem a qual perderia toda razão de ser; nesse sentido, a proairesis conserva um aspecto volitivo”. 167 ZINGANO, 2007, p. 302. 168 “A decisão não se distingue realmente do juízo que fecha a deliberação: ela é este mesmo juízo, não enquanto ele enuncia uma afirmação, mas enquanto que, sob o empuxo do desejo que o inspirou e que o penetra, ele é o motor” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 212 (tomo II), tradução nossa. Cf. ibidem, p. 204).

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assim dizer, transformado pela deliberação e pela decisão. O resultado deste

processo é aquilo que Aristóteles chama de desejo racional ou deliberado,

o)/recij bouleutikh, ou simplesmente βούλησις. Como diz Zingano, “o agente

busca realizar seu desejo, mas, visto que a escolha dos meios é governada pelo ato

de pesar razões, trata-se agora de um desejo deliberativo, e quem decidiu por

deliberação sobre como agir deseja agora conforma a deliberação (...) o desejo se

apresenta agora comandado ou reformulado pelo ato de pesar razões relativamente

aos meios”.169 Desta forma, o desejo “conforme a deliberação” não é mais

simplesmente irracional, pois o agente passa, agora, a agir em função de razões.

Citando mais uma vez Zingano:

(...) o agente age doravante em função do que ele reconhece como sendo uma boa razão para fazer ou abster-se de fazer em relação ao um fim dado previamente (...) o que faz com que sua ação seja sua é propriamente o fato que podia não fazer o que fez, e ele podia não o fazer não porque podia ter um outro desejo, mas porque podia pesar as razões envolvidas e agir em função do reconhecimento do valor moral aceitável ou censurável de seu ato.170 Percebe-se facilmente a relação estreita deste processo com a

responsabilidade moral: a ação passa a pertencer ao agente em um sentido forte,

pois a escolha faz com que o princípio motor volte a ele, pelo fato de ser a sua

parte dirigente que escolhe.171

De forma geral, Aristóteles distingue três tipos de desejo (o)/recij): o

apetite, a paixão e o desejo racional.172 Os dois primeiros pertencem a um gênero

comum, o desejo irracional, o)/recij a)/logoj.173 Podemos assim considerar que a

deliberação sobre os meios gera um tipo de desejo que “participa” da razão.

Reencontramos, aqui, aquilo que foi dito no final da parte I da EN, sobre a

capacidade da alma desiderativa de “ouvir” a racional. Obviamente, isso só é

possível por causa de determinadas características da concepção aristotélica de

169 ZINGANO, 2007, p. 307-308. 170 ZINGANO, 2007, p. 309. 171 Como diz Aubenque, a προαίρεσις é a sede da imputabilidade, opõe-se à coação e é o fundamento dos atos voluntários (“feitos de bom grado”, “de plein gré”), os únicos que são objetos de louvor e de censura (AUBENQUE, 2008, p. 194-195). Sobre a “parte dirigente” - na tradução francesa de Bodéüs “partie qui dirige”, na de Oxford “ruling part” -, esta expressão com certeza faz referências à discussão, na parte VI, sobre as diferentes partes do intelecto, e os comentadores em geral consideram que nossa parte dirigente é a inteligência (σύνεσις). Bodéüs comenta, no entanto, que isso não é inteiramente correto, pois a inteligência não “dirige” nada sem o desejo (ARISTOTE, 2004, p. 149, nota do tradutor). 172 ARISTÓTELES, DA II-3 [414b2]. Cf. ARISTÓTELES, EE II-7 [1223a26]: “desire is divided into three sorts, wish, anger, and sensual appetite”. 173 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 191 (tomo II).

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pathé (πάθη), “paixão”, “emoção”,174 particularmente o fato desta possuir um

elemento cognitivo, ligado à opinião que a constitui: como diz Zingano, “aos

olhos de Aristóteles, há um juízo no interior mesmo das emoções”; “Podemos

assim considerar que as emoções se formam a partir de uma cognição – sentir é

tomar alguma coisa sob um certo ângulo”.175 É esta dimensão da pathé aristotélica

que torna possível, portanto, à parte irracional de nossa alma “ouvir” a racional e

ser aprimorada por ela (vimos que este processo não se dá necessariamente, daí a

importância desta capacidade ser desenvolvida pelo hábito e pelos costumes).176

Como acabamos de expor, este “aprimoramento” se dá a partir da deliberação, que

introduz um elemento cognitivo no desejo através da προαίρεσις, a escolha ou

decisão acerca dos meios. O resultado deste processo é um “desejo racional”,

βούλησις, que possui uma dimensão racional e uma dimensão irracional.

Conforme já havíamos comentado, a ética aristotélica gira em torno desta

dualidade da natureza humana, consistindo, grosso modo, em investigar como

nossos desejos e afetos podem se harmonizar à razão. Nossa ênfase, neste

trabalho, está sendo justamente em analisar este processo, por consideramos que

trata-se de algo similar ao que veremos em Kant - com a diferença de que neste

último a vontade é que deve se conformar à razão prática do agente. Neste

sentido, para o filósofo alemão será possível – pelo menos em princípio – eliminar

qualquer traço de irracionalidade na ação moral, ao passo que para Aristóteles este

aspecto não pode ser completamente suprimido. É preciso se contentar, por assim

dizer, em aperfeiçoar o irracional a partir do racional. Daí o eudaimonismo da

ética aristotélica, o que desaparece em Kant.

O processo de racionalização do desejo pode ser melhor compreendido se

considerarmos a maneira pela qual mesmo a apreensão dos fins é afetada. Vimos,

de fato, que uma das principais teses aristotélicas acerca da deliberação é que esta

se refere somente aos meios. No entanto, há várias maneiras pela qual, no decorrer

174 Zingano caracteriza esta noção como uma afecção que é ela própria fonte de ação, podendo assim ser entendida como uma “tendência” (ou seja, a paixão aristotélica não se limita a sofrer algo passivamente, como em outros autores), acompanhada de prazer e de dor (ZINGANO, 2007, p. 148; p. 151). 175 ZINGANO, 2007, p. 152; p. 155. Zingano cita alguns trechos, particularmente da Retórica, onde o estagirita descreve como a emoção é sempre engendrada a partir de uma imaginação ou juízo: ARISTÓTELES, Ret. II-2 [1379a22]; II-5/6 [1382a22-1383b20]. 176 “Para Aristóteles, o desejo humano é tal que sempre tem de poder acolher razões” (ZINGANO, 2007, p. 106). Em outro trecho, temos: “Já que as emoções se formam a partir de uma cognição, por isso mesmo elas não são refratárias a toda razão; ao contrário, podem escutar a razão e, deste modo, aperfeiçoar-se, tornando-se assim emoções moderadas pela razão” (ibidem, p. 154).

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deste processo, os fins acabam sendo indiretamente racionalizados.

Ressaltaremos, aqui, as que nos parecem ser as principais: em primeiro lugar, a

deliberação pode nos fazer perceber que determinados fins não são atingíveis.

Aristóteles já havia comentado esse aspecto ao tratar da questão da concatenação,

afirmando que “se chegamos a uma impossibilidade abandonamos a busca (por

exemplo, se precisamos de dinheiro e não há como conseguí-lo), mas se uma coisa

parece possível, tentamos fazê-la. Por coisas ‘possíveis’ quero dizer aquelas que

se podem realizar graças ao esforço próprio”.177 Podemos assim considerar que a

deliberação faz com que nossos objetivos se tornem mais realistas, por assim

dizer, com isso racionalizando aquilo que é determinado pelo desejo. Como diz

Aubenque, queremos o bem, mas escolhemos o melhor possível,

be/ltiston e)k tw=n dunatw=n, nos conformando assim àquilo que é humanamente

viável.178 Outro processo diz respeito a um ponto que também já havia sido

assinalado por Aristóteles, logo no início da Ética a Nicômaco, quando fez a

distinção entre bens como meios e como fins. Todo bem é, por definição, um fim

(pois é aquilo que é visado por uma ação), mas na maioria das vezes também é um

meio para atingir outros objetivos. Vimos, de fato, que somente as virtudes são

buscadas por si mesmas, embora mesmos estas sejam visadas enquanto

constituintes da eudaimonia, que seria, assim, o único bem “absoluto”, “perfeito”

ou “acabado” (τελείως). Isso significa que, embora não possamos deliberar sobre

aquele fim que funciona como princípio da própria deliberação, nada impede que

possamos fazer isto quando este fim é um meio para atingir outro bem. Podemos

usar como exemplo o caso citado pelo próprio Aristóteles, quando disse que sendo

médicos não nos cabe deliberar sobre o fim da atividade da medicina, mas

somente como atingi-lo. Nada nos impede, no entanto, de deliberar se querermos

ou não ser médicos, quando somos mais jovens. Também podemos nos perguntar

qual o interesse de curar as pessoas, ou seja, para que “serve” o fim desta

atividade, e perceber que este é um meio para melhorar a qualidade de vida geral,

prolongar a longevidade etc – e então podemos deliberar se a medicina é mesmo o

melhor meio para atingir tais fins. Como diz mais uma vez Zingano:

Se considerarmos as deliberações não para baixo, isto é, em direção aos objetos

177 ARISTÓTELES, EN III-3 [1112b25]. Esse aspecto é que levará à definição final da proairesis como “desejo deliberativo das coisas que dependem de nós”, βουλευτική όρεξις τών έφ ήµίν (ibidem, III-3 [1113a11]). 178 AUBENQUE, 2008, p. 213-214.

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últimos da ação, mas para cima, em direção aos fins tornados meios para deliberações superiores, aos moldes de uma cadeia de silogismos que se pode considerar tanto para baixo quanto para cima, tudo, ou quase tudo, pode ser objeto de deliberação.179

Estas são, assim, duas maneiras pelas quais nossos fins podem ser

racionalizados, ainda que não determinados diretamente pela razão. Mas talvez o

processo principal pelo qual isto se dá seja a partir da relação de nossos objetivos

com nossas disposições, que podem, como comentamos, ser harmonizadas com a

parte racional da alma. Vimos, de fato, que o processo educativo, para Aristóteles,

deve procurar gerar nos indivíduos aquelas disposições que são as mais adequadas

para o exercício da razão. Ora, este processo afeta, justamente, aquilo que cada

indivíduo enxerga como sendo o “bem”. Como diz Aristóteles, “cada disposição

de caráter tem sua idéia própria acerca do nobre e do agradável”.180 Deste modo, a

formação através dos hábitos, culminando com a racionalização do desejo ligada à

deliberação, afeta a maneira pela qual concebemos nossos “fins”.

Essa questão está ligada a uma discussão acerca do aspecto “aparente”

(faino/menon a)gaqo/n) e “verdadeiro” (a)gaqo/n a(plw=j) da noção de Bem. Não por

acaso, Aristóteles aborda este problema logo após a análise do processo ligado à

deliberação, que descrevemos acima. O estagirita começa mencionando duas teses

opostas, uma pela qual o desejo pode visar o bem absoluto, ou seja, aquilo que é

realmente um bem, e outra pela qual o objeto de desejo é apenas o que parece ser

o bem a cada um.181 Embora não sejam explicitamente citados, não é difícil

reconhecer aqui a posição de Platão e dos sofistas, respectivamente.182 Podemos

considerar que Aristóteles faz uma proposta intermediária, pela qual ambas as

posições estão, em um certo sentido, corretas: todo bem é aparente, mas isso não

impede que alguns sejam “verdadeiros”. Isso significa dizer que, embora todos os

bens sejam subjetivos, em alguns casos eles podem também ser objetivos. Urmson

procura lidar com esta questão a partir de uma distinção de que Aristóteles não

179 ZINGANO, 2007, p. 302. 180 ARISTÓTELES, EN III-4 [1113a30-35]. 181 ARISTÓTELES, EN III-4 [1113a15-23]. 182 Como dizem Gauthier & Jolif: “para Platão, para que façamos o que desejamos, não basta fazer o que acreditamos ser um bem, é preciso que façamos o que é realmente um bem: o objeto do desejo, é o bem, e não o bem aparente, como acreditavam os sofistas” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 207 (tomo II), tradução nossa). Os comentadores franceses citam como exemplos desta posição platônica os diálogos Górgias (468a-d), Carmides (167e) e Ménon (78a). O desejo, aqui, é o desejo racional – podemos assim considerar que a posição de Platão implica que aquele que deseja algo “mau” não deseja realmente, no sentido racional do termo.

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dispunha, mas que, segundo o comentador inglês, teria contribuído para tornar sua

tese mais clara: aquela entre a dimensão intencional e a extensional de

preposições do tipo “X deseja Y”. A intencional consiste, grosso modo, em uma

descrição da intenção do agente, enquanto a extensional é uma descrição correta

dos fatos.183 Essas duas dimensões não precisam necessariamente coincidir – por

exemplo, posso desejar um emprego por acreditar que ele fará de mim um homem

rico, mas depois verificar que estava com uma idéia equivocada, ou desejar me

casar com alguém por acreditar que esta pessoa possui certas qualidades, e depois

descobrir que ela na verdade não as possui.184 Nada impede, no entanto, que os

dois aspectos – intencional e extensional - possam coincidir.

Dizer que todo bem é aparente, assim, significa dizer que esta noção é

sempre caracterizada como sendo o objeto de um desejo, ou seja, que possui uma

dimensão intencional que lhe é inerente. Não é possível, portanto, conceber o Bem

como algo que independa deste caráter subjetivo, no que a concepção de

Aristóteles se afasta da de Platão. Mas isso não quer dizer que não se possa falar

de um bem objetivo ou verdadeiro: o que o estagirita afirma, é que este caráter

objetivo não pode ser concebido independentemente do subjetivo.185

A pergunta que se coloca, agora, é o que diferencia os casos em que esses

dois aspectos coincidem - quando o bem subjetivo é também verdadeiro – dos

casos em que não isso não ocorre – quando o bem subjetivo é falso. Em outras

183 URMSON, 1988, p. 58-59. Lingüisticamente falando, podemos relacionar a “intensão” de uma expressão ao seu significado conotativo, e a “extensão” ao seu significado denotativo. A extensão de uma sentença é aquilo que é significado por ela, estando assim diretamente ligado ao seu valor de verdade, ao passo que a intensão seria aquilo que é expresso: o conceito expresso pelo termo, a propriedade expressa pelo predicado, a proposição asserida pela sentença. Há, portanto, uma diferença entre a intensão e a “intenção”, que se refere à dimensão subjetiva do agente, mas estes dois aspectos podem estar ligados, como ocorre, justamente, em proposições do tipo “X deseja Y” (Cf. The Cambridge Dictionary of Philosophy, NY, Cambridge University Press, 1999, p. 439-441; José Medina, Linguagem – Conceitos-Chave em Filosofia, Porto Alegre, Artmed, 2007, p. 51-52). Como diz Zingano, “somente as proposições práticas envolvem necessariamente um contexto intensional, o que as distingue das proposições teóricas, que podem ser intensionais, mas são nas mais das vezes formuladas de modo perfeitamente extensional. Convém assinalar que o fenômeno lógico da intensionalidade tem no fenômeno psicológico da intencionalidade sua expressão primária ou básica” (ZINGANO, 2007, p. 513, grifo nosso). 184184 Esta caracterização deixa clara a importante dimensão cognitiva da intenção, relacionada não só à emoção, mas também a determinadas crenças do sujeito – vimos, justamente, que para Aristóteles os desejos e emoções possuem esta dimensão cognitiva. Mais adiante, abordaremos o importante papel que a noção de razão prática exerce na determinação do que nos aparece como “bem”. 185 Podemos talvez fazer uma analogia entre este tipo de raciocínio e aquele utilizado por Aristóteles na sua teoria hilemórfica, pela qual forma e matéria formam um composto (a substância), não existindo, assim, separadamente. De forma similar, o caráter subjetivo e o objetivo do Bem, embora não se confundam, também nunca se separam.

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palavras, o que impede que a concepção aristotélica seja uma forma de

relativismo? A diferença estará, justamente, na virtude. Vimos, de fato, que a

concepção de bem depende do caráter de cada um, e assim o homem virtuoso, o

prudente, será a norma e medida do bem verdadeiro.186 Como diz Aubenque, “o

bem real é aquele que aparece como tal à vontade do homem valoroso; nele,

faino/menon a)gaqo/n e a)gaqo/n a(plw=j coincidem”, e, mais adiante: “são os

homens de valor que são juízes do próprio valor”.187 Para Hardie, “a virtude dirige

a escolha para o fim certo”,188 e na Ética Eudêmica vemos que “da correção do

fim e da escolha a causa é a excelência”.189 Este aspecto está diretamente ligado,

obviamente, à racionalização do desejo que estamos discutindo: como dizem

Gauthier & Jolif, o objeto do desejo irracional é o bem aparente, e o do desejo

racional é o bem real.190 Reencontramos aqui a formulação que já havíamos

estabelecido desde o argumento do érgon, quando dissemos que o homem

virtuoso é aquele que deseja bem, sendo que a “qualidade” do desejo consiste,

justamente, em sua harmonização com a razão. Mais adiante, ao tratarmos da

phrónesis, retomaremos este assunto, procurado delimitar de maneira mais

específica o que seria o bem “real”.

Resumindo, podemos considerar que o processo de formação de nosso

caráter – que pode ser entendido, grosso modo, como a racionalização do desejo e

de nossos afetos, através da formação pelo hábito e do procedimento ligado à

deliberação – é uma outra forma, sem dúvida a principal, pela qual nossos fins

podem se acordar com a razão, mesmo sem serem determinados diretamente por

ela. Este aspecto levará Aristóteles mesmo a afirmar, em algumas passagens, que

os fins podem ser escolhidos,191 o que parece, obviamente, entrar em contradição

direta com a tese de que só deliberamos sobre os meios. Este ponto pode ser

186 “talvez a maior diferença entre o homem bom e os outros está em aquele perceber a verdade em cada classe de coisas, e ser dessas coisas, por assim dizer, norma e medida” (ARISTÓTELES, EN III-4 [1113a32-35]). 187 AUBENQUE, 2008, p. 79; p. 80. 188 HARDIE, 1968, p. 169, tradução nossa. 189 ARISTÓTELES, EE II-11 [1228a1], tradução do inglês nossa. 190 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 211 (tomo II). Para enfatizar esta oposição, os comentadores franceses não mencionaram que o bem real é também aparente. Neste sentido, teria sido mais correto dizer, a nosso ver, que o objeto do desejo irracional é apenas aparente. 191 Por exemplo, no final do livro II da Ética Eudêmica, quando diz que julgamos o caráter de um homem por suas escolhas, ou seja, pelo objeto em função do qual ele age, e não pelo próprio ato. Este aspecto estaria ligado ao fato de que uma ação, tomada isoladamente, pode ser involuntária (segundo os critérios analisados anteriormente, a compulsão e a ignorância), mas ninguém escolhe involuntariamente (ARISTÓTELES, EE II-11 [1228a1-15]).

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melhor compreendido, no entanto, se considerarmos que para o estagirita os

indivíduos são, pelo menos em parte, responsáveis por seus vícios e virtudes. De

fato, na Ética a Nicômaco temos:

Ora, o exercício da virtude relaciona-se com os meios; portanto, a virtude também está ao nosso alcance, da mesma forma que o vício. Com efeito, quando depende de nós o agir, igualmente depende o não agir, e vice-versa, ou seja, assim como está em nossas mãos agir quando isso é nobre, assim também temos o poder de não agir quando isso é vil; e temos o poder de não agir quando isso é nobre, do mesmo modo que temos o poder de agir quando isso é vil. Por conseguinte, depende de nós praticar atos nobres ou vis, e se é isso que significa ser bom ou mau, então depende de nós sermos virtuosos ou viciosos.192

Nesta passagem, a responsabilidade acerca da virtude é relacionada à

possibilidade de agir ou não agir – como já comentamos anteriormente, as ações

possuem, para Aristóteles, um caráter indeterminado, devido à potência racional

ser uma potência de contrários. A nosso ver, este aspecto está sendo trazido à

tona, aqui, para ampliar o conceito de voluntariedade que havia sido discutido até

então. Tínhamos visto, de fato, que a deliberação sobre os meios faz com que o

princípio motor da ação volte ao agente, tornando-o moralmente responsável. Essa

voluntariedade pode ser considerada limitada pelo fato de nossas ações

dependerem, sobretudo, de nossos desejos. No entanto, a análise sobre a noção de

“hábito” havia mostrado que a formação de nosso caráter se dá a partir de ações

que são repetidas em uma certa direção. Desta forma, a versão limitada da

voluntariedade (acerca dos atos) pode levar a uma voluntariedade acerca da

geração, em nós, de determinadas disposições, se tornando assim uma versão mais

forte de nossa responsabilidade moral sobre as ações. Aristóteles menciona, de

fato, o problema da voluntariedade logo após a passagem citada acima: “ou então

teremos de contestar o que acabamos de dizer, e negar que o homem seja um

princípio motor e pai de suas ações como se fosse de seus filhos”, e, mais adiante,

“as ações cujos princípios motores estão em nós devem também depender de nós e

ser voluntárias”.193 Como nossas ações são fruto de nosso caráter, dizer que estas

dependem de nós implica em considerar que nossa formação também depende de

nós. Como vimos acima, isso significa que mesmo os fins nos quais baseamos

nossas ações são, de certa forma, voluntários, pois estes dependem de nossa

virtude. Este é o assunto abordado em seguida pelo filósofo grego, relacionando-

192 ARISTÓTELES, EN III-5 [1113b6-13]. 193 ARISTÓTELES, EN III-5 [1113b16-23].

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o, justamente, à questão do “bem aparente”:

Mas alguém poderia objetar que todas as pessoas desejam o bem aparente a cada uma delas, mas sobre a aparência ninguém tem controle, uma vez que os fins se afiguram a cada um sob uma forma correspondente ao seu caráter. Respondemos que, se cada homem é de certo modo responsável por sua disposição moral, será também de certo modo responsável pela aparência.194

O estagirita cita então o argumento de que nossa visão moral seria

“natural”, ou seja, dependeria de nosso nascimento. Quando analisamos o

processo educativo ligado aos hábitos, mencionamos que a proposta de Aristóteles

procurava reunir as três principais teses sobre a aquisição das virtudes existentes

na sua época, segundo as quais estas seriam fruto da natureza, da cultura ou do

intelecto. A concepção aristotélica, assim, aceita que há um elemento naturalista

na composição de nosso caráter, que, portanto, não pode ser absolutamente

voluntário. No entanto, é possível falar de um certo nível de voluntariedade (mais

adiante, o filósofo grego irá dizer, justamente, que “nós somos de certo modo

[aitios pōs] responsáveis por nossas disposições de caráter”)195, primeiro por causa

do elemento intelectualista, mas também porque o próprio processo educativo é,

para Aristóteles, voluntário em um certo sentido. O processo pelo qual isso se dá,

que citamos acima, volta, de fato, a ser mencionado pelo estagirita: “é no

exercício de determinadas atividades que se formam as disposições de caráter”.196

O filósofo grego comenta, por exemplo, que, se levamos uma vida desleixada, nos

tornaremos, provavelmente, pessoas descuidadas.197 Quando estas disposições

tiverem sido fixadas, não teremos mais muita escolha de sermos ou não este tipo

de pessoa, mas podemos mesmo assim ser responsabilizados pela vida desleixada

que as gerou. Como diz Hardie, “se um homem que não é ignorante pratica ações

que o tornam injusto, sua injustiça é voluntária. Mas, tendo se tornado injusto, ele

não pode, se desejar, cessar de sê-lo”.198 Neste sentido, nossas disposições podem

ser consideradas uma “segunda natureza” ou “natureza prática” do agente, que, ao

contrário da primeira, é parcialmente voluntária. Isso significa dizer que nossos

fins também serão, em parte, fruto de nossa escolha, pois, como vimos, o que nos

aparece como sendo o “bem” depende de nosso caráter. Como diz o filósofo

194 ARISTÓTELES, EN III-5 [1114a33-1114b2]. 195 ARISTÓTELES, EN III-5 [1114b22] (grifo nosso). 196 ARISTÓTELES, EN III-5 [1114a10]. 197 ARISTÓTELES, EN III-5 [1114a3-5]. 198 HARDIE, 1968, p. 175, tradução nossa.

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grego: “Assim somos responsáveis por nossa forma de conceber o fim, na exata

medida em que somos responsáveis por nosso caráter”.199

Graças à razão deliberativa, sou senhor de minhas ações; como as disposições são geradas pelas ações, sou em parte causa de minhas disposições. Ora, as disposições práticas constituem o que se pode chamar de natureza prática do agente, e os fins aparecem ao agente em função de sua natureza (prática); por conseguinte, em uma certa medida, sou causa do fato de que certos fins apareçam a mim.200

Zingano faz, a nosso ver, um bom resumo de todo o processo:

A ética aristotélica constrói-se em torno desta inversão: no lugar de partir dos fins, ela se insinua pelos meios e daqui retorna aos fins, pois, ao se decidir por deliberação sobre os meios para obter um fim, nos tornamos senhores de nossas ações; senhores de nossas ações, somos em um certo sentido responsáveis de nossas disposições; responsáveis em um certo sentido de nossas disposições, somos então, em uma certa medida, autores de nossa natureza prática; ora, visto que o fim aparece em função da natureza (prática) do agente, em certo sentido somos autores de nossos fins.201

Resumindo, podemos considerar que há várias maneiras pela qual nossos

fins podem ser influenciados, ainda que não diretamente determinados, pela razão.

Este aspecto está relacionado, assim, ao processo de racionalização de

nossos desejos, culminando na noção de βούλησις, que possui uma dimensão

irracional e uma racional – daí a afirmação de Aristóteles, pela qual a proairesis

pode ser chamada tanto de desejo racional (o)/recij bouleutikh) quanto de

intelecto desejante (o)rektiko/j nou=j).202 Como dissemos na introdução, nossa

análise da ética aristotélica visa mostrar que o objetivo maior do filósofo grego é

estabelecer como – e até que ponto - nossas ações podem ser determinadas pela

razão (o que seria um objetivo similar ao de Kant). Podemos agora afirmar que a

racionalização do desejo é a maneira encontrada por Aristóteles para explicar

como as ações do agente podem ser resultado de sua razão prática. Este duplo

aspecto da βούλησις – ser motor de nossos atos e ao mesmo tempo possuir uma

199 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 215 (tomo II), tradução nossa. Os comentadores franceses se apressam em acrescentar que esta resposta de Aristóteles pode ser considerada insuficiente, pois não se aplica à formação dos jovens, mas somente a homens já formados. Nos parece ser possível afirmar que para Aristóteles a educação propriamente dita, que recebemos quando somos mais jovens, não encerra completamente nossa formação, que continua, em certa media, durante a idade adulta, quando então somos mais responsáveis pelo estilo de vida que levamos. 200 ZINGANO, 2007, p. 319-320. Urmson também menciona esta “segunda natureza” do agente: “Aristotle compares acquiring a good character with acquiring a skill (...). Gradually, by practice and repetition, it becomes effortless and second nature” (URMSON, 1988, p. 26). 201 ZINGANO, 2007, p. 164. 202 “A escolha, por conseguinte, é ou raciocínio desiderativo ou desejo raciocinativo” (ARISTÓTELES, EN VI-2 [1139b4]).

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dimensão racional – é o que levará este termo a ser traduzido em latim como

voluntas, “vontade”.203 Do ponto de vista filosófico, no entanto, esta tradução não

é correta, pois a vontade pode ser vista como um desejo essencialmente racional,

ou seja, uma atividade da alma racional por excelência.204 Como dizem Gauthier

& Jolif, ainda que o objeto e a regra (trataremos deste ponto mais adiante) da

βούλησις sejam fornecidos pela razão, ele permanece sendo um ato da parte

irracional da alma.205 Podemos assim considerar que o processo de racionalização,

que estamos descrevendo, não chega a eliminar completamente um elemento

irracional do desejo que é irredutível, o que diferencia definitivamente a βούλησις

daquilo que será posteriormente conhecido como “vontade”.

Por outro lado, por se tratar de um elemento irracional aprimorado pela

razão, a βούλησις também se diferencia de concepções puramente irracionais do

desejo, como encontraremos por exemplo em Kant e, em certa medida, nos

estóicos. Daí alguns autores, como Zingano, falarem de uma doutrina “moderada”

da vontade em Aristóteles.206 Ross também comenta que a doutrina aristotélica da

escolha é claramente uma tentativa de formular uma concepção de vontade:

segundo o autor inglês, isso se deve, justamente, ao fato de que a escolha

deliberada não é um elemento racional que simplesmente se acrescenta ao desejo

e é guiado por ele: a βούλησις é razão e desejo (desejo guiado por razão e razão

acionada por desejo), e não apenas desejo “mais” razão.207 Neste sentido, a tese

aristotélica de que a deliberação se aplica somente aos meios não implica que a

razão possua para o filósofo grego um papel meramente instrumental – no que sua

doutrina se diferencia da de outros autores que defendem esta última posição,

203 ZINGANO, 2007, p. 191. Segundo alguns comentadores, Cicero parece ter sido o principal responsável por esta tradução. Voltaremos a este ponto mais adiante, quando discutiremos o surgimento histórico da voluntas. 204 “Para os escolásticos, a voluntas é precisamente um desejo racional no sentido de ser uma atividade da alma racional, que possui nela mesma uma faculdade desejante distinta da faculdade desejante irracional, idéia totalmente estrangeira a Aristóteles” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 194 (tomo II), tradução nossa). 205 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 193 (tomo II). 206 ZINGANO, 2007, p. 320. 207 “It has often been complained that the psychology of Plato and Aristotle has no distinct conception of the will. Aristotle’s doctrine of choice is cleary an attempt to formulate such a conception. Some of the features of his doctrine are a great advance on any previous thought on the subject – the distinction of choice from appetite and rational wish; (...) the recognition of it as implying both desire and reason, and not merely desire + reason, but desire guided by reason and reason fired by desire” (ROSS, 1995, p. 207).

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como Hume ou Nietzsche.208 A diferença fundamental está o fato de que a o)/recij

aristotélica é transformada pela razão ao “ouvi-la”. Se Aristóteles insiste que a

deliberação se dá apenas sobre os meios, é para descrever a contribuição desta no

processo de transformação do desejo, e não apenas para enfatizar o seu caráter

instrumental. O resultado, assim, é um desejo que pode ser considerado racional,

sem deixar nunca de ser irracional.

Podemos assim concluir nossa análise sobre a racionalização do desejo em

Aristóteles. Esse processo, como vimos, foi descrito pelo estagirita a partir de

noções ligadas à voluntariedade, como escolha e deliberação. Na verdade, esta

formação já havia sido iniciada na educação provida pelos hábitos, pois, como

vimos, esta deve gerar disposições moderadas, que são as mais adequadas para o

exercício da razão. Daí, justamente, as virtudes disposicionais serem definidas por

Aristóteles, na parte II da EN, como “disposições de caráter relacionadas com a

escolha”.209 Havíamos comentado, no entanto, que as virtudes morais só adquirem

seu sentido próprio ou estrito (κυρίως) quando o agente passa a agir a partir de

razões que ele próprio se dá – podemos assim considerar que somente com a

deliberação ocorre de fato, no sentido próprio, a racionalização do desejo.

Se formos, agora, resumir o que fizemos até aqui, no primeiro capítulo

vimos que o sumo bem do homem está ligado, em Aristóteles, ao bom exercício

da razão, devido ao argumento do érgon. Isso significa que o valor moral de

nossos atos dependerá da capacidade da parte irracional de nossa alma em “ouvir”

a racional. Nos capítulos 1.2 e 1.3 analisamos, justamente, como se dá este

processo pelo qual nossos desejos se harmonizam com a razão: primeiro a partir

da formação, pelo hábito, de estados disposicionais de acordo com a mediania, e,

depois, com o surgimento do desejo racional ou βούλησις.

Resta-nos, agora, analisar o “bom exercício da razão” a que se referia o

argumento do érgon, ou seja, aquilo que é “ouvido” pela parte irracional de nossa

alma no caso das virtudes éticas. Trata-se da phrónesis (φρόνησις) ou sabedoria

prática, muitas vezes também traduzida como “prudência”. Tentaremos mostrar, a

partir desta noção, que a ética aristotélica também possui uma dimensão racional

208 “We have been misled by the expression ‘means to an end’ and it is quite easy to seet hat such a confined account of the role of reason that leaves it the sole tasks of discovering facts and means to an end is quite inadequate for Aristotle’s needs” (URMSON, 1988, p. 83-84). 209 ARISTÓTELES, EN II-6 [1107a1]. A tradução de Oxford diz “concerned with choice”, mas a francesa de Bodéüs prefere “estado decisional”, “état décisionnel”.

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prescritiva, a partir da qual seria estabelecido o valor moral de nossos atos.

2.4

Sabedoria prática e prescritividade

A noção de phrónesis (φρόνησις) só será devidamente analisada no livro

VI da Ética a Nicômaco. Nos livros IV e V, após as discussões que abordamos

acima, Aristóteles começa a tratar das diversas virtudes particulares. Podemos

considerar que as principais são a coragem, a temperança e a justiça, sendo que

esta última ocupa um livro inteiro (V), não só por sua importância, mas também

por sua atipicidade.210 Como já comentamos anteriormente, não nos interessa aqui

esta análise de disposições virtuosas específicas, mas apenas como estas se

relacionam com a razão prática.

O livro VI, assim, é aquele em que o filósofo grego examina a noção de

phrónesis. Logo no início, faz menção à doutrina da mediania. Ao tratar

anteriormente deste tema, Aristóteles já havia mencionado que o meio-termo é

estabelecido por uma regra da reta razão (o)rqo/j lo/goj): a definição formal da

virtude dada na parte II da EN, que nós citamos parcialmente mais acima, nos diz

que “a virtude é, então, uma disposição de caráter relacionada com a escolha de

ações e paixões, e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós,

que é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de

sabedoria prática”.211 Embora exista uma certa discussão entre os comentadores

sobre como o termo λóγω deve ser entendido neste trecho,212 o livro VI retoma

210 Aristóteles comenta, como exemplo desta atipicidade, que o meio-termo da justiça tem um sentido diferente das outras virtudes (ARISTÓTELES, EN V-5 [1133b30]), e que esta, em seu sentido amplo, se confunde com a própria virtude (ibidem, V-1 [1130a09]). A mediania, no caso da justiça, também parece se aplicar mais às ações do que às paixões, diferentemente das outras virtudes (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 141 (tomo II)). 211 ARISTÓTELES, EN II-6 [1106b36], grifo nosso. 212 A tradução de Oxford diz que o meio-termo é simplesmente “determinado pela razão”: “determided by reason in the way in which the man of pratical reason wisdom would determine it”. Os tradutores franceses, no entanto, tendem a discordar desta interpretação. Bodéüs considera que Aristóteles não está realmente dizendo no livro II que a razão determina a norma racional do Bem, mas apenas a definição formal da virtude, ou seja, sua essência (ARISTOTE, 2004, p. 117,

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esta formulação de uma maneira mais clara: “o meio termo é determinado pelos

ditames da reta razão” (to\ de\ me/son e)stin w(j o( lo/goj o( o)rqo/j le/gei).213 Esta

afirmação está de acordo com a idéia de que a educação pelos hábitos visa

preparar nossos afetos para “ouvir” a razão, o que, por sua vez, está de acordo

com a tripartição da alma realizada por Aristóteles, e com a compreensão das

virtudes morais a partir do argumento do érgon: o bem do homem está na

atividade da alma em consonância com a virtude daquilo que lhe é peculiar, daí a

divisão da virtude em dianoéticas, ou seja, intelectuais no sentido mais estrito do

termo, e as virtudes éticas, que consistem, como vimos, em um aprimoramento do

irracional pelo racional. A prudência será uma virtude intelectual: trata-se,

justamente, da parte de nossa alma racional que é “ouvida” pela irracional.

Desta forma, a idéia de que nossos atos devem se acordar com o bom

exercício da razão culmina na noção de razão prática e seus “ditames”. Este

aspecto está diretamente ligado à mediania, pois, como vimos, os gregos tendiam

a compreender a racionalidade a partir da doutrina do nada em demasia e da justa

medida, daí, justamente, a razão reta determinar o meio-termo. A importância da

phrónesis dentro da ética aristotélica confirma, assim, o que havíamos dito no

início de nossa exposição: a concepção de Aristóteles possui uma estrutura similar

à de Kant, pois para o filósofo grego, assim como para o alemão, o valor moral de

uma ação depende se sua harmonização com a razão prática.

No entanto, uma série de perguntas ainda precisam ser respondidas, como

a natureza destes ditames da razão, e como esta dimensão “imperativa” da

phrónesis pode ser conciliada com o caráter deliberativo (meios-para-fins) que foi

discutido na parte III. O conceito de sabedoria prática parece reunir ambos os

aspectos, pois, além de determinar o meio-termo, também é definido por

nota do tradutor). Esta tese não se sustenta, a nosso ver, pois neste caso não haveria necessidade de dizer que esta definição é dada pelo homem dotado de sabedoria prática. Além disso, o próprio Bodéüs parece reconhecer, posteriormente, o papel da razão no estabelecimento do meio-termo, ao traduzir o trecho inicial do livro VI por “le milieu est comme la raison, si elle est droite, le proclame” (ibidem, p. 289). Gauthier & Jolif passam um bom tempo analisando como o termo λóγω deve ser entendido na definição formal de virtude no livro II – fazendo distinções, por exemplo, entre “determinado por um logos” e “em relação a um logos”, ou “norma enquanto plano”, concluindo que a “norma” aqui, é ao mesmo tempo o que permite atingir o fim desejado e o que se impõe com autoridade (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 149 (tomo II)). Discutiremos mais adiante a conciliação destes dois últimos aspectos citados pelos comentadores franceses. 213 ARISTÓTELES, EN VI-1 [1138b19]. Na tradução de oxford “the intermediate is determined by the dictates of reason”, e na francesa de Bodéüs “le milieu est comme la raison, si elle est droite, le proclame”.

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Aristóteles como a excelência na deliberação.214

Já na introdução do livro VI, o filósofo grego comenta que “em todas as

disposições de caráter que mencionamos, assim como em todos os demais

assuntos, há uma meta certa a visar, no qual o homem, orientado pela razão, fixa o

olhar”.215 Neste trecho a mediania parece se subordinar a algum tipo de objetivo

(σκοπός), ou seja, um fim (τέλος). A regra da reta razão, assim, poderia ser

entendida como algum tipo de norma (o(/roj) que precisa ser seguida para que

atinjamos um determinado fim.

Como comentam Gauthier & Jolif:

O justo meio das virtudes morais é determinado pela regra reta, que Aristóteles nos dirá ser obra da sabedoria prática que é a phrónesis. Mas a aplicação desta regra reta é ela mesma função do objetivo que ela visa, ou seja, o fim à qual ela é ordenada, fim que é a norma suprema das virtudes morais.216

Podemos adivinhar que este fim seja a eudaimonia. De fato, os

comentadores franceses acrescentam logo em seguida que “a norma à qual

Aristóteles nos remete, não é uma norma ideal, uma qualquer Idéia do Bem, é o

fim real e concreto do homem, este bem humano que ele não cessou de opor ao

Bem-em-si”.217

Em uma primeira aproximação, assim, a ligação do caráter prescritivo com

o deliberativo parece se dar desta forma: “devo” fazer aquilo que leva à

eudaimonia. Esta formulação, no entanto, ainda não esclarece realmente a relação

entre a norma e os fins da ação: seria meramente instrumental? Isto parece

estranho, dado o caráter constitutivo da função do homem para sua felicidade.

Também não fica clara de que forma a prescrição do meio-termo se liga à

deliberação de meios-para-fins. Para tentar responder as estas perguntas,

precisamos acompanhar a exposição de Aristóteles, no livro VI, acerca da

natureza da razão prática.

O filósofo grego começa procurando diferenciar a sabedoria prática da

filosófica, a partir de uma divisão no interior da alma racional, entre aquela parte

que contempla o que é invariável, e a que contempla o que é passível de variação.

214 “(...) a pessoa que é capaz de deliberar possui sabedoria prática” (ARISTÓTELES, EN VI-5 [1140a30-31]). Cf. ibidem, VI-7 [1141b10]: “deliberar é acima de tudo a função do homem dotado de sabedoria prática, aliás, deliberar bem”. 215 ARISTÓTELES, EN VI-1 [1138b21]. 216 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 437 (tomo II), tradução nossa. 217 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 438 (tomo II), tradução nossa.

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A primeira é chamada de científica (e)pisthmoniko/n), e a segunda de calculativa

(λογιστικόν). Esta distinção, assim, se deve ao fato de os objetos contemplados

serem de duas espécies (variáveis e não variáveis), o que implica que as partes

correspondentes também sejam de espécies diferentes. O cálculo é como a

deliberação, e ninguém delibera sobre coisas invariáveis.218 Reencontramos aqui

as teses ontológicas que havíamos citado anteriormente, e que levam a

importantes conseqüências dentro da ética aristotélica, como o particularismo.

Este aspecto também afeta diretamente o problema de determinar a natureza da

eudaimonia – se esta deve ser compreendida como um bem inclusivo ou

exclusivo, como vimos -, pois ambas as partes estão implicadas no argumento do

érgon, já que as duas pertencem à nossa alma racional. Voltaremos a este ponto

mais adiante.

Aristóteles se preocupa então em estabelecer em que consistiria a

excelência das duas partes da alma racional, a partir daquilo que seria a sua função

(pois a virtude de algo consiste em cumpri-la devidamente): por se tratarem de

faculdades intelectuais, sua função seria a “verdade”. Neste sentido, a excelência

da razão prática não consiste mais no meio-termo, como ocorria com as virtudes

morais. A virtude do intelecto calculativo, assim como a do intelecto científico,

consiste em dizer a verdade, e, como dizem Gauthier & Jolif, “todo o esforço de

Aristóteles vai consistir em mostrar o sentido que reveste a noção de verdade no

caso do intelecto prático”.219

Essa linha de raciocínio leva o filósofo grego a analisar, então, as

disposições através das quais a alma possui a verdade, e estas seriam cinco: a arte,

o conhecimento científico, a sabedoria prática, a sabedoria filosófica e a razão

intuitiva. O estagirita parece estar seguindo, aqui, um procedimento que lhe é

característico, considerando que a natureza da razão prática só pode ser

devidamente compreendida a partir da sua diferença específica em relação às

218 ARISTÓTELES, EN VI-1 [1139a5-16]. Esta divisão da parte racional da alma em duas sub-partes já havia sido anunciada por Aristóteles no final da parte I, conforme comentamos na ocasião. Gauthier & Jolif comentam que no livro VI parecem se misturar duas concepções diferentes da alma racional: uma mais antiga, pela qual se trataria de duas partes distintas, que remetem à divisão platônica em parte científica e parte opinante, e uma concepção nova pela qual o intelecto científico e o intelecto prático seriam funções de uma mesma faculdade, o que consistiria uma crítica de Aristóteles a Platão (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 442 (tomo II)). 219 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 443 (tomo II), tradução nossa.

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outras disposições do mesmo gênero (ou seja, também ligadas à “verdade”).220

As duas primeiras disposições abordadas são a ciência e a arte: o

conhecimento científico tem por objeto o que é necessário em um sentido absoluto

do termo, isto é, o que é eterno, e, além disso, é um tipo de conhecimento que

permite demonstrações a partir de universais, atingidos por indução.221 Já a arte

(τέχνη - termo que possui, como se sabe, um sentido mais amplo do que o atual,

se aplicando a todo tipo de técnica que “produz” algo), é separada da atividade

moral a partir de uma distinção, que se tornou famosa, entre “ação” (πράξις) e

“produção” (ποίησις): os bens “produzidos” são externos às suas atividades, ao

passo que os bens das ações são internos.222

A diferenciação com as duas disposições restantes – sabedoria filosófica e

razão intuitiva – se dá a partir da caracterização da σοφία como uma junção entre

220 Gauthier & Jolif comentam a aparente contradição desta enumeração de cinco disposições com a tese de que só pode haver duas virtudes intelectuais, já que são duas as partes ou funções da alma racional. Aristóteles estaria aqui se referindo a uma opinião corrente (“admitamos que existam cinco disposições”), para depois reduzi-las a apenas duas (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 452 (tomo II)). 221 ARISTÓTELES, EN VI-3 [1139b25-30]. O próprio Aristóteles remete esta análise àquilo que é dito nos Segundos Analíticos. É preciso considerar que a indução não faz, ela própria, parte da ciência, mas da quinta disposição, que será analisada mais adiante pelo filósofo grego: a razão intuitiva ou inteligência. A junção da ciência com a razão intuitiva resultará na filosofia, que é a excelência do intelecto científico (ARISTÓTELES, EN VI-7 [1141a17]). Isso confirma o comentário feito por Gauthier & Jolif que citamos na nota anterior, pelo qual as cinco disposições que estão sendo analisadas acabarão remetendo apenas às duas virtudes da parte racional. 222 “Enquanto produzir tem uma finalidade diferente do próprio ato de produzir, o mesmo não ocorre com o agir, pois a finalidade da ação está na própria ação” (ARISTÓTELES, EN VI-5 [1140b6]). A arte e a razão prática também diferem por seus procedimentos, embora de forma mais sutil do que ocorreu no caso da ciência: o filósofo grego afirma que “a capacidade raciocinada de agir é diferente da capacidade raciocinada de produzir” (ARISTÓTELES, EN VI-4 [1140a3]). O termo utilizado aqui – µετά λογου – é mais amplo do que a deliberação, indicando um estado “refletido”, “raciocinado”, “apoiado em provas” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 459 (tomo II)). Como comentam os autores franceses, este termo pode se aplicar, por exemplo, à ciência – que não aceita deliberação -, e mesmo, em um sentido ainda mais amplo, à virtude moral de forma geral (ibidem, p. 459). Mais adiante, no entanto, o filósofo grego dará a entender que a arte também se baseia na deliberação – pois as coisas produzidas também são variáveis -, mas de uma maneira diferente da razão prática, devido ao fato, justamente, de seus objetos serem diferentes. No final das contas, a arte não será considerada sequer uma virtude (ARISTÓTELES, EN VI-5 [1140b22-25]). Este aspecto está diretamente relacionado ao fato da arte não se referir a “ações” nos sentido próprio do termo, pois nestas ultimas os bens são internos, e não externos. Aristóteles dá como exemplo desta diferença o fato de nas virtudes preferirmos o erro involuntário, enquanto na arte é o contrário. A arte não está, assim, ligada às virtudes morais. Isso não impede, no entanto, que ela também seja comandada pela phrónesis (ARISTOTE, 2004, p. 307, nota do tradutor). Zingano comenta que a diferença na aplicação da deliberação à arte e à ação moral possui uma base ontológica: no caso das técnicas, este processo parece possuir para Aristóteles um caráter ainda platônico, pelo qual a deliberação é necessária apenas devido a uma falha no conhecimento científico, enquanto a ação moral é ontologicamente indeterminada – em outras palavras, nesta última a deliberação estaria “de direto”, e nas atividades técnicas apenas “de fato” (ZINGANO, 2007, p. 126). É preciso considerar que, embora sejam diferentes, a arte pode ser considerada subordinada à razão prática, pois o uso daquilo que é produzido, em última instância, se insere dentro de alguma ação que é seu próprio fim (ROSS, 1995, p. 222).

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a intuição (νούς), que permite a determinação dos seus primeiros princípios, e a

ciência, que realiza demonstrações a partir destes princípios.223 Este tipo de

conhecimento seria superior à razão prática, pelo fato, sobretudo, de seus objetos

serem os mais elevados, enquanto os da phrónesis são humanos, e o homem não é

o que há de melhor no mundo; além disso – de forma relacionada – os objetos da

primeira são invariáveis, e os da segunda não.224 A distinção entre phrónesis e

sofia se dá, assim, pelo fato do domínio da primeira não ser o Bem ou o Mal em

geral, mas para o homem.225

A partir destas diferenciações, o estagirita chega a uma primeira definição

da razão prática: “uma capacidade verdadeira e raciocinada de agir no tocante às

coisas que são boas ou más para o homem”.226 Pierre Aubenque descreve de

forma bastante clara, a nosso ver, todo o processo que levou a esta conclusão:

segundo o comentador francês, Aristóteles estabelece primeiro que a prudência é

uma disposição (portanto não é ciência) que é prática (portanto não é arte). Ora,

esta definição ainda se aplica às virtudes de forma geral, o que leva o estagirita a

especificar que, enquanto as virtudes morais são disposições práticas concernentes

à escolha, a sabedoria prática é uma disposição prática que concerne a regra da

escolha (ou, como é em geral traduzido, “capacidade verdadeira e raciocinada de

agir”). Não se trata assim, como no caso das virtudes morais, de uma retidão da

ação, mas sim da correção do critério.227 A “verdade” da sabedoria prática seria,

portanto, a regra verdadeira.

Esta última definição, no entanto, ainda se aplicaria à sabedoria filosófica,

levando Aristóteles a realizar uma última especificação, estabelecendo, como

vimos, que os objetos da razão prática são o bem e o mal para o homem. Desta

forma, fica estabelecida a diferença especifica da prudência em relação às outras

disposições da alma pela qual possuímos a verdade, levando à definição que

223 “a sabedoria deve ser uma combinação da razão intuitiva com o conhecimento científico” (ARISTÓTELES, EN VI-5 [1140a27]). Aristóteles acrescentará mais adiante ([1141b3]) que esta intuição deve se referir daquilo que é mais elevado. O filósofo grego também se refere à determinação dos primeiros princípios como sendo fruto às vezes da indução, e às vezes da intuição – Gauthier & Jolif comentam, neste sentido, que a indução prepara a via para a intuição, ao reunir os dados relativos aos casos particulares, e assim o conhecimento dos princípios poder ser indiferentemente atribuída à indução (concluída pela intuição) ou à intuição (preparada pela indução) (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 490 (tomo II)). 224 ARISTÓTELES, EN VI-7 [1141a20-25]. 225 AUBENQUE, 2008, p. 62. 226 ARISTÓTELES, EN VI-5 [1140b1]. Na verdade, esta definição aparece logo antes da análise da sabedoria filosofia e da razão intuitiva, mas já leva em conta estas futuras conclusões. 227 AUBENQUE, 2008, p. 61.

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vimos acima, repetida por Aristóteles pouco depois: “uma capacidade verdadeira e

raciocinada de agir no que diz respeito às ações relacionadas com os bens

humanos”.228 Esta caracterização é apoiada na visão popular acerca do homem

sábio: “julga-se que seja característico de um homem dotado de sabedoria prática

ser capaz de deliberar bem acerca do que é bom e conveniente para ele, não sob

um aspecto particular (...), mas sobre aquelas que contribuem para a vida boa de

um modo geral”.229 A sabedoria prática aparece, assim, como a excelência no

deliberar acerca daquilo que é bom para o homem no decorrer de toda sua vida –

em suma, daquilo que é relativo à eudaimonia.

Esta primeira definição da phrónesis ainda enfatiza, claramente, a relação

meios-para-fins que vem sendo abordada desde o livro III, o que confirma a

caracterização da prudência como a “excelência na deliberação”. É preciso

considerar que não se trata, aqui, de uma deliberação qualquer, mas aquela que

porta sobre o que é bom ou mau para “o” homem, ou seja, aquele “bem

verdadeiro” que, como vimos, é enxergado pelo homem virtuoso. Daí a idéia,

como veremos mais adiante, de que a relação entre as virtudes morais e a

phrónesis é dupla: as primeiras, por um lado, precisam da segunda para se

tornarem próprias, mas, por outro lado, a segunda só pode operar a partir das

primeiras, pois são estas que visam o verdadeiro bem que é o objeto da sabedoria

prática.230

Esta caracterização inicial da phrónesis não esclarece muita coisa sobre a

dimensão prescritiva que havia sido anunciada no início do livro VI. A seqüência

da exposição de Aristóteles, no entanto, trará alguns elementos mais úteis neste

sentido: após a definição que vimos acima, o filósofo grego passa a analisar uma

série de virtudes intelectuais que estariam, de alguma forma, implicadas na

sabedoria prática, de forma relacionada à apreensão dos particulares.231 De fato, a

228 ARISTÓTELES, EN VI-5 [1140b20]. Bodëus prefere “estado verdadeiro” (état vrai) a “capacidade”. 229 ARISTÓTELES, EN VI-5 [1140a27]. Mais adiante, teremos: “delibera bem, no sentido absoluto da palavra, o homem que visa calculadamente ao que há de melhor para os homens, naquilo que é atingível pela ação” (ibidem, VI-7 [1141b12]). 230 Neste sentido é que, como comenta Ross, a “verdade” do intelecto calculativo é a verdade sobre “os meios que levam à satisfação do desejo reto” (ROSS, 1995, p. 222, tradução nossa). A correção do critério visado pela sabedoria prática, assim, pressupõe que o bem visado seja o bem verdadeiro, estabelecido pelo homem dotado de virtude moral. 231 Como comentam Gauthier & Jolif, a idéia aqui, assim como na lista anterior (as cinco disposições ligadas à “verdade”), parece ser a de mostrar que as principais virtudes ou disposições conhecidas na época podem ser reduzidas a apenas duas, correspondendo às duas partes ou

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comparação anterior com a sabedoria filosófica havia levado Aristóteles a

estabelecer esta importante característica da prudência:232 “essa espécie de

sabedoria não se relaciona apenas com o universal mas também com os casos

particulares, que se tornam conhecidos pela experiência”; “o erro na deliberação

pode ser tanto em relação ao universal como ao particular”; “a sabedoria prática se

relaciona com o fato particular imediato, que é objeto não de conhecimento

científico mas de percepção”.233 Aqui começa a se delinear de forma mais clara

esta dupla dimensão da phrónesis aristotélica, que se refere ao universal e ao

particular, e podemos adivinhar que o caráter “prescritivo” que estamos

investigando remeterá, justamente, à relação entre estes dois elementos.

Como dissemos, para analisar como se dá esta apreensão o filósofo grego

menciona uma série de virtudes conhecidas em sua época, tanto na cultura popular

quanto no meio intelectual: o “bom conselho” (eu)bouli/a), 234 a “perspicácia”

(eu)stoixi/a), 235 a “vivacidade de espírito” (a)gxi/noia), o “bom senso” ou

“discernimento” (γνώµη) e a “inteligência” ou “compreensão” (σύνεσις).236 As

mais importantes, que afetam de forma direta o que estamos discutindo, são a

primeira, o bom conselho ou eu)bouli/a, e a última, a inteligência ou σύνεσις.

O bom conselho pode ser entendido como uma correção ou habilidade na

deliberação, e neste sentido praticamente se confunde com a prudência. Esta

habilidade permite, por exemplo, aos sábios governarem a cidade, mas também a

funções do intelecto: a sabedoria filosófica e a prática (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 507-509 (tomo II)). Esta nova lista remeteria, direta ou indiretamente, à classificação da academia platônica. 232 O filósofo grego começa distinguindo aquilo que poderíamos chamar de “níveis de particularidade”, a partir da diferença entre razão prática individual (que é como chamamos comumente este tipo de conhecimento) e a política. Esta última, de fato, também exige uma excelência na deliberação acerca daquilo que é bom para os homens, a partir da administração da cidade. Já havíamos comentado como para Aristóteles a ética e a política estão intrinsecamente relacionados. O estagirita afirma, então, que consideramos possuidor de sabedoria prática o indivíduo que sabe o que é bom para si mesmo, mas talvez o bem particular de cada um não possa existir sem alguma forma de governo (ARISTÓTELES, EN VI-8 [1141b22-1142a11]). 233 ARISTÓTELES, EN VI-8 [1142a13]; ibidem, VI-8 [1142a20]; ibidem, VI-8 [1142a27]. 234 Os tradutores franceses – Bodéüs, Gauthier & Jolif – adotam esta expressão, enquanto a tradução em português que estamos usando e a inglesa de Oxford preferem “excelência na deliberação”. Adotamos aqui a versão francesa por considerar que ela deixa mais claro que esta disposição não se confunde com a razão prática. 235 Aqui os franceses discordam, pois Bodéüs usa a expressão “intuition juste”. A versão em português e a de Oxford traduzem εύστοχία por “habilidade de fazer conjecturas”. Preferimos adotar a versão de Gauthier & Jolif. 236 Seguimos mais uma vez os franceses. Na tradução em português “vivacidade intelectual”, na de Oxford “readiness of mind”.

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si mesmos.237 Aristóteles procura mostra que esta capacidade difere da ciência

(por envolver cálculo e investigação), da perspicácia (pois esta – que pode ser

entendida como a habilidade em atingir o objetivo visado, aproveitando a ocasião

propícia -, não pressupõe raciocínio, e, além disso, é rápida demais), e da

vivacidade de espírito (pois esta pode ser entendida como uma forma de

perspicácia rápida). Podemos assim considerar que bom conselho se liga de forma

mais direta à phrónesis, sendo uma excelência no raciocínio ou reflexão (διάνοια),

ou seja, uma forma de correção da deliberação. O filósofo grego enfatiza este

aspecto, comentando que não se deve confundi-la com uma correção de

conhecimento ou de opinião.238 Para compreender melhor em que consistira esta

“correção”, Aristóteles analisa seus objetos, concluindo que esta excelência deve

ser entendida como uma correção quanto ao fim, ao modo e a ao tempo gasto na

deliberação.239 Podemos nos perguntar, a partir desta definição, qual seria a

diferença entre o bom conselho e a sabedoria prática propriamente dita. Bodéüs

faz uma interessante observação neste sentido, considerando que o bom conselho

seria o equivalente da phrónesis nas questões relativas a fins específicos, sendo

que as duas coincidem, assim, quando se referem ao fim absoluto ou supremo.240

Aristóteles trata então da inteligência ou compreensão (σύνεσις),

237 Neste sentido, ela também possui o sentido de “resolução feliz” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 511 (tomo II)). 238 ARISTÓTELES, EN VI-9 [1142b8]. 239 ARISTÓTELES, EN VI-9 [1142b27]. A ênfase no “modo” é interessante por deixar claro que não basta que o fim seja apropriado, ou seja, a doutrina aristotélica não prega que “o fim justifica os meios”. O filósofo grego faz uma comparação com o silogismo no qual uma premissa falsa pode levar a uma conclusão correta (ibidem, VI-9 [1142b22]). Desta forma, não há excelência na deliberação se alcançamos o objetivo correto pelo meio incorreto. A correção quanto ao “fim” também levanta questões, pois parece haver, aqui, uma contradição com a doutrina aristotélica de que a deliberação se refere somente aos meios. Este aspecto é reforçado pela caracterização do bom conselho que vem logo a seguir: “a excelência na deliberação será a correção na deliberação do que conduz ao fim cuja concepção [apprehension] verdadeira constitui a sabedoria prática” (ibidem, VI-9 [1142b33]). Vimos anteriormente que o fim visado pelo desejo não deixa de ser “racionalizado” para Aristóteles, ainda que não determinado diretamente pela razão. Este trecho específico não parece fazer menção a este aspecto, mas alguns comentadores consideram que é possível elaborar interpretações que evitam a contradição. Gauthier & Jolif, por exemplo, sugerem que o relativo “cujo” (ού) se refere à toda a frase, e não apenas a τέλος, permitindo que a afirmação seja entendida como “a prudência é a apreensão (aperception) verdadeira daquilo que é útil para o fim” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 518 (tomo II)). Já para Bodéüs o filósofo grego não diz nesta frase que deliberamos sobre o fim, mas sim que a phrónesis é uma crença verdadeira acerca do fim, implicando, assim, na verdade em sua apreensão (ARISTOTE, 2004, p. 327 (nota do tradutor Bodëus)). Esta última interpretação, a nosso ver, está em acordo com o processo de “racionalização dos fins” que mencionamos acima. Como comentaremos mais abaixo, parece-nos que aquilo que caracteriza a sabedoria prática é o fim visado ser a própria eudaimonia, e, neste nível, praticamente tudo pode ser considerado meio, e, portanto, sujeito à deliberação, em função de sua relação com o sumo bem. Voltaremos a este ponto mais adiante. 240 ARISTOTE, 2004, p. 327 (nota do tradutor Bodëus).

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diretamente ligada à apreensão dos particulares: para estabelecer este aspecto, o

filósofo grego começa criticando a concepção platônica da σύνεσις: “a

inteligência não se relaciona com as coisas eternas e imutáveis, nem com qualquer

outra que vem a ser, mas aquelas sobre as quais podemos ter dúvidas e deliberar.

Por conseguinte, os seus objetos são os mesmos que os da sabedoria prática”.241

No entanto, haveria uma diferença fundamental entre phónesis e inteligência: “a

sabedoria prática emite ordens, já que seu fim é o que se deve e o que não se deve

fazer, enquanto a inteligência limita-se a julgar”.242 O caráter prescritivo da razão

prática aparece aqui, mais uma vez, de maneira explícita, e, para compreendê-lo, é

preciso analisar sua diferença com a inteligência: como comentam, mais uma vez,

Gauthier & Jolif, existe um certo desacordo entre os comentadores sobre a

prioridade de uma capacidade sobre a outra – Aristóteles não deixa claro o que

vem antes ou depois -, e os dois autores franceses, junto com Tomás de Aquino,

consideram que é o julgamento da inteligência que antecede o caráter imperativo

da phrónesis. Como havia ocorrido anteriormente com a noção de προαίρεσις

(“escolha”, “decisão”), que, como vimos, é fruto da junção do juízo (γνώµη) e do

desejo, o julgamento (κρίσις), puramente intelectual, também só se tornaria

“imperativo” a partir da intervenção do desejo retificado pela virtude moral, ou

seja, o desejo racionalizado, a βούλησις. 243 Descrita desta forma, a relação

inteligência-phrónesis parece ser similar à juízo-decisão, mas se dando em um

outro nível: de fato, esta última correspondia ao momento em que surge o desejo

racional ou βούλησις, enquanto que na primeira este já se encontra, por assim

dizer, formado, o que significa que já houve o processo de racionalização dos fins

que comentamos anteriormente. Daí, como vimos, a caracterização da phrónesis

como uma excelência da deliberação “acerca daquilo que é bom para o homem no

decorrer de toda sua vida”, ou seja, em relação à eudaimonia.

Tudo se passa, a nosso ver, como se a junção intelecto-desejo se sucedesse

em dois níveis: em um primeiro momento, isto ocorre em relação a objetivos mais

241 ARISTÓTELES, EN VI-10 [1143a6]. Como comenta Aubenque, “a σύνεσις não designa a inteligência do teólogo, nem mesmo a do físico, mas antes a capacidade de analisar e discernir as situações concretas” (AUBENQUE, 2008, p. 241). 242 ARISTÓTELES, EN VI-10 [1143a8]. Na tradução de Oxford “issues commands”, na de Bodéüs “est prescritive”. 243 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 529-532 (tomo II). Cf. AUBENQUE, 2008, p. 241: “a inteligência tem, pois, o mesmo domínio da prudência (ou seja, o que devém enquanto depende de nós) e dela difere somente pelo fato de que é crítica, enquanto a prudência é normativa (έπιτακτική)”.

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simples e imediatos do dia-a-dia. A racionalização do desejo que resulta deste tipo

de deliberação, no entanto, faz com que passemos a enxergar “mais longe”, por

assim dizer (por exemplo, a partir da estruturação desses fins mais imediatos entre

si, pelo reconhecimento de que estes são meios para outros fins etc), e com isso o

bem visado passa a ser, em última instância, a própria eudaimonia. Então, neste

segundo nível, ocorre um outro julgamento que, juntando-se com o desejo já

racionalizado, resulta na noção de sabedoria prática. Daí a excelência na

deliberação (a boa escolha) ter como objeto não aspectos particulares e isolados,

mas aquilo que contribui para a vida boa como um todo.244 Daí, da mesma forma,

a idéia que só podemos falar de sabedoria prática quando as virtudes morais já

estão operantes, como já comentamos.245

Este aspecto possui interessantes conseqüências, a nosso ver, acerca da

questão de os fins serem ou não ser estabelecidos pela razão. Havíamos

argumentado que o encadeamento dos diferentes objetivos entre si faz com que,

em última instância, todos, com exceção da eudaimonia, possam ser vistos como

meios para outros bens. Isso significa dizer que, quando o fim visado é a própria

eudaimonia, então tudo pode objeto de deliberação. É exatamente isso o que

ocorreria na sabedoria prática. Daí, justamente, a idéia de que a prudência se

refere mesmo àquilo que tomamos usualmente como fins, pois, neste nível, estes

podem ser apreendidos em função de sua relação com o sumo bem.246

Após a discussão sobre as disposições listadas acima – todas, volta a

244 ARISTÓTELES, EN VI-5 [1140a27]. 245 Após a inteligência, Aristóteles aborda a última virtude ou faculdade intelectual ligada à phrónesis: o bom senso ou discernimento, γνώµη. Ele é compreendido com a reta discriminação do que é honesto ou equitativo (ARISTÓTELES, EN VI-10 [1143a19]) (nossa tradução em português traduz γνώµη como “discernimento”, os franceses como “bom senso” e a de Oxford como “judgement”). Segundo, mais uma vez, Gauthier & Jolif, este termo designa a aptidão de reconhecer uma coisa pelo que ela realmente é (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 533 (tomo II)). Neste sentido a γνώµη pode ser considerada, a nosso ver, um caso particular da σύνεσις, pois esta é um julgamento geral sobre as ações, enquanto a primeira porta somente sobre as ações equitáveis. 246 Podemos nos perguntar em que medida a diferença entre as concepções “inclusiva” e “exclusiva” da eudaimonia, que mencionamos na parte 1, afeta este aspecto. Faria sentido dizer que um fim de segunda ordem pode ser diretamente “visado”, de forma que todos os outros bens se tornem meios para ele? A nosso ver sim, pois senão não o chamaríamos de “fim”. Ainda que a eudaimonia possua uma unidade apenas formal, enquanto um conjunto harmonioso ou um sistema de prioridades de bens inter-relacionados, podemos mesmo assim considerar que esta harmonização e hierarquização são “buscadas”, tornando os fins substantivos sujeitos à deliberação, em função de sua contribuição para esta harmonização. Além disso, mesmo se considerarmos que a própria eudaimonia não pode ser diretamente visada, os bens a que se refere a sabedoria prática com certeza são mais gerais do que nossos objetivos do dia a dia, e, portanto, podemos ainda considerar que a deliberação da prudência porta sobre praticamente todos os fins, apreendidos como meios para estes bens mais gerais.

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insistir, relacionadas com coisas imediatas, ou seja, particulares247 -, o filósofo

grego considera terminada sua análise sobre o que são as sabedorias filosófica e

prática. Podemos ficar um pouco decepcionados, pois o que foi feito, basicamente,

foi mostrar como as diversas virtudes intelectuais conhecidas na época se

incorporam a estas duas. No decorrer deste processo, pontos importantes foram

estabelecidos acerca da phrónesis, como uma definição formal a partir de sua

diferença específica, e a relação com o particularismo. Mas podemos considerar

que a questão central que estamos analisando - o caráter prescritivo da razão

prática – ainda não foi respondida de forma clara, embora, como vimos, ela pareça

estar de alguma forma ligada à apreensão dos particulares.

O livro VI, no entanto, não se encerra quando Aristóteles diz ter concluído

sua descrição das duas formas de sabedoria. Há ainda um trecho final no qual o

autor se propõe a discutir o problema da “utilidade” da razão prática. Este ponto

levará ao desenvolvimento de algumas questões importantes para a ética

aristotélica, que podem nos ajudar a esclarecer o que estamos investigando.

O questionamento acerca da utilidade da sabedoria prática se dá a partir de

dois pontos: de fato, mesmo que se tenha demonstrado que a phrónesis é a

“disposição da mente que se ocupa com as coisas justas, boas e nobres para o

homem”, podemos ainda nos indagar, primeiro, se este conhecimento nos torna

melhores – afinal, conhecer a arte da medicina não nos faz mais saudáveis -, e,

segundo, se a prudência possui alguma utilidade para as pessoas que já possuem a

virtude moral. Em suma, pode parecer, à primeira vista, que tanto as pessoas

viciosas quanto as virtuosas não precisam da razão prática.248

A resposta a estas questões leva Aristóteles a esclarecer, como dissemos,

alguns aspectos importantes de sua doutrina, já anunciados anteriormente: o autor

começa considerando que os efeitos da sabedoria (especulativa e prática) não

devem ser vistos com aqueles que existem entre a medicina e a saúde, mas sim

247 Cada uma delas exerceria uma função diferente, por assim dizer, dentro desta apreensão – a razão intuitiva requerida pelo raciocínio prático, por exemplo, apreende o fato último e invariável, ou seja, a “premissa menor” (ARISTÓTELES, EN VI-11 [1143b3]). Reencontramos aqui a idéia de que o objetivo maior de Aristóteles, no decorrer desta exposição, é mostrar que todas estas disposições, conhecidas na época, estão contidas nas sabedorias filosófica e prática. A cinco últimas, como havíamos comentado, consistiriam em formas diferentes de aprender o particular, relacionando-se, assim, diretamente à phrónesis. O caráter prescritivo desta última, no entanto, se deve à relação deste particular com uma premissa universal, que nos cabe, ainda, analisar. 248 Outro problema se dá na suposta inferioridade da sabedoria prática em relação à filosófica. Para todo este trecho: ARISTÓTELES, EN VI-12 [1143b21-33].

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entre saúde e saúde.249 Como comentam Gauthier & Jolif, o estagiritia estaria

dizendo, aqui, que a relação entre sabedoria e felicidade não é eficiente e

transitiva, mas sim formal e imanente.250 Isto se deveria o fato, justamente, de a

sabedoria estar implicada na própria essência da felicidade.251 Reencontramos,

aqui, o aspecto central que havíamos comentado ao abordar o argumento do

érgon: este último não deve ser entendido com um meio de atingir uma concepção

de felicidade pré-estabelecida, mas sim como uma reflexão sobre a própria

natureza da eudaimonia. Daí, justamente, as virtudes (tanto éticas quanto

dianoéticas, pois ambas são ligadas ao bom exercício da razão), serem

constitutivas da felicidade, e não meros instrumentos. Como havíamos visto, estas

virtudes são buscadas por si mesmas, embora se possa ainda dizer que são

valorizadas em função da felicidade, sendo assim a eudaimonia o único bem

perfeito e acabado.252

Após responder à questão sobre a utilidade da razão prática a partir da

relação formal entre virtude e eudaimonia, o filósofo grego começa a preparar o

terreno para a noção de “virtude própria”, que mencionamos ao tratar da mediania

das paixões formada pelos hábitos. O autor retoma então a distinção entre a ação

que apenas parece, externamente, ser virtuosa, e aquela que possui, de fato, a

disposição interna adequada:253 “para alguém ser bom é preciso ter uma certa

disposição quando pratica esses atos, isto é, a pessoa deve praticá-los em

decorrência da escolha e visando os próprios atos”.254 Percebe-se, assim, como

algo foi acrescentado desde que este ponto foi abordado no livro II: antes tratava-

se apenas da diferença entre a mera imitação externa do ato e as ações motivadas,

internamente, pelas disposições adequadas. Agora é acrescentada a noção de

escolha, ou seja, de deliberação, portanto de responsabilidade moral. A idéia

249 ARISTÓTELES, EN VI-12 [1144a3]. 250 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 547 (tomo II). Cf. HARDIE, 1968, p. 235: “philosophic wisdom, as part of the complete excellence of man, is not indeed an efficient, but a formal cause of happiness”. 251 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 545 (tomo II). Bodéüs considera que a relação saúde-saúde não é de causalidade formal, mas sim final (ARISTOTE, 2004, p. 336 (nota do tradutor Bodëus)). Mesmo nesta interpretação, a nosso ver, é mantida a relação com a essência (já que é esta que estabelece o télos). 252 Não por acaso, o estagirita volta a mencionar o argumento do érgon logo após o trecho que citamos acima, considerando que “a função de um homem somente é perfeita quando está de acordo com a sabedoria prática e com a virtude moral” (ARISTÓTELES, EN VI-12 [1144a8]). 253 Como vimos, esta distinção havia sido feita no livro II, quando foi discutido como a mera repetição de determinadas ações, pelo hábito, acaba criando as disposições adequadas. 254 ARISTÓTELES, EN VI-12 [1144a20].

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parece ser, a nosso ver, a de que há vários níveis de “propriedade” do ato moral:

no início temos sua imitação externa, depois o estado disposicional interno (fruto

do hábito), e, finalmente, a deliberação – ou seja, a capacidade de nos darmos

razões – que lhe confere um último grau de propriedade, por assim dizer. A partir

daí, Aristóteles volta a falar, agora de forma mais conclusiva, da relação dupla que

existe entre a disposição virtuosa e a deliberação: “esta [a virtude moral] faz com

que nosso objetivo seja certo, e a sabedoria prática, com que escolhamos os meios

certos”.255 O filósofo grego chama de “habilidade” (δεινότης) o “olho da alma”

(ψυχής o)/mma), que só alcança o pleno desenvolvimento com a virtude moral, pois

esta lhe mostra o fim certo. Se o fim for mau, a habilidade se torna mera astúcia.

Só se poderá falar de sabedoria prática, assim, se o fim for nobre (o que

corresponde à noção de “bem verdadeiro” que vimos mais atrás), e, portanto, a

phrónesis depende da virtude moral – daí, justamente, a importância do hábito na

formação de nossas disposições de acordo com o meio-termo.256

Aristóteles procurará agora mostrar o outro lado da questão, ou seja, como

a própria disposição moral também precisa da sabedoria prática para se tornar

“própria”. O autor retoma, então, a noção de virtude natural (inicialmente, a nosso

ver, em seu sentido mais estrito, de disposição hereditária, e no decorrer do texto

percebe-se que ele começa a falar da “segunda natureza” prática, que são as

disposições geradas pelo hábito), para mostrar que estão são insuficientes se não

forem acompanhadas pela razão, podendo até se tornar nocivas:

Com efeito, até as crianças e os animais selvagens têm as disposições morais naturais para estas qualidades, todavia quando elas não estão acompanhadas da razão, são evidentemente nocivas; apenas nós parecemos perceber que elas podem levar-nos para o mau caminho, da mesma forma que um corpo robusto, porém destituído de visão, pode cair desastrosamente em razão de esta lhe faltar; porém, depois de ter adquirido a razão, haverá uma diferença no seu modo de agir e sua disposição, e, apesar de continuar semelhante ao que era, passará a ser virtude no sentido estrito.257 Chega-se, assim, à noção de virtude própria que só pode ser obtida através

da sabedoria prática.258 Esta conclusão leva ao desenvolvimento de vários pontos

importantes, como, por exemplo, a interdependência das virtudes: para o estagirita,

255 ARISTÓTELES, EN VI-12 [1144a9]. 256 Como diz Aubenque, que já havíamos citado em relação a este ponto na primeira parte, “a habilidade enquanto tal é indiferente à qualidade do fim”, e, assim, a prudência pode ser vista como “a habilidade do virtuoso” (AUBENQUE, 2008, p. 101). 257 ARISTÓTELES, EN VI-13 [1144b8]. 258 ARISTÓTELES, EN VI-13 [1144b17].

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de fato, quem possui a phrónesis as possui todas, e, inversamente, a posse de

todas as virtudes (ainda que não no sentido próprio) é uma pré-condição para a

operabilidade da razão prática.259 Este ponto é importante para nossa tese, pois

mostra que o fato de haver várias virtudes éticas substantivas não impede que

todas sejam entendidas a partir da harmonização de nossas inclinações com a

razão.

Aristóteles também discute mais pormenorizadamente a maneira pela qual

a sabedoria prática está implicada nas virtudes, afirmando que estas não são

apenas disposições que “concordam” com a reta razão, mas sim em que está

presente a reta razão. Esta diferença é estabelecida a partir dos termos µετά

(“segundo”) ou κατά (“com”, “acompanhada de”). Como comenta Zingano

(citando outros autores, como Grant e Tomás de Aquino), esta diferença é

necessária para indicar que a sabedoria prática é de fato necessária para uma

pessoa ser virtuosa, pois seria possível agir “segundo a razão” ser possuir

efetivamente a prudência.260 Isso significa que esta deve ser um princípio interno

da ação, o que permitirá uma aproximação com a conhecida distinção kantiana

entre agir “por dever” e “conforme ao dever”.

Outro ponto importante é a diferença entre a doutrina aristotélica e o

socratismo, que identifica virtude e ciência. O estagirita afirma que Sócrates tinha

em parte razão, pois as virtudes implicam a sabedoria prática, mas, no entanto,

não se identificam com ela; ou seja, elas envolvem, de fato, uma regra e um

princípio racional, mas sem consistir em regras e princípios racionais. Como

havíamos mencionado anteriormente, a proposta de Aristóteles parece incorporar

as principais visões acerca da aquisição das virtudes em sua época: o naturalismo

aristocrático, o culturalismo humanista dos sofistas, e o intelectualismo de

Sócrates. Neste sentido, a visão do estagirita pode ser entendida como um

“intelectualismo moderado”, onde as virtudes não se confundem com o

conhecimento, mas implicam, ainda assim, uma atividade racional. Este aspecto

remete ao dualismo da natureza humana no qual se baseia a ética aristotélica:

podemos considerar que esta última consiste, assim, em um aprimoramento do

259 ARISTÓTELES, EN VI-13 [1144b35]. Para Zingano, a razão prática não pressupõe todas as virtudes, mas apenas um bom número delas (ZINGANO, 2007, p. 424). Esta interdependência se deve, por um lado, ao fato de que as virtudes só adquirem seu sentido próprio através da razão prática, e esta, por sua, vez, por consistir em uma deliberação sobre os fins verdadeiramente bons, depende das virtudes morais, pois são elas que apontam para estes fins. 260 ZINGANO, 2007, p. 365-366.

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irracional pelo racional. Desta forma, as virtudes morais pertencem à parte

irracional de nossa alma, mas quando esta “ouve” a razão - daí, portanto, o

elemento intelectualista (racional), mas moderado pela presença do irracional.

Ainda nos falta esclarecer, justamente, em que consiste esse princípio

racional que estaria implicado nas virtudes. Ao que tudo indica, este corresponde

à “regra reta” tantas vezes mencionada durante a Ética a Nicômaco, assim como

aos “ditames da razão” mencionados no início do livro VI. Podemos considerar

que, até o final do livro VI, esta pergunta ainda não foi respondida de forma clara.

No entanto, o filósofo grego forneceu alguns elementos que, com a ajuda dos

comentadores, podem nos permitir construir uma resposta.

O primeiro destes elementos é o chamado silogismo prático, ao qual

Aristóteles faz referência no livro VI, por exemplo em [1144a31].261 O filósofo

grego não chega a dar um tratamento esquemático a este tema, mencionando-o, de

forma mais relevante, em três passagens de sua obra: De Motu 7 [701a1], De

Anima III 11 [434a16-22], e na própria Ética a Nicômaco no livro VII [1147a25-

1147b15], quando aborda o problema da acrasia. Este último trecho é, a nosso ver,

o mais significativo. Nele, Aristóteles descreve as duas principais premissas – a

maior e a menor - como se referindo, respectivamente, a algo universal e a algo

particular: “uma premissa do silogismo é universal, e a outra diz respeito a fatos

particulares, e com relação a esta última nos deparamos com algo que é da esfera

da percepção”.262 Mais adiante, indica que a conclusão do silogismo deve ser

considerada a própria ação, que se seguiria imediatamente, assim, das premissas

anteriores.263 Como já havíamos comentado, esta relação universal-particular

parece estar diretamente ligada à prescritividade da razão prática aristotélica, que

estamos, justamente, investigando. De fato, o exemplo de silogismo dado no

trecho citado acima contém, claramente, esta dimensão: “tudo o que é doce deve

ser provado” (premissa maior), “isto é doce” (premissa menor), o que levaria

como conclusão à ação de provar o doce.264 Como diz Aubenque, a razão prática

261 “Com efeito, os silogismos relacionados com os atos a praticar começam assim: ‘visto que o fim, ou seja, o que é melhor, é desta natureza...’”. 262 ARISTÓTELES, EN VII-3 [1147a26]. 263 “No caso das premissas de ordem prática, ela [a alma] agirá imediatamente (...) o homem capaz de agir e que não é impedido deverá proceder imediatamente de acordo com a conclusão” (ARISTÓTELES, EN VII-3 [1147a28-32]). 264 ARISTÓTELES, EN VII-3 [1147a29].

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une as premissas maior e menor através do dever.265 Para compreender esta

dimensão, é preciso, assim, analisar como se dá esta união.

Segundo Gauthier & Jolif, a premissa maior é a representação de um

objeto de ação considerado “bom”, e é assim apresentado à faculdade desejante. A

premissa menor é fornecida pela percepção de um objeto particular que pode ser

incluído na categoria universal da premissa maior.266 Isso fica claro no exemplo

dado pelo próprio Aristóteles: o que é doce deve ser provado, isto é um doce,

portanto... A premissa maior, assim, parece estabelecer uma noção de “dever” a

partir de uma concepção de algo como sendo “bom”. Este aspecto fica

particularmente claro em De Motu Animalum, onde é dito que a primeira premissa

fornece o bem – preciso de uma roupa, este é o bem a ser buscado – e a menor o

“possível”, ou seja, o manto é uma roupa.267 Esta descrição do silogismo prático

torna mais fácil compreender sua relação com o processo deliberativo de meios-

para–fins. Podemos considerar que o termo médio estabelece um objetivo

imediato inserindo-o dentro de um bem maior. Este objetivo imediato pode ser

visto tanto como o resultado da deliberação – preciso de uma roupa, o que posso

fazer para conseguí-la -,268 tanto como aquilo que dá início à deliberação: preciso

de uma roupa de forma geral, este manto é uma roupa, então preciso deste manto,

como obtê-lo? Como dissemos anteriormente, a relação entre meios e fins é

complexa, pois, com exceção da eudaimonia, todo fim também pode ser meio, e,

assim, a relação entre os eixos universal-particular e meio-fim também é

complexa. Mesmo a premissa universal pode ser fruto de uma deliberação – a

máxima “preciso de uma roupa” pode ser estabelecida a partir de um objetivo

maior, como, por exemplo, se proteger do frio.

Devido a esta forte ligação com a relação meios-para-fins, podemos

considerar que o silogismo prático não chega, realmente, a acrescentar nenhuma

265 AUBENQUE, 2008, p. 230 (citando J. Walter). 266 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 610 (tomo II). Cf. HARDIE, 1968, p. 276: “the universal premiss is a rule stating that everything of a certain sort is good; the particular premiss states that here is something of that sort”. Em outra passagem, Hardie comenta que a premissa maior expressa um valor, enquanto a menor expressa um fato (ibidem, p. 250). Ver também Aubenque: “a premissa maior exprime um princípio geral (por exemplo, a temperança é uma virtude), a premissa menor subsume o conceito de tal ato particular à maior (este é um ato de temperança), a conclusão exprime a decisão de cumprir este ato” (AUBENQUE, 2008, p. 224). 267 ARISTÓTELES, MA 7 [701a19-24]. 268 Ou seja, o objetivo imediato se inseriria, neste caso, como um meio para atingir o bem maior - havíamos visto, ao falar da deliberação, que esta se encerra com o estabelecimento de um meio que esteja ao nosso alcance.

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informação relevante sobre a prescritividade da razão prática. Seu principal mérito

consiste apenas em deixar mais claro que esta dimensão está inserida no processo

deliberativo. Como diz Zingano, a deliberação não pode ser reduzida a um

silogismo (pois não pode ter a forma de uma demonstração, devido às teses

ontológicas ligadas à indeterminação da ação), mas, por consistir em um

procedimento racional, ela precisa poder ser apresentada de forma inferencial.269

Seguindo a mesma linha, Aubenque considera o silogismo como uma

reconstrução abstrata do ato terminal de decisão, que mascara a deliberação que

está por trás.270 Invertendo um pouco esta colocação, podemos considerar, como

dissemos acima, que a principal vantagem do silogismo consiste em tornar mais

explícito o eixo universal-particular, e, portanto, a dimensão prescritiva que está

implicada no procedimento da razão prática. Este aspecto, no entanto, não se opõe

de forma alguma ao eixo meio-fim, mas, ao contrário, está diretamente ligado a

ele, como vimos: a premissa universal pode, grosso modo, ser relacionada à

colocação de um bem, o que gera um “dever” ligado à obtenção deste fim (desejo

emagrecer, portanto “devo” evitar doces; desejo ser atleta, portanto “devo” me

exercitar etc). Colocado esta forma, o caráter prescritivo da razão prática

aristotélica se assemelha àquilo que Kant chamará de imperativo hipotético

assertórico-prático, relativo à escolha dos meios para se atingir a felicidade,

consistindo, assim, em preceitos de prudência, e não possuindo, para o filósofo

alemão, o valor moral dos imperativos categóricos.271

Esta caracterização instrumental da razão prática não parece condizer, no

entanto, com uma série de elementos contidos na ética aristotélica, que abordamos

no decorrer deste trabalho. Vamos relembrar, aqui, os mais significativos: em

primeiro lugar, o argumento do érgon - vimos, de fato, que este não consiste em

uma reflexão sobre “como” atingir uma concepção de felicidade já pré-

estabelecida, mas sim em uma reflexão sobre a própria natureza da eudaimonia.

Conforme comentamos no primeiro capítulo, Aristóteles parece descrever duas

concepções diferentes de “bem”, uma relativa aos fins colocados por nossos

desejos, e outra relativa ao bom exercício daquilo que é peculiar ao homem, ou

seja, a racionalidade. A idéia parece ser, assim, que a primeira concepção precisa

269 ZINGANO, 2007, p. 287. 270 AUBENQUE, 2008, p. 224. 271 KANT, FMC 4:414-416.

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ser complementada pela segunda: a felicidade está necessariamente ligada a

nossos desejos, mas existem diferentes “níveis”, por assim dizer, de felicidade. A

verdadeira – a eudaimonia – só ocorrerá se estes desejos ouvirem a razão.

Percebe-se claramente como a relação que é estabelecida aqui não é, de forma

alguma, instrumental. Se o desejo “ouvisse” apenas no sentido de consultar a

razão sobre os melhores meios de atingir determinado fim, ele permaneceria

fundamentalmente o mesmo. Ora, a proposta de Aristóteles, claramente, consiste

em uma transformação do desejo pela racionalidade. Esta transformação é

necessária, a nossa ver, devido à relação intrínseca razão-moralidade que foi

estabelecida no argumento do érgon: o homem só estará exercendo devidamente

sua função se nossas ações estiverem de acordo com nossa alma racional, e, como

a causa eficiente destas ações é o desejo, é preciso que este se harmonize com

aquela.

O processo pelo qual se dá esta harmonização, como vimos, é complexo, e

podemos identificar três etapas principais: primeiro, a formação de estados

disposicionais virtuosos através do hábito, que possuem como diferença específica

o meio-termo, pelo fato, justamente, da mediania corresponder a uma regra

determinada “por um princípio racional próprio dotado do homem de sabedoria

prática”.272 A segunda etapa corresponde ao processo deliberativo de meios-para-

fins envolvendo a proiarésis, que leva propriamente à formação da boulésis ou

desejo racional. Finalmente, a terceira etapa ocorre quando os dois estágios

anteriores viabilizaram a operabilidade da phrónesis ou razão prática: as virtudes

morais tornam possível ao homem virtuoso enxergar o “verdadeiro bem”, e a

deliberação feita a partir deste fim supremo não é mais uma simples habilidade,

mas sim sabedoria. Esta, por sua vez, permite às virtudes morais completarem seu

processo de formação e se tornarem próprias, ao serem acompanhadas da reta

razão.

Todo este processo, que se inicia no argumento do érgon e culmina na

noção de sabedoria prática, e que tentamos descrever durante nosso trabalho,

deixa claro que a relação razão-desejo não é instrumental. Podemos considerar

que a ênfase de Aristóteles nesta dimensão da deliberação se deve, sobretudo, ao

fato de que o fim precisa necessariamente ser colocado pelo desejo. Vimos, no

272 ARISTÓTELES, EN II-6 [1106b36]. Como diz Hardie, as virtudes morais, adquiridas pelo hábito, “involve conformity to rational principles” (HARDIE, 1968, p. 101).

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entanto, que a partir desse caráter aparentemente instrumental a parte irracional de

nossa alma é levada a “ouvir” a razão, e é por este aprimoramento que se formam

as virtudes morais. Se a relação desejo-razão fosse apenas de meios-para-fins, não

faria sentido, portanto, falar de uma ética ou uma moralidade (ou, pelo menos, não

de uma ética racionalista, como é o caso da de Aristóteles).

Podemos assim considerar que aquilo que é “ouvido” pela parte irracional

é algum elemento intrínseco à própria racionalidade. Ao que tudo indica, este

elemento seria o meio-termo. Vimos, de fato, que só somos capazes de ouvir a

razão se nossas disposições estiverem de acordo com a mediania, e Aristóteles

chega a dizer explicitamente que o meio-termo é determinado por uma regra da

reta razão. Podemos lamentar que este aspecto não tenha sido deixado mais claro

pelo filósofo grego, mas, a nosso ver, há dois possíveis motivos para isso:273 o

primeiro é que, de todos os livros da Ética a Nicômaco, o VI, onde em princípio

seriam analisados os “ditames” da razão, parece ser aquele que chegou até nós de

forma mais fragmentária.274 Alguns comentadores consideram mesmo que este

livro conteria duas concepções diferentes de sabedoria prática (uma delas oriunda

da Ética Eudêmica), e que teria sido escrito antes do livro III.275

Outro motivo, mais importante, está na própria indeterminação do meio-

termo, devido ao particularismo da ética aristotélica. Ao tratar da mediania, no

livro II, já havia sido mencionado que esta varia de acordo com os indivíduos e

com as situações.276 Isto gera uma certa dificuldade, assim, de precisar “em que

consiste” a regra reta. Este aspecto pode ser relacionado, a nosso ver, à maneira

pela qual o individuo propriamente virtuoso – o prudente – “encarna”, por assim,

dizer, a reta razão. Aristóteles afirma em várias passagens, de fato, que o homem

273 “É em vão que procuraríamos na Ética a Nicômaco um texto onde Aristóteles tenha tentado definir ex professo o que ele entende por ‘dever’. É verdade, mas isso não significa que Aristóteles não tenha sabido muito bem o que ele pretendia exprimir por esta palavra, e ele nos disse bastante sobre isso, ainda que ocasionalmente e brevemente, para que nós possamos nos dar conta que ele tinha de fato uma idéia clara e tecnicamente elaborada do ‘dever’. Pois, como nós vimos, ele explicitamente identificou ‘o que devemos fazer’ ao ‘meio-termo’ da virtude, e este meio-termo ele próprio a ‘o que ordena a regra reta’, o que é, indiretamente, identificar ‘o que se deve fazer’ e ‘o que ordena a regra reta’; e, esta identificação, Aristóteles a fez diretamente” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 571-572 (tomo II), tradução nossa). 274 Ao mencionar um trecho do livro VI ([1139b5-11]) que parece uma nota destacada do resto do texto, Gauthier & Jolif comentam que “este é um exemplo flagrante do estado de inacabamento e desordem no qual chegou até nós o livro VI” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 446 (tomo II), tradução nossa). 275 AUBENQUE, 2008, p. 226. 276 ARISTÓTELES, EN II-6 [1106b20-25].

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bom deve ser considerado a norma e medida da ação correta.277 Trata-se de um

ponto da ética aristotélica muito valorizado pelos autores contemporâneos das

virtue ethics: suas concepções são muitas vezes chamadas de “agent-centered”,

por defender que o indivíduo virtuoso possui um caráter fundacional na

moralidade, se opondo assim à visão das duty ehics.

No caso específico de Aristóteles, esse aspecto é derivado, como dissemos,

da indeterminação do meio-termo ligada ao particularismo. Isso pode ficar mais

claro se enxergarmos aqui uma crítica direcionada a Platão: para este último o

desejo deve ser regulado a partir da referência ao Bem-em-si, que serve, assim, de

medida. Como dizem Gauthier & Jolif, Aristóteles rejeita essa referência abstrata,

considerando que a medida é o próprio homem virtuoso.278 Desta forma, a

regulação objetiva de Platão seria substituída por uma regulação que é subjetiva,

embora também objetiva no caso do prudente, que enxerga o verdadeiro bem.

Este último ponto é central para compreender o problema com que

estamos lidando: podemos considerar que o caráter inerentemente “subjetivo” da

justa medida aristotélica faz com que se tenha a impressão de que não há

realmente tal medida, o que reforçaria a tese de que a razão possui para Aristóteles

um caráter meramente instrumental e subordinado ao desejo. No entanto, como

vimos anteriormente, no indivíduo virtuoso o subjetivo é também objetivo:

podemos assim considerar que a “regra reta” da prudência possui, sim, uma

objetividade, sendo, neste sentido, válida para todos os seres racionais, um pouco

como será o caso em Kant. Esta validade universal se deve ao fato de que o meio-

termo é um elemento intrínseco à própria natureza da razão – vimos que para os

gregos a racionalidade era naturalmente associada ao ideal de equilíbrio e justa

medida, daí a relação, em Aristóteles, entre a mediania e o “bom exercício da

razão” que é a função do homem. O que ocorre na concepção de Aristóteles, ao

contrário das de Kant e Platão, é que este caráter objetivo não pode ser separado

277 “As ações são ditas justas e temperantes quando são tais como as que praticaria o homem justo ou temperante”(ARISTÓTELES, EN II-4 [1105b5]); “o homem bom avalia corretamente todas as coisas, e em cada classe de coisas a verdade lhe aparece com clareza. De fato, cada disposição de caráter tem sua idéia própria acerca do nobre e do agradável, e talvez a maior diferença entre o homem bom e os outros está em aquele perceber a verdade em cada classe de coisas, e ser dessas coisas, por assim dizer, norma e medida” (ibidem, II-4 [1105b5]). 278 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 208 (tomo II). Para Aubenque, o prudente “não é apenas o intérprete da regra reta, mas é a própria reta regra” (AUBENQUE, 2008, p. 71). Mais adiante, temos: “a participação imediata na moralidade, ou seja, a elaboração espontânea da reta regra, só é reservada durante a vida a um pequeno número de eleitos: os outros viverão talvez sob a reta regra, mas não serão a reta regra, que só o prudente encana” (ibidem, p. 104).

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do subjetivo. Daí, portanto, a idéia de que o homem prudente “encarna” a regra

reta, sendo, ele próprio, norma e medida da ação moral. Isto não quer dizer, no

entanto, que este possua o caráter fundacional preconizado por muitos autores

contemporâneos das virtue ethics: de fato, se assim fosse, não haveria como

estabelecer nenhum critério objetivo que justificasse o que é a virtude, o que

acabaria levando a um relativismo semelhante aos dos sofistas, pelo qual “o

homem”, de forma geral, é a medida de todas as coisas. Em Aristóteles,

justamente, existe uma reflexão sobre a natureza da virtude – a partir, sobretudo,

do argumento do érgon – que é anterior ao homem virtuoso, e é exatamente a

partir da referência a estes critérios que ele pode ser dito virtuoso. O mais correto,

portanto, seria dizer que é somente através do prudente que podemos conhecer os

ditames da razão.279

Podemos considerar, portanto, que a frase “o certo é aquilo que faz o

prudente” não corresponde realmente à definição da regra reta, mas sim a uma

tese epistemológica, pela qual só a conhecemos através do homem virtuoso. Esta

regra, em Aristóteles, não é definida a partir do sábio, muito menos a partir da

felicidade – “o certo é aquilo que contribui para a felicidade”. O certo é definido,

em Aristóteles, a partir do bom exercício da razão, ou seja, a partir de certas

características intrínsecas à própria racionalidade. A partir desta caracterização é

que serão então definidos o homem virtuoso – como aquele que faz o que é certo -

e a felicidade verdadeira, a eudaimonia, como cumprimento da função do homem.

Desta forma, o processo complexo pelo qual a alma irracional é levada a

“ouvir” a racional faz com que os fins objetivos, visados pelo homem virtuosos,

tenham incorporado, por assim dizer, a prescritividade da razão.280 Para

atingirmos a eudaimonia ou felicidade verdadeira, não podemos desejar qualquer

279 “Não é o prudente que torna as ações boas, mas ele é o nosso único critério para penetrar a obscuridade inerente ao domínio prático” (ZINGANO, 2007, p. 516). Segundo Aubenque, “Aristóteles não cede nenhum lugar ao relativismo, o qual, ao contrário, quer superar. O que quer dizer é que nem todos os homens têm o mesmo valor, e que se não há mais, como para Platão, uma Medida transcendente que permita julgá-los, são os homens de valor que são juízes do próprio valor” (AUBENQUE, 2008, p. 80). “A virtude consiste em agir segundo o justo meio e o critério do justo meio é a regra reta. Mas o que é a regra reta? Aristóteles não nos dá nenhum meio de reconhecê-la, senão apelando para o homem prudente” (ibidem, p. 70). “A prudência é a virtude intelectual que permite a cada vez definir a norma (...) a virtude moral consiste, como vimos, em aplicar a regra determinada pelo homem prudente” (ibidem, p. 76) . 280 Havíamos dito anteriormente que o momento exato em que o desejo “ouve” a razão se dá no decorrer da deliberação, quando juízo e desejo se juntam para formar a boulésis. Isto é correto, mas a importância deste processo para a ética aristotélica está na racionalização do desejo que daí resulta, o que leva a um sentido mais forte, por assim dizer, pelo qual a alma irracional “ouve” a racional, levando nossos fins a estarem de acordo com o meio-termo.

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coisa nem de qualquer maneira, é preciso que nossos desejos se harmonizem com

o bom exercício da razão, que determina a regra verdadeira que é o meio-termo

(regra esta que só podemos conhecer através do homem prudente em situações

específicas). A prescritividade da razão, assim, está na maneira pela qual os fins

incorporam o princípio do meio-termo a partir da racionalização do desejo.281

Podemos, agora, retornar ao silogismo prático com outros olhos: havíamos

dito que a premissa maior faz referência a um determinado “bem”, e a menor à

percepção de um caso particular que se incluí na categoria deste bem. Esta

descrição parecia conferir à razão prática um papel meramente instrumental.

Agora, no entanto, podemos afirmar que os preceitos da razão já estão embutidos,

por assim dizer, na concepção de “bem” implicada na premissa maior – daí,

justamente, a idéia que a phrónesis só opera quando nossos desejos, e

conseqüentemente nossos fins, já foram racionalizados. Se a premissa maior

afirma, assim, que “eu devo evitar doces”, esta noção de “bem” claramente traz

consigo o ideal de justa medida e de moderação – e, exatamente por isso, pode ser

chamada de “bem verdadeiro”. 282 Esta é uma outra forma, a nosso ver, de

compreender a questão: a diferença entre o bem meramente subjetivo e o “bem

verdadeiro”, que além de ser subjetivo é também objetivo, se deve ao fato de que

neste último a regra do meio-termo já foi assimilada. Por isso, justamente, trata-

se de um bem que é também objetivo: a regra do meio-termo, de fato, é ”objetiva”

281 “O que faz o valor de um ato, é a medida. (...) esta medida só poderia ser aos olhos de Aristóteles um logos, ou seja, uma regra racional. É por possuir esta regra e conformar sua vida a ela que o virtuoso é a medida, métron ou kanôn, das ações moralmente boas”; “em uma palavra, o justo meio, é o dever”; “está, portanto, fora de dúvida que o imperativo que é a regra não imprime uma regulação, mas exprime uma obrigação propriamente dita”; “a regra reta, diz Aristóteles, é a própria prudência. (...) esta prudência que medindo nossas ações as faz ‘belas’, ou seja, moralmente boas, e comandando-as as transforma em ‘deveres’, que, em uma palavra, constitui os valores morais” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 568-569; p. 569; p. 573; p. 575, (tomo II), tradução nossa). 282 “A virtude mantém o olho da alma direcionado para o fim verdadeiro do homem, porque ela está pronta a aceitar o imperativo racional que será o silogismo maior da ação virtuosa: ‘este é o fim e o bem supremo’” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 553 (tomo II), tradução nossa). A relação entre o dever e os “fins” pode explicar porque Aristóteles comenta em algumas passagens que a sabedoria prática também apreende os fins (ARISTÓTELES, EN VI-9 [1142b33]). Vimos que estes trechos geraram uma certa polêmica entre os comentadores, já que parecem contradizer a doutrina de que a deliberação só se refere aos meios. A nosso ver, a idéia de que a prescritividade da razão prática está contida na concepção dos fins implica que a prudência deve sim, de alguma forma, ser capaz de “apreendê-los”. Como dissemos anteriormente, uma boa forma de compreender este ponto é considerar que, a partir do momento em que o fim visado é o bem supremo, tudo passa a ser passível de deliberação, enquanto meios (instrumentais ou constitutivos) para a eudaimonia. Podemos considerar que a noção de “dever” surge justamente quando a razão prática considera que um determinado bem contribui ou não para a verdadeira felicidade – estes seriam, justamente, os “bens verdadeiros”. Enquanto tais, sua inserção na eudaimonia estará ligada à sua conformação com a justa medida.

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por ser fruto do bom exercício da razão, tendo assim validade para todos os seres

racionais (daí, como vimos, a sabedoria prática ser incluída entre as disposições

cujo objeto é a “verdade”).283 Neste sentido, o bem supremo apreendido pela

prudência do homem virtuoso pode ser considerado geral ou universal, o bem

“do” homem.284

Um exemplo hipotético pode, talvez, nos ajudar e enxergar melhor este

ponto: suponhamos que alguém se encontre em uma situação na qual precisa

arriscar a própria vida para salvar uma criança. Pela visão moderna, diríamos que

há, aqui, um conflito entre a felicidade pessoal deste indivíduo, que dependeria da

preservação de sua própria vida, e as exigências da moralidade. Podemos afirmar

com segurança, no entanto, que pela concepção aristotélica este indivíduo deve se

arriscar para salvar a criança, pois fugir seria um ato de covardia, portanto

contrário ao meio-termo. Neste sentido, a ética de Aristóteles contém, sim, a

283 “A regra reta é a prudência; diríamos ainda melhor: é o prudente, ou, como gosta de dizer Aristóteles, é o virtuoso, pois, como insiste aqui Aristóteles, o prudente e o virtuoso são um só. Mas, é preciso insistir, é por sua sabedoria que o virtuoso é regra e medida do bem moral. Sem dúvida, é a virtude moral que, mantendo-o na boa direção, permite à prudência enxergar o verdadeiro fim, mas permanece que é ela que o enxerga, e é também ela que descobre os meios de realizá-lo; ora, tão pessoal quanto ela seja, - e neste sentido, mas somente neste sentido, podemos dizer que a regulação moral é, para Aristóteles, subjetiva , - a prudência é uma virtude intelectual, e por ser uma virtude intelectual e enquanto tal, acima de tudo, fazedora de verdade, a regulação que ela impõe à vida moral é uma regulação objetiva” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 557 (tomo II), tradução nossa). 284 Como diz Zingano, “para a ação, que é um contingente indeterminado, a deliberação é de regra e através dela a razão impõe algo em detrimento de outro, introduzindo a necessidade na norma prática. (...) Em termos kantianos, esta relação equivale a pôr como condição de adoção do ponto de vista moral o acatamento de uma máxima que possa ao mesmo tempo valer para todo agente racional. (...) ora, a tese de Aristóteles não está longe disso. O prudente, aquele que sabe deliberar bem, possui a faculdade de ver o que é bom para si e para os homens; ele busca realizar o bem não só para si, mas para todos, e isto através da razão. O prudente põe-se assim do ponto de vista moral, que é justamente aquele ponto que todo homem pode acatar se se determinar pela razão” (ZINGANO, 2007, p. 129). É preciso considerar que “aquilo que é bom para todos os homens” – a eudaimonia – pode ter duas acepções, uma ligada à razão prática e outra à teoria. Falaremos deste ponto mais adiante. Pode ser interessante comentar, aqui, se haveria alguma diferença em considerar que o bem verdadeiro é “geral” ou “universal”. É sabido que para Aristóteles as leis morais são generalizações que podem admitir exceções, aspecto ligado, justamente, ao seu particularismo (ZINGANO, 2007, p. 327-328). Se considerarmos a máxima “não devo comer doces”, por exemplo, é possível imaginar circunstâncias em que o “bem” estará em comê-los – por exemplo, se estivermos muito magros por conta de alguma doença. O próprio meio-termo, no entanto, não parece admitir exceções: ele sempre acompanhará a noção de bem. Podemos considerar que os desvios em relação às regras contidas nas premissas maiores ocorrem, justamente, pelo fato da mediania variar de acordo com as circunstâncias, o que faz com que, em alguns casos, ela possa levar a um resultado diferente daquele preconizado pela regra. A justa medida é uma característica intrínseca ao bom funcionamento da razão prática, sendo assim constitutiva, segundo o argumento do érgon, do bem do homem. Neste sentido, podemos afirmar que o meio-termo possui uma validade universal e objetiva.

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noção de que se deve fazer alguma coisa “porque é o certo”, o “certo” sendo

entendido, justamente, como “aquilo que é prescrito pela razão”. Como diz

Zingano:

O homem verdadeiramente corajoso enfrenta os perigos não porque deseja, para dar um exemplo, ser reconhecido por seus pares, sua reputação sendo para ele um fim superior mesmo ao permanecer vivo, mas porque reconhece, nas circunstâncias nas quais se produz a ação, as razões que determinam enfrentar os perigos e, em conseqüência, lhes dá seu assentimento. Age por razão; (...) Tudo o que Aristóteles quer é fundar a possibilidade que um homem deixe de tomar o dinheiro do vizinho não porque teme por sua reputação (ou a polícia, ou ambos), mas porque reconhece que este ato é injusto e, em função deste reconhecimento, abstém-se de agir.285

Obviamente, na visão do estagirita o “agir corretamente” está inserido na

felicidade: no exemplo que demos acima, podemos considerar que se o indivíduo

fugisse e deixasse a criança morrer ele não seria de forma alguma feliz, pois

covardes não podem atingir a eudaimonia. Como já dissemos, a ética aristotélica

se baseia em uma possível harmonização entre o racional e o irracional. Este dois

lados da moeda são representados, justamente, pelas duas concepções de “bem”

apresentadas no livro I: como fins de nossas ações e como função do homem.

Podemos considerar que é fundamental – talvez o ponto mais fundamental de toda

a ética aristotélica – o fato de que essa duas concepções não são essencialmente

relacionadas, sendo, assim, autônomas uma em relação à outra: uma coisa é dizer

que o bem é aquilo que é visado por meu desejo, e outra coisa é dizer que o bem

está no cumprimento da minha função. Como dissemos, reencontramos aqui a

dualidade da natureza humana que está na base da ética aristotélica: a primeira

concepção de bem pode ser relacionada à nossa alma irracional, e a segunda à

parte racional. Todo o esforço subseqüente de Aristóteles, no decorrer da Ética a

Nicômaco, consiste em compatibilizar esses dois aspectos. Isto é possível através

de uma relação em que há concessões de ambas as partes: a razão, por um lado,

reconhece que não pode determinar as ações sem o desejo (devido à ausência de

uma concepção de vontade): nosso atos visam fins postos por nossa parte

irracional, e o intelecto deve se contentar em apenas influenciar este processo. Por

outro lado, o desejo também reconhece que não pode apenas “usar” a

racionalidade para atingir qualquer fim, devendo também ouvi-la e se conformar a

285 ZINGANO, 2007, p. 161-162.

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ela. Podemos assim considerar que o bem “racional” possui, nesta relação, uma

preponderância sobre o irracional, no sentido de que é este último que deve se

adequar ao primeiro, e não o contrário: a razão não modifica em nada sua

concepção do que é certo, a parte irracional é que deve, sim, modificar sua visão

de felicidade. O “certo”, portanto, não é definido de maneira instrumental - como

“aquilo que contribui para minha felicidade” - mas sim a partir de características

intrínsecas à própria razão, como o meio-termo (assim como será a

“universalidade” para Kant). O resultado é uma concepção de felicidade que

incorpora a relação intrínseca entre razão e moralidade, fazendo com que a pessoa

virtuosa seja feliz por fazer o que é certo.

Nosso esforço, no decorrer desta primeira parte de nosso trabalho,

consistiu em tentar mostrar que o eudaimonismo da ética aristotélica não impede

que esta possua, assim, a dimensão prescritiva da razão. Desta forma, é possível

dizer que as diferenças entre sua concepção e a de Kant se devem, sobretudo, a

dois fatores: primeiro, em Aristóteles este caráter prescritivo é limitado pelo

elemento irracional inerente às nossas ações, que faz com que estas não possam

ser totalmente determinadas pela razão, como ocorrerá em Kant. A racionalidade

aristotélica, como dissemos, se contenta em influenciar o processo. O outro fator é

a rejeição, da parte do filósofo grego, de qualquer dimensão transcendente dos

princípios racionais, o que faz com que só tenhamos acesso a eles através das

ações do homem prudente em cada situação particular. Estes dois fatores, assim,

dão a falsa impressão de que a prescritividade da razão está ausente em

Aristóteles. Como diz Aubenque:

Se a inteligência que aqui não se chama νούς, mas διάνοια, σύνεσις ou γνώµη, não é mais o reflexo do inteligível, não significa que não haja mais norma, mas que a inteligência é para si mesma sua própria norma. Mesmo que Aristóteles abandone a transcendência do inteligível, isso não significa substituí-la pela transcendência ilusória de qualquer irracional, mas pela imanência crítica da inteligência. Ele substitui a intelecção dos inteligíveis, como fundamentação da regra ética, pela inteligência dos inteligentes, e a sabedoria das Idéias pela prudência dos prudentes, mas trata-se ainda e sempre, embora sob uma nova forma, de um fundamento intelectual. Aristóteles particulariza, individualiza, relativiza a inteligência, mas não renuncia ao intelectualismo.286

Antes de terminar, gostaríamos de mencionar alguns temas importantes

para a ética aristotélica que não foram abordados por nós, por não afetarem

286 AUBENQUE, 2008, p. 86.

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diretamente o tema de nossa tese. Podemos resumi-los em cinco: as virtudes

particulares, o prazer, a amizade, a acrasia e a contemplação.

O caso das virtudes particulares já foi comentado anteriormente, mas

agora, após a conclusão final, podemos justificar melhor nossa posição: vimos, de

fato, que todas as virtudes são compreendidas a partir da relação que se estabelece

quando nossos afetos e desejos “ouvem” a parte racional de nossa alma. Podemos

assim considerá-las como espécies do gênero “virtude moral”, cuja diferença

específica é a mediania, estabelecida a partir de uma regra da reta razão. Neste

sentido, as características específicas de cada virtude – relacionadas, podemos

supor, ao tipo de situação ou atividade em que são necessárias – não são

relevantes para nossa tese. Este aspecto é reforçado pela interdependência das

virtudes, que citamos mais acima – quem possui a phrónesis as possui todas, e,

inversamente, a posse destas é uma pré-condição para a operabilidade da primeira.

Esta interdependência se deve, justamente, ao fato de as virtudes só adquirirem

seu sentido próprio quando são acompanhadas pela sabedoria prática.287

A questão do prazer é discutida por Aristóteles em vários trechos da Ética

a Nicômaco, sobretudo nos livros VII (capítulos 11-14) e X (capítulos 1-5).

Grosso modo, o estagirita entende esta noção como algo que não é uma atividade

em si, mas acompanha as atividades, contribuindo para sua perfeição e

completude.288 O prazer, assim, reforça a virtude, pois, segundo o filósofo grego,

fazemos as coisas melhor quando as fazemos de forma prazeroza.289 Este aspecto,

no entanto, não chega a afetar a estrutura da ética aristotélica - ou seja, a maneira

qual o valor moral da ação deriva de nossas virtudes, entendidas como

harmonização do desejo com a razão prática -, e, portanto, também não é

relevante dentro de nossa abordagem.

Aristóteles dedica dois livros inteiros da Ética a Nicômaco (VIII e IX) à

amizade, o que reflete, em grande parte, aspectos culturais da Grécia clássica.

Podemos mais uma vez considerar que trata-se de um tema incidental, pois a

amizade não é exatamente uma virtude - na verdade, esta última é que afeta o

287 “Na doutrina aristotélica, as virtudes morais são inseparáveis uma das outras porque elas são inseparáveis da sabedoria prática, que ela própria pressupõe que as possuamos todas” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 558 (tomo II), tradução nossa). 288 ARISTÓTELES, EN VII-4 [1174b24-1175a17]. 289 “De fato, cada atividade é intensificada pelo prazer que lhe é próprio, uma vez que cada classe de coisas é mais bem julgada e feita com maior precisão por aqueles que se dedicam com prazer à correspondente atividade” (ARISTÓTELES, EN VII-5 [1175a30]).

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estudo da primeira, pois a amizade perfeita seria aquela baseada na aretè.290 A

principal relevância desta análise para a ética estaria na ênfase na dimensão social

desta última – o termo phília (φίλια), de fato, possui um sentido bem mais amplo

do que o que chamamos de “amizade” hoje em dia.291 No entanto, como nosso

objetivo é estudar a relação entre virtude e razão prática, podemos nos concentrar

na dimensão individual desta ética, à qual se dedica, na maior parte do tempo,

Aristóteles.

Os dois temas restantes, acrasia e contemplação, já afetam, de forma mais

direta, o assunto que estamos abordando. O tratamento dado pelo filósofo grego à

acrasia é complexo: grosso modo, este fenômeno é descrito como uma falha não

do conhecimento universal (premissa maior do silogismo prático), mas do “juízo

de percepção” (premissa menor), ou seja, do reconhecimento de que a regra

universal se aplica àquela situação particular. Esta falha pode ser descrita como

uma espécie de esquecimento ou bloqueio momentâneo, que levaria o indivíduo a

não usar o conhecimento que possui. Este esquecimento seria similar, em certa

medida, ao que ocorre com as pessoas bêbadas, loucas ou que estão dormindo, e é

produzido, no caso da acrasia, por um apetite muito forte.292 O que possui mais

relevância para nós, aqui, é a idéia de que a continência não é uma virtude.293 O

indivíduo continente (e)gkrath/j), para Aristóteles, é aquele que resiste a seus

apetites maus em função do princípio racional.294 Neste sentido ele se diferencia

não só do incontinente ou acrático, mas também do homem temperante, que não

precisa realmente se esforçar para controlar seus apetites, pois estes já estão

harmonizados com a razão.295 A idéia de que a temperança é superior à

continência reforça a visão de que o valor moral da ação é derivado das virtudes 290 ARISTÓTELES, EN VIII-2 [1156b6]. 291 URMSON, 1988, p. 109. O comentador inglês considera que os livros VII e VIII são dedicados a analisar o papel das relações sociais – pelo menos algumas delas – na boa vida, de forma coerente com a relação intrínseca, já estabelecida, entre ética e política. 292 ARISTÓTELES, EN VII-3 [1147a1-1147b20]. Cf. URMSON, 1988, p. 91-92. 293 Aristóteles, de fato, considera que a virtude se opõe ao vício, enquanto a continência se opõe à incontinência: “há três espécies de disposições morais a serem evitadas: o vício, a incontinência e a bestialidade. As disposições contrárias a duas delas são evidentes: uma chamamos virtude e outra, continência” (ARISTÓTELES, EN VII-1 [1145a15-20]). A continência, de fato, é um estado de caráter, mas não possui a diferença específica das virtudes, a mediania. É preciso considerar que a continência, embora não seja uma virtude, é uma coisa boa e louvável (ibidem, VII-1 [1145b7]). Como comenta Urmson, é possível fazer uma gradação, em ternos de mérito, começando pelo virtuoso, depois o continente, depois o incontinente e finalmente a pessoa de mau caráter (URMSON, 1988, p. 31). 294 ARISTÓTELES, EN VII-1 [1145b14]. 295 “no homem temperante o elemento apetitivo deve harmonizar-se com o princípio racional” (ARISTÓTELES, EN III-11 [1119b16]).

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éticas. Este aspecto será interessante na comparação com Kant, pois, como

veremos, este último aparentemente defende uma tese contrária, pela qual o valor

da ação é maior quando o agente contraria suas próprias inclinações. No entanto,

tentaremos argumentar que esta oposição é apenas aparente, pois, se enfatizarmos

não as inclinações, mas sim a virtude – que para Kant se liga à vontade -, então a

estrutura das duas concepções ainda seria similar, pois em ambas o valor moral da

ação é fruto da virtude: o que ocorre é que para Aristóteles esta noção se liga às

inclinações, enquanto para Kant pode haver oposição entre as duas.

A questão da contemplação (θεωρία) é a mais complexa de todas as que

estamos citando aqui, e, provavelmente, uma das mais controversas da ética

aristotélica. No final do livro I, como vimos, o estagirita divide as virtudes em

duas espécies, as éticas e as dianoéticas. O argumento do érgon, ao estabelecer

uma relação intrínseca entre o exercício da razão e a eudaimonia, implica que

cada uma destas virtudes tenha uma felicidade correspondente. Podemos assim

falar de uma eudaimonia ética ou “política”, fruto da harmonização de nossas

inclinações com a razão, e uma dianoética ou puramente intelectual, que seria a

contemplação. O problema que se coloca, então, é determinar a relação entre estas

duas instâncias, e este ponto, justamente, é controverso. Alguns autores

consideram que a felicidade política deve ser vista apenas como uma preparação

ou um caminho para a contemplação,296 enquanto para outros é possível

296 Gauthier & Jolif, por exemplo, consideram que o bem supremo visado pela phrónesis é a contemplação: “o justo meio das virtudes morais é determinado pela regra reta, que Aristóteles dirá ser obra da sabedoria prática que é a phrónesis. Mas a aplicação desta regra reta é função do objetivo, σκοπός, visado por ela, ou seja o fim, τέλος ao qual ela se ordena, fim que é ao mesmo tempo a norma suprema, όρος, das virtudes morais. Este fim e esta norma, é a contemplação, obra da filosofia, sophia” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 437 (tomo II), tradução nossa). Mais adiante, temos: “há aqui duas questões bem distintas: 1 – qual é a regra reta? Resposta: é aquela formulada pela sabedoria prática, phrónesis; 2- Qual é a norma suprema à qual este regra reta se refere? Resposta: é a contemplação, obra da filosofia, sophia” ( ibidem, p. 438-439, tradução nossa). Em outra passagem, ao analisar o trecho [1144a3-8] da Ética a Nicômaco (que chegamos a citar acima, onde o filósofo grego diz que as sabedorias prática e filosófica produzem a felicidade “como a saúde produz saúde”), os comentadores franceses concluem que a phrónesis deve ser considerada a causa eficiente da eudaimonia, enquanto a sophia seria a causa formal - dando a entender, assim, que a primeira é como uma preparação para a segunda: “a sabedoria prática só faz a felicidade enquanto causa eficiente, organizando a vida de maneira que possa florescer a contemplação, e somente a filosofia, ou mais exatamente seu ato, a contemplação, faz a felicidade enquanto causa formal” (ibidem, p. 547 (tomo II), tradução nossa). Ross expressa opinião semelhante, ao afirmar que “sabedoria prática é o poder de deliberar bem, não sobre coisas particulares a serem feitas, ou estados particulares como saúde e força a serem produzidos (estes são objetos da arte), mas sobre ‘coisas boas em si mesmas’ (...) Assim o homem sábio prático deve saber, desde o início, quais são as coisas ‘boas para o homem’; segundo a visão de Aristóteles ele deveria conhecer a conclusão à qual ele próprio chega no livro X, que a melhor coisa para o homem é a vida de contemplação, e ele deveria deliberar sobre os meios pelos quais isso pode ser

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estabelecer uma certa independência entre estas duas instâncias.297 Há também

respostas mais sofisticadas, como a de Von Hooft, para quem cada forma de

felicidade corresponderia a um período diferente da vida do indivíduo.298

Podemos considerar, no entanto, que estas diversas interpretações não afetam o

núcleo central de nossa tese, por dois motivos: primeiro, porque o tema que

estamos abordando é a questão ética, e, portanto, podemos restringir nossa análise

apenas às virtudes morais. Segundo, mesmo que estas últimas sejam vistas como

um caminho para chegar à contemplação, a estrutura que procuramos estabelecer

ainda seria a mesma: nossa análise, de fato, enfatizou a relação intrínseca entre

moralidade e racionalidade, pela qual a parte irracional de nossa alma deve se

harmonizar ao bom exercício da razão. Ora, a contemplação é uma atividade

puramente intelectual, e, portanto, a conformação da felicidade ética à

contemplativa não modifica, realmente, esta estrutura. O que ocorreria, nesta

leitura, é que a subordinação de nossas inclinações se daria em dois níveis,

atingido” (ROSS, 1995, p. 223, tradução nossa). Podemos também citar, nesta linha, Stephen Engstrom, que menciona o mesmo trecho do livro VI a que se referiram, acima, Gauthier & Jolif: “assim como a medicina enxerga como trazer a saúde à existência, a sabedoria prática enxerga como trazer à existência a sabedoria filosófica; (...) Esta subordinação da phrónesis à sophia parece ser confirmada no livro X, quando Aristóteles, ao afirmar que as ações nobres na guerra e na vida política visam alguma eudaimonia além de si mesmas, argumenta que somente a atividade contemplativa da razão (nous) – a atividade do filósofo – é ‘eudaimonia completa’, enquanto a vida de acordo com a virtude ética é eudaimonia somente ‘de uma maneira secundária’ (X 7-8). A subordinação também parece ser confirmada na conclusão da Ética Eudêmica, onde Aristóteles, novamente fazendo uma analogia com a medicina, sugere que a sabedoria prática estabelece comandos em função da contemplação de deus, e também que esta relação com a contemplação fornece a ‘regra reta’ pela qual a sabedoria prática determina a mediania na qual consistem as virtudes éticas (1249a21-b25)” (Stephen Engstrom, “Hapiness and the Highest Good”, in ENGSTROM & WHITING, 1996, p. 114, tradução nossa). Os trechos das obras de Aristóteles citadas por estes comentadores não serão analisadas diretamente por nós, pois, como estamos tentando argumentar, trata-se de um tema que não afeta diretamente nossa tese. 297 “Porém, a contemplação não exclui as outras virtudes; ao contrário, ela as supõe. Aristóteles pode assim escrever que a felicidade estende-se até onde vai a contemplação sem por isso dizer que só há felicidade lá onde houver contemplação. (...) a felicidade, ela, inicia no domínio moral e, somente quando o homem já está ai instalado, pode acrescentar a atividade contemplativa e tudo organizar em torno dela. (...) Porém, se a felicidade pode incluir a contemplação e assim tornar-se completa, resta que ela pode também não incluir a contemplação, sem por isso deixar de ser felicidade, exceto que o será em um segundo grau, a felicidade segunda da vida política” (ZINGANO, 2007, p. 510-511). 298 “A Ética de Aristóteles é um manual para viver bem que se revela de acordo com os estágios de vida de sua audiência. A primeira divisão da obra é dirigida à juventude e àqueles que têm responsabilidade para com os jovens. A segunda divisão da obra é dirigida a adultos maduros que tomam decisões autonomamente. A terceira e última divisão, eu gostaria agora de sugerir, é dirigida a homens mais velhos que estão aposentados. Estes homens não são mais homens de estado tomando parte ativa na política da cidade e, obviamente, não são mais soldados. O que é então para eles a maneira mais valorosa de viver? A vida de contemplação” (VAN HOOFT, 2006, p. 77, tradução nossa).

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primeiramente em relação à razão prática, e então, por intermédio desta, à razão

contemplativa.

Concluindo, podemos considerar, como dissemos, que este cinco temas,

mesmo sendo importantes para a ética aristotélica, não são relevantes para nossa

abordagem.

2.5

Conclusão da parte 1

Como dissemos na introdução, o objetivo deste trabalho é o de analisar as

estruturas das éticas de Kant e de Aristóteles, entendidas a partir da relação entre a

prescritividade da razão prática, o valor moral da ação e a noção de virtude. Nesta

primeira parte, assim, fizemos uma investigação da concepção aristotélica,

procurando enfatizar, sobretudo, a dimensão prescritiva da razão prática, que não

é tão óbvia no filósofo grego quanto será em Kant. A ausência de uma concepção

de “vontade”, de fato, leva nossas ações a serem determinadas, em última

instância, pelo desejo, conferindo à racionalidade um papel aparentemente

instrumental. Procuramos, no decorrer de nossa análise, discordar desta

interpretação, mostrando que a razão prática aristotélica possui, sim, uma

dimensão prescritiva, e que esta exerce uma função central na concepção do

estagirita.

O primeiro elemento que aponta fortemente nesta direção é o argumento

do érgon, pelo qual o bem do homem está no bom exercício da razão, e não em

algo que obtemos através dele. Como conseqüência desta tese, está a idéia de que

a parte irracional de nossa alma deve “ouvir” a racional, em uma relação inversa,

portanto, àquela que poderia se esperar em uma concepção instrumentalista. Ao

que tudo indica, aquilo que é “ouvido” por nossos desejos deve possuir uma

dimensão prescritiva, como parece sugerir a metáfora da relação entre pai e filho.

Procuramos, a partir de então, mostrar como a ética aristotélica é

estruturada em torno desta dimensão prescritiva, a começar pela noção de virtude,

entendida como estados disposicionais, frutos do hábito, cuja diferença especifica

é a mediania, estabelecida por uma regra reta da razão prática. As noções de

“deliberação” e “escolha”, por sua vez, parecem, à primeira vista, corroborar a

interpretação instrumentalista, pois, como o próprio estagirita afirma, só

deliberamos e fazemos escolhas sobre meios. Procuramos argumentar, no entanto,

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que estas noções fazem parte de um processo complexo pelo qual nossos desejos

são racionalizados, e, portanto, indiretamente, também nossos fins. A relação da

escolha e da deliberação com a voluntariedade e responsabilidade moral deixam

claro o papel central exercido pela razão prática na ética aristotélica.

Os fins racionalizados seriam “objetivos”, bens “do homem”, válidos para

todos os seres humanos, e, por que não dizer, para todos os seres racionais, como

afirmará Kant. A deliberação sobre estes fins, visados pelo homem virtuoso, é

aquilo que Aristóteles chamará de sabedoria prática. Esta noção é diretamente

ligada pelo autor aos “ditames” da razão. Podemos considerar que isto se dá,

sobretudo, pelo fato de que os bens objetivos incorporaram, por assim dizer, a

regra reta, adquirindo, com isso, uma dimensão prescritiva, assim como os meios

para atingi-los. Desta forma, “vencer uma batalha com honra”, “ajudar uma

criança em apuros”, “ser honesto”, e mesmo fins aparentemente mais banais como

ter uma alimentação equilibrada, possuem uma força prescritiva pelo fato de

conterem em si os ideais de harmonia e justa medida que os gregos associavam à

racionalidade. Podemos lamentar que estas prescrições não sejam tão explícitas

em Aristóteles como serão em Kant, mas isso pode ser explicado, conforme

comentamos, por diversos fatores: o elemento irracionalista sempre presente nas

ações, o particularismo – o meio-termo varia de acordo com as pessoas e as

circunstâncias -, e a negação de uma dimensão transcendente das normas da razão,

o que faz com que o sábio encarne, por assim dizer, a regra reta, que só é

conhecida, portanto, através dele.299

Podemos assim concluir nossa análise, nesta primeira parte, afirmando que

a ética aristotélica possui, sim, uma dimensão prescritiva da razão prática, e que

esta exerce uma função essencial na sua estrutura. Mais ainda, podemos afirmar

que esta prescritividade pode ser entendida como um princípio formal: a regra

reta, de fato, não nos diz “o quê” fazer, mas sim como agir.300 Este formalismo

299 Mais adiante, na parte 2, argumentaremos que o particularismo pode ser relacionado à ausência de uma noção de “vontade” no estagirita: de fato, embora a razão prática forneça o princípio formal no qual se baseia a ação moral, o conteúdo da ação não deriva diretamente deste princípio, pois deve se harmonizar com o desejo. Neste sentido, justamente, é que o meio termo “varia de acordo com as circunstâncias”. Em Kant, a noção de vontade permite que a matéria da ação derive diretamente do princípio formal – daí, justamente, ser possível estabelecer a priori quais são os “ditames” da razão, em termos de conteúdo. 300 Obviamente, a prescritividade da razão, enquanto princípio formal, também acaba influenciando “o quê” fazemos, pois não são todas as ações que podem assumir uma forma de acordo com este principio. Este ponto ficará mais claro na parte 2, quando falarmos de Kant.

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está perfeitamente de acordo com a compreensão da regra reta a partir da

mediania e da justa medida. Trata-se de um ponto importante na comparação com

Kant, pois, como veremos na parte 2, o filósofo alemão define os ditames da razão

como princípios formais.

A estrutura da ética aristotélica, que nos propomos a analisar, pode assim

ser descrita, a nosso ver, da seguinte forma: o valor moral da ação depende de sua

adequação a um princípio formal fornecido pela razão prática, e as virtudes são

disposições do agente em agir segundo estas prescrições. Na parte 2,

procuraremos mostrar que a ética de Kant possui uma estrutura semelhante.

2. 6

Apêndice da parte 1: o surgimento histórico da noçã o de vontade

No decorrer da parte 1, deixamos claro que é fundamental para nossa tese

a idéia que os antigos, e particularmente Aristóteles, não possuíam uma noção de

“vontade”, o que significa dizer que para estes autores as ações são sempre

realizadas, em última instância, a partir do desejo, possuindo, assim, um

componente irracional. Dada a importância deste ponto para o que estamos

tentando demonstrar – que as éticas de Aristóteles de Kant possuem uma estrutura

similar -, cumpre-nos, antes de abordar a concepção do filósofo alemão, fazer uma

rápida exposição sobre o desenvolvimento histórico da noção de vontade. Para

isso, nos basearemos, sobretudo, em dois autores, Gauthier & Jolif e Albrecht

Dihle.

A análise de Gauthier & Jolif se concentra em três pontos: o

intelectualismo dos estóicos, o termo voluntas como uma má tradução pelos

latinos de certos vocábulos gregos, e o desenvolvimento desta noção por alguns

autores cristãos, notadamente Santo Agostinho e São Máximo o Confessor. Os

comentadores franceses procuram contestar a interpretação tradicional pela qual

Agostinho teria sido o criador da “vontade”, mostrando que sua noção de voluntas

é grandemente baseada nos estóicos. Desta forma, o verdadeiro inventor da

vontade moderna teria sido São Máximo o Confessor.

Começando pelo estoicismo, Gauthier & Jolif mostram como seus autores

retornaram a um intelectualismo do qual Aristóteles havia procurado se afastar

(em uma crítica, como vimos, a Sócrates e Platão): o “élan moteur” estóico (όρµή)

já postula a razão, de fato, como uma força ativa, motor de nossas ações. Crisipo,

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um dos primeiros autores deste movimento, considerava que a όρµή é um

imperativo da razão que exclui qualquer elemento afetivo. Como dizem os

autores, “Crisipo – e este é seu golpe de gênio – fez da razão não mais, como

Aristóteles, uma potência passiva, mas uma faculdade essencialmente ativa e

dinâmica. (...) Porque a razão é essencialmente dinâmica, o imperativo racional

que é a όρµή é motor por si mesmo. Não há nenhuma necessidade de apelar, como

fazia Aristóteles, ao desejo (ainda que racional) que o anima; é à razão, e somente

à razão, que cabe o papel de motor”.301 Mais adiante, Gauthier & Jolif comentam

que ao lado da noção de όρµή – a razão enquanto atração (attrait), que nos

comanda a fazer algo -, Crisipo postulou também a άφορµή, ou seja, a razão

enquanto repulsão (retrait), que nos proíbe de fazer algo. Esta última pode

assumir diversas formas, entre elas a υέλησις, que os comentadores traduzem

como vontade (volonté), descrito como um desejo consentido ou voluntário

(souhait qu’on fait de son plein gré).302 Podemos assim considerar que Crisipo se

aproximou bastante da noção de vontade, se a entendermos, como fazem os

comentadores franceses, como um desejo essencialmente racional. O

intelectualismo mais radical deste autor, no entanto, não teria sido acompanhado

por seus sucessores: Panécio e Possidônio, já no médio-estoicismo, quebram com

o monismo da alma de Crisipo, levando a όρµή a recuperar sua dimensão

irracional, o que a reaproxima do apetite aristotélico, porém com uma importante

diferença: para este autores, o desejo ocorreria após o juízo da razão, ou seja, o

assentimento.303 Gauthier & Jolif consideram que este aspecto será importante no

desenvolvimento da concepção estóica da escolha (έχλογή), que terá grande

influência no futuro desenvolvimento da vontade, ligada, no pensamento cristão, à

capacidade do indivíduo em escolher livremente entre o bem e o mal.304

Gauthier & Jolif procuram então mostrar como surgiu o sentido filosófico

301 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 246-247 (tomo I), tradução nossa. 302 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 247 (tomo I). 303 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 248; p. 251 (tomo I). Os comentadores franceses citam Alexandre de Afrodísia, Nemésio e Aspásio como autores que contribuíram para a elaboração desta noção de assentimento. 304 Ainda segundo Gauthier & Jolif, a noção de “escolha” se refere sobretudo, para os estóicos, à escolha entre indiferentes, mas também aquela entre o bem e do mal: “segue daí que, se a ação reta, o χατόρυωµα que caracteriza a prudência, consiste em aderir ao bem e fugir do mal, sua tarefa é escolher as coisas conforme a natureza” (GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 248; p. 253 (tomo I)). Como dissemos acima, para este autores esta noção afetará o futuro desenvolvimento da noção de vontade no pensamento cristão, por ser anterior ao desejo, se adequando melhor, assim, ao livre-arbítrio cristão, que permite escolher livremente entre o bem e o mal.

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de voluntas na língua latina: em seu uso popular, tratar-se-ia de um termo de

sentido amplo, podendo designar todo tipo de sentimentos, inclinações ou estados

de espírito. Os primeiros usos filosóficos da palavra teriam sido feitos por

Lucrécio, mas de forma vaga, como “bom prazer” (se opondo, assim, ao simples

prazer, voluptas), princípio do movimento de todos os animais, “tendência

espontânea e natural do ser”.305 Cícero, no entanto, seria o autor que exerceu um

papel mais decisivo na elaboração do sentido filosófico de voluntas, não tanto pela

originalidade de seu pensamento, mas, segundo os comentadores franceses, pela

imprecisão de suas traduções: voluntas traduziria έχών (espontaneidade),

βούλησις (desejo racional) e προαίρεσις (decisão).306 Desta forma, noções ligadas

ao desejo se fundiram a outras puramente intelectuais, o que teria contribuído para

a forte dimensão racional da voluntas.

Gauthier & Jolif abordam então o pensamento cristão: contrariamente à

interpretação tradicional (inclusive do autor de que falaremos mais adiante,

Albrecht Dihle), eles consideram que não foi Santo Agostinho o verdadeiro

inventor do sentido moderno de “vontade”. A voluntas agostiniana não

acrescentaria muita coisa à noção dos estóicos latinos: “se ninguém nunca definiu

a concepção agostiniana de vontade, é simplesmente porque esta concepção não

existe: dos traços da ‘vontade’ que foram identificados em Agostinho, não há

nenhum que já não se encontre nos estóicos”.307 O empréstimo mais importante

que Agostinho teria feito aos estóicos seria a noção de consentimento

(συγχατάνεσις), que mencionamos mais acima, que seria, justamente, um ato da

vontade: a fé é assim definida como o consentimento que nos faz aceitar como

verdadeiros os ensinamentos da Igreja, e o pecado é o consentimento que nos faz

ceder à tentação.308 A pretensa originalidade desta doutrina em relação aos

estóicos seria, no fundo, resultado das más traduções de Cícero:

Seria um erro saudar este ‘voluntarismo’ como uma alteração consciente e refletida da doutrina estóica e um pensamento original de Agostinho; não, é simplesmente o resultado lógico da inabilidade de Cícero como tradutor: foi de fato Cícero que tinha traduzido (e traído) a doutrina estóica que fazia da συγχατάνεσις um julgamento do qual somos mestres e, portanto, responsáveis

305 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 256 (tomo I). A interpretação da voluntas lucreciana como “tendência espontânea do ser” teria sido feita, segundo os dois autores, por M. Robin. 306 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 256 (tomo I). Os autores comentam ainda que esta tradução teria influenciado outros filósofos latinos, como Sêneca (ibidem, p. 257-258). 307 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 259 (tomo I), tradução nossa. 308 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 260 (tomo I). Os autores citam, como passagens em que Agostinho trata deste assunto, De mendacio IX 13-14.

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(έχούσιος), ao dizer que o consentimento é um ato “voluntário”,309 terminologia reproduzida no século II por Aulu Gelle, em um texto que era familiar a Santo Agostinho. É, portanto, certamente deste erro de tradução que derivam os textos de Santo Agostinho que fazem do consentimento um ato da vontade.310

Os comentadores franceses consideram que Santo Agostinho teria se

baseado nestes erros para tornar a voluntas mais abrangente, fazendo-a incluir, por

exemplo, o apetite estóico (όρµή), de forma que as paixões se tornam também

voluntates.311 Mas esta abrangência, justamente, faz com que esta noção acabe se

tornando um conceito superficial, sem a precisão, por exemplo, da voluntas

escolástica, faculdade rigorosamente definida por sua dupla oposição à razão e ao

apetite sensível.312 A vontade agostiniana seria, assim, “um movimento da alma

como um todo cujo conceito permanece muito vago”.313

São Máximo o Confessor teria sido, para Gauthier & Jolif, o verdadeiro

criador da noção escolástica de vontade, que foi, por sua vez, a base do conceito

moderno. O pensamento do autor medieval gira em torno da figura de Cristo,314 e

um dos principais problemas ligados a este tema é a necessidade de conciliar o

caráter humano da Sua vontade com a impossibilidade de pecar. Para isso, São

Máximo distinguiu dois tipo de querer, o natural (υέληµα φυσιχόν), que é a

vontade humana, e o querer gnômico (υέληµα γνωµιχόν), que é a vontade passível

de pecar, que Cristo, portanto, não possuiria.

O querer natural é sem dúvida o desejo racional aristotélico. Mas, ao invés de fazê-lo surgir, como Aristóteles, sobre o fundo indiferente do desejo, São Máximo, que neste ponto ultrapassa de longe Aristóteles, o faz surgir na υέλησις, palavra que Aristóteles ignorava como também ignorava a coisa que ela designa. A υέλησις não é mais um desejo racional por acidente, é um desejo racional por natureza, é uma faculdade (δύναµις), levada por seu próprio impulso, antes de qualquer intervenção do conhecimento, em direção a este mesmo bem universal que a razão é feita para conhecer. Esta faculdade é uma propriedade da natureza humana e é também naturalmente que surge nela, assim que intervém uma representação simples, exclusiva de toda deliberação, o ato que é o desejo racional, elevado assim pela primeira vez à dignidade de ato da vontade.315

309 Gauthier & Jolif citam como passagem de Cícero Acad. Post., XI 40. 310 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 260-261 (tomo I), tradução nossa. 311 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 261-262 (tomo I). 312 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 262 (tomo I). 313 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 262 (tomo I), tradução nossa. 314 Como dizem Reale e Antiseri, “o núcleo essencial do pensamento de Máximo está na tematização do papel central da pessoa de Cristo de um ponto de vista tanto antropológico quanto metafísico, ontológico e cosmológico” (REALE & ANTISERI, 2005, p. 61). 315 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 264 (tomo I), tradução nossa. Na nomenclatura de Máximo, a vontade (υέλησις) seria a faculdade, e o desejo racional (βούλησις) seu ato (ibidem, p. 264 (nota dos autores)). Já o querer gnômico não é uma propriedade essencial de nossa natureza, mas sim

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O querer natural de São Máximo, assim, seria uma forma de desejo

essencialmente racional, e não acidentalmente, como ocorre com a βούλησις

aristotélica. A precisão conceitual com que o autor medieval elabora esta noção -

como uma faculdade própria à natureza humana -, levam Gauthier & Jolif a

considerar que esta foi a primeira forma de “vontade”, no sentido estrito do termo,

a surgir na história da filosofia.

A concepção de vontade elaborada por São Máximo, retomada por João Damasceno no seu De Fide Orthodoxa, se impôs à teologia cristã, não somente para os gregos, mas também para os latinos, e a força de um longo hábito a faz parecer hoje tão natural aos espíritos formados na escola da escolástica (...) que ela lhes parece uma verdade de bom senso: que Aristóteles não tenha percebido esta evidência, eis o que é para eles impensável! O historiador não pode esquecer que foi preciso aos homens, após Aristóteles, onze séculos para inventar a “vontade”.316

Albrecht Dihle, em The Theory of Will in Classical Antiquity, faz uma

análise que difere da de Gauthier & Jolif, embora com vários pontos em comum.

Dihle enfatiza a importância desta noção para a doutrina cristã, onde a

“obediência” aos mandamentos divinos não é um ato do intelecto nem do desejo,

mas de uma terceira instância, que é a vontade.

O autor começa por mostrar a importância da questão ontológica: os

filósofos gregos, de fato, tendiam a enxergar o mundo em termos de sua ordem,

regularidade e beleza, que podiam ser compreendidas pela mente humana. Este

tipo de cosmologia se opunha, assim, à idéia de uma “vontade” divina capaz de

interferir no mundo de forma imprevisível.317 Estas visões de mundo terão

uma maneira contingente de viver, uma disposição ou hábito adquirido, nosso caráter, que é passível de pecado (ibidem, p. 265). 316 GAUTHIER & JOLIF, 1970, p. 266 (tomo I), tradução nossa. 317 “A teologia na tradição da filosofia greco-romana não se preocupava muito com o problema do poder divino, que é a diferença mais significativa entre o homem e Deus segundo a experiência religiosa fundamental: έπεί ή πολύ φέρτεροί είσιν (pois, na verdade, eles são de longe mais poderosos), para citar a fórmula homérica. A teologia grega filosófica se concentrava, ao invés disso, desde o início, na ordem, regularidade, e beleza que são estabelecidas e mantidas pela atividade divina. (...) Esta teologia filosófica ou cosmologia se baseava em uma pressuposição básica: a mente humana é capaz de perceber e compreender a ordem racional do universo e, conseqüentemente, a natureza do divino. (...) Natureza, cosmos, ordem do universo, providência – todos estes conceitos ilustram que tudo acontece somente em conseqüência de um arranjo preconcebido e racional, sem uma vontade separada interferindo, espontaneamente, no processo” (DIHLE, 1982, p. 2, tradução nossa). Cf. ibidem, p. 102, tradução nossa: “A mesma vontade [do Deus cristão], inexplicável e insondável como é, interfere continuamente com a vida do homem através de atos e ordem e promessas. Tanto os eleito quanto os não-eleitos precisam lidar com as

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influência decisiva na moral:

Quando a filosofia grega se voltou para problemas sociais e morais no século V A.C., sua principal tarefa foi a de encontrar padrões de conduta moral que fossem tão racionais e geralmente aplicáveis quanto as regras da ordem cósmica. Se a razão era, de fato, o único fator estruturante e animador, se o universo era racional, a ação humana só podia ser avaliada por padrões fornecidos pela razão. O mesmo intelecto humano tinha que perceber a ordem da natureza e os objetivos da ação. A ação era moralmente boa se concordasse com a ordem racional do universo. Conseqüentemente tinha que ter origem na compreensão racional do mundo em que vivemos. O homem podia agir bem se tivesse conhecimento da natureza. A identidade entre pensamento se aplicava tanto à cosmologia quanto à ética. Mesmo nesta descrição extremamente breve das bases da filosofia moral grega, é fácil perceber que o conceito de vontade não tem lugar nestas idéias. 318

Na moralidade cristã, por outro lado, esta dimensão racional não era

essencial, conseqüência de o próprio universo, comandado pelo arbítrio divino,

não ser tão acessível ao entendimento humano. A questão central, então, passou a

ser a obediência, e não o conhecimento:

O conceito de Vontade Livre resulta de uma visão completamente diferente. O mundo como é experimentado na vida humana deve sua existência a um criador que é livre para interferir, a qualquer momento, com o que estiver acontecendo com sua criação. É somente por benevolência que Ele também conferiu alguma regularidade ao processo cósmico. Portanto o homem deve experimentar, em primeiro lugar, a vontade do criador. Ele se torna consciente de sua própria intenção através de contínuos atos de obediência ou desobediência – quer dizer atos de vontade – pelos quais ele reage livremente aos desígnios da vontade divina.319

Esta diferença cosmológica, assim, acaba afetando a psicologia moral das

manifestações imprevisíveis e a soberania sem restrições da vontade divina através da história da humanidade”. Podemos considerar, parece-nos, que a noção de vontade divina – enquanto instância passível de intervenções imprevisíveis, “do nada” - se liga, de certa forma, à de “criação a partir do nada” (ex nihilo), conceito cristão que, como se sabe, era estranho aos gregos. 318 DIHLE, 1982, p. 37, tradução nossa. 319 DIHLE, 1982, p. 72, tradução nossa. Em outro trecho, Dihle comenta como “diferentemente do conceito do Velho Testamento, a tragédia grega não prevê a possibilidade de que o homem possa responder à intenção de um dos deuses por um simples ato de obediência, sem uma compreensão devida da situação dada” (ibidem, p. 17, tradução nossa). Mais adiante, cita a posição de Sêneca como emblemática da mentalidade grega: “non pareo deo sed assentior ‘eu não obedeço a Deus, mas concordo com ele’ (Epistulae, 96.2). A obediência ao divino, na visão do filósofo estóico, está longe de ser um ato da vontade. Ela resulta ou ainda é idêntica a um reconhecimento da ordem divina da natureza, e leva o homem a concordar, livre e voluntariamente, com o que a natureza ou Deus o ordenou a ser e a fazer. Este acordo é atingido, sem nenhuma coerção externa e sem nenhum ato de submissão, através de uma atividade intelectual livre, e não-influenciada, da parte do homem. Deo parere libertas est: ‘obediência a Deus é liberdade’ (De Vita Beata, 15.3). Isto é possível porque a vontade de Deus ou natureza está longe de ser arbitrária ou imprevisível: Sua illis in lege aeterna voluntas est; statuerunt quae non mutarent ‘a vontade dos deuses repousa em leis eternas; são estabelecidas para serem imutáveis’ (Sêneca, De Brevitate Vitae, 6.23.1). Não havia nenhuma necessidade de um termo que denotasse volição enquanto tal no quadro destas idéias sobre Deus, o universo e o homem” (ibidem, p. 18, tradução nossa).

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duas escolas: como diz Dihle, para os gregos esta se baseava na interação entre o

racional e o irracional: “dentro dos limites impostos pela lei divina, o homem é

visto agir de acordo com suas próprias forças racionais e irracionais”.320 Mais

adiante, temos: “esta psicologia partida, que explica o comportamento humano na

base da interação entre forças racionais e irracionais, e que não tem lugar para o

conceito de vontade, prevalece no decorrer da tradição grega dos tempos de

Homero em diante”.321 Emoção e razão, assim, são sempre claramente

distinguidos um do outro, ambos sendo necessários para a realização de qualquer

tipo de ação – daí, justamente, a necessidade de descrever cuidadosamente sua

interação.322 Não é muito difícil enxergar aí elementos característicos da ética

aristotélica, que expomos no decorrer da parte 1.

Por outro lado, o conceito de vontade, como será desenvolvido

posteriormente, não pode ser descrito em termos racionais ou irracionais. Trata-se,

por assim dizer, de uma terceira instância, onde a intenção não é derivada da razão

ou da emoção, mas considerada em si mesma: “a palavra ‘vontade’ e seus

equivalentes nas linguagens modernas, como é aplicada na descrição e avaliação

da ação humana, denota pura volição, independentemente de sua origem tanto

cognitiva quanto emocional”.323 Mais adiante, temos: “os gregos não tinham

nenhuma palavra deste tipo em sua linguagem para denotar vontade ou intenção

enquanto tal”.324

Nem Platão nem seus sucessores puderam introduzir o fator isolado da intenção ou da volição em sua doutrina da ação humana. Em sua tentativa de estabelecer o quadro psicológico dos padrões morais, eles sempre mantiveram a bipartição tradicional entre intelecto e emoção, forças racionais e irracionais da alma. Eles se concentraram no problema de como a razão, da qual a realização primária é sempre a cognição, poderia ser e continuar mantida como o fator dominante na vida moral, como a natureza requeria.325

320 DIHLE, 1982, p. 27, tradução nossa. 321 DIHLE, 1982, p. 27, tradução nossa. Anteriormente, o autor já havia comentado, em relação à psicologia moral grega baseada na interação entre o racional e o irracional, que “não há necessidade para uma vontade intermediária, da qual a ação dependeria inteiramente, e à qual todo julgamento moral sobre o comportamento humano se referiria em última instância” (ibidem, p. 27, tradução nossa). 322 DIHLE, 1982, p. 27-28. 323 DIHLE, 1982, p. 20, tradução nossa. 324 DIHLE, 1982, p. 20, tradução nossa. Mais adiante, Dihle acrescenta: “Nosso termo ‘vontade’ denota somente a intenção resultante, deixando de fora qualquer referência especial a pensamento, instinto ou emoção como fontes possíveis desta intenção. Os gregos, por outro lado, só conseguem expressar a intenção juntamente com uma de suas causas, mas nunca de seu próprio direito” (ibidem, p. 24-25, tradução nossa). 325 DIHLE, 1982, p. 54, tradução nossa. Em outros trechos, o autor comenta como o livre-arbítrio grego não consistia, como para Santo Agostinho, na liberdade de direcionar a intenção para onde

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Dihle se concentra, então, no processo histórico que permitiu o surgimento

da vontade cristã. Começa por considerar que as escolas helênicas lidavam com

diversos problemas que apontavam para esta noção, sem, no entanto, alcançá-

la.326 Em seguida aborda a junção da filosofia grega com o pensamento cristão,

em autores como São Paulo e Fílon de Alexandria: ambos teriam introduzido a

noção de “consciência” para explicar o ato de obediência, que não pressupõe

nenhum conhecimento anterior.327 Dihle mostra como este tipo de concepção

deriva diretamente do Velho Testamento: de fato, o Deus judeu – Yahveh -

sempre foi descrito em termos de suas qualidades de “vontade”, como

misericordioso, zeloso, vingativo, dominador etc.328 Tanto em São Paulo quanto

em Fílon, a consciência moral é uma resposta à vontade divina, resposta esta que

não pode ser invalidada pela razão ou pela emoção.329 Estes dois autores, no

entanto, não teriam cunhado o conceito de vontade:

São Paulo teria sido mais facilmente compreendido em sua doutrina, se tivesse introduzido um termo inequívoco para denotar a vontade do homem. (...) Não existe este termo na linguagem de São Paulo e seus contemporâneos. Mesmo a vontade de Deus, que fornece a causa última para a emergência da vontade humana, e que deve ser destacada, na linguagem do homem, dos planos e pensamentos de Deus – pois estes, ao contrário dos comandos da vontade divina,

se queira (ibidem, p. 45), e como para os gregos, de forma geral, nunca podemos ter certeza do que devemos fazer, enquanto as ordens do Deus cristão são bem explícitas (embora seus desígnios não) (ibidem, p. 74). 326 “Todos estes detalhes da doutrina estóica e epicuriana claramente indicam que o problema da vontade como um fator independente da cognição, na explicação psicológica e na avaliação moral da ação humana, com freqüência surge no curso das discussões filosóficas. Porém ninguém na tradição escolar da filosofia helenística parece ter sido preparado para responder a isso por uma teoria da vontade. A primazia e dignidade da razão, da qual a função principal é indubitavelmente cognitiva, estava firmemente estabelecida durante este período” (DIHLE, 1982, p. 63, tradução nossa). Mas adiante, comenta que embora a “escolha” estóica apontasse diretamente para o livre-arbítrio cristão, por ser anterior ao desejo, ela ainda pressupõe a dependência da ação em relação ao intelecto, não aceitando ainda, portanto, a idéia de uma vontade que independa tanto da emoção quanto da cognição. O “ato de vontade” cristão, de fato, é sempre livre, independente de qualquer esforço intelectual (ibidem, p. 69-71). 327 “Para São Paulo, todo cumprimento factual da Lei é primariamente um ato de obediência, apropriado em toda criatura em direção ao Criador. Ele pode ser realizado, como São Paulo observa, com e sem o conhecimento explícito do mandamento divino, e é somente o ato em si mesmo que realmente conta” (DIHLE, 1982, p. 80, tradução nossa). A “consciência” moral não teria origem no intelecto, apenas indicando ao indivíduo - de forma espontânea - se seus atos estão ou não de acordo com a vontade de Deus (ibidem, p. 81). 328 DIHLE, 1982, p. 91-92. 329 Esta obediência estaria diretamente ligada à fé: “a fé é então descrita como um fenômeno da vontade ao qual se relacionam as decisivas realizações na vida religiosa e moral” (DIHLE, 1982, p. 75, tradução nossa). Mais adiante, o autor comenta que “a soberania de Deus, que está acima da compreensão humana e não pode ser avaliada por padrões de racionalidade ou probabilidade, requer, da parte do homem, um ato da vontade, quer dizer obediência ou desobediência, aceitamento ou recusa” (ibidem, p. 76).

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são inexplicáveis para a mente humana -, não tem termo definitivo. Θέλησις, Θέληµα, βουλή, βούλησις, βούληµα, εύδοκία, νώµη são usados quase sempre como sinônimos com referência à vontade de Deus nos primeiros escritos da literatura cristã.330

Fílon também não teria cunhado este termo, por motivos semelhantes aos

de São Paulo: “Fílon descreve a vontade de Deus em grande detalhe, e

basicamente de acordo com a tradição religiosa de seu povo, mas sem o uso de um

termo específico e inequívoco”.331 Segundo Dihle, ambos os autores ainda

estavam muitos presos ao vocabulário grego:

Este conceito de vontade é inerente à doutrina de Fílon da consciência, assim como aos ensinamentos de São Paulo. Mas nenhum deles chegou a escolher um termo definitivo para denotar o conceito. Ambos tinham que se apoiar no vocabulário grego contemporâneo, que havia sido formado, em grande extensão e durante um grande período de tempo, por doutrinas filosóficas. (...) Tanto São Paulo quanto Fílon tinham que usar o grego contemporâneo, e este fato os impediu de cunhar o termo inequívoco que denotasse o conceito de vontade, ao qual ambos tinham sido levados em suas especulações.332

É interessante observar como este é um ponto comum à análise de Dihle e

de Gauthier & Jolif: ambos consideram que a noção de vontade ficou implícita

durante algum tempo – na doutrina dos estóicos, ou no Velho Testamento -, mas

sem chegar a ser criada como um conceito específico e bem definido, em parte

devido ao uso do vocabulário grego, que não continha termos que denotassem este

significado.

Dihle fala então rapidamente dos gnósticos, que teriam contribuído

fortemente para a elaboração do conceito “metafísico” da vontade de Deus, mas

sem fazer, no entanto, a passagem para a vontade “humana”.333 Caberia a Santo

Agostinho o mérito de, pela primeira vez na história da filosofia, ter feito esta

passagem. Ao contrário de Gauthier & Jolif, portanto, Dihle segue a interpretação

tradicional pela qual o filósofo medieval foi o inventor desta noção. Se apoiando 330 DIHLE, 1982, p. 83, tradução nossa. Mais adiante, temos: “São Paulo nunca cunhou um termo para denotar o conceito essencial de vontade no contexto de sua soteriologia e antropologia. Intenção enquanto tal é chamada por uma grande variedade de palavras” (ibidem, p.86). 331 DIHLE, 1982, p. 93, tradução nossa. 332 DIHLE, 1982, p. 98, tradução nossa. 333 Dihle considera que a concepção da realidade dos gnósticos pressupõe a “vontade” como fator metafísico, levando-a a se tornar uma entidade ontológica em seu próprio direito, e não um sub-produto da cognição. O trabalho de neo-platônicos como Plotino e Porfírio teria sido intensamente aproveitado por autores cristãos do século quarto (como Marius Victorinus e Gregório de Nissa, além dos chamados “Padres”), que tentavam formar uma clara concepção da vontade de Deus em sua doutrina da Trindade (DIHLE, 1982, p. 106-107; p. 115-116; p. 119).

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na tese de que o homem foi feito à imagem de Deus,334 Agostinho teria utilizado

seus métodos de introspecção e auto-exame para elaborar uma concepção

psicológica, e não ontológica, da vontade,335 que seria anterior tanto à dimensão

racional quanto irracional do homem.336 Assim como os comentadores franceses,

Dihle também assinala a importância das traduções de Cícero,337 acrescentando a

contribuição específica de Sêneca, que, em seus últimos escritos, teria

aparentemente se dado conta das implicações do termo voluntas, descrevendo-o

como um impulso para a ação que poderia ser apreendido independentemente

tanto da razão quanto do desejo irracional - mas sem, no entanto, elaborar uma

noção clara de “vontade”.338 Os motivos pelos quais nenhum dos autores latinos

tardios teriam chegado a este conceito seriam similares aos que vimos acerca dos

primeiros autores cristãos: a dependência da tradição filosófica grega.339

O autor conclui, então, fazendo o que nos parece ser um bom resumo de

sua análise, que enfatizou, como vimos, a maneira pela qual diversas tradições –

bíblica, neo-platônica, gnóstica e latina - teriam sido sintetizadas na obra de Santo

334 “Santo Agostinho abordou o problema da vontade de várias formas, mas sempre baseado na crença bíblica de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus” (DIHLE, 1982, p. 124, tradução nossa). 335 “Santo Agostinho concebeu sua teoria no ponto de vista psicológico” (DIHLE, 1982, p. 124, tradução nossa). Cf. ibidem, p. 23, tradução nossa: “A contribuição essencial de Santo Agostinho ao desenvolvimento da noção medieval e moderna de vontade precisa ser enxergada no contexto mais amplo da mudança de uma abordagem ontológica para uma psicológica, para a religião e a ética, que ele iniciou”. 336 “Das reflexões de Santo Agostinho emergiu o confeito de uma vontade humana, anterior e independente do ato de cognição intelectual, além de ser fundamentalmente diferente da emoção sensual e irracional, pelo qual o homem pode responder aos comandos inexplicáveis da vontade divina” (DIHLE, 1982, p. 127, tradução nossa). Cf. ibidem, p. 128-129, tradução nossa: “Santo Agostinho interpretou a liberdade de escolha, tradicionalmente atribuída a todos os seres racionais, como liberdade de vontade. (...) A direção da vontade, no entanto, é pensada e falada como sendo independente da cognição do melhor e do pior. (...) A resposta ao chamado de Deus precede, enquanto decisão da vontade, todo tipo de raciocínio e de fato leva à cognição intelectual”. 337 “Quando Cícero traduziu a terminologia ética e psicológica da filosofia grega, ele em geral usou velle e voluntas para expressar intenção consciente e deliberada em contraste com impulso irracional, força instintiva, ou compulsão externa. (...) Cícero, no entanto, usou a palavra voluntas não somente para denotar o que era chamado προαίρεσις ou βούλησις em grego. Às vezes, até mesmo em textos filosóficos, voluntas significa desejo, ou intenção mais espontânea do que deliberada, e em outras passagens o próprio impulso (όρµή), que provém da deliberação ou da atitude moral consciente, é chamado voluntas. A ampla área semântica aparentemente ligada a esta palavra no vocabulário filosófico de Cícero corresponde ao uso geral em seu tempo” (DIHLE, 1982, p. 134, tradução nossa). 338 DIHLE, 1982, p. 134-135. 339 “A filosofia romana, em grande parte por depender inteiramente da tradição grega, não desenvolveu a noção distinta de vontade antes de Santo Agostinho. Por outro lado, o uso das palavras velle/voluntas, em textos filosóficos e não-filosóficos, parece indicar que a idéia de uma volição pura, enquanto separada da cognição e da emoção, era inerente, embora indistintamente, no vocabulário romano” (DIHLE, 1982, p. 135, tradução nossa). A idéia de Dihle parece ser, assim, a de que os romanos, embora tenham desenvolvido um termo de significado bastante próximo da “vontade”, não chegaram a construir o conceito específico.

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Agostinho:

Santo Agostinho foi, de fato, o inventor de nossa noção moderna de vontade, que ele concebeu para as necessidades e propósitos específicos de sua teologia, e em continuidade com as tentativas dos teólogos gregos, que desenvolveram sua doutrina da Trindade em termos da ontologia neo-platônica. Ele deu o passo decisivo em direção ao conceito de vontade humana ao reinterpretar um termo hermenêutico como sendo antropológico. Isto eventualmente o levou a uma descrição filosófica adequada do que a tradição bíblica ensinou sobre a queda do homem, salvação, e conduta moral. Mas, ao fazê-lo, Agostinho foi grandemente ajudado e tacitamente guiado pelo vocabulário latino de seu tempo.340

Se formos, agora, concluir esta rápida exposição acerca do surgimento

histórico da vontade, podemos dizer que, apesar das diferenças entre as

abordagens de Dihle e de Gauthier & Jolif, ambas compreendem esta noção como

um impulso à ação “de seu próprio direito”, ou seja, que independe de instâncias

externas, como a razão ou a emoção. A intenção é, assim, considerada em si

mesma. Isto pode parecer contraditório com a descrição, feita por Gauthier & Jolif,

da vontade como “um desejo essencialmente racional” – mas é preciso considerar,

a nosso ver, que quando Dihle enfatiza a independência desta em relação à razão,

ele está, na verdade, se referindo ao fato da vontade não pressupor nenhum tipo de

conhecimento cognitivo. Ora, isto também é válido para o “desejo racional” de

que falam Gauthier & Jolif - como atesta o comentário, citado acima, acerca da

concepção de Máximo o Confessor: “é uma faculdade, levada por seu próprio

impulso, antes de qualquer intervenção do conhecimento, em direção a este

mesmo bem universal que a razão é feita para conhecer”. Parece-nos que os

comentadores franceses estão chamando de “vontade”, aqui, um impulso à ação

que se baseia em razões (que estabeleceriam, entre outras coisas, o fim da ação),

mas estas estão, por assim dizer, incorporadas ao próprio impulso, não derivando,

assim, de uma instância que lhe seja exterior. Trata-se, no fundo, de uma visão

que identifica a vontade à razão prática – o que parece corresponder, como

veremos adiante, à posição de Kant. Se Dihle não enfatiza tanto este aspecto, isso

se deve provavelmente ao fato de sua análise girar, sobretudo, em torno da

contribuição da tradição judaico-cristã, enquanto os autores franceses parecem dar

mais destaque à influência estóica. Ambas as abordagens, no entanto, concordam

que a vontade é um impulso à ação tomado em si mesmo, independentemente de

outras instâncias. O que ocorre, como dissemos, é que Gauthier & Jolif descrevem

340 DIHLE, 1982, p. 144, tradução nossa.

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esta independência a partir da incorporação, pela vontade, da dimensão racional,

enquanto Dihle parece enxergá-la mais a partir da visão agostiniana da “livre

escolha”, necessária para a noção de “fé”, entendida como obediência aos

mandamentos divinos. Apesar destas diferenças, ambos os comentadores

concordam que o conceito de vontade não existia para os gregos, particularmente

no período clássico, ao qual pertence Aristóteles (o período helenístico, como

vimos, pode talvez ser considerado de transição, onde a noção ainda não existia,

mas já havia discussões que apontavam para sua criação). Os dois também

concordam que a “vontade” independe de qualquer instância irracional: isso

significa, portanto, que nossos atos não derivam mais do desejo, como ocorria na

concepção de Aristóteles. Na parte 2, analisaremos a importância desta noção para

a ética de Kant. Como veremos, a vontade kantiana pode ser compreendida a

partir da relação entre duas faculdades, a Wille e a Willkür, sendo que a primeira

parece se aproximar mais do “desejo essencialmente racional” de Gauthier &

Jolif, e a segunda da “livre escolha” de Dihle.

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