(2005)... Mudança de regime e política externa__Portugal, a Indonésia e o destino de Timor Leste..pdf

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    1/29

    7

    Paulo Gorjo* Anlise Social, vol. XL (174), 2005, 7-35

    Mudana de regime e poltica externa: Portugal,a Indonsia e o destino de Timor Leste**

    INTRODUO

    Os tericos da democracia so geralmente unnimes em considerarem queuma mudana de regime no sentido da democratizao envolve trs perodosdistintos: (1) o fim de um regime autoritrio; (2) o estabelecimento de umregime democrtico; (3) a consolidao de um regime democrtico1. Cadaum destes perodos influenciado por questes especficas e apresenta dife-rentes desafios, que podem sobrepor-se durante algum tempo. O presente

    artigo focar, em particular, a ligao entre a mudana de regime e a polticaexterna, ou seja, o modo como o fim de um regime autoritrio e a ascensode um governo democrtico condicionam e influenciam a poltica externa.Defenderei que a naturezade um governo interino no a principal varivelpara explicar as iniciativas de poltica externa, ou a ausncia das mesmas,durante a administrao de um governo provisrio2. A sua naturezano explicaquais as decises de poltica externa tomadas nem o porqu dessas mesmasdecises.

    Como abordagem alternativa explicao das iniciativas de poltica externa

    durante uma mudana de regime, tomarei em considerao duas variveis. Emprimeiro lugar, procurarei estabelecer se a linha de poltica externa seguida noperodo anterior mudana de regime era (ou no) considerada legtima nosplanos internacional e interno e se esta percepo ter mudado antes ou depois

    * Universidade Lusada de Lisboa e revista Poltica Internacional.** Este artigo foi publicado originalmente com o ttuto Regime change and foreign

    policy: Portugal, Indonsia and the self-determination of East Timor, em 2002, na revistaDemocratization . A verso aqui publicada foi revista e aprofundada.

    1Samuel P. Huntington, The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century,

    (Norman, Universidade de Oklahoma, 1991, p. 35.2 As expresses governo interino e provisrio sero utilizadas como sinnimos.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    2/29

    8

    Paulo Gorjo

    da transio para a democracia. Em segundo lugar, tentarei identificar as ava-liaes e estratgias individuais e colectivas que se verificaram durante a tran-sio para a democracia. Conjuntamente, estas duas variveis determinam quaisas iniciativas de poltica externa tomadas, bem como o porqu das mesmas,permitindo ainda compreender melhor por que razo determinadas decises depoltica externa enfrentaram resistncia ou no chegaram sequer a ser tomadas.

    A questo de Timor Leste constitui um bom estudo de caso por, pelomenos, duas razes. Em primeiro lugar, comea e acaba com duas transiespara a democracia. A questo timorense surgiu na agenda internacional coma transio portuguesa para a democracia, entre Abril de 1974 e Junho de1976, e foi resolvida com a mudana de regime na Indonsia, entre Maio de1998 e Outubro de 1999. Em segundo lugar, no que toca ao processo detransio para a democracia, as experincias de Portugal e da Indonsia nopoderiam ser mais diferentes. A transio portuguesa ocorreu durante a guerra

    fria, nos anos 70, enquanto a transio indonsia teve lugar no perodo ps--guerra fria, durante a dcada de 90. Portugal um pas catlico e a Indonsiaum pas maioritariamente muulmano. O primeiro um Estado europeu e osegundo pertence ao Sudeste asitico. Em Portugal, a transio para a demo-cracia ocorreu mediante um governo revolucionrio provisrio, ao passo quea Indonsia teve um governo caretaker. Contudo, apesar das diferenas po-lticas, culturais, econmicas, sociais e religiosas entre os dois pases, a abor-dagem aqui desenvolvida descreve e explica as decises de poltica externa queambos tomaram relativamente a Timor Leste.

    DA QUEDA DO AUTORITARISMO TRANSIOPARA A DEMOCRACIA

    O fim de um regime autoritrio pode ser explicado tomando em consi-derao dois nveis diferentes. Em primeiro lugar, h que avaliar o papeldesempenhado por factores internacionais na queda do regime. Os factoresinternacionais, como o ambiente geo-estratgico3, a localizao geo-estra-tgica4, o contexto geopoltico5, a proporo de democracias6 e a presso

    3 Geoffrey Pridham, The international dimension of democratization: theory, practiceand international comparisons, inEric Herring e George Sanford (eds.), Building Democra-cy? The International Dimension of Democratization in Eastern Europe, Londres, LeicesterUniversity Press, 1994, p. 7.

    4 Philippe C. Schmitter, An introduction to Southern European transitions fromauthoritarian rule Italy, Greece, Portugal, Spain, and Turkey, in Guillermo ODonnell,Philippe C. Schmitter e Laurence Whitehead (eds.), Transitions from Authoritarian Rule:Southern Europe, Baltimore, MD, Johns Hopkins University Press, 1986, p. 4.

    5 Laurence Whitehead, Geography and democratic destiny, in Journal of Democracy,vol. 10, n. 1, 1999, p. 75.

    6Adam Przeworski e Fernando Limongi, Democracy and development, inAxel Hadenius(ed.), Democracys Victory and Crisis, Cambridge, Cambridge University Press, 1997, p. 194.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    3/29

    9

    Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste

    internacional7, para nomear apenas alguns, podem desempenhar um papelimportante na queda de um regime autocrtico.

    Contudo, embora os factores internacionais possam promover o colapso doautoritarismo, como fez notar um autor, [em termos globais] tais pressesexternas no so determinantes. Os seus efeitos so sempre mediados atravsde processos internos8. Por outras palavras, no basta considerar apenas asvariveis internacionais, j que os factores internacionais influenciam a acopoltica, mas no determinam os resultados de um modo absoluto9. Por con-seguinte, igualmente importante incorporar na anlise os factores internos. Parajustificarem, perante os regimes democrticos, a sua permanncia indefinida nopoder, os regimes autoritrios recorrem frequentemente aos seguintes argumen-tos: (a) a sua natureza confere-lhes uma vantagem, j que so menos instveis;(b) esta caracterstica especfica d-lhes uma maior capacidade de promoverema estabilidade social e o desenvolvimento econmico. Por outras palavras, [os

    regimes autoritrios] autojustificam-se em termos polticos definindo-se comopoderes de transio, procurando desviar as atenes para as suas importantesrealizaes imediatas tipicamente, o estabelecimento da paz social ou apromoo do desenvolvimento econmico10. Quando um regime autoritrio serevela incapaz de cumprir, internamente, estes dois objectivos, uma consequn-cia possvel a ocorrncia de uma crise de legitimidade.

    Assim, importante tomar em considerao o papel de diferentes vari-veis polticas, militares e econmicas, quer sejam de origem interna ouinternacional. A queda de um regime autoritrio , com frequncia, o resul-

    tado de todos estes factores. Porm, tais factores desempenham papisdiferentes em cada crise e subsequente queda de um governo autoritrio.No entanto, uma crise de legitimidade decorrente de variveis econmicas

    ou militares no uma condio suficiente para o fim de um regime auto-ritrio. Uma situao de mau desempenho poltico no leva necessariamentea que o regime seja posto em questo. Em algumas situaes, o governoconsegue agir antes que uma situao de crise evolua para uma contestao legitimidade do regime. Assim, o impacto da crise depende da capacidadedo regime de impedir a politizao do problema em questo. Para alm disso,os governos autoritrios, como quaisquer outros regimes, necessitam de uma

    base de apoio. Consequentemente, o mau desempenho do regime pode levara uma contestao das opes polticas prevalecentes, bem como pode colocar

    7Axel Hadenius, Democracy and Development,Cambridge, Cambridge University Press,1992, p. 153.

    8 Whithead, op. cit., p. 76.9 James Putzel, Why has democratization been a weaker impulse in Indonesia and

    Malaysia than in the Philippines?, in David Potter, David Goldblatt, Margaret Kiloh e PaulLewis (eds.), Democratization, Cambridge, Polity Press, 1997, p. 241.

    10 Guillermo ODonnell e Philippe C. Schmitter, Transitions from Authoritarian Rule:

    Tentative Conclusions about Uncertain Democracies, Baltimore, MD, Johns HopkinsUniversity Press, 1986, p. 15.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    4/29

    10

    Paulo Gorjo

    em causa o apoio das coligaes que servem de base ao regime11. Uma criserequer normalmente ajustamentos de poltica, que podem ter consequnciaspara os interesses dos grupos que apoiam o regime. Por vezes, estes gruposesto tambm a sofrer os efeitos da crise. Por conseguinte, a recusa deimplementao de uma mudana de poltica tambm no ser favorvel aosseus interesses. Se o regime autoritrio se revelar incapaz de resolver o pro-blema, os grupos mais afectados comearo, mais cedo ou mais tarde, adistanciar-se do regime. Em alguns casos de colapso de um regime autoritrio,a populao comea a dar sinais de contestao e o mais provvel que aspotenciais divises no governo se tornem manifestas. Nesta fase, a manuten-o do regime est j em risco. A mobilizao popular implicar custos maiselevados para o restabelecimento da ordem e aumentaro as presses comvista a que se chegue a um qualquer tipo de soluo para o problema. Emmuitos casos, a liberalizao encorajar reivindicaes de uma democratizao

    completa, o que elevar os custos da resoluo do problema.Em suma, a queda de um regime autoritrio comea com uma situao de

    crise desencadeada por factores internos ou externos e geralmente acompa-nhada por uma crescente mobilizao popular, a qual, por seu turno, conduzir desunio do regime12. Mais cedo ou mais tarde, a no ser que se verifiqueum golpe militar, o governo autoritrio depois de avaliar os custos e osbenefcios acabar por transferir o poder poltico para um novo regime.

    A queda do regime autoritrio seguida pela transio para a democracia.Uma transio o intervalo entre um regime poltico e outro13. Por outras

    palavras, uma transio ocorre depois de ter sido desencadeado um processode dissoluo de um regime autoritrio e termina com a instalao de umqualquer tipo de democracia, o regresso a uma qualquer forma de poderautoritrio, ou a emergncia de uma alternativa revolucionria14. Os proces-sos que conduzem transio para a democracia no so sempre os mesmos.Um autor distingue trs categorias principais transformao, substituio etransplacement15. Um outro divide-os entre reformae ruptura16.Uma terceiraclassificao distingue entre transaco, queda/colapso e extrication17.

    11 Stephen Haggard e Robert R. Kaufman, The Political Economy of DemocraticTransitions, Princeton, Princeton University Press, 1995.

    12 Robert H. Dix, The breakdown of authoritarian regimes, in Western PoliticalQuarterly, vol. 35, n. 4, 1982, pp. 568-569.

    13 ODonnell e Schmitter, op. cit., p. 6.14 Id., ibid.15 Huntington, op. cit., p. 114.16Juan J. Linz, Crisis, breakdown, and reequilibration, inJuan J. Linz e Alfred Stepan

    (eds.), The Breakdown of Democratic Regimes: Crisis, Breakdown, and Reequilibration,Baltimore, MD, Johns Hopkins University Press, 1978, p. 35.

    17 Donald Share e Scott Mainwaring, Transitions through transaction: democratization

    in Brazil and Spain, inWayne A. Selcher (ed.), Political Liberalization in Brazil: Dynamics,Dilemmas, and Future Prospects, Boulder, CO, Westview Press, 1986, pp. 177-179.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    5/29

    11

    Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste

    A transformao, a reforma e a transaco dizem respeito s transies paraa democracia em que a iniciativa de se efectuar a mudana de regime tomada pelas elites autoritrias. A substituio, a ruptura e a queda ou co-lapso aplicam-se s situaes em que os governos autoritrios so derruba-dos pela oposio. O transplacement e a extrication ocorrem quando ogoverno autoritrio e a oposio trabalham em conjunto com vista ao esta-belecimento de um novo regime democrtico.

    Cada um destes processos afecta de modo diferente o governo interino quegeralmente assume o poder no hiato entre a queda do regime autoritrio e aescolha de um novo governo atravs de eleies livres e competitivas18. Osgovernos interinos so divididos em diferentes tipos, de acordo com a suanatureza:(a) governos provisrios revolucionrios; (b) governos interinos empartilha de poder; (c) governos caretaker19. Os governos provisrios revolu-cionrios emergem aps a queda do ancien rgime causada por uma revo-

    luo interna ou um coup dtat, ou provocada por uma guerra seguida porocupao externa e pela destituio do regime do pas20. Por outras palavras,correspondem a situaes de substituio, ruptura e queda/colapso. Por outrolado, se os membros da elite em queda conseguirem administrar a transioat transferncia do poder para um governo democraticamente eleito, ou,alternativamente, para outro regime no democrtico, ento estaremos peran-te um governo caretaker. Este tipo de governo resulta de situaes de trans-formao, reforma e transaco21. Os governos interinos em partilha de podercorrespondem s situaes em que o governo autoritrio e a oposio demo-

    crtica partilham temporariamente o poder executivo antes das eleies22

    . Soo resultado de um processo de transplacement ou extrication.Em suma23:

    18 Allison K. Stanger, Democratization and the international system: the foreign policiesof interim governments, in Yossi Shain e Juan J. Linz (eds.), Between States: InterimGovernments and Democratic Transitions,Cambridge, Cambridge University Press, 1995, p. 256.

    19O autor deste artigo acrescenta lista uma quarta categoria possvel: governos interinosinternacionais. Este tipo de governo no ser objecto de anlise no presente artigo. Osgovernos interinos em partilha de poder sero tambm de interesse secundrio neste estudo.

    20Yossi Shain e Juan J. Linz (eds.),Between States: Interim Governments and DemocraticTransitions, Cambridge, Cambridge University Press, 1995, p. 5.

    21 Id., ibid.

    22 Id., ibid.23 Este quadro adaptado de Huntington, op. cit., p. 144.

    Transformao Reforma Transaco Governos caretaker

    Substituio Ruptura Queda/colapsoGovernos provisrios

    revolucionrios

    Transplacement ExtricationGovernos interinos em

    partilha de poder

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    6/29

    12

    Paulo Gorjo

    Cada um destes autores avalia de modo diferente a poltica externa doregime autoritrio extinto. Como fez notar um autor, os governos caretaker

    enfrentam um dilema nico na formulao de uma agenda internacionaldurante o perodo interino. As polticas externas da ordem autoritriaanterior so, para todos os efeitos prticos, criaes dos actuaiscaretakers. Embora a renncia a tais polticas possa promover a tarefa deconsolidao da democracia, uma tal ruptura nas relaes internacionaisdo Estado minaria tambm a legitimidade do governo interino. Conse-quentemente [] pouco provvel que os governos interinos caretakerpromovam grandes iniciativas de poltica externa antes das primeiraseleies, especialmente nos casos em que os militares administram atransio ou constituem uma poderosa fora independente na poltica datransio24.

    A situao diferente da que se observa nos governos provisrios revo-lucionrios, j que estes

    costumam assumir o poder num momento em que o regime autoritrioconduziu j o navio do Estado a uma profunda crise internacional. Fre-quentemente, a nao est em guerra aquando da revoluo, e os factoressistmicos servem de catalisador mudana revolucionria. Os governosinterinos [] [tm em comum] a promoo de uma reorientao radical

    da poltica externa do ancien rgime25.

    Os governos interinos em partilha de poder adoptam uma poltica externaque primeira vista parece igual anterior, mais do que uma ponte para umanova ordem26. De acordo com estas anlises, cada tipo-ideal reflecte umequilbrio de poder entre os principais actores e isto bastante evidente nassuas agendas polticas internas e internacionais. Como se segue do acimamencionado, o processo que conduz ao afastamento das anteriores elitesautoritrias oferece por vezes incentivos mudana da poltica externa. Por

    outras palavras, a natureza do governo interino reflecte o tipo de regime detransio e isto conduzir a opes especficas de poltica externa. De certomodo, este argumento reflecte a existncia de um certo tipo de determinismo.

    Contudo, os governos interinos que se verificaram em Portugal entreAbril de 1974 e Junho de 1976 e na Indonsia entre Maio de 1998 e Outubrode 1999 no esto em total conformidade com esta descrio e explicao.

    24 Stanger, op. cit., pp. 269-270.

    25 Id., ibid., p. 257.26 Id., ibid., p. 264.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    7/29

    13

    Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste

    Entre outras coisas, o modelo referido no explicita claramente os mecanis-mos envolvidos na seleco das questes de poltica externa. Por que razoos governos provisrios revolucionrios optaram por reorientarem questesespecficas enquanto mantm intactas determinadas opes de poltica exter-

    na nomeadamente aquelas que so uma consequncia natural de realida-des geogrficas e econmicas? Por outro lado, e ao contrrio do que men-cionmos atrs, a realidade que alguns governos caretakertomam de factoimportantes iniciativas de poltica externa. Porqu?

    Uma resposta a estas questes implica a rejeio da relao causal entrea natureza do governo interino e a poltica externa. Por outras palavras, anatureza do governo interino no a principal varivel que influencia o tipode iniciativas de poltica externa postas em prtica. De modo a chegarmosa uma resposta cabal, teremos de tomar em considerao as avaliaes e

    estratgias individuais e colectivas dos actores envolvidos, bem como alegitimidade internacional e interna das questes de poltica externa em cau-sa. Mediante a avaliao de custos e benefcios, os actores envolvidos po-dero concluir que do seu melhor interesse alterarem uma determinadaorientao de poltica externa.

    A POLTICA EXTERNA ANTES E DEPOIS DA MUDANADE REGIME

    Uma poltica externa considerada internacionalmente legtima quandorespeita a paz internacional, bem como as normas e princpios de seguranada conduta internacional. Por outras palavras, deve obedecer lei e normasinternacionais. Alm disso, uma poltica externa internamente consideradalegtima quando incorpora no apenas os valores e crenas nacionais, mastambm os interesses polticos e econmicos. Nenhum destes esttico;todos so, de facto, dinmicos. O tempo pode conduzir a uma mudana depercepes no que diz respeito legitimidade internacional e interna.

    Teoricamente, h quatro cenrios possveis: (1) a deciso de polticaexterna considerada internacional e internamente legtima; (2) a questo tida como internacionalmente legtima, mas como ilegtima no plano interno;(3) a opo de poltica externa considerada ilegtima do ponto de vistainternacional e legtima internamente; (4) a questo considerada ilegtimatanto no plano internacional como no plano interno.

    Perante estes diferentes cenrios possveis, o que ir determinar as op-es polticas do regime? Estas decises sero, em primeiro lugar, umaconsequncia das estratgias do regime, bem como das suas avaliaes de

    custos e benefcios. Uma poltica considerada legtima tanto interna comointernacionalmente no acarretar custos de relevo. Poder proporcionar

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    8/29

    14

    Paulo Gorjo

    benefcios significativos com custos reduzidos, pelo que no h razes paraa alterar. Pelo contrrio, uma poltica considerada ilegtima tanto no planointerno como internacional apresenta custos elevados e benefcios reduzidos.De um ponto de vista racional, as razes para que um governo mantenha tal

    opo so escassas ou mesmo inexistentes.Contudo, quando se trata de uma poltica considerada ilegtima no planointernacional e legtima no plano interno ou ilegtima internamente elegtima internacionalmente , o caso muda de figura. Em tais circunstn-cias, h custos inevitveis a tomar em considerao, mas tambm benefciosimportantes. Saber que determinada poltica ilegtima no significa que novalha a pena implement-la. Se os custos envolvidos so considerados poucoimportantes, o governo possuir incentivos para manter essa linha de orien-tao de poltica externa. Por outro lado, se a manuteno de uma determi-

    nada linha poltica implica custos elevados, o governo ter mais incentivospara proceder sua alterao.Os custos de uma poltica externa ilegtima podem variar. Entre outras

    possibilidades, um governo pode enfrentar a condenao poltica internacio-nal sem mais consequncias polticas, o impacto das resolues das NaesUnidas, sanes econmicas, ou a guerra. Internamente, e na pior das hip-teses, pode enfrentar um grau de agitao social e de diviso poltica da eliteque ponha em risco a sobrevivncia do regime. Habitualmente, a naturezarepressiva dos regimes autoritrios permite-lhes lidar com as crticas internas

    atravs de propaganda incontestada. O factor que, com maior probabilidade,ir persistir ser o da condenao internacional. Em contrapartida, os gover-nos democrticos so limitados pela falta de legitimidade, nomeadamenteentre a opinio pblica. Em particular, as questes de poltica externa quevo contra o bem-estar e estabilidade internos tm o potencial de chamarema ateno do pblico em geral e de mobilizarem a opinio pblica27.

    Quando implementam, em benefcio dos seus interesses, uma poltica ex-terna considerada internacionalmente ilegtima, os governos autoritrios defen-dem-se geralmente de duas maneiras paralelas. Uma considerando as crticas

    internacionais uma inaceitvel violao da sua soberania nacional. A outra demonstrando que ainda se consideram (e os outros Estados) subordinados regra em questo. Em alguns casos, o Estado pode negar a ocorrncia dequaisquer violaes [] [ou] pode admitir que ocorreu uma infraco, masjustifica-a alegando um qualquer princpio de importncia capital28. Seja qual

    27 Margot Light, Democracy, democratization and foreign policy in post-socialistRussia, in Hazel Smith (ed.), Democracy and International Relations: Critical Theories/Problematic Practices, Londres, Macmillan, 2000, p. 98.

    28 Hedley Bull, The Anarchical Society: A Study of Order in World Politics, Londres,Macmillan, 1977, pp. 132-133.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    9/29

    15

    Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste

    for o argumento utilizado, a deciso de implementar ou manter uma polticaem conflito com a legitimidade internacional assenta em, pelo menos, duasrazes. Em primeiro lugar, o Estado pode considerar pouco significativos oscustos associados ao incumprimento das regras internacionais. Em segundo

    lugar, as crticas externas podem ser vistas como uma provocao polticadiplomtica vigente e ao prprio governo autoritrio. Assim, este v-se obri-gado a dar mostras da sua autoridade perante o pblico nacional, j quequaisquer sinais de fraqueza podem suscitar dvidas quanto capacidade decontrolo e estabilidade interna do regime. Se o regime se revelar incapazde mostrar determinao, o facto poder pr em risco o apoio contnuo dascoligaes sobre as quais assenta. Alm disso, se a poltica seguida forconsiderada legtima a nvel interno, ento existem razes acrescidas paraque se prossiga dentro da mesma linha de orientao. Consequentemente,

    ainda que a poltica externa dos regimes autoritrios parea respeitar ospadres internacionais, tal apenas, regra geral, um mecanismo para fazerpassar uma imagem de obedincia. Trata-se de mudanas estticas, mais doque reais.

    No entanto, com o passar do tempo, se uma determinada poltica externacomear a infligir custos a certos grupos internos, o governo autoritriopoder enfrentar crticas. Os mais onerados pela poltica do governo come-aro a exigir a alterao da mesma. O grau de importncia destes gruposou indivduos na coligao de apoio ao regime determinar o resultado das

    presses, podendo conduzir a uma mudana de poltica ou represso dosdescontentes. Contudo, em alguns casos, a recusa de implementar umadeterminada mudana de poltica externa poder ser tambm desfavorvelaos interesses de outros grupos internos. Assim, se o governo autoritrio serevelar incapaz de alterar a sua orientao poltica, os interesses colectivosmais afectados comearo, mais cedo ou mais tarde, a distanciar-se doregime.

    Todavia, a condenao internacional de uma dada poltica externa consi-derada ilegtima normalmente entendida como inaceitvel pelos elementos

    mais extremistas do regime autoritrio. semelhana do prprio regime,estes elementos consideram que tal poltica externa possvel e desejvel.Estes elementos mais radicais podem ter motivaes diferentes para as po-sies que assumem. Alguns deles podero apoiar uma determinada decisode poltica externa porque a consideram favorvel aos seus interesses eco-nmicos. Outros podem ser verdadeiros crentes que consideram que talpoltica constitui a melhor opo para proteger os interesses nacionais, peloque ter de ser seguida e as crticas internacionais ignoradas.

    A persistncia de uma poltica externa autoritria que acarrete custos

    elevados levar ao surgimento de moderados. Estes comearo a ressentir--se dos custos infligidos aos seus interesses, e aos do pas, em consequncia

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    10/29

    16

    Paulo Gorjo

    de determinada opo de poltica externa. Assim, apoiaro uma qualquersoluo de compromisso que tome em considerao as crticas internacio-nais. Tal abordagem levar, provavelmente, os mais extremistas a apresen-tarem diversos argumentos contra uma soluo de compromisso. E, se a

    poltica externa seguida for entendida como legtima pela populao, osmoderados tero dificuldades em imporem os seus pontos de vista.Na perspectiva do regime autoritrio, as mudanas de poltica externa so

    sempre difceis. Uma mudana implica que o regime tem de admitir quecometeu um erro oneroso. Nos casos em que o lder do regime desempenhaum papel de relevo na rea da poltica externa, a situao ser ainda maisgrave, j que o fracasso , em ltima anlise, da sua responsabilidade. Assim,o governo autocrtico v-se acorrentado s suas anteriores opes de pol-tica externa. Este facto explica por que razo, de um modo geral, as grandes

    inverses de poltica externa ocorrem apenas com uma mudana de regime.Contudo, ainda que no conduzam a uma mudana, as crticas internas

    e internacionais poltica externa de um governo autoritrio revestem-se degrande importncia. Uma situao anterior de crtica ao regime pode criarcondies mais favorveis para uma abertura diplomtica durante o processode transio para a democracia. Quanto mais elevados forem os custosinfligidos elite e populao em consequncia da linha de orientao depoltica externa seguida por um regime autoritrio, mais elevada ser a pro-babilidade de mudana dessa poltica durante a transio para a democracia.

    Mas a transio para a democracia no desencadeia necessariamentemudanas de poltica externa. Nos casos em que esta considerada legtimanos planos internacional e interno, no existiro razes bvias para se pro-ceder a tal mudana, ainda que um regime democrtico possa alterar de certaforma a perspectiva do Estado. Pelo contrrio, nos casos em que umadeterminada orientao poltica considerada ilegtima tanto no plano inter-nacional como interno, o apoio mudana de poltica ser, muito provavel-mente, consensual. A situao ser menos clara nos casos em que uma opo

    de poltica externa considerada ilegtima do ponto de vista internacional elegtima internamente, ou legtima no plano internacional e ilegtima no planointerno. Em ltima instncia, uma mudana de poltica ou a manuteno dapoltica anterior reflectiro um equilbrio de poder interno entre as diferentesavaliaes e estratgias individuais e colectivas e, possivelmente, entre osincentivos e objeces externos. No entanto, mesmo quando se verificamalteraes de poltica externa, estas no conduziro a uma mudana depoltica externa completa e radical. O tipo de mudanas e as razes para asmesmas dependero das avaliaes e estratgias individuais e colectivas.

    A transio para a democracia pode conduzir a uma mudana de polticaexterna porque h novos actores, ou os mesmos, com um diferente conjunto

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    11/29

    17

    Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste

    de avaliaes e estratgias. No primeiro caso, a mudana de regime podeabrir uma janela de oportunidade implementao de uma linha de orientaode poltica externa j exigida durante o regime autoritrio. At ento no foraimplementada porque o regime autoritrio funcionara como um travo

    mudana, no obstante a presso interna em favor da mesma. Noutroscasos, os novos actores so eles prprios os responsveis por uma novapercepo relativamente necessidade de uma mudana de poltica. Emqualquer dos casos, o governo interino instalado tender a reflectir as novasnormas, crenas e valores democrticos, bem como as avaliaes e estra-tgias individuais e colectivas. No novo ambiente poltico e econmico, cadaum apoiar a poltica que melhor lhe convier.

    As avaliaes e estratgias individuais tendero a ser influenciadas noapenas pelos valores e crenas dos actores, como tambm pelas novas

    regras do jogo. De acordo com as regras democrticas emergentes, e con-dicionado pelas eleies fundadoras iminentes, o novo actor tender a enten-der os seus interesses em termos das suas probabilidades de ser eleito. Porconseguinte, se uma mudana de poltica lhe proporciona maiores probabi-lidades de ser eleito, o actor agir de forma a alcan-la. Consequentemente,os factores internos podem conduzir ao cumprimento das normas, crenase valores internacionais. Esta mudana ser bem acolhida internacionalmente,proporcionando-lhe, por seu turno, um nvel acrescido de capacidade poltica.

    Se bem que as avaliaes e estratgias colectivas no sejam condiciona-

    das pelas eleies fundadoras, podero ter outras motivaes para defende-rem uma mudana de poltica externa. Se, no passado, sofreram custoselevados devido manuteno de uma determinada poltica, e se tal polticaparecer condenada ao fracasso, ento desejaro alter-la. Com o desapare-cimento da oposio autoritria, a transio para a democracia oferecer-lhes-- uma janela de oportunidade para a mudana.

    Tudo poder ser diferente se os interesses individuais e colectivos entra-rem em coliso. Em tal situao, verificar-se-, provavelmente, um confron-to. O resultado final depender do apoio dos militares. Se estes apoiarem

    uma mudana diplomtica, as probabilidades de que tal mudana se concre-tize sero elevadas. Se os militares assumirem uma posio contrria, amudana ser improvvel. Contudo, h outras variveis que podem influen-ciar o resultado final. Mas, na pior das hipteses, o confronto pode resultarem violncia interna ou guerra civil. O resultado depender no apenas doequilbrio de poder entre os actores individuais e colectivos, mas tambm deoutras variveis internas e internacionais. Como a prpria transio para ademocracia, as decises tomadas ou a tomar relativamente s inicia-tivas de poltica externa evoluiro durante a mudana de regime. Inevitavel-

    mente, as alteraes do equilbrio de poder interno entre os principais actorescondicionaro os resultados no que diz respeito s polticas externas.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    12/29

    18

    Paulo Gorjo

    29 Nuno G. Monteiro e Antnio Costa Pinto, Cultural myths and Portuguese national

    identity, in Antnio Costa Pinto (ed.), Modern Portugal, Palo Alto, CA, The Society forthe Promotion of Science and Scholarship, 1998.

    Em consequncia, h uma forte probabilidade de as iniciativas de polticaexterna incidirem sobre as questes que, de acordo com as avaliaes eestratgias tanto individuais como colectivas, sejam consideradas mais favo-rveis ou mais onerosas. Por outras palavras, quando existe acordo quanto

    a um resultado desejvel comum. O contrrio tambm pode ser verdadeiro.H menos probabilidades de uma mudana de poltica ser implementadaquando os actores individuais e colectivos no chegam a acordo quanto aoresultado desejado. Desse modo, durante a transio para a democracia, aprobabilidade de uma mudana de poltica externa elevada numa situaode 3 + 4, moderada numa situao de 1 + 4 e 3 + 2 e reduzida numa situaode 1+ 2:

    Internacionalmente legtimo (1) Internamente legtimo (2)

    Internacionalmente ilegtimo (3) Internamente ilegtimo (4)

    A QUEDA DO REGIME AUTORITRIO PORTUGUS

    Em Portugal, o golpe militar de 25 de Abril de 1974 pelo Movimento das

    Foras Armadas (MFA) veio pr fim aos quarenta e seis anos de governoautoritrio de Oliveira Salazar (1928-1968) e Marcello Caetano (1968-1974).Os objectivos do MFA eram conhecidos como os trs Ds: descolonizao,democratizao e desenvolvimento. Durante a transio para a democracia,entre Abril de 1974 e Junho de 1976, teve incio em Portugal um processono sentido de se reavaliarem algumas das linhas de orientao da polticaexterna e de se redefinir a identidade nacional. A mudana ps um fim aomito imperial29. Portugal deixou de ser um Estado multicontinental. Aolongo dos anos subsequentes, a poltica externa e a identidade nacional

    tornar-se-iam mais europeias e menos afro-atlnticas.Diferentes causas imediatas, prximas e distantes explicam a queda do

    regime autoritrio e a transio para a democracia. A causa distante interna-cional mais importante foi a nova estrutura sistmica que emergiu em mea-dos dos anos 40 e incios da dcada seguinte. Dois dos principais desenvol-vimentos do perodo que se seguiu segunda guerra mundial constituram

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    13/29

    19

    Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste

    uma ameaa ao governo autoritrio: a integrao poltica e econmica euro-peia e o fim dos imprios coloniais europeus. O Plano Marshall (oficialmenteconhecido como o Plano de Recuperao da Europa, ERP), proposto a 5 deJunho de 1947, foi entendido em Lisboa como uma ameaa ao desejado

    nacionalismo econmico portugus. O ERP foi considerado por Lisboa uminstrumento para a nova hegemonia mundial dos Estados Unidos, que poderiater implicaes muito alargadas para a Europa. Inicialmente, Portugal nosolicitou qualquer ajuda financeira ao abrigo do Plano Marshall; porm, acrescente crise econmica interna forou Salazar a alterar a sua posio.Ainda assim, o regime manteve uma atitude de desconfiana perante aquiloque lhe parecia ser a crescente dependncia econmica interna do pasrelativamente aos Estados Unidos e Europa ocidental30. Um outro motivode preocupao para Salazar era que mesmo alguns pases como a Frana

    e a Holanda, que tinham estado do lado dos vencedores, se viram obrigadosa permitirem a autodeterminao dos seus territrios ultramarinos. Esta de-ciso reflectia no apenas a fraqueza poltica desses pases, mas tambm onovo sistema internacional bipolar. Devido a razes que ultrapassam o m-bito do presente artigo, tanto os Estados Unidos como a Unio Soviticaeram superpotncias anticoloniais. Assim, era inevitvel que, mais cedo oumais tarde, um pequeno pas europeu como Portugal viesse a experimentarenormes dificuldades em manter o seu imprio colonial. O isolamento doregime portugus no novo sistema internacional bipolar era tambm uma

    consequncia da chamada vitria das democracias31

    . Com a queda dos re-gimes fascistas e o crescente nmero de democracias na Europa, os gover-nos autoritrios estavam ideolgica e politicamente confinados periferiaeuropeia.

    No plano interno, a principal razo distante subjacente queda do regimeera o modelo econmico escolhido. A opo por um modelo de nacionalismoeconmico condenava Portugal a ser uma sociedade rural, com os maisbaixos indicadores de desenvolvimento econmico da Europa ocidental. Naaltura, como afirmou um autor, Portugal apresentava as taxas mais elevadas

    de analfabetismo, mortalidade infantil e doenas contagiosas da Europa oci-dental e o mais baixo rendimento per capita32. A aceitao por parte dapopulao de um regime autocrtico no era recompensada com umamelhoria das condies de vida.

    30 Maria Fernanda Rollo, Salazar e a construo europeia, in Penlope, n. 18, 1997,pp. 51-76.

    31 Jos Medeiros Ferreira, Caractersticas histricas da poltica externa portuguesa entre1890 e a entrada na ONU, in Poltica Internacional, vol. 1, n. 6, 1993, p. 144.

    32 Kenneth Maxwell, Portugal: a neat revolution, in The New York Review of Books,vol. 21, n. 10, 1974, p. 17.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    14/29

    20

    Paulo Gorjo

    A situao agravar-se-ia, tanto a nvel internacional como interno, nadcada de 60. Em parte devido estrutura bipolar de rivalidade entre as duassuperpotncias, Portugal no fora aceite como membro das Naes Unidasem 1946. A adeso portuguesa ocorreria apenas em 14 de Dezembro de

    1955. Alm disso, em 1959, as Naes Unidas voltariam a aceitar novosmembros, mas desta feita muitos deles eram pases africanos e asiticos.Esta deciso constituiu uma causa internacional prxima para o colapso doregime. Estes Estados soberanos eram ex-colnias e a sua adeso s NaesUnidas fez aumentar a presso internacional sobre a poltica colonial doregime autoritrio portugus. Logo que Portugal se tornou membro dasNaes Unidas, o secretrio-geral da ONU quis saber se Lisboa possuaterritrios nas condies referidas no artigo 73 da Carta das Naes Unidas.Por outras palavras, o secretrio-geral queria saber se Portugal administrava

    territrios cujos povos no tinham ainda alcanado uma forma plena de auto-governo. O governo autoritrio respondeu que Portugal no possua territ-rios sob a jurisdio do artigo 73. De acordo com a concepo do governo,Portugal no possua colnias, j que era um Estado unitrio do qual faziamparte os territrios ultramarinos. A defesa da chamada estrutura de Estadounitrio assentava principalmente em argumentos jurdicos e histricos.

    Porm, com a oposio da Unio Sovitica e dos membros africanos easiticos das Naes Unidas, este argumento foi contestado. A primeiravitria dos opositores deu-se em 12 de Dezembro de 1959, data em que a

    Assembleia Geral das Naes Unidas aprovou a Resoluo n. 1467 (XIV),estabelecendo uma comisso especial para clarificar o artigo 73 da Carta dasNaes Unidas. A Assembleia Geral das Naes Unidas constituiu o melhorrecurso diplomtico dos opositores para criticarem a recusa portuguesa emseguir o movimento de descolonizao universal. O passo seguinte ocorreua 14 e 15 de Dezembro de 1960, com a aprovao das Resolues n.os 1514(XV), 1541 (XV) e 1542 (XV) da Assembleia Geral das Naes Unidas, queajudariam a decidir o destino dos territrios ultramarinos portugueses33.Entre 1960 e 1973, o Conselho de Segurana e a Assembleia Geral das

    Naes Unidas aprovariam 173 resolues condenando a poltica portuguesarelativamente aos territrios ultramarinos34. Com o passar do tempo tornou--se evidente que, mais cedo ou mais tarde, Portugal teria de permitir a auto-determinao das suas colnias, j que a presso internacional no cessaria.

    Os primeiros confrontos militares em Angola, em 1961, constituramuma outra causa interna prxima para a queda do regime autoritrio. Entre

    33 Fernando Martins, A poltica externa do Estado Novo, o ultramar e a ONU: umadoutrina histrica-jurdica (1955-1968), in Penlope, n. 18, 1997, pp. 189-206.

    34 Jos Calvet de Magalhes, Portugal e as Naes Unidas: A Questo Colonial (1955--1974), Lisboa, Instituto de Estudos Estratgicos e Internacionais, 1996, p. 33.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    15/29

    21

    Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste

    1961 e 1974, o governo autoritrio portugus no quis e, posteriormente,no pde negociar qualquer acordo poltico com os movimentos delibertao dos territrios africanos (Angola, Guin-Bissau e Moambique). Asguerras coloniais terminariam apenas com a transio de regime, em Abril de

    1974. Numa obstinada posio poltica, Portugal manteve a iluso de quepoderia remar contra a mar mundial da autodeterminao. Como fez notarum autor:

    A descolonizao do imprio colonial portugus constituiu o captulotardio e derradeiro e disso sofreria consequncias da dissoluoglobal dos imprios coloniais europeus que se seguiu segunda guerramundial [] Indiferente a esta dinmica, orgulhosamente s, Salazardesejava manter Portugal imune ao contgio e alheio aos ventos da his-tria35.

    Salazar e Caetano ignoraram o contexto temporal durante demasiadotempo36. Divididos entre as faces extremista e moderada, os militaresesforaram-se por imporem os seus pontos de vista relativamente questodas guerras coloniais. Caetano foi nomeado apenas depois de ter prometidoque no permitiria a autodeterminao das colnias. De modo a assumir opoder, teve de aceitar as condies estabelecidas pelos membros mais radi-cais, civis e militares, do regime autoritrio37. Contudo, aps a subida deCaetano ao poder, os liberais tambm procuraram influenciar os processos

    de tomada de deciso. Esta tentativa fracassaria, e as condies polticastornaram-se mais favorveis a um golpe de Estado quando os liberais, civise militares, perderam qualquer esperana relativamente ao regime marcelista.

    Uma outra causa prxima relevante, indicativa da perda de apoio doregime, foi a gradual alienao dos principais grupos econmicos de Portu-gal, os quais se distanciaram das polticas coloniais do regime, j queconsideravam a guerra responsvel pelas carncias internas de mo-de-obrae pelo esbanjamento dos dinheiros do Estado38. Com o passar do tempo,

    A coligao de interesses econmicos que tinha sustentado a ditaduradurante tantas dcadas havia esmorecido e fermentavam sob a superfcie

    35 Pedro Pezarat Correia, A descolonizao, in Antnio Reis (ed.), Portugal 20 Anosde Democracia, Lisboa, Crculo de Leitores, 1994, pp. 40-41.

    36 V. nota 3.37 Tratou-se, no mnimo, de um episdio tragicamente cmico: Caetano s foi aceite

    como substituto de Salazar aps ter concordado, por escrito, que procuraria uma soluomilitar para as guerras coloniais em frica (v. Paul Christopher Manuel, UncertainOutcome The Politics of the Portuguese Transition to Democracy, Lanham, University

    Press of America, 1995, p. 25).38 Id., ibid., p. 31.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    16/29

    22

    Paulo Gorjo

    plcida graves problemas sociais e econmicos. A eroso da coligaoera uma resposta directa percepo de que o Estado corporativo setinha tornado um obstculo aos grandes interesses econmicos que an-teriormente alimentara39.

    No fim de contas, em 1973, 48% das exportaes portuguesas foramenviadas para a CEE [Comunidade Econmica Europeia], 15% para os terri-trios ultramarinos; 45% das importaes de Portugal provinham da CEE,10% dos territrios ultramarinos40. De um ponto de vista estritamente eco-nmico, os territrios ultramarinos, mais do que um bem, eram um fardo.

    Aps os malogrados esforos de liberalizao de Marcello Caetano nosanos 70, o governo autocrtico estava muito perto do fim. Uma razointernacional imediata foi o choque do petrleo de 1973. Os EUA tinham

    pressionado Portugal a autorizar a utilizao da Base das Lajes, nos Aores,durante o conflito de Yom Kippur entre Israel e os pases rabes. Duranteo choque do petrleo, os Estados rabes aproveitaram a oportunidade parauma retaliao econmica contra Lisboa. Em consequncia, a economiaportuguesa foi gravemente afectada pelo choque petrolfero.

    Contudo, o principal detonador da mudana de regime foi de carcterinterno. A causa interna imediata mais importante que explica o timing dogolpe foi uma deciso tomada pelo governo autoritrio relativamente estru-tura da carreira militar. Devido a faltas de homens nas foras armadas

    portuguesas, o regime autocrtico decretou, em Fevereiro de 1973, que, paraaqueles que operavam satisfatoriamente no campo de batalha, todo o seutempo de servio contaria para a antiguidade. O decreto poderia at permitiraos recrutas ultrapassar os oficiais de carreira41. Esta lei era a ltima coisaque os oficiais mais jovens estavam dispostos a aceitar. Se bem que, pos-teriormente, o governo tivesse tomado em considerao as suas queixas,anulando a deciso, este episdio convenceu-os da necessidade de umamudana de regime. Consequentemente, os membros do MFA reunir-se-iamsecretamente em 9 de Setembro de 1973, em vora, em 6 de Dezembro de

    1973, em Lisboa, e em 1 de Dezembro de 1973, em bidos. As trs reuniesconduziram a um crescente alargamento das exigncias. Na primeira cimeira,o objectivo dos militares era a rejeio da deciso governamental; no segundoencontro, os contestatrios desejavam j a reconsiderao da guerra coloniale um aumento dos seus salrios; finalmente, na ltima reunio traaram-se

    39Kenneth Maxwell, The emergence of Portuguese democracy, in John H. Herz (ed.),From Dictatorship to Democracy Coping with the Legacies of Authoritarianism and

    Totalitarian, Westport, Greenwood Press, 1982, p. 235.

    40 Id., ibid., Portugal, p. 19.41 V. nota 52.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    17/29

    23

    Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste

    planos preliminares para um possvel golpe. Em Dezembro de 1973, emborao governo autoritrio tivesse j anulado a sua anterior deciso, tornara-seevidente para todos que o regime no procuraria uma soluo poltica paraos conflitos militares nos territrios ultramarinos africanos.

    A crise de legitimidade tinha chegado a um beco sem sada e o governorevelava-se incapaz de evitar a subsequente politizao do problema. Incapazde resolver a crise, o governo autoritrio tinha os dias contados. Noobstante a cedncia do governo s exigncias dos militares relativamente sua carreira a razo inicial das reunies secretas , tal deciso nosignificou o fim do movimento. O golpe de Estado de 25 de Abril de 1974foi o inevitvel corolrio deste estado de coisas.

    A TRANSIO DE PORTUGAL PARA A DEMOCRACIA

    E TIMOR LESTE

    Como j vimos, mesmo antes da mudana de regime, verificou-se umacrescente oposio linha de poltica externa seguida pelo regime autoritriorelativamente autodeterminao dos territrios ultramarinos. De facto, amudana de poltica fora j procurada antes do colapso do regime autoritrio.Isto tornou muito mais fcil a transio de uma situao 3 + 4 para umasituao 1+2.

    Durante a transio para a democracia, a deciso do governo interino de

    permitir a autodeterminao dos territrios ultramarinos portugueses nafrica e na sia (Timor Leste) constituiu um passo lgico, tendo em contaa percepo de ilegitimidade internacional e os interesses individuais e colec-tivos internos. No se tratou de uma reorientao radical da poltica externaportuguesa. Foi, pelo contrrio, uma soluo favorecida e exigida por algunssectores mesmo antes da queda do regime. Contudo, verificaram-se desa-cordos acentuados, nomeadamente no que dizia respeito ao mtodo e timingescolhidos para a concesso da autodeterminao. Emergiram duas correntesprincipais.

    De acordo com alguns, a descolonizao no implicava independnciaautomtica. O primeiro presidente portugus aps o golpe de Estado, Antniode Spnola, registou este ponto de vista no livro que publicou em Fevereiro de197442. Spnola favorecia um modelo de autonomia mais amplo, ou um tipo deopo federalista que mantivesse Portugal ligado s ex-colnias. Igualmentedefensor de um modelo de autonomia ampla, nomeadamente para Timor Leste,era o ministro da Coordenao Intraterritorial, Almeida Santos. Relativamentea Timor Leste, Almeida Santos tornou clara esta sua preferncia durante uma

    42 Antnio de Spnola, Portugal e o Futuro Anlise da Conjuntura Nacional,Lisboa,Arcdia, 1974.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    18/29

    24

    Paulo Gorjo

    visita a Dli em Outubro de 1974. Esta perspectiva parece ter sido particular-mente popular entre as altas patentes militares, alguns socialistas e os partidosda ala direita43.

    Outros favoreciam a autodeterminao imediata e incondicional dos ter-

    ritrios ultramarinos. Para estes, a autodeterminao tinha apenas uma inter-pretao, que era a independncia. Era esta a opinio dos oficiais de maisbaixa patente e dos partidos polticos da ala esquerda, os comunistas, bemcomo alguns socialistas. Um slogan poltico muito popular na poca era nemmais um soldado para as colnias. A sociedade portuguesa estava cansada detreze anos de guerra e este contexto explica em parte por que razo havia topoucos soldados portugueses em Timor Leste em 1974-1975.

    Em Abril de 1974, o programa oficial do MFA no se revelava claroquanto ao futuro dos territrios do ultramar, um facto que reflecte de modo

    exemplar as divises internas dos militares relativamente a esta questo. sabido que Spnola no aceitava a incluso da palavra autodeterminaono documento original. O programa era suficientemente vago para acomodaros interesses dos que desejavam reconhecer imediatamente a independnciadas colnias, bem como daqueles que defendiam uma transio gradual paraa autodeterminao antes da definio de um estatuto poltico definitivo.O programa do MFA sublinhava que a soluo para as guerras do ultramar[era] poltica e no militar e declarava a necessidade de uma polticaultramarina que [pudesse] conduzir paz44. O documento no fazia qual-

    quer referncia autodeterminao. Ainda assim, a 27 de Julho de 1974, oII Governo Provisrio de Portugal tornou pblica a Lei n. 7/74, que reco-nhecia a autodeterminao como uma possvel soluo para as guerras co-loniais. Este facto reflectia a consolidao do poder do MFA. O II GovernoProvisrio era mais influenciado e condicionado pelos sectores militaresprximos do MFA e pelos comunistas do que por Spnola e pelos conser-vadores. O breve perodo de controlo dos militares conservadores tinhaterminado45. A ascenso dos comunistas e dos militares de patente mais

    43 Trata-se, obviamente, de um tipo-ideal. Por vezes, as linhas so menos claras. Porexemplo, havia oficiais de alta patente que se encontravam mais prximos dos argumentosavanados pelos comunistas era o caso do segundo presidente de Portugal aps o golpede Estado, Costa Gomes. Ainda assim, verificavam-se, de um modo geral, divises bastanteclaras entre os oficiais de alta patente e os de patente inferior, bem como entre os partidospolticos de esquerda e os de direita, relativamente ao mtodo e ao timingda autodeterminaodos territrios ultramarinos.

    44 Francisco A. Riscado, Paula Vicente, Joo Goulo de Melo e Carlos S. C. Pecorelli,Relatrio da Comisso de Anlise e Esclarecimento do Processo de Descolonizao de Timor,

    Lisboa, Presidncia do Conselho de Ministros, 1981, p. 25.45 Lawrence S. Graham, The military in politics: the politicization of the Portuguese

    armed forces, inLawrence S. Graham e Harry M. Makler (eds.), Contemporary Portugal The Revolution and Its Antecedents, Austin, University of Texas Press, 1979, p. 221.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    19/29

    25

    Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste

    baixa trouxe consigo o triunfo de duas ideias distintas. Em primeiro lugar,a autodeterminao dos territrios ultramarinos conduziria inevitavelmente independncia. Em segundo lugar, a declarao de independncia dessesterritrios deveria ocorrer o mais rapidamente possvel.

    Os acontecimentos em Timor Leste so parcialmente explicados pelaevoluo do equilbrio de poder entre as duas perspectivas acima menciona-das. O I Governo Provisrio tinha ocupado o poder entre 15 de Maio e 9de Julho de 197446. Durante este perodo, Spnola esforara-se por controlaras foras radicais e revolucionrias libertadas pelo golpe de Estado e porconsolidar o poder. Os principais assuntos da agenda poltica eram o equi-lbrio de poder interno, a crise econmica e uma soluo para as guerrascoloniais. Com o passar do tempo, o equilbrio de poder interno tornou-secada vez mais hostil a Spnola, que se viu forado a demitir-se em 30 de

    Setembro de 1974. O II Governo Provisrio tinha acabado e a ascenso aopoder dos comunistas conduziria independncia imediata dos territriosultramarinos.

    Em Jacarta, o crescente poder dos comunistas em Lisboa era acertadamen-te entendido como uma ameaa aos interesses da Indonsia em Timor Leste.Contra os desejos da Indonsia, os comunistas portugueses manifestaram oseu apoio incondicional independncia dos timorenses47. A Indonsiaacabaria por invadir Timor Leste em 7 de Dezembro de 1975, sem conseguirevitar as crticas da comunidade internacional. Ainda assim, Jacarta acredi-

    tava que a presso internacional esmoreceria em breve. Contrariamente ssuas esperanas, Timor Leste revelar-se-ia, ao longo de vinte e cinco anos,um dos principais espinhos cravados no flanco da poltica externa indonsia.

    De um modo geral, Timor Leste constituiu uma questo de importnciasecundria durante o processo da descolonizao portuguesa. Lisboa estavapreocupada sobretudo com os territrios ultramarinos em frica onde ti-nham ocorrido guerras entre 1961 e 1974. Antes de Abril de 1974, aocontrrio da situao dos territrios africanos de Portugal, no se verificaramguerrilhas ou quaisquer episdios significativos de agitao poltica em Timor

    Leste.Um bom exemplo da pouca importncia de Timor Leste para a diplomaciaportuguesa foi a substituio do governador. Em Abril de 1974, Alves Aldeiaera o governador e comandante militar do territrio timorense. Antes do golpemilitar, Alves Aldeia tinha feito alguns comentrios crticos contra os membrosdo MFA. Assim, o governo interino portugus tinha decidido chamar o gover-

    46 Entre Abril de 1974 e Junho de 1976 Portugal foi governado por seis diferentesgovernos provisrios e dois presidentes.

    47 Paulo Gorjo, The end of a cycle: Australian and Portuguese foreign policies and thefate of East Timor, in Contemporary Southeast Asia, vol. 23, n. 1, 2001, pp. 101-121.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    20/29

    26

    Paulo Gorjo

    nador a Lisboa logo que fosse conveniente. Alves Aldeia deixou Dli em Julhode 1974 e, aps o seu regresso a Lisboa, foi afastado do cargo que ocupava.Entretanto, foi nomeado um novo comando militar em Timor Leste, o qualseria tambm governador interino at nomeao do sucessor de Aldeia.

    Devido baixa prioridade que Timor Leste representava para Lisboa, o futurogovernador, Lemos Pires, s chegaria a Dli em 18 de Novembro de 1974 ou seja, sete meses depois do golpe militar em Portugal48.

    Este facto revela no apenas a baixa prioridade que Timor Leste represen-tava para Lisboa, mas tambm a instabilidade poltica, econmica e militar quese fez sentir em Portugal entre Abril de 1974 e Junho de 1976. Mas, maisimportante ainda, a deciso de permitir a autodeterminao dos territriosultramarinos revela as avaliaes e estratgias colectivas dos capites quetinham estado por detrs do golpe de Estado. Eram estes militares que, mais

    do que ningum, pagavam os custos de uma guerra considerada intil eimpossvel de vencer. A sua deciso de permitirem um rpido caminho paraa independncia dos territrios ultramarinos era tambm entendida como avontade da maioria da populao portuguesa. Alm disso, os principais gruposeconmicos portugueses no tinham interesses vitais nesses territrios. Defacto, tambm eles desejavam o fim das guerras coloniais. Por conseguinte,concorreram para essa deciso diversos factores internacionais e internos. Ofacto explica por que razo, no obstante a natureza revolucionria dos gover-nos provisrios, s esta questo da poltica externa portuguesa registou uma

    sbita mudana. Por exemplo, apesar do controlo comunista do governo e da guerra fria , Portugal no abandonou a NATO. No houve uma ava-liao individual ou colectiva suficientemente poderosa para tanto. Contudo, anecessidade de descolonizar foi aceite pelos principais actores. As divisesinternas incidiam sobretudo sobre o procedimento a seguir.

    O COLAPSO DO AUTORITARISMO INDONSIO

    A transio para a democracia na Indonsia, em 21 de Maio de 1998, e anomeao de Bacharuddin Jusuf Habibie como o novo presidente do pas pu-seram fim aos trinta e trs anos de poder autoritrio de Suharto (1965-1998).Durante o processo de transio para a democracia, que ocorreu entre Maio de1998 e Outubro de 1999, semelhana do que ocorrera em Portugal em 1975--1976, a Indonsia comeou tambm a reavaliar algumas questes de polticaexterna e a repensar a sua identidade nacional. Um primeiro sinal deste processoconduziria ao fim da presena imperial da Indonsia em Timor Leste.

    48 Riscado, Valente, Melo e Pecorelli, p. 48.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    21/29

    27

    Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste

    Diferentes causas imediatas, prximas e distantes explicam o colapso doautoritarismo e a transio para a democracia. A causa distante internacionalmais importante por detrs da queda do regime foi o fim da guerra fria. Nonovo sistema internacional, os Estados Unidos no tinham de tolerar regimes

    autoritrios amigos, como se verificara anteriormente. Em consequncia, aIndonsia foi progressivamente perdendo uma parte do seu poder de nego-ciao com os Estados Unidos.

    A queda do muro de Berlim, em Novembro de 1989, e o colapso daUnio Sovitica, durante 1991, conduziram ao triunfo ideolgico da demo-cracia polirquica49 e hegemonia do liberalismo econmico. Em conse-quncia, o governo autocrtico de Suharto foi enfrentando com crescentefrequncia acusaes de ilegitimidade ideolgica e forado a seguir o modeloeconmico internacionalmente estabelecido.

    Em termos internos, nos incios da dcada de 90 emergiu uma contendaentre as foras armadas da Repblica da Indonsia (Angkatan BersenjataRepublik Indonesia,ou ABRI) e Suharto50, que constituiu a primeira fissuraimportante entre o presidente e uma elite militar cada vez mais descontentecom o regime. A influncia e autonomia das ABRI e a crescente corrupoe nepotismo dos governos autoritrios eram as razes subjacentes ao con-flito. Suharto detinha suficiente poder poltico para superar este desafio e emmeados da dcada de 90 a crise estava ultrapassada. Contudo, os militares,como um dos principais pilares do regime, assistiam ao progressivo decrs-

    cimo dos seus benefcios e ao aumento dos seus custos. Esta situaoexplica por que razo, em 1990, muitos oficiais subalternos consideraramnecessrio remodelar o seu papel de acordo com um molde mais contem-porneo51. Por outras palavras, os militares pretendiam deixar a polticapara os polticos. A funo dual dwifungsi comeava a ser vista pelosreformadores militares como um fardo. Contudo, durante a nova ordem, oenvolvimento das ABRI nas questes militares, bem como polticas e scio--econmicas a funo dual , foi um importante instrumento para ocontrolo de Suharto. Em consequncia, o presidente no estava interessado

    numa reavaliao da funo dual.No incio dos anos 90, devido idade avanada de Suharto, o nome dosucessor do regime tornar-se-ia um assunto muito debatido. Em finais de1993, a questo da sucesso de Suharto tornou-se uma constante fonte de

    49 Robert Dahl, Polyarchy: Participation and Opposition, New Haven, CT, YaleUniversity Press, 1971.

    50Em Abril de 1999, a polcia foi separada das foras armadas. Estas ltimas tornaram--se a fora militar nacional indonsia (Tentara Nasional Indonesia, ou TNI).

    51 Michael Vatikiotis, Indonesian Politics under Suharto: Order, Development andPressure for Change, Londres, Routledge, 1993, p. 144.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    22/29

    28

    Paulo Gorjo

    rumores em Jacarta. O regime apresentava muitas caractersticas sultni-cas, como um autor as definiu e, em tais situaes, a sucesso semprecomplexa52. De facto, em parte devido sua natureza sultnica, os proble-mas enfrentados pelo regime autoritrio nos incios dos anos 90 persistiriam

    at ao final da dcada.A crise financeira asitica de 1997-1998 constituiu uma importantssimacausa prxima internacional para o colapso do regime53. Em 2 de Julho de1997, o baht tailands foi autorizado a entrar num regime de taxa flutuante.Em 11 de Julho, as Filipinas tomaram a mesma deciso. Em 14 de Agosto,a vtima seguinte foi a rupia indonsia. No obstante o forte e robustocrescimento econmico, bem como os indicadores financeiros e econmicosfavorveis e as bases slidas, Suharto enfrentaria em breve os seus lti-mos dias no poder. Uma vez que o argumento mais importante por detrs

    da legitimidade do regime autoritrio era o seu desempenho econmico,qualquer instabilidade nesse domnio constitua uma ameaa ao futuro dogoverno autocrtico.

    Os trs acordos sucessivos com o Fundo Monetrio Internacional (FMI)no lograram aliviar a crise econmica. O FMI e Suharto partilham parte daresponsabilidade. Como fez notar um autor, o FMI carecia de uma expertisesobre a Indonsia adequada profundidade da interveno que procurourealizar54. Para agravar a situao, Suharto no avaliou adequadamente aseriedade do FMI, acreditando que podia evitar perdas significativas para a

    sua famlia e amigos55

    . Estava muito longe da verdade, como viria a des-cobrir. Suharto seria forado a aceitar o primeiro pacote de condies doFMI em 31 de Outubro de 1997. O acordo (a carta de intenes) constituao maior pacote de ajuda jamais negociado, trazendo consigo os muito neces-srios fundos estrangeiros: 23 mil milhes de dlares com uma segunda linhade assistncia adicional de 20 mil milhes. Suharto teve de aceitar cortesnas despesas do governo e o encerramento de bancos profundamenteendividados56. Porm, este acordo no resolveu os problemas financeiros

    52H. E. Chehabi e Juan J. Linz, A theory of sultanism 1: a type of nondemocratic rule,in H. E. Chehabi e Juan J. Linz (eds.), Sultanistic Regimes, Baltimore, MD, Johns HopkinsUniversity Press, 1998, p. 7.

    53 Stephen Haggard, The Political Economy of the Asian Financial Crisis, Washington,D. C., Institute for International Economics, 2000, pp. 65-70 e 114-24, e Hal Hill, TheIndonesian Economy in Crisis: Causes, Consequences and Lessons, Singapura, Institute ofSoutheast Asian Studies, 1999.

    54 John Bresnan, The United States, the IMF, and the Indonesian financial crises, inAdam Schwarz e Jonathan Paris (eds.), The Politics of Post-Suharto Indonesia,Nova Iorque,Council on Foreign Relations Press, 1999, p. 88.

    55 Id., ibid.56 Id., ibid., p. 91.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    23/29

    29

    Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste

    da Indonsia e em 15 de Janeiro de 1998 foi assinada uma nova carta deintenes. Uma vez mais, o montante era de 43 mil milhes de dlares, masdesta feita sob condies muito mais rigorosas. Suharto no implementouinteiramente estas condies, e a economia continuou a deteriorar-se. Em 8

    de Abril de 1998, a Indonsia e o FMI assinaram a terceira carta de intenesem menos de seis meses. Do ponto de vista do FMI, este acordo eraentendido como uma ltima oportunidade e possibilitava uma enormeintruso no governo da Indonsia57. Contudo, a crise indonsia no termi-naria antes da mudana de regime.

    s dificuldades internacionais do regime veio somar-se a crise de legiti-midade interna. Como defende Stefan Eklf, a causa interna da longa que-da de Suharto foram os acontecimentos desencadeados em Julho de199658. O Partido Democrtico Indonsio (Partai Demokrasi Indonesia, ou

    PDI), liderado por Megawati Sukarnoputri, tornou-se uma ameaa ao statuquo e, desse modo, legitimidade do regime. O governo autoritrio conge-minou um congresso partidrio para destituir Megawati e, em 27 de Julhode 1996, uma faco do PDI fez um violento ataque ao quartel-general dopartido. A bvia manipulao e o envolvimento militar conduziram a motinsem Jacarta, agravando a percepo interna de ilegitimidade do regime. EntreJulho de 1996 e Maio de 1998 desenrolaram-se as diversas etapas queconduziriam, por fim, ao colapso do regime. Nem mesmo as eleies geraisde 29 de Maio de 1997 conseguiram restaurar a legitimidade do regime59.

    O Golkar de Suharto Golongan Karya,ou Grupos Funcionais venceucom 74,5% dos votos. Porm, um ano mais tarde, o presidente seria expulsodo poder.

    Entre a crescente tenso poltica, econmica e social, duas importantescausas internacionais e internas explicam a queda do regime. Em 4 de Maiode 1998, o governo de Suharto achou por bem cortar os subsdios aocombustvel. Como reaco a esta medida, ocorreram de imediato sriosmotins e manifestaes estudantis. Entre 4 e 20 de Maio, o movimento decontestao ao regime ganhou alento e a espiral de agitao social manteve

    o regime sob presso60

    .Se Suharto possua algumas esperanas de apoio por parte dos EstadosUnidos, tais esperanas desapareceram imediatamente. Em 18 de Maio, osubsecretrio de Estado para os Assuntos do Sudeste Asitico e do Pacfico,

    57 Id., ibid. p. 98.

    58 Stephan Eklf, Indonesian Politics in Crisis: The Long Fall of Suharto, 1996-1998,Copenhaga, Nordic Institute of Asian Studies, 1999.

    59 Id., ibid., p. 224.

    60 Adam Schwarz, A Nation in Waiting: Indonesias Search for Stability, Boulder, CO,Westview Press, 2000, pp. 354-366.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    24/29

    30

    Paulo Gorjo

    Stanley Ross, proferiu alguns cautelosos comentrios pblicos e evitou qual-quer interferncia nos assuntos polticos indonsios. Contudo, a 20 de Maiode 1998, a secretria de Estado norte-americana, Madeleine Albright, afirmouque Suharto tinha a oportunidade para um acto histrico de Estado um

    acto que [poderia] preservar o seu legado como o homem que no sconduzira o seu pas, como tambm possibilitara a sua transio democr-tica61. Por outras palavras, Suharto devia abandonar o poder. No dia se-guinte, a nova ordem tinha acabado. Posteriormente, Suharto declararia quetinha sido uma potncia estrangeira [que] [o] forara a resignar, emborase recusasse a nomear o pas62. Como se depreende da situao atrs des-crita, este comentrio est longe da verdade dos factos. O colapso doautoritarismo ocorreu em consequncia de diversos factores internacionais einternos.

    Entre Julho de 1997 e Maio de 1998, Suharto viu-se impossibilitado derecorrer aos dois argumentos de legitimidade que sustentavam o seu regime:a estabilidade e o desenvolvimento econmico. Esta crise de legitimidade,desencadeada pela crise financeira asitica, conduziria a uma gradualpolitizao da prpria crise indonsia, um processo que atingiria o auge emMaio, com os aumentos dos combustveis e as manifestaes estudantis esubsequentes tiroteios. Incapaz de resolver a crise de legitimidade do regime,Suharto foi forado a abrir o caminho transio para a democracia.

    A TRANSIO DA INDONSIA PARA A DEMOCRACIAE TIMOR LESTE

    Na altura em que ocorreu a transio de regime no estavam aindaplenamente amadurecidas as condies necessrias para uma mudana depoltica relativamente a Timor Leste. No plano interno, e no obstante ofacto de ser considerada ilegtima internacionalmente, a poltica seguida pelaIndonsia continuava a ser vista por muitos como legtima (3 + 2). O factoexplica as dificuldades que Habibie enfrentou ao procurar impor uma mudan-a de poltica, se bem que alguns membros das elites defendessem a neces-sidade de mudar a linha poltica anteriormente seguida por Suharto.

    Durante a transio para a democracia, a deciso do governo interino deB. J. Habibie de permitir a autodeterminao de Timor Leste e os eventos quese seguiram foram sobretudo o resultado de dois factores principais. Emprimeiro lugar, a percepo de que, internacionalmente, a poltica seguida era

    61 Bresnan, p. 100.

    62 Foreign power made me quit, says Suharto, in The Straits Times, 28 de Janeiro de1999.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    25/29

    31

    Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste

    considerada ilegtima e de que este facto no mudaria de acordo com osinteresses da Indonsia. Em segundo lugar, a mudana de poltica estava emconsonncia com as convices pessoais de Habibie, se bem que em opo-sio opinio colectiva dos militares indonsios. Este conflito de interesses

    explica parcialmente por que razo a violncia ocorreu no apenas antes, massobretudo depois da consulta populao de Timor Leste.Embora tivesse sido vice-presidente da Indonsia durante o regime auto-

    ritrio e o ministro que mais tempo exerceu funes nos governos deSuharto, Habibie no se sentia de modo algum responsvel pela polticaseguida em Timor Leste durante vinte e cinco anos. O novo presidenteacreditava que, ao permitir a autodeterminao de Timor Leste, beneficiariade duas maneiras. Alm de vencer nas urnas de voto, Habibie estava con-victo de que poderia assim distinguir-se de Suharto e afirmar-se interna-

    cionalmente63

    . Desde a invaso indonsia de Timor Leste, em 7 de Dezem-bro de 1975, Jacarta revelara-se incapaz de obter aprovao externa para assuas aces, pelo que carecia de qualquer base de legitimidade internacional.De facto, tanto a Resoluo n. 3485 da Assembleia Geral das NaesUnidas, de 12 de Dezembro de 1975, como a Resoluo n. 384 do Conselhode Segurana das Naes Unidas, de 22 de Dezembro do mesmo ano,exigiam a retirada militar indonsia do territrio (pontos 5 e 7, respectiva-mente). Devido a estas duas resolues, a diplomacia indonsia enfrentoudurante vinte e cinco anos a reprovao da comunidade internacional. Em

    finais da dcada de 90 nada fazia prever que a questo de Timor Leste estariaresolvida internacionalmente de acordo com o fait accompli da Indonsia.Assim, tendo em conta o estado das coisas at ento, o fim das crticasinternacionais e a legitimidade internacional procurada h tanto tempo esta-vam longe de poderem ser alcanados.

    Habibie viu na deciso de resolver a ilegitimidade internacional da polticaexterna indonsia relativamente a Timor Leste uma oportunidade para alcan-ar prestgio internacional. Habibie seria o lder democrtico indonsio quepusera fim ao impasse. Mas, mais importante ainda, Timor Leste constitua

    um aspecto relevante da estratgia de reeleio de Habibie nas eleies livrese justas ps-Suharto que teriam lugar em Junho de 1999. Como fez notara conselheira de Habibie para os assuntos externos, Dewi Fortuna Anwar:Ao resolver a questo de Timor Leste de uma vez por todas [] [Habibie]fortaleceria as suas credenciais democrticas dentro do pas64. Em termos

    63 John G. Taylor, East Timor: The Price of Freedom, Londres, Zed Books, 1999,p. XVII.

    64 Dewi Fortuna Anwar, The East Timor crisis: an Indonesian view, in Bruce Brown

    (ed.), East Timor The Consequences, Wellington, New Zealand Institute of InternationalAffairs, 2000, p. 20.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    26/29

    32

    Paulo Gorjo

    gerais, Timor Leste permitiria a Habibie mostrar interna e internacional-mente a sua dedicao aos novos valores democrticos.

    Inicialmente, Habibie procurou chegar a estes resultados mediante a pro-posta de uma autonomia alargada para Timor Leste. Devido recusa por-

    tuguesa de aceitar este estatuto poltico como o definitivo, Habibie decidiuautorizar uma consulta popular. Esta possibilidade foi discutida e aprovadapelo governo em Janeiro de 1999. Em consequncia, permitiu-se aostimorenses votar e tornar manifesto se aceitavam ou rejeitavam a propostade uma autonomia alargada. Se a populao timorense rejeitasse a propostade autonomia de Habibie, o presidente aconselharia os futuros delegados dasesso de Outubro/Novembro da Assembleia Consultiva Popular (MajelisPermusyawaratan Rakyat,ou MPR) a anular o decreto de 1976 que integra-va Timor Leste na Indonsia. Ao estabelecer este procedimento, Habibie

    visava garantir dois objectivos. Em primeiro lugar, reduziria imediatamente apresso internacional contra o seu governo relativamente questo de TimorLeste. Em segundo lugar, se a deciso final fosse tomada pela MPR, opresidente estaria parcialmente protegido contra eventuais acusaes de tertomado decises que ultrapassavam os seus poderes constitucionais65.

    Este procedimento revelou tambm uma ausncia de consenso nacional.A instituio mais poderosa que se opunha a esta proposta era o ExrcitoNacional Indonsio (Tentara Nasional Indonesia, ou TNI). O comandantedo TNI e ministro da Defesa, Wiranto, afirmaria mais tarde que os militares

    no tinham sido consultados antes da tomada de deciso. Embora tal sejaaltamente improvvel66, esta declarao constitui, no obstante, um bomexemplo da discordncia dos militares relativamente deciso de Habibie.

    Razes polticas, econmicas e morais explicam esta divergncia. Politica-mente, o TNI via no referendo popular um possvel rastilho para a desintegra-o territorial da Indonsia67. De acordo com a avaliao dos militares, umaconsulta popular em Timor Leste abriria um precedente que desencadearia umefeito de domin. Caso se realizasse um referendo em Timor Leste, eraaltamente provvel que Aceh e Irian Jaya, pelo menos, exigissem o mesmo

    processo. De facto, e apesar dos seus diferentes passados coloniais, a consulta populao timorense conduziria ao ressurgimento de reivindicaes separa-tistas por parte de Aceh e Irian Jaya. Economicamente, um Timor Lesteindependente implicaria o fim dos monoplios comerciais associados s altas

    65 Joaquim Trigo de Negreiros, Timor-Leste e a Indonsia: laboratrio e espelho dascontradies de um regime de transio, in Poltica Internacional, vol. 3, n. 19, 1999,p. 187.

    66 Taylor, p. XIX.

    67 Robert Cribb, Not the next Yugoslavia: prospects for the desintegration of Indonesia,in Australian Journal of International Affairs, vol. 53, n. 2, 1999, pp. 169-178.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    27/29

    33

    Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste

    patentes militares, bem como aos apoiantes nativos da autonomia68. O genrode Suharto, Prabowo Subianto, tinha sido afastado do exrcito depois do fimdo governo autoritrio. Ainda assim, Subianto, a famlia de Suharto e outrosmilitares continuavam a ter importantes interesses econmicos na proteco de

    Timor Leste. Moralmente, havia a convico, entre os crculos nacionalistase no seio das foras militares, de que uma possvel independncia de TimorLeste significaria que todos os soldados indonsios que haviam perdido a vidano territrio tinham perecido em vo.

    O Ministrio dos Negcios Estrangeiros indonsio (Departemen LuarNegeri,ou DEPLU) estava tambm em desacordo com a proposta de Habibie.Este facto foi admitido mais tarde por Ali Alatas, que afirmou publicamenteque, na altura em que a proposta de autodeterminao fora discutida na reuniodo governo, ele exprimira a opinio de que tal proposta era prematura69. Estesdiferentes pontos de vista eram um sinal de grandes divises entre a agendaindividual de Habibie e a do DEPLU.

    O facto de muitos membros do TNI estarem convictos de que a propostade autonomia alargada seria aceite explica o baixo nvel de violncia no perodoanterior ao referendo. Juntamente com as milcias, os militares procuraramforar a populao a votar em favor da proposta de autonomia. As eleiesindonsias para a escolha dos membros da Casa dos Representantes (DewanPerwakilan Rakyat, ou DPR) em 7 de Junho de 1999 parecem ter desempe-nhado um papel importante. Aparentemente, os lderes pr-independnciatimorenses realizaram uma campanha no oficial no sentido de persuadirem a

    populao a votar em massa nas eleies de Junho70. Esta deciso visavatranquilizar as foras nacionalistas indonsias. Em consequncia, o nvel departicipao eleitoral nas eleies de Junho seria muito elevado 346 454votos vlidos71. Contudo, mais importante ainda, os quatro lugares em com-petio foram conquistados pelo Golkar de Habibie e pelo Partido DemocrticoIndonsio de Luta de Megawati Sukarnoputri (Partai Demokrasi Indonesia Perjuangan,ou PDI-P). O Golkar e o PDI-P conquistaram dois lugares cadaum, recolhendo 49% e 35% dos votos, respectivamente. A sua clara vitria

    68George J. Aditjondro,In the Shadow of Mount Ramelau: The Impact of the Occupationof East Timor, Leiden, Indonesian Documentation and Information Center, 1994, pp. 55--62, e Suharto and his family: the looting of East Timor, in Green Left Weekly, 3 deSetembro de 1997.

    69 Santa Cruz incident a turning point in our diplomacy, in Tempo, 18 de Setembrode 2000.

    70 Benedict Anderson, O tempo est do nosso lado. O colapso do colonialismo indonsioem Timor-Leste, in Poltica Internacional, vol. 3, n. 21, 2000, pp. 15-16.

    71 H que sublinhar o facto de que o processo no foi acompanhado e verificado porobservadores internacionais. Neste sentido, os resultados eleitorais tm um valor relativo.

    Ainda assim, parecem ter exercido um efeito tranquilizador sobre os receios do TNI relati-vamente vitria do lado pr-autonomia.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    28/29

    34

    Paulo Gorjo

    deu voluntariamente um sinal errado quanto s intenes da populaotimorense relativamente ao sentido do seu voto na futura consulta popular.

    A 30 de Agosto de 1999, 98% dos timorenses recenseados exerceram oseu direito de voto. Uma esmagadora maioria de 78,5% (344 580 votos)

    rejeitou a proposta de autonomia especial, exprimindo assim o seu desejo deiniciar a transio para a independncia. Apenas 21,5% dos timorenses (94388) votaram a favor da autonomia especial e da manuteno para Timor Lestedo estatuto de provncia da Indonsia. provvel que o nmero de timorensesque desejavam permanecer na Indonsia tivesse sido ainda menor se as cam-panhas de intimidao perpetradas pelas milcias antes da consulta popular nose tivessem verificado. A questo, contudo, que uma parte da populaotimorense desejava que Timor Leste continuasse a ser uma provncia daIndonsia. O anncio dos resultados do referendo desencadearia uma polticade terra queimada organizada pelos militares e executada por grupos de

    milcias que visavam garantir duas coisas diferentes. Politicamente, TimorLeste serviria de exemplo sobre o que poderia acontecer em Aceh e Irian Jayacaso estas provncias insistissem na independncia. Economicamente, j queTimor Leste iria separar-se da Indonsia, ento f-lo-ia sem quaisquer infra--estruturas de relevo, exactamente tal como o territrio se encontrava em1975.

    As estratgias internas e internacionais de Habibie fracassaram comple-tamente e ele no chegaria a ser o primeiro presidente da Indonsia eleitodemocraticamente. Constrangida por presses internacionais, a Indonsia

    seria forada a aceitar o resultado dos votos72

    . Inevitavelmente, em 19 deOutubro de 1999, a MPR sancionou o resultado da consulta popular e, a 28do mesmo ms, o embaixador indonsio nas Naes Unidas, MakarimWibisono, entregaria ao secretrio-geral das Naes Unidas, Kofi Annan,uma carta que punha oficialmente fim s pretenses legais de Jacarta rela-tivas ao territrio de Timor Leste.

    De facto, desde o fim do regime de Suharto, a nica mudana importantede poltica externa diz respeito anterior poltica ilegtima seguida em TimorLeste. De um modo geral, a poltica externa da Indonsia continua a serconvencional e a estar em grande medida (mas no inteiramente) em con-tinuidade com o regime da nova ordem73.

    CONCLUSES

    A natureza dos governos interinos no a principal varivel que explicaas mais importantes iniciativas de poltica externa. A legitimidade interna e

    72 Gorjo, pp. 111-117.

    73 Anthony L. Smith, Indonesias foreign policy under Abdurrahman Wahid: radical orstatus quo state?, in Contemporary Southeast Asia, vol. 22, n. 3, 2000, p. 523.

  • 7/26/2019 (2005)... Mudana de regime e poltica externa__Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste..pdf

    29/29

    35

    Portugal, a Indonsia e o destino de Timor Leste

    internacional, por um lado, e as avaliaes e estratgias individuais e colec-tivas, por outro, constituem as principais variveis que explicam as decisesde poltica externa durante a transio para a democracia. Esta abordagempermite um melhor entendimento da escolha de certas questes, bem como

    das razes subjacentes a essa mesma escolha.Como j vimos, a questo de Timor Leste permite-nos chegar a certasconcluses relativamente s relaes entre as mudanas de regime e asopes de poltica externa. Em primeiro lugar, as razes de qualquer mudanade poltica externa no se encontram na natureza do governo interino, massim no prprio regime autoritrio anterior. A habitual incapacidade dos go-vernos autocrticos para alterarem uma poltica considerada ilegtima apenasprotela essa alterao at mudana de regime.

    Em segundo lugar, a comparao dos custos internacionais e internos paraPortugal e a Indonsia das respectivas polticas externas ilegtimas ambosos pases violaram o direito autodeterminao torna evidente que Lisboaestava a pagar um preo muito mais elevado do que Jacarta. Esta situaocriou condies mais propcias mudana. Entre outras coisas, os custosmais elevados facilitam os esforos de construo de um consenso. Noobstante, a ausncia de um consenso interno no invalida decises de alte-rao da poltica externa.

    Em terceiro lugar, as iniciativas de poltica externa dos governos interinosso apenas um dos passos na reavaliao das alianas nacionais, das relaesdiplomticas e do lugar de um pas no mundo. Isto , em parte, uma

    consequncia dos novos princpios, crenas e pertenas democrticos. Pro-gressivamente, as iniciativas de poltica externa traduziro a nova identidadeinterna e internacional do pas.

    No conjunto das preocupaes da Indonsia e de Portugal, Timor Lesteconstituiu, at ter irrompido como uma situao de crise, uma questo rela-tivamente pouco importante. Em Abril de 1974, a principal preocupao dePortugal eram os territrios ultramarinos onde decorriam as guerras coloniais.Comparativamente, o principal problema da Indonsia aps a mudana deregime, em Maio de 1998, no era Timor Leste per se, mas os possveis

    efeitos do problema sobre outras provncias separatistas, como Aceh e IrianJaya, efeitos esses que poderiam conduzir desintegrao da Indonsia.

    Ainda assim, no obstante a sua aparente importncia secundria no con-junto das prioridades de poltica externa, Timor Leste ocupou uma parteimportante dos esforos diplomticos de Portugal e da Indonsia. Durantevinte e cinco anos, ambos os pases tiveram de lidar com a questo de TimorLeste. A serem necessrios outros exemplos de que os interesses nacionais sodefinidos no apenas por questes de poder, mas tambm por normas, prin-cpios e crenas, Timor Leste poderia constituir um excelente estudo de caso.

    Traduo de Rui Cabral