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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE CULTURA E ARTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO O SENSÍVEL DA IMAGEM: SENSORIALIDADE, CORPO E NARRATIVA NO CINEMA CONTEMPORÂNEO DA ÁSIA CAMILA VIEIRA DA SILVA FORTALEZA 2010

2010 Dis Cvsilva

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR INSTITUTO DE CULTURA E ARTE

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM COMUNICAO

    O SENSVEL DA IMAGEM: SENSORIALIDADE, CORPO E NARRATIVA NO CINEMA CONTEMPORNEO DA SIA

    CAMILA VIEIRA DA SILVA

    FORTALEZA

    2010

  • CAMILA VIEIRA DA SILVA

    O SENSVEL DA IMAGEM: SENSORIALIDADE, CORPO E NARRATIVA NO CINEMA CONTEMPORNEO DA SIA

    Dissertao apresentada para obteno do ttulo de Mestre ao Programa de Ps-Graduao em Comunicao, da Universidade Federal do Cear.

    rea de Concentrao: Comunicao e Linguagens Linha de Pesquisa: Fotografia e Audiovisual

    Orientadora: Sylvia Beatriz Bezerra Furtado

    Fortaleza 2010

  • CAMILA VIEIRA DA SILVA

    O sensvel da imagem: sensorialidade, corpo e narrativa no cinema contemporneo da sia

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Comunicao, da Universidade Federal do Cear, para obteno do ttulo de Mestre

    Aprovada em 16/06/2010

    BANCA EXAMINADORA

    ___________________________________________

    Dra. Sylvia Beatriz Bezerra Furtado, ICA/UFC

    ___________________________________________

    Dr. Antonio Wellington de Oliveira Jnior, ICA/UFC

    ___________________________________________

    Dra. Alita Villas Boas de S Rego, UERJ

  • AGRADECIMENTOS

    Aos meus pais, pelo carinho e amor que dedicam a mim. A Carol, minha irm, que sempre est ao meu lado. A Anselmo, por ter me ajudado a me descobrir. Aos amigos do mestrado, Gustavo, Valdo, Camila, Robson, Ives, tila, Ana Cesaltina, Edilberto, por terem tornado o processo mais divertido. Aos professores da UFC, especialmente Wellington Jnior, Gilmar de Carvalho e Ins Vitorino, pelo apoio extraordinrio que sempre me deram. Aos amigos jornalistas e de faculdade, cujos nomes so tantos, mas preciosos na hora do desabafo e da diverso. A Beatriz Furtado, minha orientadora, por me estimular a compreender o cinema com olhares mais instigantes.

    Aos amigos e professores da Escola de Audiovisual, pelas conversas estimulantes sobre cinema e pelas noitadas etlicas. Aos colegas distantes, Jlio e Erly, com quem troquei idias e textos. s instituies que possibilitaram a pesquisa: Programa de Ps-Graduao em Comunicao da UFC e Funcap (Fundao Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico)

  • RESUMO

    Apresentando como tema a relao entre sensorialidade, corpo e narrativa em determinada produo cinematogrfica recente realizada em pases asiticos, como Tailndia, Taiwan e Japo, esta dissertao procura investigar como os filmes Mal dos Trpicos (Sud Pralad, 2004), de Apichatpong Weerasethakul; Adeus, Dragon Inn (Bu San, 2003), de Tsai Ming-Liang; Caf Lumire (Kh Jik, 2004), de Hou Hsiao-Hsien; e Shara (Sharasojyu, 2003), de Naomi Kawase, relacionam-se compreenso de uma forma especfica de lidar com o cinema com base em questes relativas ao sensorial e ao corpo, que implicam tambm em determinado tipo de construo audiovisual narrativa. A hiptese aqui de que tais cineastas contemporneos priorizam em seus filmes uma espcie de ateno a tudo aquilo que diz respeito ao pathos (os afetos, os sentimentos) e conservao da integralidade antropolgica dos homens. Lanados no circuito de festivais internacionais de cinema entre 2003 e 2004, as quatro produes citadas acima foram escolhidas como objeto de estudo com base na hiptese de que existe neles um regime especfico de imagem, em que se privilegiam aspectos sensoriais que interferem diretamente na construo narrativa.

    Palavras-chave: cinema, sensorialidade, narrativa

  • ABSTRACT

    Introducing as a theme the relation between sensoriality, body and narrative at the recent cinema production released in Asian countries, as Thai, Taiwan and Japan, this paper searches to investigate how movies as Tropical Malady (Sud Pralad, 2004), by Apichatpong Weerasethakul; Goodbye, Dragon Inn (Bu San, 2003), by Tsai Ming-Liang; Caf Lumire (Kh Jik, 2004), by Hou Hsiao-Hsien; e Shara (Sharasojyu, 2003), by Naomi Kawase, are related to an understanding of an specific form of cinema, based in questions about the sensorial and the body, which also implies at a kind of narrative construction audiovisual. This hypothesis is that such contemporary filmmakers brings at their movies a kind of attention to everything that is related at pathos (affections, feelings) and the conservation of human anthropological integrity. Released at the market of international film festivals between 2003 e 2004, these four feature films were chosen as object of study, based at the hypothesis that are in them an specific kind of image, which privileges sensorial aspects that interfere directly on narrative construction.

    Key words: sensoriality, body, narrative

  • SUMRIO

    Introduo ............................................................................................................................. 1

    1. A sensorialidade ............................................................................................................... 5 1.1. A sensorialidade e a Esttica ......................................................................................... 5 1.2. Primeiras definies conceituais .................................................................................... 7 1.3. O primeiro contato com o mundo ................................................................................. 17 1.4. As pequenas percepes .............................................................................................. 23

    2. O corpo e a abertura ao sensvel ..................................................................................... 34 2.1. A cmera-corpo: a superfcie e a profundidade ............................................................ 34 2.2. Os corpos dos personagens: o que pode o corpo? ........................................................ 45

    3. A narrativa e a sensorialidade ......................................................................................... 64 3.1. O que o narrvel? ....................................................................................................... 64 3.2. A narrativa na histria do cinema ................................................................................. 66 3.3. A platitude do plano .................................................................................................... 70 3.4. A esttica do fluxo ........................................................................................................ 85

    Concluso ........................................................................................................................... 94

    Referncias bibliogrficas ................................................................................................. 102

  • INTRODUO

    Em dilogo com a filmografia de cineastas ocidentais contemporneos de pases distintos como, por exemplo, Gus Van Sant (Estados Unidos), Claire Denis (Frana), Pedro Costa (Portugal) e Lucrecia Martel (Argentina) , o tailands Apichatpong Weerasethakul; os taiwaneses Tsai Ming-Liang e Hou Hsiao-Hsien; e a japonesa Naomi Kawase, compem uma nova gerao de realizadores da sia que demonstra afinidade com um tipo de cinema, cujo regime especfico de imagem privilegia narrativas calcadas na relao entre corpo e sensorialidade.

    Os longas-metragens Mal dos Trpicos (Sud Pralad, 2004), de Apichatpong Weerasethakul; Adeus, Dragon Inn (Bu San, 2003), de Tsai Ming-Liang; Caf Lumire (Kh Jik, 2004), de Hou Hsiao-Hsien; e Shara (Sharasojyu, 2003), de Naomi Kawase, apresentam narrativas que lanam mo de uma experincia esttica, mais prxima de atributos sensoriais que racionais. Com suas especificidades, cada filme enfatiza uma apreenso do plano e da cena, em que a relao corpo/sensorialidade preponderante, ou ao menos to relevante quanto sua contraparte racional. No interior dos planos destes filmes, a emergncia de acontecimentos de carter mais sensorial serve como estratgia central de defesa de um regime de imagem, que desencadeia afetos e sensaes, mais que julgamentos.

    Por compartilhar o mesmo tipo de estratgia em que a experincia sensorial torna-se elemento primordial na construo narrativa, este conjunto de produes cinematogrficas realizadas na sia situa-se dentro de uma espcie de nova onda transnacional1. Isto implica considerar que a justificativa de aproximao entre filmes de pases to diferentes e de cineastas de nacionalidades distintas no se encontra no seu bvio pertencimento ao continente asitico. Esta noo provavelmente situaria tais produes dentro do problemtico conceito de cinema nacional2. Enveredar-se por tal caminho seria admitir a idia de estado-nao, que parece cada vez mais implodida ou despedaada em meio aos novos modos de subjetivao que surgem na modernidade, marcada pela dicotomia entre o global e o local.

    1 O termo construdo por crticos de cinema, como Ruy Gardnier e Luiz Carlos Oliveira Jr., da Revista

    Contracampo (www.contracampo.com.br), para caracterizar tal produo cinematogrfica, em que as noes de transnacional e transculturalismo, pensadas pelos Estudos Culturais, so levadas em considerao, com base em um novo paradigma, diferente do cinema moderno e do cinema produzido nos anos 1980 e 1990.

    2 Para compreender melhor o delicado debate contemporneo sobre o conceito de cinema nacional, ler

    Reinventando o conceito de cinema nacional, texto introdutrio escrito por Fernando Mascarello, no livro Cinema Mundial Contemporneo (Papirus, 2008).

  • Segundo Arjun Appadurai (1997, p. 3), a imaginao que ter que nos levar para alm da nao. Esta imaginao entendida como propriedade coletiva e no como faculdade individual possibilita a busca de transversalidades que atravessam diferentes pases e culturas. Portanto, no se trata de pensar os filmes destes realizadores da sia como reproduo ou representao de um estado de coisas histrico, mas compreender como eles propem ou imaginam novos sentidos de mundo por meio de determinados territrios sensveis ou, como afirma Appadurai (1996: p. 8), comunidades de sentimento transnacionais, que no so lugares necessariamente geogrficos, mas antes de tudo espaos de solidariedade transnacionais.

    Se tais comunidades de sentimento prescindem dos territrios e fronteiras geogrficas, elas no abandonam narrativas de pertencimento e de afiliao, ou seja, de uma imaginao que alimentada simblica e socialmente e que est para alm dos limites do estado-nao (FRANA, 2003, p. 27). As conexes e as alianas entre os filmes de Hsiao-hsien, Kawase, Ming-liang e Weerasethakul desenham-se mediante formas de pertencimento a uma maneira especfica de lidar com a relao sensorialidade/corpo/narrativa.

    Diferente da produo audiovisual hegemnica que se adequa ou reproduz determinados padres mercadolgicos e perfis de gnero, este cinema contemporneo transnacional explora imagens que fogem do modelo de representao do cinema industrial. So obras flmicas singulares que radicalizam novas formas de compreender o cinema com base em elementos sensoriais. No Brasil, os filmes citados no chegaram a ser lanados em DVD tampouco em salas comerciais de cinema. As exibies destas produes restringiram-se a festivais internacionais e nacionais de cinema. Este dado tambm foi considerado relevante para a escolha de tais filmes como objeto de estudo, na medida em que eles abarcam investigaes estticas que se constituem como resistncia aos perfis convencionais do mercado cinematogrfico de distribuio.

    Na recusa de uma apologia do efmero e da cultura do espetculo que se tornou um dos sintomas da urbanizao da sociedade atual, os quatro cineastas compartilham um mesmo tipo de sensibilidade, para alm de suas diferenas culturais, histricas e polticas. No se trata de apagar ou ignorar do debate suas especificidades, mas compreender como apesar delas tais cinematografias conseguem dialogar e estabelecer pontos de contato3.

    3 Esta pesquisa demonstra afinidade com a proposta de Andra Frana no livro Terras e Fronteiras no

    Cinema Poltico Contemporneo que, ao pensar os imaginrios de terra e fronteira no cinema, explica que no simplesmente debruar-se sobre suas realidades anteriores e exteriores ao filme -, no deslizar

  • Com base na noo de entre-lugares4 que possibilita pensar o cinema como espao de trnsitos entre temporalidades e culturas diversas, pode-se tambm compreender eixos que atravessam produes cinematogrficas recentes, realizadas em Taiwan, na Tailndia e no Japo.

    Entre estes vrios eixos ou transversalidades, interessa pensar aqui como se configura a relao entre sensorialidade, corpo e narrativa em Mal dos Trpicos, Adeus, Dragon Inn, Caf Lumire e Shara. Em primeiro lugar, possvel pensar o primado da experincia esttica nestes quatro filmes, em que se privilegia uma imagem sensorial (a relao do corpo com os afetos e as sensaes) e no uma imagem meramente conceitual, racional e discursiva (que toma o cinema como texto a ser lido ou como mera abstrao)?

    O primeiro captulo procura investigar em que medida a sensorialidade pode ser pensada como categoria de anlise de um regime de imagem constituidor destes quatro filmes, escolhidos como objeto de estudo. Trata-se de um captulo que inclui definies tericas sobre a sensorialidade e a relao com uma teoria geral da sensibilidade (aisthesis), a partir de leituras de determinados autores da filosofia e da esttica, em especial Baumgarten e Vico. Em contraposio aos limites do racionalismo abstrato, a noo de sensorialidade engloba as formas do sentir e o estado afetivo humano, correspondentes ao primado do vivido sensorial ou uma espcie de ateno aos elementos que dizem respeito ao pathos (as emoes, os afetos, os sentimentos). A sensorialidade est vinculada a uma noo mais ampla do esttico, pois se expressa como experincia, quer das faculdades e disposies humanas pr-reflexivas, quer de um certo saber dos sentidos que d conta da dimenso onto-antropolgica do homem e de sua relao primordial com o mundo.

    Com base na anlise detalhada de determinadas cenas ou seqncias das quatro produes, o segundo captulo procura investigar de que maneira este tipo de imagem de base sensorial vincula-se a uma determinada concepo de corpo. Como os filmes Shara, Mal dos Trpicos, Adeus, Dragon Inn e Caf Lumire permitem pensar uma noo de

    segundo coordenadas dadas a priori, mas criar alianas e contgios desenhados no elemento sensvel da imagem auditiva e visual (FRANA, 2003, p. 29).

    4 Partindo dos argumentos tericos de Silviano Santiago, Denlson Lopes explica no texto Do Entre-Lugar ao

    Transcultural, que o entre-lugar no uma abstrao, um no-lugar, mas uma outra construo de territrios e formas de pertencimento, no simplesmente uma inverso de posies no quadro internacional, mas um questionamento desta hierarquia, a partir da antropofagia cultural, da traio da memria e da noo de corte radical, embasadas teoricamente no simulacro e na diferena, a fim de propor uma outra forma de pensar o social e o histrico, diferente das crticas marcadas por uma filosofia da representao (2006, p. 5).

  • corpo que se expressa em duas variveis: a cmera-corpo e os corpos dos personagens? Nos quatro longas, existe um investimento de um interesse tico de profundidade de querer ver o ntimo, de explorao de uma visibilidade , e de superfcie de um tatear um estado de coisas sensvel. Os corpos explorados nas narrativas dos filmes no se distinguem hierarquicamente entre outros corpos com os quais se relacionam e o ambiente em que circundam.

    Dando continuao anlise dos filmes, o terceiro captulo procura compreender como a articulao entre sensorialidade e corpo desemboca em uma maneira diferenciada de conceber a narrativa flmica. De que maneira a aposta em um tipo de imagem sensorial implica em uma mudana na forma de lidar com a narrativa, que se diferencia dos preceitos do cinema mais convencional e tradicional? No lugar da relao de causalidade, de contigidade, de unidade espao-temporal, encontramos um cinema pleno de elipses, de descontinuidades, que enfatiza o som e a desdramatizao. Em que medida estas produes contemporneas colocam em evidncia elementos narrativos, que no necessariamente se reportam mera contao de histrias?

    importante enfatizar que no se pretende aqui realizar uma anlise fechada, conclusiva ou totalizante dos filmes ou dos conceitos relativos ao sensorial, ao corpo e narrativa. A pesquisa ganha fora e pertinncia a partir da problematizao de suas questes ou levantamento de hipteses e no exatamente de respostas conclusivas. Neste sentido, este projeto se apresenta como fundamental para comear a se constituir uma bibliografia mais abrangente nesse campo de estudo especfico.

  • 1 A SENSORIALIDADE

    1.1. A sensorialidade e a Esttica

    De noite, Tong e Keng iniciam uma conversa beira de uma estrada praticamente deserta. Keng interrompe a fala de Tong para cheirar a mo do parceiro e esfregar seu rosto no brao dele. Depois de alguns segundos, Tong retribui o gesto de Keng, porm j no se limita mais ao simples ato de cheirar. Ele lambe intensamente a mo de Keng. Pouco tempo depois, Tong caminha sorridente em meio escurido da noite. Keng permanece no mesmo lugar por alguns segundos, at o momento em que toca uma msica.

    Embalado pelo som extra-diegtico da cano Straight, da banda tailandesa Fashion Show, Keng agora aparece sorridente, andando de moto pelas ruas de sua pequena cidade na Tailndia. As avenidas so precariamente incandescidas pelas lmpadas amareladas dos postes, que parecem brilhar como pequenos objetos voadores no identificados. Planos em travelling capturam os carros que circulam pelas ruas, as pessoas nos automveis, os mercados lotados, uma briga entre homens na beira da avenida. A noite cede lugar ao dia. Em seguida, aparecem closes de vrios rostos de soldados, que viajam na caamba de uma caminhonete. Alguns esto sorrindo, como Keng; outros permanecem srios; outros, adormecidos. E depois deste passeio por diferentes fisionomias, o que se sucede um plano tomado pela fumaa branca que sai do escapamento da caminhonete, misturada poeira da estrada.

    Do simples ato de Keng cheirar a mo de Tong fumaa esbranquiada expelida pela caminhonete, o que est em jogo nesta seqncia de planos do longa-metragem Mal dos Trpicos, de Apichatpong Weerasethakul? Certamente, situaes que envolvem os sentidos: o cheiro, o paladar, a viso, a audio, o tato. Contudo, uma sensao de ambincia perpassa estas imagens. O encadeamento destes planos parece organizar-se em torno de vagas sensoriais, que a princpio no so estveis e no se deixam facilmente ser compreendidas. Da ser possvel saltar do brilho ofuscante das lmpadas a uma briga entre homens; de uma viagem de moto noite para rostos de soldados ao dia, pois o que interessa nestas imagens intensivas5 j no tanto a continuidade espao-

    5 No livro A Imagem-Nua e as Pequenas Percepes (2005, p. 23), Jos Gil explica que a experincia

    primeira do homem no mundo a da imagem intensiva, antes da percepo se fixar distncia e se impor.

  • temporal entre elas, mas uma atmosfera sensorial que entrecruza no s as sensaes dos personagens, mas tambm do espectador , capaz de variar de um plano a outro.

    Em A imagem-nua e as pequenas percepes, Jos Gil argumenta que as variaes da imagem intensiva na esfera da sensao precedem aquilo que na percepo se torna constante ou discernvel. Porque a sensao desabrocha em imagens (...): o bloco emotivo que as atravessa e as envolve mantm-nas ainda soldadas, indiferenciadas, sincronizadas (GIL, 2005: p. 23). De um plano a outro, diversas sensaes desabrocham sem que nenhuma delas se sobreponha s outras, na medida em que compem o todo de uma experincia esttica.

    Para alm das disposies biolgicas ou faculdades meramente psicolgicas do ser humano6, o que torna a experincia esttica algo singular no apenas aquilo que

    nossos sentidos podem atribuir na esfera perceptiva, mas principalmente a nfase ou o privilgio atribudo sensorialidade como um todo, ou seja, o primado do sensorial na vivncia cotidiana e sua ateno a tudo aquilo que diz respeito ao pathos (as emoes, os afetos, os sentimentos). Em contraposio aos limites do racionalismo abstrato, a noo de sensorialidade aqui se aproxima da concepo etimolgica de asthesis, que engloba as formas do sentir e o estado afetivo humano, correspondentes a uma teoria geral da sensibilidade7.

    A sensorialidade vincula-se necessariamente a uma noo mais ampliada do esttico, pois se expressa como experincia, quer das faculdades e disposies humanas pr-reflexivas, quer de um certo saber dos sentidos em que se inserem as formas do sentir e o estado afetivo. Esta experincia nada mais que a dimenso onto-antropolgica e a relao primordial do homem com o mundo. A experincia esttica ou experincia sensvel uma propriedade que constitui o humano como algo imprescindvel de sua criao, pois faz parte de sua integralidade. Segundo o esteta Mario Perniola, no plano do sentir que nossa poca exerce seu poder.

    6 Jos Gil defende que a experincia esttica no deve ser descrita por meio da psicologia, da fenomenologia

    ou da semitica. No se trata da experincia de uma conscincia ou de um sujeito; no proporciona um sentido a decifrar por uma lngua ou a apreender na evidncia de uma presena (GIL, 2005: p. 23). No entanto, tal argumento demasiadamente radical e leva certamente a um nvel de abstrao que esta dissertao no toma como ponto de partida. A experincia esttica aqui deve ser considerada como algo que faz parte da integridade onto-antropolgica do homem (que envolve certamente suas disposies biolgicas, pois sem elas no seria possvel sentir ou perceber), mas ao mesmo tempo no se restringe apenas a estas mesmas faculdades, constituindo um saber mais amplo que envolve tambm uma poiesis (a fantasia, a imaginao, a criao) e o pathos (sentimentos, afetos, paixo, emoo).

    7 Ainda neste captulo, ser explicado mais adiante em que consiste esta teoria geral da sensibilidade, no

    sentido mais prximo s consideraes estticas de Baumgarten e Vico.

  • Talvez por isso ela [a poca contempornea] possa ser definida como uma poca esttica: no por ter uma relao privilegiada e direta com as artes, mas essencialmente porque o seu campo estratgico no o cognitivo, nem o prtico, mas o do sentir, o da aisthesis (PERNIOLA, 1993, p. 11).

    Para que se possa compreender melhor o que significa sensorialidade e em que consiste sua problemtica, necessrio a princpio investigar noes estticas bsicas. No entanto, com o objetivo de no tornar demasiadamente longo tal excursus e evitar empreender uma exaustiva historiografia da Esttica tarefa que fugiria completamente do escopo deste trabalho , sero aprofundadas algumas consideraes acerca da sensorialidade, tomando como base majoritariamente dois autores fundamentais da modernidade: Baumgarten e Vico.

    1.2. Primeiras definies conceituais

    As reflexes de Baumgarten e Vico sobre o problema da asthesis se aproximam da noo de sensorialidade aqui reportada: uma defesa do sensvel como elemento constituidor da integralidade antropolgica na relao primordial do homem com o mundo, antes mesmo do uso de faculdades da razo. Este primado da experincia esttica explorado em Shara, Adeus, Dragon Inn, Caf Lumire e Mal dos Trpicos, pois possvel perceber em suas construes narrativas o investimento em um tipo de imagem que privilegia o sensvel a composio, o encadeamento dos planos e a modulao do som, em um regime de atmosfera e ambincia, contribuem para uma fruio que apela mais para as sensaes do que para o discurso racional; a nfase na insero corporal no espao e no tempo cotidianos e que deixa em segundo plano um tratamento meramente conceitual, racional e discursivo da imagem. A ateno prioritria sensorialidade nos argumentos estticos de Baumgarten e Vico insere conceitos que auxiliam na compreenso do regime de imagem do conjunto de filmes acima, que mais tarde sero analisados.

    O termo sensorialidade deriva de sensibilidade, que se origina do grego asthesis ou aistheton (sensao, sensvel). Tudo aquilo que diz respeito percepo pelos sentidos ou conhecimento sensvel-sensorial vincula-se a este termo que, no campo das cincias humanas, est diretamente relacionado ao conceito de Esttica. O termo Esttica foi criado pelo filsofo alemo Alexander Baumgarten (17141762), em sua obra

  • Meditationes philosophicae de nonnulis ad poema pertinentibus, datada de 1735. Embora seja arbitrrio querer justificar o advento da Esttica com base no surgimento de um nome8, Baumgarten foi o responsvel por sistematizar e justificar, em sentido filosfico, a Esttica como campo de saber especfico, ou seja, como teoria, doutrina ou cincia do conhecimento sensvel perfeito9.

    A cincia do modo do conhecimento e da exposio sensvel a esttica (lgica da faculdade do conhecimento inferior, filosofia das Graas e das Musas, gnosiologia inferior, arte da beleza do pensar, arte do anlogo da razo) (BAUMGARTEN, 1993: p.155).

    Baumgarten destaca que a sensibilidade no equivale apenas aos objetos das sensaes os sensuaalia , mas diz respeito tambm imaginao os phantasmata. De acordo com Paolo DAngelo (1999, p. 316), Baumgarten compreende como sensvel no apenas as modificaes induzidas no sujeito pela presena real dos objetos (as sensaes stricto sensu), mas tambm as representaes sensveis de objetos ausentes, fruto da capacidade imaginativa. Nos trechos de Mal dos Trpicos descritos no incio deste captulo, interessante observar como a presena real dos objetos na cena as lmpadas acesas dos postes, os carros nas ruas, as pessoas nos mercados desencadeiam no s sensaes concretas aquilo que est ao alcance da viso , mas estimulam o espectador a exercitar sua capacidade imaginativa de aproximao do estado emocional do personagem Keng, que demonstra estar alegre, aps despedir-se de seu amado Tong.

    Alm desta compreenso mais ampla do sensvel que engloba as sensaes e a imaginao, Alexander Baumgarten explica que a Esttica tambm uma arte do belo, uma potica, mas, de antemo, uma teoria da sensibilidade, medida que constitui um modo de conhecimento, ou seja, uma gnosiologia. A faculdade de sentir tambm uma faculdade de conhecimento, que no se confunde com um simples e insuficiente recurso e que possui um modo especfico de apreenso do objeto. Embora a sensibilidade conecte-se

    8 Antes de Baumgarten, outros filsofos chamaram a ateno para a experincia esttica, embora ainda no

    fosse necessrio constituir a Esttica como saber. Um exemplo disso era Giambattista Vico (1668-1744), cuja inteno primordial de sua Scienza Nuova no fundamentar a Esttica como disciplina filosfica particular, mas um saber sobre as origens do mundo civil das naes e sua constituio histrico-cultural, em que se utilizam algumas formulaes estticas.

    9 Cf. A. G. Baumgarten. Prolegmenos, in: Esttica: a lgica da arte e do poema. Trad. BR. Miriam Sutter

    Medeiros. Petrpolis, Vozes, 1993, p. 95. Segundo Benedetto Croce, todas as formulaes estticas que j existiam no interior do pensamento de outros filsofos foram sistematizadas por Baumgarten que deu a sua teoria da sensibilidade vrias denominaes, entre os quais ars analogis rationis, scientia cognitionis sensitivae, gnosiologia inferior, e aquele que (...) permaneceu, Aesthetica (CROCE, 1997: p. 65).

  • a um saber, ela , como faculdade inferior, um saber do confuso10, pois suas representaes so sensveis e no distintas, alm de no atingir a certeza do entendimento ou da percepo racional.

    No entanto, Baumgarten confere sensibilidade o lugar de um saber. A Esttica seria o estudo da natureza deste saber, em outras palavras, uma epistemologia da sensibilidade. Para fundamentar sua Esttica como cincia, o filsofo remonta s origens do termo, que provm do grego e designa em latim o verbo sentio, que se reporta a tudo aquilo que se percebe de maneira sensvel. Baumgarten divide as sensaes em externas aquelas que se produzem no corpo medida que se est consciente e se reportam a todos os sentidos e internas aquelas que se produzem na alma. A tarefa da cincia esttica (aesthetica scientia) projetada por Baumgarten de descrever as faculdades da sensibilidade est fundada numa psicologia emprica.

    Luc Ferry (1990, p. 96) explica que a idia fundamental de Baumgarten de que o homem no saberia perceber o mundo de outra forma a no ser pela sensibilidade e de que existe, portanto, um analogo rationis, uma faculdade, ou um conjunto de faculdades, que para o mundo sensvel aquilo que a razo para o mundo inteligvel. Ao distinguir o horizonte sensvel ou gnosiologia inferior (aisthet) do horizonte inteligvel ou gnosiologia superior (noet), o filsofo empreende uma clara distino entre diferentes saberes: a Lgica e a Esttica11.

    As coisas inteligveis devem, portanto, ser conhecidas atravs da faculdade do conhecimento superior, e se constituem em objetos da Lgica; as coisas sensveis so objetos da cincia esttica (...), ou ento da Esttica (idem, 1993: pp. 75-76).

    De acordo com Baumgarten, a tarefa da Lgica seria a de fornecer regras que orientem neste conhecimento sensvel das coisas (ibidem, p. 52), mas por sua prpria definio ela se concentra nos limites muito estreitos em que de fato est contida (ibidem, p. 53). A Lgica s pode dar conta daquilo que distinto o inteligvel e nunca

    10 Apesar de Leibniz retomar termos prprios da epistemologia cartesiana claro, obscuro, distinto, confuso

    , ele no classifica os conhecimentos em dois opostos, mas faz uma distino entre diferentes graus dentro do conhecimento, que vo desde a noo obscura, em que a coisa representada no conhecida, at o conhecimento claro, que sumamente perfeito e caracterstico da oniscincia divina.

    11 Sobre esta classificao empreendida por Baumgarten, Paolo DAngelo (1999: p. 316) esclarece:

    Baumgarten quis que a esttica fosse uma cincia que orienta a faculdade cognoscitiva inferior, do mesmo modo que a lgica orienta a faculdade cognoscitiva superior. E, portanto, que a esttica tivesse por objeto os sensveis (t aisthet, em grego), da mesma maneira que a lgica tem por objecto os inteligveis (t noet).

  • daquilo que confuso ou obscuro o sensvel. A esfera da sensibilidade pode transitar do confuso clareza, mas jamais atinge a distino, algo particular das representaes intelectivas, as quais pertencem ao argumento tradicional da Lgica. Tais consideraes de Baumgarten implicam afirmar que a verdade esttica se diferencia da verdade lgica pela oposio entre particular e geral, como explica Jos Expedito Passos Lima:

    A verdade lgica diz respeito a essncias gerais, pois o conhecimento intelectual trata das relaes lgicas universais, que, em virtude da finitude humana, no pode ultrapassar a abstrao das leis gerais. A razo humana se define pela sua incapacidade de apreender as coisas na sua singularidade: a riqueza e a complexidade das relaes que constituem as coisas no so objeto de uma apreenso lgica. A essncia singular s pode ser apreendida de forma confusa, por isso, uma verdade determinada s pode ser apreendida pela percepo sensvel (LIMA, 2006: pp. 111-112).

    Com base em tais argumentos baumgartenianos, a definio do objeto prprio da verdade esttica a singularidade das coisas, enquanto o objeto da verdade lgica a harmonia com os princpios universais. Baumgarten reconhece que a Esttica, por ser uma

    cincia mais ampla capaz de dimensionar a singularidade , deve auxiliar a Lgica. Como gnosiologia inferior, o conhecimento sensvel perfeito anlogo da razo (ibidem, p. 89), pois se a meditao lgica procura obter o conhecimento distinto e intelectual das coisas, a Esttica se esfora para examinar as mesmas coisas mediante sua singularidade.

    Se o conhecimento intelectual distinto (perfeito em sentido formal), mas abstrato e pobre, o conhecimento sensvel confuso, mas determinado e rico (perfeito em sentido material). Disto resulta que apenas a percepo rica est altura da complexidade da coisa singular, pois apenas esta percepo (como percepo sensvel) pode apresentar o indivduo na sua individualidade, uma vez que tal individualidade que interessa verdade esttica, sempre singular (LIMA, 2006, p. 113).

    De acordo com as formulaes de Baumgarten, a arte comprometida com a experincia esttica no enuncia proposies universais e tampouco se utiliza de argumentos lgicos no sentido de uma razo analtica ou instrumental , pois se compromete com o singular mediante o conhecimento sensvel. Outro argumento baumgarteniano relevante que o objeto da verdade esttica no tem necessariamente compromisso com o real. A arte no imitao da natureza, pois ela explora, conforme o

  • filsofo, um outro mundo (mundo fictio), uma vez que a verossimilhana potica parte do mundo fictcio, no do mundo real12.

    Ela [a arte] se define como inveno verdadeira e descreve o irreal sem mentir, pois a sua verdade heterocsmica. Isto justifica que a autonomia da percepo sensvel verdadeira, medida que seu objeto para a lgica impossvel (ibidem, p. 111).

    A distino entre Lgica e Esttica no interior das reflexes de Baumgarten no exclui a possibilidade de relao entre uma teoria da sensibilidade das faculdades pr-reflexivas humanas e uma teoria das artes da criao dos objetos artsticos. No decurso da modernidade, tal relao fez com que o tratamento da Esttica como disciplina particular ou um saber especfico levasse sua prpria justificao ou fundamentao a dois paradigmas: o aistetolgico e o poetolgico.

    O paradigma aistetolgico considera a Esttica como teoria da asthesis (sensibilidade), cujo modelo aproxima-se da orientao de Baumgarten na expresso de sua teoria do conhecimento sensvel perfeito13. O paradigma poetolgico considera a Esttica como Filosofia da Arte, em que h uma valorizao da piesis (produo, criao) e a prioridade da reflexo sobre o gosto, o belo, o sublime e o sistema das artes, cujo modelo identificado com Hegel (1770 1831) e Schelling (1775 1854).

    Ciente da distino entre estes dois paradigmas no interior da Esttica, interessa aqui enfatizar ou considerar determinados conceitos estticos que no se restringem ao debate acerca do belo, do sublime, de uma teoria das artes. A reflexo sobre a sensorialidade vincula-se a uma concepo mais ampliada da experincia esttica, com base naquilo que pertinente ao paradigma aistetolgico, ou seja, de uma teoria do sensvel. empobrecedor reduzir o esttico ao artstico, j que falar do sensvel se reportar experincia cotidiana do homem no mundo.

    Vinculada s formas de vida ordinria e sem estar restrita relao com os objetos artsticos, a experincia esttica implica em uma via de acesso experincia atual do mundo. Tal concepo de experincia esttica aproxima-se daquilo que o filsofo

    12 Cf. A.G. Baumgarten, Esthtique, 1988, pp. 19-20.

    13 preciso, no entanto, deixar claro que o projeto da Esttica de Baumgarten, como cincia do

    conhecimento sensitivo ou gnosiologia inferior, no desconsidera a arte. (Cf. BAUGMARTEN, Alexander Gottlieb. Prolegmenos, in Esttica [1750]. Trad. br. Miriam Sutter Medeiros, Petrpolis: Vozes, 1993, p. 95.) A separao entre Esttica e Filosofia da Arte ainda no um problema no interior da filosofia baumgarteniana. Na sua Esttica, h temas prximos reflexo sobre as artes, sobretudo quando trata das fices poticas (Cf. BAUMGARTEN, Alexander Gottlieb. Esttica, pp. 176-177.).

  • italiano Giambattista Vico (1668-1744)14 compreendeu por sabedoria potica, uma sabedoria capaz de organizar, em base sensvel, sentimental e imaginativa, a relao entre homem e mundo. O esttico aqui no se confunde com a reflexo filosfica sobre o belo e a arte: esttico , antes de qualquer coisa, a natureza da experincia sensorial e do saber sensvel humanos, como disposio onto-antropolgica. Tambm se reporta especificidade de um saber dos sentidos, necessrio esfera prtica das relaes humanas cotidianas.

    Em dilogo com o pensamento de Vico sobre o sensvel, a sensorialidade aqui abordada como categoria de investigao que nos ajuda a compreender a narrativa de Shara, Mal dos Trpicos, Adeus, Dragon Inn e Caf Lumire relaciona-se atitude primordial do homem ao entrar em contato com o mundo, mediante o sensvel. Segundo Vico, s se pode conhecer originariamente, quando se capaz de perceber, de rememorar, de inventar, de sentir, isto , de viver as coisas do mundo. Os personagens dos quatro filmes conhecem o mundo, pois so capazes de senti-lo e ns, espectadores, somos convidados a sentir junto com eles, a compartilhar da mesma experincia sensorial.

    A sabedoria potica, nas palavras de Vico em sua Scienza Nuova, no se vincula de forma imediata ao gnero literrio, mas se refere criatividade dos primeiros povos, os quais se exprimiam mediante uma lngua hieroglfica. Estes primeiros homens tinham contato direto com uma dimenso fantstica do mundo, por meio de uma linguagem que se articulava, segundo Vico, como metafsica potica e lgica potica: a primeira revelava a origem da arte potica e do pensamento mtico; e a segunda organizava o material originrio numa linguagem, instituindo um liame natural entre as coisas e o som das palavras que as exprime, destacando o sentido emocional e sensvel dessa relao15.

    Opondo-se racionalidade cartesiana, a sabedoria potica a primeira sabedoria dos povos gentlicos, da qual Vico se reporta em sua obra , no uma metafsica abstrata ou refletida, mas uma metafsica sentida e imaginada, em sintonia com

    14 Apesar de no pretender fundamentar uma Esttica, a obra de Vico, Scienza Nuova (1744), apresenta

    discusses relevantes sobre a problemtica da sensibilidade, da afetividade e da corporeidade, vinculadas a reflexes acerca da potica, da retrica, do mito e da linguagem. Antes de se configurar como Esttica, o pensamento de Vico sobre a sensibilidade , ao mesmo tempo, uma doutrina da poesia (quase sinnimo de linguagem e de mito) e uma antropologia do mundo primitivo, em outras palavras, uma antropologia dos primeiros povos os quais foram poetas e falavam em caracteres poticos.

    15 Cf. FRANZINI, Elio. A Esttica do Sculo XVIII, p. 153.

  • os sentidos robustos e as vigorosssimas fantasias dos primeiros homens16. Ao contrrio do que se possa considerar em uma rpida leitura da Scienza Nuova, Vico no pretendia reduzir suas consideraes sobre o sensorial apenas ao modo de vida dos primeiros homens que habitavam a terra, mas enfatizar que a relao cognitiva entre homem e mundo desenvolve-se primordialmente mediante a sensibilidade e no mediante a distino do raciocnio analtico que j predominava em sua poca. Em contraposio ao tecnicismo, ao instrumentalismo e ao racionalismo, trata-se da valorizao das faculdades corpreas, sensveis e perceptivas, na constituio integral do homem na sua relao cotidiana com o mundo17. O pensamento esttico viquiano liga-se etimologicamente asthesis, correspondendo a uma teoria geral da sensibilidade e da percepo.

    Uma esttica viquiana reportar-se-ia tambm, como em Baumgarten, asthesis, ou seja, ao conjunto de faculdades, disposies associadas aos sentidos, sensao, ao sensvel, ao verossmil, ao senso comum; mas reporta-se tambm poiesis, isto , s faculdades como a fantasia e o engenho, na medida em que remetem a um facere, ou seja, inveno, criao, produo (LIMA, 2006: p. 122).

    O ponto central da esttica de Giambattista Vico o sentido que o ser humano cria ao entrar em contato com o mundo. Ao se vincular a aspectos histricos e antropolgicos, este saber dos sentidos se antepe ao saber racional. A questo esttica aqui implica no reconhecimento de Vico da importncia das faculdades sensveis e perceptivas como dimenso onto-antropolgica, apesar da arbitrariedade e da unilateralidade que incorria a posio mentalista, racionalista e intelectualista de parte da Filosofia de seu tempo.

    16 Cf. VICO, Giambattista. Cincia Nova, p. 212.

    17 O pensamento de Vico apresenta contribuies de origem retrico-potica e recorre tradio da

    enciclopdia de saberes humanistas, que inclui a exaltao das faculdades corpreas, sensveis e perceptivas, alm da valorizao da fantasia, da memria e do engenho como faculdades prprias do homem. Vico reconhece a importncia de tais faculdades na experincia cultural, quer do sculo XVII, quer do sculo XVIII, que possibilita a reabilitao do universo de sentido tanto da cultura barroca, quanto da iluminista. Baumgarten tambm enfrentou a questo do analogo rationis com base nos problemas fundamentais da Filosofia do sculo XVII. A problemtica esttica alem de tradio escolstica parte do eixo terico de Gottfried Wilhelm Leibniz (1646- 1716), sistematizado e divulgado por Christian Wolff (1679-1754). Como discpulo de Wolff, Baumgarten usa com extrema habilidade a lgica de seu mestre e esquemas gerais, como as partes em que o sistema se divide (ontologia, cosmologia, psicologia e teologia) e o horizonte gnosiolgico que desenha para a sua esttica. Baumgarten tambm faz uso da classificao dos conhecimentos em obscuros e claros, empreendida por Leibniz. No contexto destes ltimos, [Leibniz] fez a separao entre conhecimentos confusos, a que pertence o conhecimento sensvel, e conhecimentos distintos, a que pertence o conhecimento racional. Afirma tambm que a passagem dos primeiros para os segundos no um salto, mas uma afinao progressiva (DANGELO, 1999: p. 316).

  • Segundo Vico, a Lgica racional no capaz de apreender o universo de sentido fantstico e potico da realidade, ou seja, a sabedoria potica de uma humanidade ainda rude e brbara, que totalmente instinto, sensao, paixo. Trata-se aqui de um forte apelo do pensamento em direo da concreticidade, da sensibilidade, da fora das paixes e de uma consistente fantasia. Vico prope uma lgica potica e no analtica que pode apreender toda uma forma de pensamento, de conhecimento, de sentimento coletivo de um grupo, de povos e naes, ou seja, da humanidade em sua totalidade em que o senso comum regulador da convivncia humana.

    Com efeito, a funo fundamental da lgica potica significar o ser potico teorizado pela metafsica; mas lgica no cincia do juzo, mas sim retorno ao originrio sentido do termo, quando logos era sinnimo do outro signo verbal para indicar a palavra, a saber, mythos. Mito que, com uma etimologia incorreta mas significativa, Vico reconduz ao latino mutus: ser mudo indica ento todas aquelas possibilidades expressivas que, desde o gesto ao hierglifo, comunicam sem utilizar a palavra. O logos uma realidade muda, ou mtica, e o sinal da criatividade original do homem (FRANZINI, 1999: p. 154).

    Contra os limites do racionalismo moderno que justifica a relao do homem com o mundo com base na razo analtica, Vico e Baumgarten reivindicam o lugar da sensibilidade (da asthesis). Em Baumgarten, isto se expressa a partir da legitimidade de uma cincia que se reporte ao conhecimento sensvel perfeito. Em Vico, a sensibilidade necessria, junto a outros saberes e faculdades que integram o nimo humano, constituio de uma nova cincia que busca compreender as origens do mundo civil das naes e, posteriormente, a vivncia sensorial humana no mundo de hoje.

    A defesa de concepes, noes e saberes excludos pela racionalidade moderna uma das marcas do pensamento viquiano. Na Scienza Nuova, Vico valoriza as faculdades diferentes da razo, pois a criao do mundo resultado, em seus primrdios, da sensibilidade e da fantasia do que propriamente de uma racionalidade. O procedimento racional analtico no possibilita acesso, em termos hermenuticos, de um mundo em que reside a sabedoria potica.

    Apesar da influncia do intelectualismo de Leibniz e de Wolff pertencentes a uma tradio de pensamento que conduz valorizao do inteligvel em detrimento do sensvel, Baumgarten tambm se posiciona contra os limites de um racionalismo que conduz tudo apenas para uma razo analtica. Ele justifica a sensibilidade como modo especfico de conhecimento e assume o ponto de vista da finitude humana no sentido de

  • que h no homem uma faculdade, ou um conjunto de faculdades, que lhe possibilita a percepo do mundo, a saber, a sensibilidade.

    Com base em uma apologia de impostao humanista, Baumgarten faz uma defesa daquilo que constitui o objeto de todo conhecimento humano: a sensibilidade em oposio ao ponto de vista da pura racionalidade. Fundamentado a partir da experincia da finitude humana e no valor da integridade das faculdades contra o primado da ratio (a razo), o aspecto humanista das reflexes de Baumgarten acerca do sensvel vai desde a defesa da confuso como a condio sine qua non para descobrir a verdade at a defesa do comando das faculdades inferiores e no a tirania sobre as mesmas.

    Apesar de compreender a abstrao como perda da integridade das faculdades humanas, Baumgarten ainda justifica sua Esttica no mbito do gnosiolgico. Reconhecer um saber ligado aos sentidos e a sua autonomia no significa que as caractersticas do conhecimento racional, ou seja, da razo e do entendimento, permaneam alheias Esttica. De acordo com o filsofo, o conhecimento sensvel tem sua perfeio na beleza e a Esttica (ars analogi rationis) valoriza a faculdade perceptiva e imaginativa, posta como primeiro degrau do conhecimento. No entanto, como gnosiologia inferior, tal Esttica no mantm uma oposio realmente conflituosa com a Lgica, pois se modela numa harmnica continuidade com esta ltima.

    Neste sentido, problemtico afirmar a existncia de uma autonomia plena da Esttica em Baumgarten, na medida em que esta cincia do conhecimento sensvel comprometida, pois severamente vigiada pelas razes no totalmente estticas que lhe servem de fundamento e que constituem a medida e, ao mesmo tempo, o limite dela (PATELLA apud LIMA, 2006: p. 143). A Esttica baumgarteniana revela-se susceptvel de ser ultrapassada pelo grau superior do conhecimento intelectual, o nico que claro e distinto. A teoria do conhecimento sensvel elaborada por Baumgarten pode ser reduzida a uma simples propedutica e, conseqentemente, ser suplantada pela Lgica.

    Ao contrrio de Baumgarten, Vico no identifica as faculdades sensveis e sua recproca relao a primeira operao humana no contato com o mundo com algo passivo e limitado. Estas faculdades possuem uma legitimidade prpria e autonomia, pois so imprescindveis vida prtica dos indivduos, em que o critrio no o do puro verdadeiro da distino lgica racional , mas o das segundas verdades (vera secunda) e do verossmil. A preocupao de Vico com as origens o conduziu elaborao de um procedimento genealgico e poitico sobre os aspectos sensitivos, emocionais e perceptivos da experincia humana, isto , sobre a dimenso do sentir.

  • Em tal procedimento, ele defendeu a plena autonomia das faculdades sensveis e perceptivas. Vico atribuiu imaginao, fantasia, ao engenho uma dignidade epistemolgica no inferior ao entendimento e razo. Na sua nuova scienza, ele descreveu o funcionamento destas faculdades no sentido ontogentico e filogentico. Trata-se do forte apelo viquiano concretude da sensibilidade, fora das paixes e robustez da fantasia: algo que o conduziu experincia esttica, quer no sentido de uma poiesis, quer no de uma aisthesis (LIMA, 2006, p. 262).

    Aquilo que justifica o primado esttico ou uma teoria da asthesis e da poiesis no interior das reflexes filosficas de Vico a defesa de um projeto pedaggico-educativo que considera o desenvolvimento natural das faculdades do indivduo e a adequao de cada uma delas s disciplinas e saberes correspondentes. Esta adequao refere-se aos momentos do prprio desenvolvimento cognitivo do homem, algo que se constitui como exigncia prtica da vida civil. Contra a orientao dos estudos inspirada na concepo de saber e mtodo cartesianos, Vico destacou a importncia da ampla esfera do conhecimento vinculada s faculdades sensveis e perceptivas, necessrias a certos saberes da vida prtica: faculdades e disposies enraizadas na corporeidade.

    Se a concepo baumgarteniana de sensibilidade ainda estava muito atrelada gnosiologia, Vico reconhece a dimenso da sensorialidade como aspecto primordial da nossa prpria experincia onto-antropolgica, quer como sabedoria dos sentidos (sensibilidade, sensao: asthesis), quer como fazer criativo (produo: poiesis). A natureza mesma da sabedoria potica esttica, mas no se identifica com qualquer primado gnosiolgico ou epistmico moderno. Em Vico, este pressuposto primeiro de toda a experincia humana se inscreve no processo de criao do mundo civil das naes e na enciclopdia potica dos saberes dos primeiros tempos, que fundamentam toda experincia humana posterior.

    Apesar das especificidades dos argumentos de Giambattista Vico no interior do debate filosfico da modernidade, sua afirmao ou defesa do primado da dimenso do sensvel e do afetivo, em contraposio aos cnones limitativos da razo analtica e instrumental, podem auxiliar na compreenso acerca da sensorialidade explorada nos filmes Shara, Mal dos Trpicos, Adeus, Dragon Inn e Caf Lumire. Estas conexes sero apresentadas no prximo tpico.

  • 1.3. O primeiro contato com o mundo

    Considerando a compreenso das origens do mundo das naes gentlicas e da mentalidade dos homens dos primrdios da humanidade, Vico argumenta que a sabedoria potica foi o primeiro tipo de sabedoria humana e no se assemelhava a uma sabedoria recndita (sapienza riposta), prpria de uma lgica racional. Trata-se de uma sabedoria comum, que expresso espontnea e no conceitual, da sensibilidade, algo que evidencia um primado esttico da experincia humana. Tal primado da sabedoria potica se explicita como atitude primordial humana de entrar em contato com o mundo circundante por meio de uma dimenso sensorial.

    Como construo pr-reflexiva do mundo, a experincia esttica humana abrange uma natureza espontaneamente sensvel e engenhosa, em que predominam faculdades associadas concretude sensvel da fantasia e que remetem a um saber potico. A reconstruo histrico-antropolgica que Vico empreende acerca do mundo dos primeiros homens, quer nas suas estruturas de linguagem, quer de pensamento, parte de uma certa concepo de saber em que a sensibilidade o ncleo vital: uma sabedoria originria que potica, porque, ao se demonstrar frgil de raciocnio, o homem age mediante a fantasia.

    Utilizando-se de recursos metafricos, Vico compara o princpio da histria do gnero humano com uma espcie de infncia da humanidade, em que prevalecem os sentidos e a fantasia, uma vez que a razo ainda no se desenvolveu. A poesia compreendida no sentido de mitopoiesis ou produo fantstica, como argumenta na Dignidade XXXVII, da Cincia Nova: O mais sublime trabalho da poesia dar s coisas insensatas sentido e paixo, e propriedade das crianas tomar coisas inanimadas entre as mos e, divertindo-se, falar-lhes como se elas fossem pessoas vivas (VICO, 2005: p. 126). Ao tomar as coisas inanimadas do meio circundante como coisas vivas, os primeiros homens das naes gentlicas produzem um mundo de sentido: da a natureza poitica da atitude esttica originria dos infantes do gnero humano, pois, como experincia, dela participam faculdades espontaneamente fantstico-engenhosas.

    Prximo sensorialidade de carter estritamente viquiano, este primado da experincia sensvel do homem que destaca a fantasia, a imaginao e uma noo de fabulao de mundo por meio dos sentidos pode ser percebido na narrativa de Mal dos Trpicos, de Apichatpong Weerasethakul. O sentido de fbula e de imaginao presente na filmografia do cineasta tailands aparece de maneira muito particular: encontra-se

  • dissociado da idia de uma sublimao ou de uma fuga do real, mas se situa bem prximo de uma transmutao do real presente18. Na verdade, fabular o mundo no significa neg-lo, mas dot-lo de sentido.

    O que se torna interessante em Mal dos Trpicos o contraste entre civilizao um universo demarcado por uma certa racionalidade de regras e condutas comunitrias e natureza um universo em que se sobressaem o instinto, uma certa animalidade, as paixes, a fantasia. Para demarcar a diferena de tom e de eixo temtico entre a primeira e a segunda parte do filme em que este contraste se efetiva, Apichatpong insere no incio de cada uma destas partes trechos de citaes literrias. Estas referncias acabam se tornando relevantes para uma reflexo mais apropriada acerca da maneira como cada uma destas metades flmicas traz tona questes relativas sensorialidade.

    Logo no incio do filme, h uma citao do romancista japons Ton Nakajima19: Todos ns somos feras selvagens por natureza. Nosso dever como seres humanos tornar-nos adestradores que mantm seus animais sob controle, e at mesmo os ensinam a cumprir tarefas distantes da bestialidade. O romancista aconselha que o homem deva disciplinar e administrar suas inclinaes em prol da sade da civilizao. Aquilo que prprio da natureza humana sua dimenso instintiva, desregrada e selvagem, que o aproxima de caractersticas animalescas contido, controlado ou moderado na primeira parte de Mal dos Trpicos.

    No espao civilizatrio da cidade, os personagens se relacionam a partir de certas regras de conduta. Tanto Keng quanto Tong quase sempre esto ou so apresentados em grupos, algo que refora laos comunitrios. Keng com seus soldados parceiros; Tong com sua famlia, co-operrios, colegas; ambos com uma senhora ou em lugares sociais como o cinema, o salo de sinuca, o shopping ou centros exteriores de entretenimento (QUANDT, 2009, p. 68)20. O relacionamento amoroso entre Keng e Tong ainda muito tmido e restrito troca de bilhetes e carcias, apesar de que outros personagens como a

    18 Cf. BRAGANA, Felipe. Seis perguntas para Apichatpong Weerasethakul. Revista Cintica. Dezembro

    de 2006. Disponvel em: . Acesso em 08/03/2009.

    19 Apesar de identificado na pelcula como Ton Nakajima, o nome correto do autor da citao Atsushi

    Nakajima (1909 1942), escritor japons. Nakajima, que morreu jovem de pneumonia, era conhecido, de acordo com a Enciclopdia do Japo Kodansha, por sua elegncia de linguagem, erudio, e pessimismo e herdou o interesse escolar de seu pai por outras culturas asiticas, particularmente da China antiga (QUANDT, 2009, p. 64).

    20 Traduo minha do seguinte texto: Keng with his fellow soldiers; Tong with his family, co-workers,

    teammates; both of them with the older women or in such social settings as the cinema, pool hall, mall, or out door entertainment palace.

  • me de Tong ou a senhora que os leva para um passeio numa gruta jamais os condenam ou os recriminam. No h destemperos, arrebatamentos ou aes desregradas, mas uma incrvel sensao de feel good.

    Mas deste sentimento de feel good que, aos poucos, emana uma certa sensualidade que se intensifica e desemboca na cena descrita no incio deste captulo e que prepara a transio para a segunda parte. Antes desta seqncia, elementos sensoriais pontuam alguns planos da primeira parte do filme. Entre eles, h pelo menos duas seqencias importantes que servem de exemplo: a primeira quando Keng diz a Tong que se esqueceu de dar a ele seu corao e massageia as costas do parceiro Aqui est. Pode sentir?, pergunta Keng; Sim, posso sentir, responde Tong ; a segunda quando Keng se encontra com um amigo no banheiro e este se despede com um expansivo e inexplicvel sorriso, que desestabiliza qualquer atmosfera de harmonia. como se a potencialidade do sensorial ainda de forma contida pairasse naquele ambiente a ponto de explodir em algum momento.

    Esta exploso de sensorialidade acontece na segunda parte de Mal dos Trpicos. Se, na primeira metade, as aes se passavam na cidade, em espaos civilizatrios, ainda assim existiam indcios do rural, de algo rstico e primitivo, como a casa da famlia de Tong que fica localizada no meio da floresta. No entanto, a passagem para a nfase da sensorialidade sua dimenso encantatria, fabular, potica e fantstica se d quando, prximo casa de Tong, uma vaca surge morta e aparentemente atacada por alguma criatura misteriosa.

    Nesta segunda metade do filme, busca-se a compreenso daquilo que no em si racional. A via possvel de acesso a esta criao humana mtico-primitiva est presente na espontaneidade sensvel, fantstica e passional, que faz da poesia (mitopoiesis) o modo autenticamente originrio de conhecimento do homem. Por meio de uma fbula, a segunda parte do filme introduzida: trata-se de um dos contos do escritor tailands Noi Inthanon21, sobre um xam que se transforma em vrias criaturas. O esprito do xam tambm se torna tigre, que passeia pela floresta e espanta os viajantes locais.

    O que a floresta oferece um universo fantstico a ser desvendado, repleto de imprevisibilidades. Em razo de acontecimentos naturais em que se ignoram as causas, o

    21 Na verdade, Noi Inthanon um dos mais de trinta pseudnimos do escritor tailands Marlai Choophinit

    (1906-1963), algumas vezes chamado de Hemingway do Siam e conhecido como um dos estilistas [no sentido de estilstica textual] mais fortes do pas, celebrado por sua fico regionalista e suas histrias de aventura sobre um caador e seu aldeo que se aventuram na Tailndia selvagem (QUANDT, 2009, p. 64).

  • soldado experimenta o sublime que, no sentido de Vico, no se identifica com a concepo tradicional (como se fosse algo elevado22), mas sim algo que se origina de violentssimas paixes e perturbadoras ao excesso, pois fruto vulgar de uma fantasia. Segundo Vico, a criao humana fantstico-engenhosa fruto de corpulentssimas fantasias e realiza-se com maravilhosa sublimidade23.

    Aquilo que prprio da natureza humana e que a citao de Ton Nakajima, na primeira parte, recomenda controlar transparece com todo vigor e plenitude na segunda parte de Mal dos Trpicos. De acordo com Vico, a natureza humana (natura umana) tem em comum com os animais a propriedade de serem os sentidos as nicas vias pelas quais pode conhecer as coisas (VICO, 2005, p. 212). Os personagens do filme que aparecem, nesta segunda parte, sem nomes pessoais comportam-se de maneira semelhante aos primeiros homens de que Vico fala e que foram sublimes poetas, pois se relacionavam com o mundo com sentimentos de paixes e de afetos e no a partir da reflexo com raciocnios24.

    A compreenso no se realiza fundada em mecanismos racionais que possibilitam representaes mentais, mas mediante um conhecimento por criao fantstica, que d vida e corpo s coisas, permitindo ao soldado conhec-las enquanto participa delas. Na caa de uma criatura que est devorando as vacas da regio, o soldado encontra rastros pelo caminho de sua aventura na floresta: toca a folha de uma planta, observa pegadas no cho, escuta algum rastejando mata adentro, ouve rugidos estranhos, v marcas de garras no tronco das rvores. Em todos estes atos, percebe-se que o contato com a natureza se d por meio dos sentidos e no mediante racionalizaes.

    Segundo Vico, o cu na experincia dos infantes da humanidade gentlica uma divindade e a natureza estava povoada de divindades na experincia animista e antropomrfica dos primeiros homens. Em Mal dos Trpicos, a floresta como um todo se torna este espao encantatrio e divino. H, pelo menos, trs seqncias emblemticas em que isto fica evidente.

    A primeira delas relaciona-se ao comportamento que o soldado adquire, na medida em que adentra cada vez mais na mata densa. Ele estremece, fica pleno de suor,

    22 De acordo com o Dicionrio de Filosofia (ABBAGNANO, 2000), o termo sublime foi usado

    primeiramente, no sculo I a.C., para designar a forma lingstica, literria ou artstica que expressasse sentimentos ou atitudes elevadas ou nobres.

    23 Cf. VICO, Giambttista. Cincia Nova, p. 211-221 (Metafsica potica).

    24 Cf. Ibidem, p. 135 (Dignidade LIII).

  • camufla-se com lama e folhas cadas no cho, rasteja e at mesmo imita sons de animais. Uma espcie de transformao acontece: ele j no se comunica mais pela fala como acontecia na primeira parte do filme , mas sim por meio do corpo e de seus sentidos. Evidencia-se a natureza criativa da linguagem, pois apresentada com base em uma ordem intuitiva, fantstica, potica, que, por sua natureza, alheia a qualquer forma de intelectualismo.

    Como narrado no filme, uma estranha sensao se apodera do corao do soldado. Por meio de grunhidos que so traduzidos por legendas no filme , o macaco pode se comunicar com o soldado. O tigre te segue como uma sombra. Seu esprito faminto e solitrio. Vejo que voc sua presa e companheiro. Ele pode te farejar a montanhas de distncia. E logo voc sentir o mesmo. Mate-o para livr-lo do mundo dos fantasmas. Ou deixe-o devor-lo para entrar em seu mundo, diz o macaco para o soldado.

    Aquilo que Vico designa por impossvel acreditvel se torna fruto de uma criatividade inerente relao entre homem e mundo e que, em Mal dos Trpicos, acaba se evidenciado nesta interao fantstica entre o macaco e o soldado. Semelhante experincia seria impossvel para o homem civilizado, em virtude da impossibilidade de se imiscuir na vastido imaginativa proporcionada por um ambiente primitivo. Esta sabedoria potica no deixa tambm de possuir uma lgica, principalmente por se tratar da experincia da linguagem nos seus primrdios. Na Scienza Nuova, Vico argumenta que os primeiros homens falavam por acenos e julgavam, com base na natureza deles, que os raios e troves eram sinais de Jpiter25. Uma lgica originria fundamentalmente uma experincia da linguagem, porque exprime a estrutura e o sentido do mundo.

    De acordo com Vico, o logos originrio o mesmo que mito e poesia: por isso, a lgica dos primitivos uma lgica potica. Como ocorre nos primeiros homens de forma no racional, os primeiros signos de linguagem tm um carter mudo, ou seja, o sentido de natureza visiva. Os primeiros tempos mudos das naes comearam com gestos, ou atos, ou corpos. A linguagem originria foi um falar natural, mas no

    segundo a natureza dessas coisas, pois no exprimia a verdadeira natureza das coisas, mas aquela dos primeiros homens como comportamento animista antropomrfico26.

    Segundo a exposio viquiana, tal linguagem originria era um falar fantstico por substncias animadas, a maior parte delas imaginadas divinas (ibidem, p. 236). Como

    25 Cf. Ibidem, p. 219.

    26 Cf. Ibidem, p. 235-238.

  • atividade mito-poitica, esta linguagem ao mesmo tempo verdadeira e fantstica, pois descobre e instaura, de forma espontnea e inerente, nexos entre as coisas, produzindo assim os universais fantsticos. Neste sentido, os primeiros homens imaginavam que as substncias do cu, da terra e do mar eram animadas divindades. Por no poderem ainda fazer uso do entendimento, eles atriburam aos corpos sentidos e paixes (ibidem, p. 237). Estes primeiros homens projetaram sobre os corpos inanimados e vastssimos da natureza suas prprias paixes e afetos.

    Esta projeo de sensorialidade por meio da fantasia tambm est fortemente presente numa segunda seqncia de Mal dos Trpicos. Em sua caa incessante ao tigre que apavora os aldees, o soldado arruma-lhe uma emboscada. Com o tilintar do sino de uma vaca, ele tenta atrair a criatura. Quando escuta ao longe algo se aproximando, ele atira. No entanto, atinge uma vaca, que cai no cho e morre logo. Em seguida, um ponto luminoso esverdeado semelhante a um vagalume se destaca na escurido e se direciona ao centro da copa de uma rvore, repleta de outros pontos luminosos. O esprito da vaca se desprende de seu corpo e caminha floresta adentro. Assustado, o soldado persegue o esprito, que logo desaparece. E a rvore tambm pra de se iluminar.

    Nesta seqncia acima descrita, este primado onto-antropolgico da relao homem/mundo fica evidente: o sentir, a intuio, a fantasia, a imaginao. s coisas da floresta, o soldado dota sentido e paixo. Aqui ele compartilha de condio semelhante a dos primeiros homens, cujas mentes nada tinham de abstrato, no eram sutis (...), porque estavam imersas nos sentidos, todas confundidas nas paixes, todas sepultadas nos corpos (ibidem, p. 477). Tais homens percebiam a natureza como um vasto corpo animado.

    Uma terceira seqncia de Mal dos Trpicos fortalece esta noo de embotamento de sensaes e a completa imerso do corpo do soldado em seus prprios sentidos e paixes. Logo depois da apario do esprito da vaca, o soldado aparece rastejando pela floresta, com o corpo repleto de suor, tremendo, demonstrando medo com o que pode acontecer. Transmutado agora em tigre, o xam faz uma apario ao soldado. Em cima do galho de uma frondosa rvore, o tigre/xam fala ao soldado: E agora... Eu vejo a mim mesmo aqui. Minha me. Meu pai. Medo. Tristeza. Foi tudo to real... To real que me trouxeram de volta vida.

    Ao se relacionar com a natureza por meio dos sentidos, tanto o xam/tigre como o soldado fazem de si um mundo completo. Segundo Vico, a fantasia demonstra que o homem, mesmo sem compreender, torna-se toda coisa. Para Vico, a lgica potica talvez seja mais verdadeira que a metafsica raciocinada, pois o homem, ao entender, abre a sua

  • mente e compreende tais coisas, mas ao no entender ele de si faz essas coisas e nelas se transforma (ibidem, p. 487). Na projeo da natureza humana sobre as coisas como assimilao, no se realiza um conhecimento da verdadeira natureza delas, mas cria por sua vez um mundo de sentido.

    O tigre/xam continua a falar ao soldado: Sinto falta de voc, soldado. Eu te dou meu esprito, minha carne e minhas memrias. Cada gota de meu sangue canta nossa cano. Uma cano de alegria. Voc est escutando? Novamente o que acontece aqui a nfase deste embotamento de sentidos, bastante semelhante maneira como os primeiros homens sentiam, de acordo com as reflexes de Vico. Devido a este modo de sentir dos homens totalmente imerso nos sentidos, embotado nos sentimentos, enterrado nos corpos , a natureza assim percebida como atravessada por paixes e afetos violentssimos, que vo da tristeza alegria.

    Trata-se de uma sabedoria vulgar, sem qualquer proximidade com uma sabedoria reflexiva, porque se realiza no mbito de uma tpica sensvel. Segundo Vico, esta tpica caracteriza a atividade humana por meio da intuio, da memria e do engenho: um vnculo das faculdades humanas pr-reflexivas com um saber dos sentidos. A sensibilidade o ncleo organizador de uma experincia de saber que se apresenta como aisthesis (sentidos) e poiesis (criao).

    1.4. As pequenas percepes

    Mas o que ser que acontece quando a experincia esttica ultrapassa os limites do visvel? certo que as faculdades sensveis no se limitam a registrar as experincias sensoriais, mas tambm as organizam, as estruturam e imprimem nelas uma finalidade, um sentido. No entanto, diante de uma paisagem em runas, onde no h mais nada de interessante a ver, como procurar no visvel um modo de aparecer singular do invisvel? Em outras palavras, quando j no mais possvel atribuir uma visibilidade ao mundo pois h algo de insuportvel ou intolervel nele , a experincia esttica no se limita esfera perceptiva do visvel.

    O longa-metragem Adeus, Dragon Inn, de Tsai Ming-liang, confronta-se justamente com tal problemtica. Em um cinema prestes a fechar, alarga-se a noo de experincia perceptiva at incluir nela seu reverso: o invisvel. Os personagens transitam

    pelo interior de um cinema de rua antigo, em sua ltima sesso, antes de fechar as portas

  • ao pblico. Trata-se do Cinema Fuhe, aberto em 1930, no distrito de Yonghe, em Taipei27. um espao desrtico, quase abandonado, se no fossem os estranhos personagens que circulam por suas dependncias. No toa que, a cada plano, a cmera se posiciona em diferentes pontos estratgicos, compondo ao longo do filme um mapeamento do interior deste cinema em runas.

    H uma certa atmosfera de melancolia que se impregna pelos espaos algo que no est presente diretamente nos lugares, mas que apenas por meio deles possvel sentir. O invisvel se manifesta atravs da presena do sensvel. A melancolia paira sob o tom esverdeado do Cinema Fuhe e o piscar de suas fracas luzes de neon, sob as rachaduras delicadas nas paredes, sob as goteiras que inundam os corredores. As obras O Visvel e o Invisvel e Fenomenologia da Percepo, de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), tematizam acerca do desvelamento do invisvel no visvel, ao dar conta da gnese das formas e do sentido a partir da experincia perceptiva primitiva. Para que possamos compreender como se manifesta o invisvel, necessrio antes de tudo entender como se d o visvel.

    Segundo Merleau-Ponty, o visvel parece repousar em si mesmo, como se a viso se formasse em seu mago ou como se houvesse uma familiaridade estreita entre o visvel e o homem28. A virtude singular do visvel ser, mais que o correlato da viso de um mundo externo, tambm algo que se impe em sua existncia soberana. Em outras

    27 Usado como uma das locaes do longa-metragem de Tsai Ming-liang, A Hora da Partida (2001), o

    Cinema Fuhe parou de funcionar trs meses aps a finalizao do filme. Ao saber da notcia, Ming-liang realizou a pr-estria de seu filme no cinema, que geralmente ficava esvaziado e tornara-se ponto de encontro de homossexuais. Antes de o prdio ficar completamente desativado, Tsai Ming-liang alugou o espao para filmar Adeus, Dragon Inn, tambm como pretexto para voltar a trabalhar com o ator Miao Tien, que nos filmes de Ming-liang costumava interpretar o personagem do pai - falecido na narrativa de A Hora da Partida. Miao Tien tambm trabalhou no elenco de Dragon Gate Inn, de King Hu.

    28 Ao falar do visvel, Merleau-Ponty tenta esclarecer que sua inteno no fazer uma antropologia algo

    que o distancia radicalmente de Vico, por exemplo. Para os argumentos pontianos, o ser carnal um prottipo do Ser, de que nosso corpo, o sensvel sentiente, uma variante extraordinria (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 132-133). Por tanto, a leitura de Merleau-Ponty se insere numa fenomenologia e no numa antropologia. Ele busca fundar uma ontologia do sensvel como resposta a uma insuficincia constatada por ele na teoria de uma filosofia que postula uma conscincia plena. Ao buscar uma espcie de ontologia selvagem que pressupe uma percepo primordial do mundo, Ponty atribuiu ao sensvel, em sua brutalidade irrefletida, um estatuto ontolgico fundante de todo e qualquer conhecimento. Isto implica na recusa da anterioridade reflexiva do Cogito cartesiano, e na recusa de uma filosofia da conscincia, porque a conscincia no abarca o sensvel. Em obras como O Visvel e o Invisvel e Fenomenologia da Percepo, Merleau-Ponty demonstra a percepo como correlao corpo-mundo, onde o contato corpreo e imediato com o mundo se renova sempre, outro a cada instante, a cada novo mostrar-se do Ser. Este tem como forma universal, o sensvel, o qual tambm ausncia, tambm o vazio dos intervalos entre as coisas. Ou seja, o visvel tambm implica o invisvel.

  • palavras, o prprio olhar a incorporao do vidente no visvel; uma busca do corpo humano no visvel.

    No h, portanto, coisas idnticas a si mesmas, que, em seguida, se oferecem a quem v, no h um vidente, primeiramente vazio, que em seguida se abre para elas, mas sim algo de que no poderamos aproximar-nos mais a no ser apalpando-o com o olhar, coisas que no poderamos sonhar ver inteiramente nuas, porquanto o prprio olhar as envolve e as veste com sua carne (MERLEAU-PONTY, 1971, p. 128).

    A fisiologia mecanicista concebe o sensvel como aquilo que se apreende pelos sentidos, em que se pressupe um trajeto pelo qual os estmulos so captados em receptores especializados e transmitidos a um centro nervoso, que funciona como decodificador de mensagens. A funo desta espcie de decodificador seria reproduzir em ns ipisis litteris aquilo que se passa no mundo exterior. Tal explicao se pauta na lei de causa e efeito, em que para cada tipo de estmulo do meio ambiente tem-se algum tipo de reao. Alm de explicar que o sensvel, o que apreendido pelos sentidos, um objeto, uma qualidade determinada, haveria uma correspondncia pontual entre o estmulo e aquilo que percebido.

    As consideraes de Merleau-Ponty acerca da sensibilidade se distanciam radicalmente desta conexo direta entre estmulo e resposta defendida pelos fisiologistas. Na experincia de observao de um objeto, outras relaes se estabelecem, como a imaginao, a recordao do objeto visto em outras ocasies e outras especificidades que apontam para a complexidade da sensorialidade.

    Interessante pensar como a relao causa/efeito, estmulo/resposta, to cara

    fisiologia mecanicista exerce tamanha influncia no cinema clssico, marcado pelo regime da imagem-movimento, segundo as teses de Deleuze sobre o cinema29. O cinema da imagem-movimento subordinado a um encadeamento sensrio-motor, em que as imagens constroem uma unidade orgnica, uma conexo lgica, que encadeia a percepo e a ao por meio da afeco. Isto implica dizer que, no cinema clssico, as foras do meio agem

    29 Ao elaborar uma classificao das imagens cinematogrficas, Gilles Deleuze explica que h pelo menos

    dois regimes de imagens no cinema: a imagem-movimento, que caracteriza o cinema clssico, e a imagem-tempo, que caracteriza o cinema moderno. O que distingue os dois tipos de imagem cinematogrfica clssica e moderna sua relao com o tempo: enquanto a imagem-movimento d uma representao indireta do tempo, isto , apresenta o tempo por meio do movimento, representa o tempo, o curso emprico, cronolgico do tempo, a imagem-tempo d uma apresentao direta do tempo, uma apresentao do tempo puro, emancipado do movimento.

  • sobre um personagem, criando uma situao em que ele reage ou responde com uma ao, resultando em uma nova situao.

    Em contraponto a esta relao mecnica de estmulo/resposta, ao/reao, o cinema moderno investe no regime da imagem-tempo, em que as ligaes e os encadeamentos entre as imagens se tornam fracos, porque investem em situaes dispersivas e lacunares e na errncia dos personagens, por meio de sensaes ticas e sonoras puras, capazes de romper com qualquer esquema sensrio-motor. Esta investigao de um tipo de sensorialidade no-mecanicista, mais calcada no tempo, interessa compreenso da narrativa de Adeus, Dragon Inn, Shara, Mal dos Trpicos e Caf Lumire, na medida em que exploram imagens que descartam a mera viso emprica e investem em uma experincia mais pura do visvel, onde a apreenso de uma qualidade est ligada ao contexto da percepo em que os elementos se conectam.

    Diferente da fisiologia mecanicista que define o sistema sensorial como simples transmisso de uma mensagem dada, Merleau-Ponty compreende que toda experincia do visvel dada ao corpo humano no contexto dos movimentos de seu olhar, que envolve e apalpa as coisas visveis, como se existisse uma relao de harmonia estabelecida entre o olhar e o mundo. Se todo visvel moldado no sensvel, o movimento dos olhos de algum no caso dos personagens fantasmagricos de Adeus, Dragon Inn e o deslocamento de seus corpos tm seu lugar no universo mesmo do visvel, que por meio deles os corpos exploram. Isto implica considerar que, sendo a viso uma espcie de palpao pelo olhar, ela se inscreve na ordem do ser que desvela o homem. Em outras palavras, aquele que olha no estranho ao mundo que olha.

    Com seus olhares melanclicos e perdidos num certo vazio, os personagens de Adeus, Dragon Inn so imersos num visvel, porque so possudos por ele. No entanto, ao mesmo tempo em que vem o interior do cinema, tais personagens esto afastados dele por toda a espessura do olhar e do corpo. Existe a uma dinmica relacional entre distncia e profundidade, que ser explorada com maior detalhes no segundo captulo. Por ora, preciso considerar que, ao mesmo tempo em que um corpo est no mago do visvel, dele se afasta, pois ele espesso e naturalmente destinado a ser visto por um corpo.

    Eu, que vejo, tambm possuo minha profundidade, apoiado neste mesmo visvel que vejo e, bem o sei, se fecha atrs de mim. Em vez de rivalizar com a espessura do mundo, a de meu corpo , ao contrrio, o nico meio que possuo para chegar ao mago das coisas, fazendo-me mundo e fazendo-as carne (ibidem, p. 132).

  • O conjunto de cores e superfcies do cinema de Adeus, Dragon Inn habitado pela viso dos personagens por meio de um sensvel. Apenas os corpos destes personagens da bilheteira, dos visitantes da sala escura, do projecionista podem nos levar ao prprio cinema, s prprias coisas, que no so seres planos, mas seres em profundidade, inacessveis a um sujeito que os sobrevoe, s abertas, se possvel, para aquele que com elas coexista no mesmo mundo (ibidem, p. 132). O interessante que, na medida em que se deslocam pelos diversos espaos do cinema, como se os personagens convidassem os espectadores do filme a compartilhar desta experincia de coexistncia.

    O sujeito da sensao no nem um pensador que nota uma qualidade, nem um meio inerte que seria afetado ou modificado por ela; uma potncia que co-nasce em um certo meio de existncia ou se sincroniza com ele (idem, 2006, p. 285).

    Isto implica dizer que se um corpo d ouvidos ou olha espera de uma sensao, o sensvel toma repentinamente seu ouvido ou seu olhar. Isto faz com que este corpo inteiro seja entregue a essa maneira de vibrar e de preencher o espao sensvel. A sensao definida pela coexistncia ou comunho, segundo os argumentos de Merleau-Ponty. Sem a explorao de meu olhar ou de minha mo, e antes que meu corpo se sincronize a ele, o sensvel apenas uma solicitao vaga (ibidem, p. 288-289).

    A sensao no uma invaso do sensvel naquele que sente, pois aquele que sente e o sensvel no esto um diante do outro como dois termos exteriores. preciso compreender que existe uma troca entre o sujeito da sensao e o sensvel. No existe uma percepo pura, pois o corpo toma exatamente o espetculo percebido da maneira como ele v, como momento de sua histria individual. Com base em tais consideraes, quando um corpo percebe algo, ele sente que h sempre algo para alm daquilo que percebe.

    Se algo falta neste sensvel, ele no apenas proporcionado pela mediao com o visvel. feito tambm de tudo aquilo que se desenha neste mesmo visvel, mesmo que se situe no vazio dos intervalos. O invisvel aquilo que no visvel deixa vestgio, tudo o que nele figura, mesmo a ttulo de desvio e como certa ausncia. sobre o fundo do visvel e dos contornos de suas presenas, que a ausncia e o invisvel se enraza e se delineia. O sensvel enigmtico porque possui uma riqueza inesgotvel, um fundo de impensado, que o prprio mbito de uma constituio pr-teortica ou pr-reflexiva.

    Tal argumento pontiano implica considerar que a afirmao do primado do sensvel consiste em reencontrar o contato ingnuo do corpo e do mundo, na medida em

  • que o conhecimento inteiro e o pensamento inteiro vivem de um fato inaugural cuja expresso : senti. (idem, 1975, p. 438). O Eu de que Merleau-Ponty fala j no mais aquele Eu cartesiano, que pura racionalidade, mas sim um eu inocente, ingnuo aquilo que Ponty vai designar de Ser Bruto ou Carne , que se relaciona pr-teoricamente com o mundo, mediante o sensvel. Trata-se de uma atitude prvia reflexo, despojada de predicados, juzos e proposies.

    Conforme Merleau-Ponty, a percepo caracterizada como nosso primeiro contato com o mundo. Ela anterior aos juzos, aos valores, s objetivaes. Perceber no definir e sim alargar nosso horizonte sensvel. Graas relao ambgua entre perceber e percebido, este acesso ao mundo ser sempre inacabado. O mundo percebido no definido e acabado, pois nasce de uma permuta entre dados do conhecimento, que sofrem influncia de nossas aquisies, e de um mundo natural, de sentido bruto, que permanece como horizonte de nossa vida.

    De acordo com Merleau-Ponty, seria necessrio um retorno ao Lebenswelt mundanidade do mundo originrio, voltar s coisas mesmas, sem precisar se deter em representaes. A eidtica da linguagem pr-lingstica: silncio antes de ser palavra, contato irrefletido ininterrupto antes de ser discurso reflexivo. H algo que precede o pensamento reflexivo, como vazio que pr-condio do pensar e do falar. Em razo deste silncio, vazio ou invisvel que acompanha a expresso, Merleau-Ponty constata uma

    deficincia expressiva e conclui que a expresso nunca completa (...) que, deste modo, a nossa lngua, ou qualquer outra, nunca pode conduzir-nos pela mo at a significao, at as prprias coisas (ibidem, p. 324).

    Esta deficincia expressiva marca os corpos dos personagens de Adeus, Dragon Inn: no h nada ou apenas muito pouco a ser dito, pois estes mesmos personagens esto mergulhados em uma condio pr-reflexiva com o ambiente que os cerca. Em um cinema prestes a fechar, o que resta a eles relacionar-se com os vestgios daquele espao, com o fundo invisvel que o permeia. A sensao, em Adeus, Dragon Inn, comporta uma atmosfera de sonho, experimentada pelos personagens do filme por uma espcie de ambincia de suspenso que a sensao os coloca.

    Se as qualidades irradiam em torno de si um certo modo de existncia, se elas tm um poder de encantamento, (....) um valor sacramental, porque o sujeito que sente no as pe como objetos, mas simpatiza com elas, as faz suas e encontra nelas a sua lei momentnea (idem, 2006, p. 288).

  • Se determinado corpo encontra no sensvel a proposio de um certo ritmo de existncia e se este mesmo corpo se introduz na forma de existncia que assim lhe sugerida, a sensorialidade visa para alm de si mesma. o que acontece no filme Caf Lumire, de Hou Hsiao-hsien. O sensvel capturado pelas variaes luminosas dos objetos, pelos movimentos dos corpos em cena, por tudo o que est dentro do plano o visvel , mas tambm por tudo aquilo que extra-campo o invisvel.

    O crtico de cinema Felipe Bragana, da revista Cintica, explica que Caf Lumire torna-se um estudo ou uma homenagem a um sentido de cinema mais elementar, pois recria a superfcie dos gestos para alm de sua localizao isolada no espao30. Nos tneis de metr e nos cmodos das casas, o visvel acumula-se pela circulao de pessoas e de veculos, por um certo tipo de grafismo na imagem que tambm implica um fundo invisvel, tomado por pequenas percepes. O visvel est na qualidade prenhe de uma textura, na superfcie de uma profundidade (idem, 1971, p. 133), mas s possvel com base em algo fora dele.

    J que o visvel total est sempre atrs, ou depois, ou entre os aspectos que dele se vem, s h acesso at ele graas a uma experincia que, como ele, esteja inteiramente fora de si mesma: a esse ttulo e no como suporte de um sujeito cognoscente que nosso corpo domina o visvel para ns; mas no o explica, no o ilumina, apenas concentra o mistrio da sua visibilidade esparsa (idem, ibidem).

    Nestes instantes cotidianos da relao dos personagens com a cidade em Caf Lumire, o corpo sensvel assume duas propriedades: de um lado, coisa entre as coisas do mundo; de outro, aquilo que v estas mesmas coisas e as toca. No entanto, se o corpo humano coisa entre as coisas, ele s pode ser num sentido mais profundo que elas. Merleau-Ponty compreende que um corpo sente no exatamente porque tem diante de si coisas visveis como objetos, mas sobretudo porque estes visveis esto em torno do corpo, at penetram em seu recinto, esto nele, atapetam por fora e por dentro seus olhares e suas mos (ibidem, p. 134).

    Em Caf Lumire, a questo principal no um personagem especfico que v ou sente at difcil apontar um protagonista no desenrolar da narrativa , mas todos os personagens so habitados por uma visibilidade annima, uma viso geral que

    30 BRAGANA, Felipe. Filmar, hoje, uma cidade (Paris, Tquio, Pequim, Sarajevo). Revista Cintica.

    Junho de 2007. Disponvel em: . Acesso em 08/03/2009.

  • propriedade primordial do corpo. Segundo Merleau-Ponty, prprio do visvel ser a superfcie de uma profundidade inesgotvel31, que torna possvel sua abertura a outras vises alm de um nico corpo. Cada uma das coisas sensveis no mundo reivindica uma presena absoluta que incompossvel com a das outras e que, no entanto, elas tm todas juntas, em virtude de um sentido de configurao (idem, 1975, p. 450).

    Na relao com a malha urbana em constante transformao, os personagens de Caf Lumire esto em contato mais prximo com o mundo, em vez de ser constitudos por uma reflexo representativa de si mesmos. E, por estarem em relao com este mundo, eles tambm esto abertos para alm daquilo que imediatamente dado, na medida em que o sensvel tambm atua nos reflexos, nas sombras e nos desnveis que constituem o mundo percebido. No se trata de um invisvel como objeto escondido atrs de outro ou de um invisvel absoluto que nada tem a ver com o visvel, mas, de acordo com as palavras de Merleau-Ponty, do invisvel desse mundo, aquele que o habita, o sustenta e o torna visvel, sua possibilidade interior e prpria (ibidem, p. 146).

    Nas palavras de Jos Gil, como se a viso abrisse o campo perceptivo dos outros sentidos, proporcionando maior autonomia s coisas percebidas, que tendem a se articular. Segundo os argumentos pontianos, no existe uma oposio substancial ou de modo de ser entre os elementos do visvel e do invisvel. Ao tratar do invisvel, Merleau-Ponty no pretende descrever realidades contrrias ou absolutamente distintas daquelas sensveis. O invisvel sempre invisvel de algum visvel, sempre o avesso deste, e, neste sentido, est sempre relacionado quilo que se doa positivamente na experincia.

    Com a noo de invisvel, no se trata de circunscrever um tipo de ser substancialmente diferente do ser sensvel, mas de considerar o sensvel de modo mais amplo, incluindo dimenses que no se doam de maneira imediata e que se anunciam por sua falta. Em outras palavras, o invisvel tudo aquilo que se deixa suspeitar porque os dados positivos apontam para um negativo que tambm constituinte do sentido da experincia. A paisagem ainda permanece muda e o sentido da percepo vai depender do corpo.

    O longa-metragem Shara, de Naomi Kawase, lida o tempo todo com o modo de presena do invisvel que regido por uma espcie de presena perceptiva sensvel. Jos Gil explica que, se a presena em si o visvel, o invisvel goza de uma presena degradada, pois o seu modo de apreenso ou captao depende, acompanha e prolonga (...)

    31 Esta relao entre superfcie e profundidade ser melhor explorada no segundo captulo.

  • a apreenso intuitiva do visvel (GIL, 2005, p. 26). O desaparecimento de um dos membros da famlia Aso torna-se sensvel aos personagens de Shara, porque se desdobra no visvel, produzindo algo de obscuro nele.

    Devido a esta imponderabilidade do invisvel, o que predomina em Shara uma linguagem no-verbal do olhar, que visa constituir atmosferas para melhor lanar e captar foras. Jos Gil argumenta que atmosfera , em primeiro lugar, um certo regime

    que o olhar traz viso da paisagem (ibidem, p. 51). No momento em que Kei desaparece do olhar de seu irmo Shun, o corpo deste ltimo personagem parece transpor e envolver suas percepes numa atmosfera de ausncia.

    Entre a viso muda e a linguagem, o olhar vem suprir a falta de pensamento verbal, escavando buracos na superfcie da percepo. Como se na articulao das coisas com o corpo uma fora se esboasse, visando uma abertura mais vasta do espao, como se um apelo linguagem habitasse j as formas vistas, uma espcie de linguagem no-verbal surge ento no interior da prpria viso: o olhar (ibidem, p. 51).

    Diante do invisvel cujo acesso se d pelo visvel, as pequenas ou sutis percepes procuram seu caminho para se expressarem, reunindo ou articulando a sensorialidade de modo diferente. Esta dimenso invisvel atestada em toda experincia que envolve o contato inter-humano. No necessrio tomar este invisvel como expresso

    de uma substncia espiritual ligada corporeidade, mas sim consider-la, tal como sugere Merleau-Ponty, como uma dimenso sensvel negativa, como um avesso invisvel do corpo, o qual, ainda que ausente, sempre levado em conta nas interaes sociais. Apesar da ausncia do corpo de Kei em Shara, sua famlia ainda marcada pela sensibilidade deste invisvel, que afeta diretamente a forma como os membros desta mesma famlia interagem com o mundo.

    Como possvel tratar daquilo que na experincia s se marca como ausncia? Olhar significa mergulhar numa atmosfera de pequenas percepes, em um jogo de foras, em uma poeira atravessada de movimentos nfimos. Longe de se reportar a mirabolantes construes conceituais sobre um reino supra-sensvel, Merleau-Ponty tenta por meio da noo de invisibilidade reformular o estatuto ontolgico de componentes bvios da experincia, os quais no deveriam ser concebidos como separados do sensvel, mas como camadas ou nveis no interior deste ltimo. No regime das pequenas percepes, o olhar imprime sulcos na paisagem, modula a luz e a sombra, diferencia-se em mltiplos ncleos

  • de fora e ainda introduz os primeiros filtros seletivos da percepo