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  Revista Zona de Impacto ISSN 1982-9108. ANO 16 Volume 2 - Julho/Dezembro, 2014. Biblioteca de Holland House, em Londres, Inglaterra, em grande parte destruída pela blitz alemã, em setembro de 1940.

2014 zona de impacto ano 16 vol 2 completo.pdf

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  • Revista Zona de Impacto ISSN 1982-9108. ANO 16 Volume 2 - Julho/Dezembro, 2014.

    Biblioteca de Holland House, em Londres, Inglaterra, em grande parte destruda pela blitz

    alem, em setembro de 1940.

  • Corpo Editorial

    Editores

    Alberto Lins Caldas

    Prof. Dr. Departamento de Histria - UFAL

    Eliaquim Timteo da Cunha

    Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social

    PPGAS/UFAM (estudante)

    Conselho Editorial

    Caesar Sobreira Antropologia UFRPE

    Jean-Pierre Angenot - Letras - UFRO

    Jacinta Castelo Branco Correia - Comunicao - UFRO

    Jos Carlos Sebe Bom Meihy Histria USP

    Michel Zaidan Filho - Histria UFP

    Miguel Nenev Letras UFRO

    Nilson Santos Educao UFRO

    Conselho Consultivo

    Adailton da Silva Antropologia INC/UFAM

    Alberto Vivar Flores Histria UFAL

    Ana Monica Lopes Histria UFAL

    Ana Paula Palamartchuk Histria - UFAL

    Antonio Filipe Pereira Caetano Histria - UFAL

    Clara Suassuna Histria UFAL

    Emmanuel de Almeida Farias Jnior Antropologia PNCSA

    Inara do Nascimento Tavares - Antropologia INSIKIRAN/UFRR

    Joo Jackson Bezerra Vianna - Antropologia

    Lilian Maria Moser Histria UFRO

    Srgio Nunes de Jesus Letras IFRO

    Xnia Castro Barbosa Histria IFRO

    Magno Silvestri - Geografia UFMT

    Marta Valria de Lima Histria UFRO

    Pedro Rapozo Sociologia - UEA

    Raiana Ferrugem Sociologia - IFAM

    Rafael Ademir Oliveira de Andrade - Sociologia da Educao - Faculdade So Lucas

    Sheila Castro dos Santos - Geografia - GEPCULTURA/UFRO

    revistazonadeimpacto.unir.br

    https://www.facebook.com/pages/Revista-Zona-de-Impacto/161448780689967?ref=hl

  • Sumrio

    APRESENTAO ................................................................................................................... 7

    Eliaquim Timteo da Cunha ..................................................................................................... 7

    ARTIGOS ............................................................................................................................... 10

    O PENSAMENTO AUTORITRIO DE PLNIO SALGADO COMO EXEMPLO DA

    INTELLIGENTSIA BRASILEIRA DA DCADA DE 1930 ......................................... 11

    Paula Stolerman ...................................................................................................................... 11

    SERTANEJO CAIPIRA OU CAIPIRA SERTANEJO: AS DEFINIES DA MSICA

    RURAL BRASILEIRA NA COLEO NOVA HISTRIA DA MSICA POPULAR

    BRASILEIRA ........................................................................................................................ 19

    Alessandro Henrique Cavichia Dias ...................................................................................... 19

    GNEROS MUSICAIS: EM BUSCA DE UMA CONSTRUO SCIO SONORA ... 34

    Diego da Rocha Viana Muniz ................................................................................................. 34

    A RECONFIGURAO DA POLTICA EXTERNA NORTE-AMERICANA PARA O

    ORIENTE MDIO (1967 1979) ......................................................................................... 44

    Tiago Sampaio ......................................................................................................................... 44

    MONOGRAFIA ..................................................................................................................... 63

    COMO AS INSTITUIES DE MICROCRDITO PROMOVEM A AUTONOMIA

    DAS MULHERES EM MOAMBIQUE. ESTUDO DE CASO DA TCHUMA,

    COOPERATIVA DE CRDITO E POUPANA (PARTE I) ........................................... 64

    Catarina Casimiro Trindade ................................................................................................... 64

    JERNIMO DE ALBUQUERQUE, O ADO PERNAMBUCANO: TRATADO

    SOBRE A ORIGEM MULTITNICA DO HOMEM NORDESTINO ............................ 88

    Caesar Malta Sobreira ............................................................................................................ 88

    SESSO ESPECIAL.............................................................................................................. 92

    Homenagem a John Manuel Monteiro (1956-2013). ........................................................... 92

  • TAVARES, GONALO M. 2010. UMA VIAGEM NDIA. EDITORA LEYA, SO

    PAULO. PREFCIO DE EDUARDO LOURENO. 452 P. ............................................. 95

    Vtor Queiroz ........................................................................................................................... 95

    SIDNEY W. MINTZ. 2010. THREE ANCIENT COLONIES: CARIBBEAN THEMES

    AND VARIATIONS. W.E.B. DU BOIS LECTURE SERIES. CAMBRIDGE:

    HARVARD UNIVERSITY PRESS. 257 P. ....................................................................... 101

    Ana Elisa Bersani .................................................................................................................. 101

    CASTELO, CLADIA; THOMAZ, OMAR RIBEIRO; NASCIMENTO, SEBASTIO

    (ORGS). 2012. OS OUTROS DA COLONIZAO: ENSAIOS SOBRE O

    COLONIALISMO TARDIO EM MOAMBIQUE. LISBOA: INSTITUTO DE

    CINCIAS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA. 361 PP. ............................... 106

    Luciano Cardenes Santos ..................................................................................................... 106

    GARFIELD, SETH. A LUTA INDGENA NO CORAO DO BRASIL. POLTICA

    INDIGENISTA, A MARCHA PARA O OESTE E OS NDIOS XAVANTE (1937-1988).

    TRADUO DE CLAUDIA SANTANA MARTINS, UNESP, 2001, 392 P.).

    [APRESENTAO PROF. JOHN MANOEL MONTEIRO]. ....................................... 110

    Francisca Navantino P. de Angelo ....................................................................................... 110

    PAIVA, ADRIANO TOLEDO. OS INDGENAS E OS PROCESSOS DE CONQUISTA

    DOS SERTES DE MINAS GERAIS (1767-1813). BELO HORIZONTE:

    ARGVMENTVM, 2010. 1 MAPA. 208 P. (HISTRIA; 13) [APRESENTAO DE

    ADALGISA ARANTES CAMPOS; PREFCIO DE ADRIANA ROMEIRO.] ........... 115

    Marina M. de Freitas ............................................................................................................ 115

    ENSAIO FOTOGRFICO ................................................................................................. 119

    SOB OS CUS DE LAGUNA BLANCA: ARQUEOLOGIA E ETNICIDADE NA PUNA

    ARGENTINA ....................................................................................................................... 120

    Brena Caroline B. de S. Miranda ...................................................................................... 120

    Graduanda em Arqueologia, Universidade Federal de Rondnia (UNIR). ....................... 120

    Laureline Cattelain. ............................................................................................................... 120

    Graduada em Arqueologia e Histria da Arte e mestre em Cincia Poltica, Universit Libre

    de Bruxelles (ULB). ............................................................................................................... 120

    Yves Dal Canton. ................................................................................................................... 120

  • Graduado em Arqueologia e Histria da Arte e mestre em Arqueologia, Universit de Lige

    (ULg). ..................................................................................................................................... 120

    SOBRE OS AUTORES ........................................................................................................ 131

  • 7

    Apresentao

    Eliaquim Timteo da Cunha

    No seu dcimo sexto ano a Revista Zona de Impacto traz um temrio bastantes

    variado. Temos algumas nuvens dos Cus Argentino. As diferenas entre msica caipira e

    msica sertaneja. Passamos pelo pensamento autoritrio de Plnio Salgado. Temos alguns

    apontamentos sobre a construo do Oriente Mdio. Resenha sobre Jernimo de

    Albuquerque. Vamos a alguns aspectos sobre as vidas das mulheres em Moambique com

    suas participaes no mercado financeiro. Damos um sobrevoo com resenhas que abordam os

    estudos ps-coloniais sobre o Mundo Lusfono Colonial.

    Outra novidade da Revista Zona de Impacto a construo do Espao Caderno de

    Criao. Este peridico foi mantido entre 1994 a 2002. O corpo editorial fazia parte do

    Centro do Imaginrio Social da Universidade Federal de Rondnia (UFRO), com ISSN 0104-

    9389. Nesse espao os exemplares sero disponibilizados em Portable Document Format

    (PDF). Confira: revistazonadeimpacto.unir.br

    Nos Artigos, encontramos: O Pensamento Autoritrio de Plnio Salgado como

    exemplo da Intelligentsia brasileira da dcada de 1930 assinado por Paula Stolerman. O

    texto seguinte Sertanejo caipira ou caipira sertanejo: As definies da msica rural

    brasileira na coleo nova histria da msica popular brasileira assinado por Alessandro

    Henrique Cavichia Dias. O terceiro artigo Gneros Musicais: Em busca de uma construo

    scio sonora assinado por Diego da Rocha Viana Muniz e o ltimo artigo A

    reconfigurao da poltica externa norte-americana para o Oriente Mdio (1967 1979)

    assinado por Tiago Sampaio

    O Texto de Stolerman, procura ressaltar, como escreve a autora: a importncia de no

    rejeitarmos estudos referentes ao pensamento autoritrio brasileiro, visto que ele tambm

    um reflexo do fenmeno social daquele momento histrico e da produo intelectual daquele

    momento na dcada de 1930. Temos a um destaque aos pensamentos de Plnio Salgado;

    alm da coincidncia desta publicao sair na semana em que faleceu o poltico citado.

    O segundo e terceiro artigo tratam de questes sociais a partir da msica Alessandro

    Henrique Cavichia Dias, no texto Sertanejo caipira ou caipira sertanejo: As definies da

  • 8

    msica rural brasileira na coleo nova histria da msica popular brasileira destaca que

    as diferenas e as construes histricas nas classificaes msica sertaneja e msica

    caipira. O autor diz que msica sertaneja uma denominao tipicamente paulista, usada

    para denominar o caboclo (e sua produo cultural), que no residia nos centros urbanos.

    "Kaai 'pira" na lngua indgena significa, o que vive afastado. Por outro lado, o termo msica

    sertaneja era utilizado no Rio de Janeiro no final do sculo XIX at a dcada de 1930 como

    referncia para todas as msicas que no pertencesse ao ambiente cultural da capital da

    repblica.

    O outro texto que trata de msica Gneros Musicais: Em busca de uma construo

    scio sonora escrito por Diego da Rocha Viana Muniz, nesta oportunidade o autor quis

    sublinhar a ideia de scio sonoridade, segundo Muniz esta, aponta para um conjunto

    complexo de regras e esquemas sociais e musicais que se acomodam na conscincia, de

    forma a indicar a classificao num dado gnero musical.

    No texto A reconfigurao da poltica externa norte-americana para o Oriente

    Mdio (1967 1979) assinado por Tiago Sampaio, encontramos uma srie de apontamentos

    para discutir sobre a construo do Oriente Mdio analisa eventos entre 1967 a 1970.

    Destaca a presena dos Estados Unidos da Amrica seja nos mbitos polticos e econmicos,

    tendo em vista que em diversos contextos so simultneos e difcil separ-los.

    Na sesso monografia damos continuidade ao projeto publique seu TCC. Neste

    volume trazemos a primeira parte de As origens do microcrdito: Do Grameen Bank s

    instituies micro financeiras em Moambique pesquisa realizada por Catarina Casimiro

    Trindade. A autora dedicou-se a estudar uma agencia de microcrdito na cidade de Maputo,

    Tchuma, em Moambique. A partir do estudo sobre a Cooperativa de Crdito e Poupana

    veremos vrios aspectos de qual lugar ocupado pelas mulheres na economia de

    Moambique. O trabalho foi defendido na Faculdade de Economia da Universidade de

    Coimbra, no Curso de licenciatura em Sociologia.

    No tpico resenha, trazemos: Jernimo de Albuquerque, o Ado Pernambucano:

    Tratado sobre a origem multitnica do Homem Nordestino escrito por Caesar Malta

    Sobreira.

    Neste segundo volume do ano de 2014 temos uma Sesso Especial. Perspectivas ps-

    coloniais sobre o mundo lusfono colonial. Homenagem a John Manuel Monteiro (1956-

    2013). Nesta sesso reunimos cinco resenhas dos estudantes que cursaram a ltima disciplina

    ministrado por John Manuel Monteiro, no segundo semestre de 2012. O ttulo do curso

  • 9

    Tpicos Especiais em Antropologia Social: Perspectivas Ps-coloniais sobre o Mundo

    Lusfono Colonial, ministrado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

    Agradecemos a Luciano Cardenes Santos por ter reunido a turma para realizar esta sesso.

    As resenhas que compe esta parte do volume so:

    Tavares, Gonalo M. 2010. Uma Viagem ndia. Editora Leya, So Paulo. Prefcio de

    Eduardo Loureno. 452 p.

    Vtor Queiroz.

    Sidney W. Mintz. 2010. Three Ancient Colonies: Caribbean Themes and Variations. W.E.B.

    Du Bois lecture series. Cambridge: Harvard University Press. 257 p.

    Ana Elisa Bersani

    Castelo, Cladia; THOMAZ, Omar Ribeiro; NASCIMENTO, Sebastio (Orgs). 2012. Os

    outros da colonizao: ensaios sobre o colonialismo tardio em Moambique. Lisboa: Instituto

    de Cincias Sociais da Universidade de Lisboa. 361 pp.

    Luciano Cardenes Santos

    Paiva, Adriano Toledo. 2010. Os indgenas e os processos de conquista dos sertes de Minas

    Gerais (1767-1813). Belo Horizonte: Argvmentvm. 1 mapa. 208 p. (Histria; 13)

    [Apresentao de Adalgisa Arantes Campos; Prefcio de Adriana Romeiro.]

    Marina M. de Freitas

    Garfield, Seth. 2001. A luta indgena no corao do Brasil. Poltica indigenista, a marcha

    para o oeste e os ndios xavante (1937-1988). Traduo de Claudia SantAna Martins,

    UNESP, 392 p.). [Apresentao Prof. John Manoel Monteiro]

    Francisca Navantino P. de Angelo

    Fechando esta publicao temo um ensaio fotogrfico. Sob os Cus de Laguna

    Blanca: Arqueologia e Etnicidade na Puna Argentina fotografias feitas por Brena Caroline

    B. de S. Miranda, Laureline Cattelain e Yves Dal Canton. O Ensaio trata-se de uma parte do

    registro do trabalho arqueolgico realizado em dezembro de 2012. Estas escavaes foram

    realizadas na Reserva de Biosfera Laguna Blanca, na provncia Catamarca no noroeste da

    Argentina.

    bastante convidativo olharmos para os Cus De Laguna Blanca a partir de uma

    experincia arqueolgica.

    Boa leitura!

  • 10

    ARTIGOS

  • 11

    O Pensamento Autoritrio de Plnio Salgado como exemplo da

    Intelligentsia brasileira da dcada de 1930.

    Paula Stolerman

    RESUMO:

    Pretendemos com este artigo, melhor compreender as manifestaes do pensamento autoritrio brasileiro na

    dcada de 30, nos reportando a seu lder, Plnio Salgado, evidenciando as caractersticas do campo do

    pensamento social brasileiro, em formao, assim como evidenciar as caractersticas da intelligentsia nacional

    daquele momento, que buscava entender os fenmenos sociais brasileiros atravs do resgate histrico da

    formao da nao e simultaneamente contribuir para a consolidao e constituio de uma identidade

    nacional.

    PALAVRAS-CHAVE: pensamento autoritrio, integralismo, Intelligentsia, campo social.

    1. Introduo:

    Em busca de compreender a contribuio do pensamento/ideologia autoritrios

    nacional, como o de Plnio Salgado, nos anos 30, formao do campo sociolgico brasileiro,

    entendemos ser necessrio primariamente reportarmo-nos a teorias de Karl Mannheim e

    Pierre Bourdieu.

    Para Mannheim, a diviso do trabalho nas sociedades exige especializaes dos grupos

    sociais. Estas especializaes geram a conscincia de classe em cada um destes grupos,

    autorreflexes a respeito de sua condio. No momento em que escreve, Mannheim afirma

    que a sociedade vive o momento de reflexo sociolgica, aps os estgios em que se auto

    explicou de maneira religiosa, iluminista e histrica. O autor afirma que o proletariado foi o

    primeiro grupo a propor-se uma auto avaliao sociolgica consistente e a adquirir uma

    conscincia de classe sistemtica (MANNHEIM, 2004).

    O termo intelligentsia cunhado por Mannheim para descrever uma espcie de

    supraclasse, a dos intelectuais, que dentro de uma sociedade organizada na forma de

    classes, no estaria vinculada nem aos grupos dominantes e tampouco aos dominados

    dominadas.

  • 12

    Os intelectuais estariam libertos dos radicalismos de classe, podendo circular

    livremente entre estas camadas e dedicar-se gerao de conscincias. O autor expe da

    seguinte forma:

    O surgimento da intelligentsia marca a ltima fase do

    crescimento da conscincia social. A intelligentsia foi o

    ltimo grupo a adotar o ponto de vista sociolgico, pois

    sua posio na diviso social do trabalho no lhe propicia

    acesso direto a nenhum segmento vital e ativo da

    sociedade. O gabinete recluso e a dependncia livresca s

    permitem uma viso derivada do processo social

    (MANNHEIM, 2004, p. 27).

    No caso de pensarmos a respeito de uma sociologia brasileira em formao, vlido

    utilizarmos o pensamento de Mannheim, pois os intelectuais nacionais, em nosso estudo, os

    especificamente atrelados ao pensamento autoritrio da dcada de 30, no podem ser

    classificados como sendo exclusivamente movidos por interesses de classe. O conhecimento

    produzido pelos intelectuais nacionais no pode necessariamente ser avaliado pela origem de

    classe do intelectual.

    A construo da Sociologia brasileira no pode desprender-se da constituio de uma

    Intelligentsia nacional. O termo de Karl Mannheim apropriado na medida em que buscamos

    uma maior elucidao dos processos que levaram ao estabelecimento do campo

    (BOURDIEU, 1983) da Sociologia no Brasil.

    Quanto teoria dos campos, de Pierre Bourdieu, est se torna til ao nosso estudo na

    medida em que observamos que a formao do pensamento sociolgico brasileiro est

    atrelada a prpria constituio de seu campo. Para Bourdieu, no h possibilidade de

    utilizarmos o conceito de totalidade para a explicao da sociedade, o que existe so inmeros

    campos sociais.

    Os campos sociais so constitudos medida que a sociedade vai se tornando mais

    complexa, com a expanso da diviso do trabalho. Quanto maior a especializao de uma

    sociedade, maior a quantidade de campos sociais dentro dela. O funcionamento de um

    determinado campo depende de regras, leis de funcionamento invariantes (BOURDIEU,

    1983) que so compartilhados pelos membros do campo em questo. Este conjunto de

    normas, ditando o comportamento dos que participaro do campo compe o habitus do

    campo.

    O habitus transmitido dentro do campo social de maneira inconsciente. Os

    indivduos pertencentes a determinado campo no esto a todo tempo refletindo sobre o

  • 13

    motivo que os leva a ter determinada crena ou a agir de uma forma especfica. Estas atitudes

    e orientaes j foram incorporadas no momento da educao dentro daquele campo social.

    O que constitui o habitus de um campo so as regras inconscientes incorporadas pelos

    indivduos deste mesmo campo e que fazem sentido para estes que esto imersos nesta

    realidade.

    Um exemplo pertinente capaz de elucidar esta questo referente ao significado do

    habitus e ao campo de Bourdieu so as produes do pensamento social brasileiro no incio

    do sculo XX. Primeiramente no h um campo da sociologia brasileira com seu entorno

    solidamente definido. O pensamento da intelligentsia nacional, as reflexes iniciais sobre

    nossa sociedade e como teria acontecido a formao da nossa sociedade manifestavam-se

    atravs de ensaios, romances e crnicas jornalsticas.

    A procura por respostas a questes referentes formao da sociedade brasileira

    perpassava por intelectuais que respondiam tanto produo de literatura como a de artigos

    jornalsticos (O caso de Plnio Salgado, lder do movimento Integralista, por exemplo). Outros

    intelectuais exerciam funes burocrticas como servidores do Estado em diversos setores

    (esta informao reitera a conexo das teorias de Mannheim e Bourdieu no caso da formao

    do pensamento social brasileiro).

    Desta forma, pertinente atentar para a situao brasileira na dcada de 1930 luz

    destas duas teorias. Neste momento, no se apresentava no pas um campo da sociologia

    totalmente estabelecido e a intelligentsia nacional exercia as mais diversas funes e se

    originava tanto na burguesia como no proletariado.

    Com o decorrer da complexificao da sociedade brasileira, consequncia do processo

    de industrializao do pas, h uma espcie de mutao (TRINDADE, 1985, p. 15) do

    pensamento social brasileiro, desvinculando-o com o passar das dcadas da produo literria

    (como na obra de Euclides da Cunha) para a sociologia cientfica (podemos exemplificar com

    a obra de Florestan Fernandes), marcada pela tcnica estabelecida nas Universidades do Rio

    de Janeiro e So Paulo, onde a partir da dcada de 1930, inicia-se a experincia de

    institucionalizao das Cincias Sociais, encerrando o campo do pensamento social brasileiro

    dentro dos moldes da sociologia cientfica.

    Com a clivagem entre a produo literria e a sociolgica, so estabelecidos os

    campos e habitus diferenciados tanto de autores da literatura quanto de cientistas sociais. O

    habitus de um cientista social, por exemplo, deve conter prticas de pesquisa emprica que

    corroborem suas teorias de forma a serem reconhecidas dentro do campo das Cincias Sociais

    e sejam reconhecidas pelos membros deste campo. Como afirma Bourdieu: Ser filsofo

  • 14

    dominar o que deve ser dominado na histria da filosofia para saber agir como filsofo num

    campo filosfico (BOURDIEU, 1983, p. 6).

    2. O Pensamento autoritrio brasileiro.

    A Ao Integralista Brasileira foi o primeiro partido brasileiro a estabelecer-se

    nacionalmente, abarcando em torno de meio milho de adeptos. Desta maneira, evidente a

    importncia de estudos que envolvam a formao e consolidao deste movimento ideolgico

    nacional na dcada de 1930, o primeiro movimento de massa no Brasil (TRINDADE,

    1985).

    Hlgio Trindade comenta a conjuntura brasileira no momento da expresso do

    pensamento Integralista da seguinte forma:

    O ano-chave do perodo 1922. Nele eclodem quatro

    acontecimentos simblicos que contm, em embrio, a

    mutao da sociedade brasileira entre as duas guerras

    mundiais. A Semana da Arte Moderna, em fevereiro,

    desencadeia a revoluo esttica; uma nova etapa da

    organizao poltica da classe operria se delineia, em

    maro, com a fundao do Partido Comunista Brasileiro; a

    criao do Centro D. Vital, ligado revista A Ordem, de

    orientao catlica, prenuncia a renovao espiritual; e,

    finalmente, a primeira etapa da revoluo poltica

    tenentista irrompe, em julho, com a rebelio na Fortaleza

    de Copacabana (TRINDADE, 1985, p. 15).

    A ideologia e o pensamento autoritrios no Brasil podem ser observados enquanto

    exemplos da interseo entre diversos campos da sociedade brasileira. Os autores do

    Integralismo se dedicaram a uma produo que respondesse a questes pertinentes s

    preocupaes da intelectualidade do pas nesta poca, tais como a necessidade de

    estabelecimento de uma arte tipicamente brasileira, como a criao de heris nacionais, ou a

    utilizao de um enfoque sociolgico, em moda na poca (TRINDADE, 1985, p. 27).

    Citando o chefe Integralista: Salgado no concebe projeto poltico sem uma dimenso

    artstica e vice-versa (SANTOS, 2007, p. 2).

    importante lembrarmos que uma das preocupaes dos intelectuais brasileiros, da

    qual fazem parte tambm os intelectuais que se afinaram ao pensamento autoritrio, era

    explicar as razes e de alguma forma trazerem respostas quanto aos motivos que faziam o

    Brasil permanecer como uma nao no industrializada, com um atraso em termos capitalistas

  • 15

    em relao s naes centrais. Essa era uma das grandes questes da intelectualidade

    nacional.

    Outro tema que no deve ser deixado de lado quando decidimos abordar a questo do

    pensamento autoritrio brasileiro o impacto da Semana de Arte Moderna. Durante a semana

    de 1922, esteve um grupo de artistas mais conservadores, o Grupo Anta. Tanto na literatura

    quanto nas outras artes, no devemos esquecer que o tema fundamental era a construo da

    nao. A busca de uma arte que representasse genuinamente o Brasil era carregada de

    nacionalismo. Desta forma, vlido assinalar que um nacionalismo ao extremo torna-se

    autoritarismo.

    Mesmo que no dentro de um campo especfico da sociologia enquanto cincia, o

    Integralismo se propunha a explicar o Brasil e responder problemtica poltica, econmica e

    social. O pensamento social brasileiro, naquele momento ainda era marcado por formas

    hbridas, pelas quais se manifestava de forma diferenciada da que veio posteriormente, a qual

    intensificou a diferenciao do campo das Cincias Sociais, com seus mtodos, tcnicas e

    teorias especficas. As prticas do pensamento social no Integralismo, como hbridas, eram

    prximas da Literatura. No coincidncia Plnio Salgado, lder do movimento, escreveu

    diversos romances.

    Assim como outras manifestaes da intelligentsia nacional, o Integralismo tambm

    objetivava explicar o passado brasileiro e de que maneira este passado repercute nas

    orientaes do pas. Para os integralistas uma grande lstima para nosso pas foi a instalao

    da Repblica. Para o pensamento autoritrio, o pas ainda no tinha condies de assumir as

    consequncias de um regime republicano de forma saudvel. O povo ainda no possua as

    caractersticas necessrias para o regime republicano.

    O movimento Integralista estar solidamente ligado classe mdia catlica, com suas

    recomendaes acerca da defesa da famlia e bons costumes, basta lembrarmos a mxima

    integralista: Deus, Ptria e Famlia.

    3. A doutrina Integralista

    Como j exposto na parte anterior deste artigo, inmeros conflitos ideolgicos,

    ebulies sociais e mudanas econmicas e culturais marcam a emergncia do movimento

    integralista. Tratemos de agora assinalar os objetivos deste movimento que segundo as

    palavras de seu lder, Plnio Salgado:

  • 16

    [...] considera o universo, o homem, a sociedade e as

    naes, de um ponto de vista total, isto , somando todas

    as suas expresses, todas as suas tendncias, fundindo o

    sentido materialista do falo ao sentido interior da ideia,

    subordinando ambos ao ritmo supremo espiritualista e

    apreendendo o fenmeno social segundo as leis de seus

    movimentos (SALGADO, 1969, p. 25).

    Santos (2007), escrevendo sobre a produo literria de Plnio Salgado, expe uma

    caracterstica que marca a produo desse autor e permeia o pensamento Integralista: o

    desnimo e negativismo quanto a condio humana. Essa viso de humanidade degradada

    pode ser entendida ento como uma alavanca para a reconstruo nacional dentro do molde

    Integral e a posterior Humanidade Integral. Na obra O que Integralismo Salgado anuncia

    as frmulas definitivas de salvao nacional e humana (SALGADO, 1969, p. 37).

    O pensamento Integral, como exemplo de parte da intelligentsia nacional do perodo,

    visava explicar o Brasil dentro de uma concepo prpria e elaborar solues para as questes

    nacionais. Pelo vis integralista a resoluo era libertar o homem daquilo que o amarrava a

    uma concepo individualista e material do mundo. Faz-lo exercer sua plenitude. Para

    Salgado, tanto as ideias, marxistas ou liberais, geravam um homem incompleto, distante de

    sua verdadeira misso enquanto ser na Terra.

    Ambas as correntes ideolgicas, tanto a liberal quanto a marxista eram enxergadas

    como materialistas, uma sob o prisma do individualismo, a outra sob o prisma do coletivismo.

    O liberalismo, conforme o Integralismo materialista, porque permite que se processe a

    evoluo das foras materiais da sociedade sem nenhuma orientao diretiva do Estado,

    tornando este um mero mantenedor da ordem pblica (SALGADO, 1969, p. 29). O

    marxismo, por sua vez, relegava o poder de todas as aes da humanidade ao plano de

    produo material, negando a natureza da vontade independente de cada ser humano.

    Como detrator do pensamento liberal, uma das caractersticas desta orientao

    poltica/ideolgica a ser atacada na obra O que Integralismo, o voto. De acordo com o

    pensamento exposto por Salgado, o voto uma artimanha dos capitalistas, da elite liberal,

    ludibriando o povo com a ideia democrtica. O voto obriga a populao a eleger como

    representante um indivduo que no abarca as aspiraes reais daquela populao, pois no se

    encerram nele as caractersticas de um Estado forte, o Estado funciona apenas como aparato

    da administrao burocrtica para a livre atividade econmica.

    O marxismo, por sua vez no atende s necessidades nacionais e humanas de uma

    forma geral por encapsular o homem na esfera econmica reduzindo a complexidade da

  • 17

    sociedade numa luta de morte onde se enfrentam Capital e Trabalho. Alm disso, um

    agravante, para o pensamento integralista em relao ideologia comunista era a concepo

    marxista para a religio e famlia, onde estas duas instituies estavam a servio da

    reproduo e manuteno das foras produtivas.

    No caso da explicao histrica para o atraso nacional, caracterstica de nossa

    intelligentsia neste momento, Salgado atribui nossa origem colonial, e posteriormente uma

    repblica ineficaz, de cabresto, dependente da Inglaterra, a formao de uma nao

    desorganizada, ansiando por um lder que a trouxesse novamente para sua essncia ordeira.

    Uma questo a ser pontuada so as figuras do Estado para o pensamento integralista e

    a importncia de seu lder. A sociologia Integral considerava o povo brasileiro inapto ao

    estabelecimento da democracia liberal j que estava organicamente conectado a uma figura

    patriarcal, que o guiasse. Salgado bem reitera em seu texto: ... o nosso povo sedento de

    ordem e disciplina, subordinando-se espontaneamente autoridade (SALGADO, 1969. p.

    58).

    Leonardo Neves comenta em seu artigo O lugar da democracia no pensamento

    autoritrio de Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e Francisco Campos, o paradoxo presente

    nas ideias integralistas envolvendo a perene disputa entre o individualismo (contido na

    ideologia liberal) e o coletivismo (esprito que deve ser alcanado pelo Estado Integralista

    para promover o desenvolvimento da nao).

    Este paradoxo reside justamente em ser o representante desse Estado mximo, capaz

    de responder s necessidades de todos os cidados da nao brasileira de forma homognea,

    um nico indivduo. Plnio Salgado defende, em sua produo intelectual, a sua aptido para

    tamanha responsabilidade.

    O pensamento autoritrio brasileiro, desta forma, molda-se em torno da defesa de um

    Estado centralizado, orgnico, em oposio ao inorgnico. Este ltimo tendo como base o

    individualismo inerente ao homem de Rousseau, que necessita do contrato social para existir

    em sociedade. Sintetizando o pensamento integralista com palavras do prprio Plnio Salgado:

    [...] qual o destino do homem e da sociedade?... justo

    que tenha conforto material, que se alimente, que se vista,

    que se reproduza; razovel que se dedique cincia,

    arte, ao pensamento; natural que nutra aspiraes

    transcendentais. Tudo isso, harmonizado, de acordo com

    as tendncias de cada um e debaixo de um critrio superior

    de espiritualidade e de interesse nacional, social e humano,

    realiza o Homem Integral (SALGADO, 1969, p.47).

  • 18

    3. Consideraes finais.

    Em nosso breve estudo a respeito do pensamento autoritrio no Brasil, identificamos

    caractersticas presentes nesta ideologia que evidenciam o carter da intelligentsia brasileira

    nas dcadas de 1920 e 1930, apesar das crticas erigidas por Salgado aos intelectuais liberais e

    marxistas.

    O grande lder integralista, Plnio Salgado, atuava como jornalista, publicava

    romances e produzia material de cunho sociolgico buscando os motivos que propiciam o

    atraso no desenvolvimento brasileiro para responder isso com suas teorias.

    O hibridismo do intelectual da poca manifesta-se em suas obras, que chamavam

    para si um cientificismo que ainda no era plenamente estabelecido, visto que o campo das

    Cincias Sociais ainda no havia acumulado capital simblico para se estabelecer plenamente,

    coisa que aconteceu depois, com a institucionalizao dos cursos universitrios.

    Afirmamos ento, mais uma vez, a importncia de no rejeitarmos estudos referentes

    ao pensamento autoritrio brasileiro, visto que ele tambm um reflexo do fenmeno social

    daquele momento histrico e da produo intelectual daquele momento. No entanto,

    necessrio no ignorarmos os problemas de uma ideologia autoritria, que credita a apenas

    um indivduo toda a capacidade de formular a gesto do pas todo e que, portanto retira o

    crdito da nao de optar pelas direes que melhor lhe convir, mesmo que isto no passe de

    utopia.

    Bibliografia

    BOURDIEU, Pierre. Questes de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.

    MANNHEIM, Karl. Sociologia da Cultura. So Paulo: Editora Perspectiva, 2004.

    NEVES, Leonardo. O Lugar da Democracia no Pensamento Autoritrio de Oliveira

    Vianna, Azevedo Amaral e Francisco Campos. Rio de Janeiro: IUPERJ, s/d.

    SALGADO, Plnio. Obras completas. So Paulo: Editora das Amricas, 1969.

    SANTOS, Robson. A Esttica Poltica - Literatura e Sociedade em O Esperado, de Plnio

    Salgado. Maring, Revista Urutgua, 2007.

    TRINDADE, Hlgio. Integralismo: o Fascismo Brasileiro na Dcada de 30. So Paulo:

    Difuso Europia do Livro, 1974.

  • 19

    Sertanejo caipira ou caipira sertanejo: As definies da msica rural

    brasileira na coleo nova histria da msica popular brasileira

    Alessandro Henrique Cavichia Dias

    Mestrando em Histria pela Unesp/ Campus Franca

    RESUMO: Este ensaio pretende apresentar a formao de dois gneros musicais, conhecidos como

    msica sertaneja e msica caipira. Para tanto, analisa-se as tenses e, principalmente, as

    diferenas estticas entre ambos os gneros e, dessa forma, visa-se problematizar tais

    categorias e como elas contribuem para a solidificao de uma tradio. Junto a essas anlises

    da ciso desses campos musicais, caber tambm ressaltar o papel da Indstria Fonografia na

    consolidao desses gneros, a partir de dois discos da coleo Nova Histria da Msica

    Popular Brasileira, intitulados Msica Caipira de 1978 e Msica Sertaneja de 1983, sendo

    estes os primeiros a fazerem parte de uma mesma coleo e rotular, distintamente, a msica

    rural do interior do Brasil. Tais discos alcanaram um alto nvel de popularidade e

    contriburam fortemente para a formao de uma memria musical e a solidificao de um

    cnone em torno da msica popular brasileira.

    Palavras Chave: Msica Sertaneja; Msica Caipira; Indstria Cultural; Memria Musical

    ABSTRACT:

    This essay intends to present the formation of two musical genres, that are known as country

    music and rustic music. To do this, it analyzes the tensions and, mainly, the differences

    between both genres and, thus, it will render problematic these categories and how they

    contribute to the solidification of a tradition. Besides, these analyzes the divergence of these

    musical field, this essay will also introduce the role of Phonograph Industry in the

    consolidation of these genres, from two disc of collection of the New History of Brazilian

    Popular Music, entitled, in 1978, Rustic Music, and, in 1983 Country Music. These are the

    first of the same collection and they labeled, distinctly, the rural music of the interior of

    Brazil. These discs have reached a high level of popularity and they have contributed to the

    formation of a musical memory. Add to that, they have solidified a canon around Brazilian

    popular music.

    Key-words: Country Music; Rustic Music; Cultural Industry; Musical Memory

  • 20

    Introduo

    Os lbuns em anlise neste trabalho fazem parte da coleo intitulada Nova Histria

    da Msica Popular Brasileira, lanada no incio da dcada de 1970 pela editora Abril Cultural,

    a partir do qual teremos como referncia o disco de msica caipira de 1978 e o de msica

    sertaneja de 1983. Nessa direo, cabe salientar tanto os papis desenvolvidos por esses dois

    discos que se referem msica rural, como tambm toda a coleo produzida pela editora na

    formao de uma memria musical e na solidificao de um cnone, como afirma o

    pesquisador Dr. Silvano Fernandes Baia (2010, p.199):

    Os discos traziam gravaes selecionadas de compositores considerados relevantes

    para histria da msica popular e vinham acompanhados de textos sobre a vida e a

    obra do autor retratado. Os fascculos semanais da coleo eram vendidos em bancas

    de jornal a um preo acessvel. Fez um grande sucesso vendendo mais de 7 milhes

    de exemplares em trs edies. A srie contribua fortemente, pela sua popularidade,

    na construo de uma memria da msica popular no Brasil. A coleo j institua

    um cnone de quais grandes compositores dignos de figurar numa Histria da

    msica popular no Brasil na prpria organizao da seleo.

    A partir desta perspectiva podemos afirmar que a construo do gnero sertanejo passa

    pelas investidas da Indstria Cultural, como ser discutido adiante. No entanto, ao diferenciar

    esses dois gneros cabe ressaltar a origem e a importncia do conceito criado em torno do

    termo msica sertaneja, pois como afirma KOSELLECK R. (2006, p.98): "sem conceitos

    comuns no pode haver uma sociedade e, sobretudo, no pode haver unidade poltica, ou

    seja, a criao de um conceito, que tenha a mesma significao dentre uma comunidade

    lingstica, permite a fundao de sistemas polticos e sociais que abranja todos os nveis da

    estrutura social. Algo que se torna de fundamental importncia para que a Indstria Cultural

    possa exercer seu leque de influncia.

    Sendo assim, o termo msica sertaneja diferente do termo caipira (de msica

    caipira), que uma denominao tipicamente paulista, usada para denominar o caboclo (e

    sua produo cultural), que no residia nos centros urbanos. "Kaai 'pira" na lngua indgena

    significa, o que vive afastado1. Por outro lado, o termo msica sertaneja era utilizado no Rio

    de Janeiro no final do sculo XIX at a dcada de 1930 como referncia para todas as msicas

    que no pertencesse ao ambiente cultural da capital da repblica, ou seja, tal termo definia

    tanto as canes da regio nordeste como as do centro-sul, mas com uma referncia maior ao

    sertanejo nordestino, que nesse momento era uma figura cativa do ambiente cultural carioca,

    gneros esses que seduziram grandes nomes do samba carioca, como Noel Rosa que fez parte

    1 Para maiores informaes acessar:

  • 21

    do Grupo dos Tangars. Outro grupo de grande sucesso que teve como seus integrantes

    grandes nomes do Samba foi Grupo de Caxang que tinha na sua composio Pixinguinha,

    Donga, Raul Palmieri e Joo Pernambuco que futuramente iriam integrar o grupo Oito

    Batutas, todos esses, grandes interpretes do samba, iniciaram sua carreira artstica na msica

    sertaneja em especial Noel Rosa como afirma o pesquisador Allan de Oliveira (2009, p.236):

    Um exemplo disto Noel Rosa, cujas primeiras composies, feitas ainda enquanto

    era membro do Bando dos Tangars, foram uma toada do Norte e uma embolada. O prprio repertrio do Bando dos Tangars revela esta mistura dos diferentes gneros nas dcadas de 10 e 20, pois assim como os Oito Batutas, os

    Tangars tambm tocavam sambas e caterets, maxixes e desafios, foxtrotes e

    emboladas. No entanto, por volta de 1931, Noel Rosa, (...) opta pelo samba, passando a compor somente canes que se adequassem a este gnero e a um outro

    relacionado ao carnaval, a marchinha. (...)

    Como apresentamos acima, at a dcada de 1930 do sculo XX a msica sertaneja no

    Rio de Janeiro se constitua basicamente dos ritmos nordestinos e de uma influncia ainda

    muito modesta do ritmo caipira do centro-sul do Brasil. A msica caipira passa construir

    espao na capital da repblica a partir de 1929, com a gravao dos primeiros discos deste

    gnero, todos idealizados e financiados por Cornlio Pires, pois as gravadoras do perodo no

    acreditavam que havia mercado consumidor para tal gnero, o primeiro disco era um de 78

    rotaes com rtulo vermelho, que levava o selo Columbia. Nesse disco, de um lado figurava

    a msica, Jorginho do Serto e do outro, Moda de Pio, ambas de autoria do prprio

    Cornlio Pires. De incio, o disco vendeu cinco mil cpias em menos de 20 dias, ou seja,

    todas as cpias que o prprio Cornlio tinha financiado, superando tanto as suas expectativas

    e as das gravadoras, que passaram a investir consideravelmente neste novo filo. Com isso, a

    msica sertaneja passou a ser colonizada pela esttica do centro-sul do Brasil, com afirma

    Oliveira (2009, p.44):

    At 1929, a msica sertaneja era simbolizada pelos diversos gneros nordestinos populares no Rio de Janeiro e em So Paulo nos anos 10 e 20, tais como emboladas

    e desafios. Com as primeiras gravaes de duplas formadas por autnticos caipiras do interior paulista nos termos das prprias gravaes a msica sertaneja comeou a ser colonizada pela esttica do interior do centro-sul, a esttica caipira. E nesse processo, a dupla cantando em teras tornou-se a formao central do

    gnero. Apesar de todas as mudanas sofridas pela msica sertaneja nos ltimos 80

    anos, a dupla foi o elemento que se manteve. Se antes havia Alvarenga e Ranchinho

    (anos 30), hoje h Zez di Camargo e Luciano.

    Com isso, o termo sertanejo passa a se referir a um novo conceito de esttica musical

    que no possui vnculo nenhum com a tradio nordestina e que, por outro lado, ser negado

    pelas duplas caipiras tradicionais. Contudo, tal conceito s se cristaliza a partir de meados da

    dcada de 1980 em diante, com os novos interpretes da msica rural do centro-sul, que

  • 22

    tambm so renegados por serem acusados, pelos msicos considerados tradicionais do meio

    caipira, de estarem modernizando e corrompendo os valores morais da legtima msica

    caipira. Essa negao destes novos interpretes ocorre devido a influncia de outros ritmos

    estrangeiros em suas performances, em especial o Country Estadunidense que se torna

    presena confirmada nas interpretaes de Srgio Reis, Leandro e Leonardo Chitozinho e

    Choror, Milionrio e Jos Rico entre outros que, dessa forma, romperam com a esttica da

    msica caipira. Sendo assim, o conceito msica sertaneja passa a representar e definir um

    novo grupo social distinto do caipira e tambm do sertanejo, no sentido que o termo era

    empregado originalmente, o que nos permite mapear as tenses e representaes criadas em

    torno desses dois gneros, pois como afirma Roger Chatier (1988, p.17):

    As representaes do mundo social assim constitudas, embora aspirem a

    universalidade de um diagnstico fundado na razo, so sempre determinados pelo

    interesse de grupo que as forjam. Da para cada caso, o necessrio relacionamento

    dos discursos proferidos com a posio de quem utiliza

    As primeiras definies acadmicas de msica caipira e msica sertaneja

    No que diz respeito s diferenas acadmicas entre a msica caipira e msica

    sertaneja, tem se como referncia o artigo de Jos de Souza Martins (1975) intitulado Msica

    Sertaneja: a dissimulao na linguagem dos humilhados, o qual tambm se destaca como

    uma das primeiras pesquisas voltadas para anlise da histria e msica. No decorrer deste

    artigo Jos de Souza Martins (1975, p.103) norteia sua pesquisa sobre a msica abrangendo

    a letra que nela suporta, o universo que verbaliza cantando e o universo que se utiliza como

    ponto de apoio em determinadas relaes sociais. Dessa maneira, ao longo de seu artigo ele

    estabelece uma relao entre o texto literrio e o texto musical e, partindo dessas reflexes,

    apresenta diversos pontos em comum, assim como distines entre a msica caipira e a

    msica sertaneja.

    Segundo o autor, a msica caipira estaria sempre ligada s sociabilidades do mundo

    rural, assim como aos ritos religiosos, trabalhistas e de lazer. Enquanto a msica sertaneja

    seria dotada de um fundamento de classe sociais, as quais podem ser observadas, ao longo das

    letras, na identificao realizada pelo autor dos elementos que exemplifiquem as condies

    concretas da existncia das classes subalternas, assim como nas tenses, contradies e

    oposies entre elas e outras classes. Nessa direo, segundo Jos de Souza Martins a toada

  • 23

    Chico Mineiro da dupla Tonico e Tinoco, exemplificaria com clareza sua hiptese, como

    pode-se ver abaixo:

    Cada vez que me "alembro" / Do amigo Chico Mineiro,/ Das viage que nois fazia

    /Era ele meu companheiro. / Sinto uma tristeza, / Uma vontade de chorar, /

    Alembrando daqueles tempos / Que no hai mais de voltar. / Apesar de ser patro, /

    Eu tinha no corao / O amigo Chico Mineiro, / Caboclo bom decidido, / Na viola

    era delorido e era o peo dos boiadeiro. / Hoje porm com tristeza / Recordando das

    proeza / Da nossa viage motin, / Viajemo mais de dez anos, / Vendendo boiada e

    comprando, / Por esse rinco sem-fim / Caboco de nada temia. / Mas porm, chegou

    o dia / Que Chico apartou-se de mim. / Fizemos a ltima viagem / Foi l pro serto

    de Gois / Fui eu e o Chico Mineiro / Tambm foi o capataz / Viajamos muitos dias

    pra chegar em Ouro Fino / Aonde passamos a noite numa festa do Divino / A festa

    estava to boa, mas antes no tivesse ido / O Chico foi baleado por um homem

    desconhecido / Larguei de comprar boiada / Mataram meu companheiro / Acabou-se

    o som da viola / Acabou-se o Chico Mineiro / Depois daquela tragdia / Fiquei mais

    aborrecido / No sabia da nossa amizade / Porque nos dois era unido / Quando vi seu

    documento / Me cortou o corao / Vi saber que o Chico Mineiro /Era meu legtimo

    irmo2

    Com essa msica Jos de Souza Martins elucida a luta de classe na msica sertaneja,

    afirmando que as relaes de trabalho entre patro e empregado no permitia que ambos se

    reconhecessem como irmos.

    Seguindo a mesma linha apresentada por Jos de Souza Martins, Waldenyr Caldas

    publica sua obra em 1979, intitulada Acorde na aurora: msica sertaneja e indstria cultural,

    a qual tem seu trabalho caracterizado pela mesma linha marxista que domina o trabalho de

    Jos de Souza Martins.

    No entanto, Waldenyr Caldas distingue a msica caipira da sertaneja da seguinte

    forma, a msica caipira estaria ligada ao folclore rural, ou seja, seria fruto da socializao

    entre as comunidades interioranas, ocupando, desse modo, uma funo social dentre desse

    grupo que vai alm da mera diverso. Por outro lado, a msica sertaneja se enquadraria como

    um produto da urbanizao, deste modo, estaria totalmente desprovido de seu carter

    folclrico e no possuiria nenhuma outra funo a no ser o entretenimento, contudo, ela seria

    apenas mais um produto alienante da Indstria Cultural (CALDAS, 1979).

    No entanto, outros pesquisadores apresentam uma tica distinta da apresentada por

    Jos de Souza Martins e Waldenyr Caldas, como o caso da dissertao de mestrado de

    Lucas Antnio Arajo, a qual apresenta a msica rural brasileira dividida em msica

    sertaneja tradicional, que seria o gnero que sempre teve como referncia as estruturas das

    msicas rurais, bem como instrumentos e temticas semelhantes, e msica sertaneja.

    Contudo, Arajo apresenta como msica sertaneja as novas duplas que surgiram em meados

    dos anos 1970 e, especialmente, a partir da dcada de 1980, tais como Leandro e Leonardo,

    2 As barras so utilizadas para separar os versos.

  • 24

    Zez di Camargo e Luciano, Chitozinho e Xoror entre outras, que tinham suas

    performances apoiadas em estrondosas bandas, com guitarristas, baixistas, tecladistas e

    bateristas.

    importante ressaltar os atritos gerados entre a msica sertaneja tradicional e a

    msica sertaneja, como bem aponta Arajo (2007, p.15):

    importante frisar que a partir da desvinculao em relao temtica, esttica e

    forma em geral da nova vertente do gnero em relao msica sertaneja tradicional, as duplas de ambos os estilos, que poderiam ser definidas j como

    gneros distintos, tm atualmente uma relao relativamente amistosa. No boom dos

    anos 1980, houve tendncia marcante dos jovens astros em buscar cada vez mais se

    desvencilhar da velharia e assumir, de forma empolgada, modernizao e esttica jovem. Atualmente, as restries, quando ocorrem, vm do outro lado, das duplas de violeiros tradicionais, que classificam a nova msica sertaneja de forma pejorativa como sertanojo ou msica de motel em referncia temtica praticamente nica do estilo: as desventuras amorosas. Em relao aos astros desta

    nova msica sertaneja assumem postura bem diferente daquela dos anos 1980, em que as duplas tradicionais eram encaradas pelas jovens duplas da nova msica

    sertaneja de modo depreciativo, representando um verdadeiro conflito de geraes. Atualmente dizem respeitar muito as duplas antigas a quem se referem como verdadeiros mestres e, vez por outra, fazem questo de inserir um clssico sertanejo na gravao de seus discos, quando no gravam um inteiro composto somente de msicas de raiz.

    Outra obra tambm muito importante, que auxilia a compreender a ciso entre esses

    dois campos musicais A moda viola: ensaio do cantar caipira, de Romildo SantAnna

    (2009). Esse trabalho de suma importncia, visto que traa uma linha do tempo ao longo de

    sua explanao, sendo que, posteriormente, divide o estudo em duas partes. Primeiramente,

    apresenta as configuraes do cantar caipira, realizando a articulao entre o caipira e seu

    meio, e como esse ambiente se expressa em suas canes, alm de ressaltar sua cultura

    material e imaterial, assim como seu papel socializador e ldico. Por fim, traz a discusso

    para a atualidade, analisando a situao da msica caipira no cenrio artstico atual, e como o

    serto hoje se representa no espao citadino por meio da msica caipira/sertaneja. Portanto,

    estas consideraes sero imprescindveis para a compreenso do cenrio em que atua a

    msica sertaneja em seus desdobramentos.

    Um importante aspecto da msica rural brasileira que apontado por Romildo

    SantAnna a construo da dico do cantar do caipira, conforme apresenta-se abaixo:

    A Moda Caipira cantada no acasalamento do dueto em tera, de mi e d,

    em falso bordo de dico anasalada. O anasalamento conserva resqucios

    de lnguas e dialetos amerndios; o cantar entoando vozes mantm a tradio ritualstica da missa, devocionada na igreja (SANTANNA , 2009, p.93).

    Ao avaliar-se os discos da Coleo Nova Histria da Msica Popular Brasileira em

    relao a estes dois gneros musicais discutidos acima. Pode-se notar que no primeiro disco,

  • 25

    destinado a msica caipira de 1978, figura-se em suas faixas as seguintes canes do lado A

    Bonde Camaro (Cornlio Pires) Mariano e Caula, Calango (Capito Furtado,

    Alvarenga e Ranchinho) Alvarenga e Ranchinho, Moda da Mula Preta (Raul Torres) Torres

    e Florncio, Velho Candeeiro ( Jos Rico e Duduca) Milionrio e Jos Rico. Do lado B

    destaca-se O Menino da Porteira ( Teddy Vieira e Luizinho) luisinho e Limeira, 13 de

    Maio (Teddy Vieira, Riaho e Riachinho) Moreno e Moreninho, Rio de Lgrimas (Tio

    Carreiro, Piraci e Lourival dos Santos) Tio Carreiro e Pardinho, e por fim Em vez de me

    Agradecer (Capito Furtado, J Martins e Aymor) Tonico e Tinoco.3 Conforme pode-se

    notar na capa do lbum abaixo:

    (Coletnea Nova Histria da Msica Popular Brasileira. Msica Caipira, Abril Cultural

    1978)

    3 Ao longo da descrio o nome da msica se encontra entre aspas, em seguida o nome do compositor e, por fim,

    o interprete

  • 26

    No segundo disco, destinado a Msica de Sertaneja de 1983, encontra-se do lado A

    Moda do Peo (Cornlio Pires) Cornlio Pires, Fogo no Canaviar (Alvarenga e

    Ranchinho) Alvarenga e Ranchinho, Moda da Pinga (Laureano) Inezita Barroso, Boi

    Amarelinho (Raul Torres) Torres e Florncio, Serto do Laranjinha (Tonico e Tinoco,

    Capito Furtado) Tonico e Tinoco, O Menino da Porteira (Luizinho e Teddy Vieira) Tio

    Carreiro e Pardinho. Em seguida, no lado B segue as seguintes canes: Beijinho Doce (

    Nh Pai) Irms Castro, Magoa de Boiadeiro ( Nh Baslio e ndio Vago) Ouro e Pinguinha,

    Quatro Coisas (Vieira e Vieirinha) Vieira e Vieirinha, Tristeza do Jeca ( Angelino de

    Oliveira) Tonico e Tinoco, Trs Nascentes (Joo Pacifico) Joo Pacifico, e como ltima faixa,

    Jorginho do Serto (Cornlio Pires) Itaporanga e Itarar.4 Como nota-se na capa no lbum a

    seguir:

    (Coletnea Nova Histria da Msica Popular Brasileira. Msica Sertaneja, So Paulo Abril

    Cultural 1983)

    4 Ao longo da descrio o nome da msica se encontra entre aspas, em seguida o nome do compositor e, por fim,

    o interprete.

  • 27

    Como pode-se observar nas temticas das msicas supracitadas, todas possuem como

    referncia o cenrio rural, religioso ou se fundamentam em uma crtica a modernidade como

    no caso da msica Bonde Camaro e Tristeza do Jeca. E, quanto aos interpretes, nota-se que

    quase todos apresentam a tpica indumentria caracterstica do caipira, com um figurino

    composto por camisas xadrez, chapu, calas e botas, como aparece nas capas e contracapas

    dos discos, exceto a dupla Milionrio e Jos Rico que aparecem na capa do primeiro disco

    voltado a msica caipira, na qual ambos pousam de terno xadrez, gravata e culos escuros. No

    encarte deste mesmo disco, a dupla aparece em trs fotos com um figurino que destoa ainda

    mais dos parmetros propostos pelo tradicionalismo da cultura caipira, sendo que na primeira

    ela mantm o padro apresentado na capa, e nas outras duas fotos Milionrio e Jos Rico

    aparecem de cabelos cumpridos, sendo que na primeira, destas duas ltimas, apresentam uma

    releitura da indumentria do cowboy norte-americano e na segunda pousam com um visual

    moderno caracterstico da jovem guarda.

    Seguindo a anlise da dupla Milionrio e Jos Rico, cabe ressaltar suas composies e

    interpretaes, como na msica Velho Candeeiro que ocupa a quarta faixa do lado A do

    disco Msica Caipira. possvel constatar, a partir de uma audio atenta da msica, que a

    dupla abole a viola da harmonia da cano, instrumento esse que figura como smbolo da

    msica caipira, sendo que nenhuma das outras duplas que compe os dois discos faz tal

    opo. Alm da abolio da viola nas msicas de Milionrio e Jos Rico, estes ainda

    compem suas Harmonias musicais com guitarras, contra baixo, baterias, teclados e backing

    vocals. Com isso, a dupla rompe com as tradies instrumentais das duplas da msica caipira

    que seriam a viola e o violo, e seus respectivos msicos cantando em tera. Dessa forma,

    eles apresentam uma modernizao da msica caipira que se encaixaria nos padres da

    Msica Sertaneja como foi citado acima, pois, tal performance se cristaliza em duplas

    posteriores a Milionrio e Jos Rico, como Zez di Camargo e Luciano, Chitozinho e

    Choror, Leandro e Leonardo e Bruno e Marroney entre outras, ambas duplas que abolem a

    viola de suas performances.

    Isso demonstra que a Editora Abril, na seleo das canes que iriam compor os

    discos da coleo Nova Histria da Msica Popular Brasileira, no possua intuito algum

    em definir quem seriam os intrpretes caipiras e sertanejos, e quais representavam a

    tradicional msica rural. O que se tinha em vista era a popularidade alcanada por cada um,

    visto que no disco destinado msica caipira, lbum Iluso Perdida, de 1975, a quarta faixa

    dedicada a uma dupla que detinha o recorde do nmero de vendas de um mesmo disco de

    msica sertaneja, com mais de 200 mil cpias vendidas. J no segundo disco, de 1983,

  • 28

    intitulado Msica Sertaneja, no h sequer um intrprete da msica sertaneja, pois todas as

    faixas so ocupadas por clssicos da msica caipira.

    Com isso, observa-se que a ciso entre msica sertaneja e caipira muitas vezes foge do

    julgo da Indstria Cultural, ou seja, a ciso surge a partir dos prprios intrpretes, e do

    pblico, que passa a recepcionar negativamente um gnero ou outro. Com isso, cabe apontar

    que a gravadora Abril Cultural no possua inteno alguma em demarcar o que era caipira e

    o que era sertanejo, ela apenas atualiza o termo na capa do disco, pois, entre 1978 e 1983, a

    msica sertaneja consegue ampliar o seu pblico consumidor frente msica caipira.

    Por conseguinte, pode-se demarcar a fronteira entre msica caipira e msica sertaneja

    atravs da harmonia utilizada na construo das melodias dos dois gneros, pois, como

    supracitado, a viola mantm a caracterstica da msica caipira em relao msica sertaneja,

    diferentemente da temtica apresentada por Waldenyr Caldas e Jos de Souza Martins, uma

    vez que tambm se encontra na msica sertaneja das duplas modernas canes com temticas

    voltadas para o religioso, ou que cantam a saudade do ambiente rural ou at mesmo uma certa

    crtica a modernidade. Assim sendo, no se pode apenas utilizar tais parmetros para realizar

    a distino entre os gneros. Todavia, quando nos referimos ao uso da viola na composio de

    suas harmonias musicais, torna-se evidente essa diferenciao, pois na msica caipira a viola

    figura como protagonista da cano e j na msica sertaneja ela passa ser mera coadjuvante,

    sendo utilizada em brevssimos momentos, apenas para que as duplas se justifiquem dentro de

    uma tradio musical (ZAN, 2004).

    Junto a essas consideraes elencadas acima, cabe analisar o papel da Indstria

    Cultural, na segmentao desses dois gneros, pois quando a editora Abril Cultural divulga

    esses dois discos, indiretamente ela contribui para a consolidao de dois gneros musicais

    distintos, influenciando, dessa forma, na formao de um gosto musical. No entanto, isso no

    significa que todos so refns dos desejos da Indstria Cultural, e que bastaria apenas analisar

    as condies de mercado para que se possa obter com clareza a fronteira entre a msica

    caipira e a msica sertaneja, ou seja, tais analises de mercado seria insuficientes para

    determinar tal problemtica, por que em muitos desses casos a influncia manipuladora da

    Indstria Cultural no se concretiza, demonstrando, assim, que a prpria Indstria fonogrfica

    atua, mais como mediadora dos interesses da sociedade do que propriamente como

    manipuladora, como podemos observar na citao do pesquisador Gustavo Alonso (2011):

    A partir da consolidao dos gneros caipira e sertanejo pde se estabelecer distines claras, assim como tornar vendveis estes produtos, catapultando as

    vendas e a participao das gravadoras no processo. A delimitao cultural e

    nomeao dos campos foi essencial para que a indstria cultural pudesse

    incrementar os lucros, mas foi tambm um processo que se deu para alm da

  • 29

    interveno e dos desejos mais diretos e manipuladores desta mesma indstria.

    Embora no se possa ignorar o papel da indstria cultural na construo de qualquer

    gnero musical no sistema capitalista, importante constatar que as intenes

    manipuladoras dos programadores e produtores culturais no so sempre cumpridas

    e que os movimentos culturais fogem a sua alada com tanta frequncia que torna

    difcil compreender as variaes da msica sertaneja apenas pela tica industrial.

    Nesse sentido a indstria cultural parece mais efeito de uma srie de batalhas

    culturais anteriores a sua prpria gana por lucro do que simplesmente formatadora

    deste novo campo cultural.

    Desse modo, observa-se que a Indstria cultural, apesar da influncia que exerce sob a

    sociedade, a qual nunca deve ser descartada em uma anlise, ela tambm se torna refm dos

    desejos desta mesma sociedade que ela tenta ferozmente manipular, ou seja, por mais que ela

    concentre seus esforos em criar uma uniformidade musical, isso por vezes lhe foge ao

    controle.

    Consideraes Finais

    Com esse breve ensaio no pretende-se criar uma tradio delimitando o que seria

    msica caipira e o que seria msica sertaneja, mas sim apenas mapear os campos que se

    desenvolvem essas duas expresses culturais e as tenses criadas entre ambos, principalmente

    em relao msica caipira, que preocupava-se em manter o que era genuinamente

    nacional em um momento de grandes interaes e hibridismos culturais, principalmente pela

    influncia da msica Country Estadunidense e a Rancheira mexicana, ritmos que

    conquistaram a msica sertaneja. No entanto, ao examinar a participao da Indstria Cultural

    nos discos da Coleo Nova Histria da Msica Popular Brasileira, nota-se sua falta de

    critrio ao definir tais gneros musicais, pois no disco destinado a msica caipira a quarta

    faixa dedicada a uma dupla que se reconhecem como sertaneja, alegando serem herdeiros da

    tradio caipira. Apenas, no segundo disco de 1983, intitulado msica sertaneja, no h um

    interprete da msica sertaneja, pois todas as faixas so ocupadas por clssicos da msica

    caipira como se nota na descrio citada acima no texto, com isso, observa-se que a ciso

    entre msica sertaneja e caipira, foge do julgo da Indstria Cultural, ou seja, a ciso surge a

    partir dos prprios interpretes que no se reconhecem e do pblico que passa a recepcionar

    negativamente um gnero ou outro. Sendo assim, pode-se concluir que mesmo que alguns

    pesquisadores descartem a importncia da diferenciao desses campos musicais para a

    pesquisa de Histria e Msica, faz necessria tal reflexo, pois sabe-se que tanto a msica

    caipira como a msica sertaneja no so ritmicamente idnticas e menos ainda pertencem ao

    mesmo circuito e no so recepcionadas pelo mesmo pblico.

  • 30

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  • 34

    Gneros Musicais: Em busca de uma construo scio sonora

    Diego da Rocha Viana Muniz

    Resumo

    O texto busca valorizar dinmicas internas da classificao dos gneros musicais da indstria

    massiva, tendo em vista certa complexidade no jogo que interliga criatividade musical e sua

    construo cultural. Para isso, valorizou-se a noo de scio sonoridade e as bases sob as

    quais se edifica a praticidade do rtulo comercial, levando em considerao a noo

    identitria que ele suscita.

    Palavras-Chave: Gnero musical, Etnomusicologia, Identidade de gnero musical, Msica e

    Mercado.

    Abstract

    The text seeks to valorize the intern variable of the classification of the musical genres of the

    massive industry, and aims certain complexity in the relation of musical creativity and its

    cultural construction. For this, valorized the idea of sociosonority and the bases of the practical commercial classification, considering its identity idea.

    Keywords: Musical genre, Ethnomusicology, Musical Genre Identity, Music and Market.

    Gneros Musicais: Em busca de uma construo scio sonora

    Um gnero musical formado por regras socialmente definidas, com a possibilidade

    de criao de subgneros como desdobramento das variveis artsticas. Enquanto a msica

    popular se caracteriza pela ideia simblica de proximidade entre as condies de produo e

    consumo, representada por gneros como o samba, a salsa, o sertanejo, o jazz, msicas

    regionais etc., os gneros da msica pop se caracterizam pela mediao ou mescla de regras

    da msica popular, no contexto da mxima produo e consumo. Baseiam-se em formulaes

    obtidas a partir de outras obras, onde a produo e reconhecimento modelam a criao e

    recepo de cdigos gerados, voltados ao mercado, sobre certo contexto.

    No que diz respeito unio de obras musicais dentro de um sistema complexo de

    classificao, quase impossvel englobar os diferentes ngulos de viso de um mesmo

    gnero, sendo um ponto bsico e crucial, a diferenciao quanto ao compartilhamento da

    identidade de gnero que divide ns e eles, e enxerga o outro a partir do prprio

  • 35

    sistema sociocultural e scio sonoro. Diante das complexas aproximaes, confuses,

    semelhanas e detalhes diferenciais, torna-se ainda mais pertinente um debate sobre a

    identidade de gnero musical.

    Tal viso evita no considerar um gnero o que considerado como tal, por artistas

    que se veem semelhantes; pela mdia; milhes de consumidores; crticos e assim por diante.

    Exclui-se logicamente quem desvaloriza a classificao comercial dos gneros musicais,

    como um importante compartilhamento da identidade social dos grupos atravs da msica.

    Se a classificao em si um complexo, a no classificao paradoxalmente um

    problema ainda maior, uma vez que a inveno de tais gneros faz parte de um patrimnio

    cultural da humanidade, que sem uma nomeao flexvel de contorno direcional, tende a se

    perder. H a necessidade de demarcar a identidade, em um territrio onde exista a explorao

    de um leque de variveis possveis na expresso musical, limitado por fronteiras. Universo

    que interliga a publicidade da criatividade e do gnio artstico, mediado pela herana da

    formao dos gneros que atua como um legado memorial existente que o referncia e

    estrutura.

    Ao relacionar as mobilidades da criatividade artstica e da identidade, nenhuma

    demarcao de gnero musical estar inabalvel e protegida. Em adio a isso, complexa e

    contraditoriamente, uma classificao, rtulo ou gnero musical pode incluir o conjunto de

    outros ritmos e em muitos casos, outros gneros. Fato acentuado por questes cruciais imersas

    na ps-modernidade. O samba, por exemplo, comumente visto como a representao

    autntica do gnero nacional, pode conter em seu repertrio a marchinha, o maxixe e a

    moda.

    necessrio que um grupo de pessoas baseado em tais parmetros aceite sua

    existncia, negando-a toda vez que fugir aos seus principais critrios de identificao.

    Fazendo dele no apenas um evento, mas uma programao contnua de natureza

    multifuncional, que pode internamente incluir contradies que se expandem ao se

    singularizar.

    A escolha do repertrio artstico nos remete a uma ideia eletiva de msicas que

    recordem eventos, fatos e expectativas, num imaginrio parte da memria social em sua

    relao simblica e representativa com o presente. No se ouve comumente um bolero,

    meia-noite, na Avenida Sete de Setembro num sbado de Carnaval em Salvador. Busca-se

  • 36

    uma coerncia adaptativa do repertrio musical com o ambiente onde se est, em seu esprito

    envolvido.

    comum haver divergncias com relao exposio de pensamentos de

    compositores, crticos especializados, pblico, msicos, produtores etc. O que alm de no

    excluir a questo, ressalta a importncia das cincias sociais, onde os profissionais esto

    adaptados a questionar a familiaridade cultural, dialogando a viso de perto e de dentro com

    um distanciamento necessrio a uma viso melhor e mais ampla. O que aumenta a

    necessidade de entender e perguntar s fontes com maior profundidade e rigor, principalmente

    diante da natureza dinmica da cultura, que faz com que um gnero se desenvolva com o

    passar do tempo com funes que se reafirmam a cada fenmeno. Tal trabalho necessita de

    tcnicas que possam ir alm das pessoas imersas em seu prprio conjunto universo.

    As convenes musicais tambm se estruturam em torno de prticas performticas que

    se posicionam como sentidos de ser e estar no mundo Se criam histrias, afinidades culturais,

    com associaes, repelentes etc.: longe de se restringirem a respostas imediatas, se localizam

    perto do processo histrico. As experincias performticas incluem a produo de uma

    identidade, sobre continuao, rejeio ou criao de novos cdigos.

    Sendo assim, a noo de scio sonoridade aponta para um conjunto complexo de

    regras e esquemas sociais e musicais que se acomodam na conscincia, de forma a indicar a

    classificao num dado gnero musical. Dessa maneira se associam aspectos musicais e

    sociais, no se desmerece o potencial criativo de uma cultura, e tampouco se subestima novas

    formas emergentes de identidade de gnero, dando maior ateno adaptao e atualizao

    das variveis histricas e dos parmetros, em prol do entendimento da alteridade.

    Ao chegar a uma loja, um cidado comum tem mais certeza do que quer comprar do

    que muitos estudiosos. O gnero costuma ser uma das primeiras formas de reconhecimento e

    experimentao musical. Por se tratar de algo familiar, dificilmente se pensa no que foi

    construdo ao longo do tempo sob ideologias cultivadas como identidades. Gneros diferentes

    tm memrias diferentes, cuja viso se torna mais clara quando comparadas.

    Individualmente, os msicos tambm tm suas memrias, regras e culturas, dentro de

    diferentes variveis subjetivas. Esse universo inclui ritmo, harmonia, melodia, alm de outras

    sonoridades possveis, que recaem nas mos de msicos, musiclogos e demais cientista. O

    foco na performance individual atenta para questes pessoais que enriquecem a criatividade,

    uma vez que admitem a existncia de elementos externos que no necessariamente so

  • 37

    compartilhados com frequncia dentro do gnero. Um compositor j pressupe que sua obra

    seja aberta, e ser executada e modificada dentro do contexto dos envolvidos nas etapas

    posteriores de produo. Esse evento se torna um importante fator relacionado flexibilidade,

    parte de uma liberdade que diminui a presso social. Memrias de tempos histricos

    diferentes, demandam presses sociais diferentes.

    Dessa forma, os gneros ps-modernos so postos incisivamente prova, uma vez que

    a criatividade tem a liberdade de permear os atores imprevisivelmente, no processo de

    produo e divulgao, desafiando por conseguinte, as possibilidades e limites prescritos em

    uma comunidade musical em seus elementos norteadores.

    As ideologias de gnero podem levar a uma disputa (mesmo que subjetiva) que

    comumente dificulta os estudos, uma vez que pressupe preferncias, hierarquias de valores,

    imposies sociais a partir de um referencial cultural distinto etc.

    A noo que engloba os diversos atores na produo e consumo artstico uma

    importante face da etnomusicologia. Uma das formas de analisar, fazer a escuta particular

    da performance de cada artista e instrumento em questo, vendo como as diferenas

    particulares se harmonizam no conjunto. O indivduo tem liberdade de aprender e expressar

    coisas que fogem avaliao generalizada.

    Identidade de gnero musical

    O gnero est dentro de um contexto histrico estruturado, onde um modelo bem

    sucedido serve de referncia continuao das regras. Novos gneros e subgneros surgem da

    transgresso de tais regras negociadas com pesos diferentes, fazendo com que sua no

    obedincia no signifique necessariamente sua inexistncia. A manuteno dos modelos de

    sucesso aparece como um decreto identitrio que pode ser considerado velho ou arcaico pelas

    geraes seguintes que almejam novos cdigos, numa dinmica tpica da histria.

    Busca-se uma unidade parte da motivao cultural em prol de certas identidades, que

    atuam com carter diferencial a outras. Essas diferenas so cdigos possveis de serem

    analisados, que se articulam de maneira complexa e criativa com os gneros musicais,

  • 38

    interligando performance vocal, instrumental, de comunicao corporal (dana) e outros

    elementos. Elas fazem com que a classificao crie uma srie de expectativas dentro de um

    repertrio cognitivo, que no podem ser facilmente negadas.

    A familiaridade identitria na indstria da msica massiva, tende frequentemente

    simplificao dos cdigos de linguagem scio sonoros a fim de torn-los domveis,

    inteligveis e compartilhados mais amplamente, o que depois de certo tempo tende a

    empobrecer e a diminuir o interesse, justamente pela falta do estmulo natural das adaptaes

    s dificuldades. Outro fator importante, que a contnua previso diante da similaridade tende

    a aumentar o impacto da surpresa diante da mudana. Dessa maneira, aps certo grau de

    maturidade, quanto mais adaptadas diferena e complexidade forem as regras, mais

    criativas sero.

    A competncia varia internamente em relao s composies, performances dos

    msicos, crticas e bandas. Artistas do mesmo gnero se unem na diferena, sendo que os

    cdigos convencionais incorporados ideologicamente, fazem com que tal naturalidade

    dificilmente seja vista com clareza por quem est dentro.

    Um gnero pode ser considerado por uns como a variao de outro ou como uma

    mudana que justifica a criao de um novo gnero, causando no s ambiguidades, como

    uma relao tensa e transgressora com as regras pr-estabelecidas.

    Gneros mais essencialistas, comumente influenciados por polticas identitrias,

    tendem a assumir sonoridades mais exclusivistas. Nessa concepo de pensamento, a msica

    afro-americana naturalmente apreciada e produzida pelos afro-americanos; aspectos

    globalizantes minam a musicalidade local, sendo parte da destruio do patrimnio artstico

    de certos grupos etc. Na mesma levada, se caracterizam composies tipicamente femininas,

    masculinas entre outros aspectos de semelhanas. As diversas defesas se reafirmam como

    formas que se mantm resistentes s variaes no tempo e no espao.

    O preenchimento do prprio espao aparece como marcao de identidade. De um

    territrio. A identidade aparece como um ideal. A resposta para o que gostaramos de ser

    (no o que somos) tambm se apresenta na musicalidade, com carter dinmico e dialgico.

    So fatores variveis no tempo, embutidos na msica num imaginrio e em performances que

    remetem a se reconhecer e ser reconhecido.

  • 39

    Gneros diferentes tm identidades diferentes, e demarcam grupos sociais distintos,

    com maneiras alternativas de interao social. Eles configuram experincias que te localizam

    imaginariamente numa narrativa cultural.

    As particularidades tambm surgem nas singularidades dos principais instrumentos

    que simbolizam tais gneros; na dana; no perfil do pblico; na escolha dos principais

    sentimentos envolvidos; nas crticas internas e externas etc.

    Em carter cultural frequentemente oposto, os instrumentos da msica clssica e

    poltica normalmente levam orquestras de sopro, violino e piano, que os gneros populares

    frequentemente dispensam, ou ao menos no so tipicamente representados por eles. Esses

    por sua vez tm suas exigncias e representaes prprias, como por exemplo, a percusso na

    Ax Music, o violo no bolero e a guitarra no rock.

    O trio bateria, contrabaixo e a guitarra nos lembram o rock and roll. O tantan,

    pandeiro e o cavaquinho, o samba. Violo, zabumba, tringulo e sanfona, o forr p-de-serra.

    Esses exemplos fazem parte de identificaes sociais em torno das exigncias instrumentais

    tpicas, para a constituio dos gneros musicais.

    A sonoridade diz respeito a uma combinao dialgica da performance instrumental e

    vocal (muitas vezes simultnea). A formao e identificao social de esquemas inteligveis e

    regras, constitui uma classificao.

    A associao de dada sonoridade com a classificao do gnero musical, sentimentos,

    experincias, imaginrios e aes, diz respeito identidade e ao que ele, no conjunto dos

    artistas representantes, oferece ao mundo. Diante de inovaes, cabe observar, por exemplo,

    como o repertrio do artista foi recebido pelos seus semelhantes. Se ser includo,

    incorporado, particularizado, se causar desconforto ou ser excludo da classificao.

    As regras de gnero se estruturam quanto funo social, formas internas, diviso de

    classes, grupos, geraes etc. onde a prpria preferncia gera critrios mais importantes que

    outros, inclusive do que bsico e principal e o que coadjuvante ou figurante.

    O dominante varia, podendo ser o foco na dana, em letras intelectuais, emotivo, nos

    ritmos envolvidos etc. e por mais que um gnero se veja como mais original e autntico que

    outros, a histria mostra que quase sempre ocorre uma mistura de influncias. o caso do

    jazz, por exemplo, que como classificao generalizada para uma nova msica danante,

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    influenciou substancialmente certa subdiviso do rock nos anos posteriores5. H uma flexvel

    criatividade dentro de um gnero artstico que o capacita a ter caractersticas internas de

    outros gneros e ritmos.

    Sem certos rituais caractersticos, dadas expresses musicais perdem a autoridade

    social construda, que aponta seu lugar nas relaes entre os grupos. A msica se postula

    como uma excelente forma de entrecruzar culturas, fronteiras regionais, territrios globais,

    sonoridades, classes sociais, etnias etc. em sua dinmica interna.

    A classificao parte importante da mediao. Ela alm de identificar socialmente a

    produo musical e sua criatividade intrnseca, tem um pblico-alvo como destino e permite a

    vivncia do consumidor diante de diversos produtos da cultura relacionados aos gostos,

    estilos de vida, sociabilidades, ideologias, fidelidades s tradies e vi