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1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA NO ESTADO DO PARANÁ TIAGO GAGLIANO PINTO ALBERTO PODER JUDICIÁRIO E ARGUMENTAÇÃO NO ATUAL ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO CURITIBA 2012

 · 2020. 3. 10. · 3 Dados da Catalogação na Publicação Pontifícia Universidade Católica do Paraná Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPR Biblioteca Central Alberto,

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA NO ESTADO DO PARANÁ

TIAGO GAGLIANO PINTO ALBERTO

PODER JUDICIÁRIO E ARGUMENTAÇÃO NO ATUAL ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

CURITIBA 2012

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TIAGO GAGLIANO PINTO ALBERTO

PODER JUDICIÁRIO E ARGUMENTAÇÃO NO ATUAL ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Pontifícia Universidade Católica no Estado do Paraná, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Direito

Orientador: Profª. Dra. Danielle Anne Pamplona

CURITIBA 2012

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Dados da Catalogação na Publicação Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPR Biblioteca Central

Alberto, Tiago Gagliano Pinto

A334p Poder judiciário e argumentação no atual Estado Democrático de Direito / 2012 Tiago Gagliano Pinto Alberto ; orientadora, Danielle Anne Pamplona. – 2012.

180 p. ; 30 cm

Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná,

Curitiba, 2012

Inclui bibliografias

1. Poder judiciário. 2. Estado de direito. 3. Democracia. 4. Discussões e

debates. 5. Direito. I. Pamplona, Danielle Anne. II. Pontifícia Universidade

Católica do Paraná. Programa de Pós- Graduação em Direito. III. Título.

Doris 4. ed. – 341.256

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TIAGO GAGLIANO PINTO ALBERTO

PODER JUDICIÁRIO E ARGUMENTAÇÃO NO ATUAL ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Pontifícia Universidade Católica no Estado do Paraná, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Direito

Aprovado em

BANCA EXAMINADORA

Profª. Dra. Claudia Maria Barbosa Pontifícia Universidade Católica no Estado do Paraná

Profª. Dra. Vera Karam de Chueiri Universidade Federal do Estado do Paraná

Profª. Drª. Danielle Anne Pamplona (Orientadora) Pontifícia Universidade Católica no Estado do Paraná

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Dedico este trabalho

A minha esposa Sabrina e filhas Cecília e Sofia, incentivo de todos os dias ao trabalho e estudo com retidão e amor. Também dedico este trabalho, como homenagem póstuma, a minha avó paterna,

Esmeralda do Nascimento Pinto, a quem, fechando os olhos, ainda consigo ouvir dizendo “Oi filhinho! Tá bonzinho?”

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AGRADECIMENTOS

A minha família, esposa e filhas, porque prejudicadas em convivência com as muitas horas

dedicadas a este projeto. Minha esposa, particularmente, teve de postergar seus próprios projetos em

benefício do trabalho ora concluído. Minhas filhas, Cecília e Sofia, tiveram paciência e, mesmo entrando

no escritório todo momento, compreenderam ao seu modo a importância do trabalho que o papai estava

fazendo e, com isso, fizeram de tudo para ajudar, mesmo que ficando quietinhas desenhando ou apenas

sentadas em meu colo.

Aos meus pais, Reinaldo e Angélica, pela formação e caráter que tenho.

À professora orientadora, Doutora Danielle Anne Pamplona, sempre disponível, solícita e

paciente com seu orientando decerto mais chato.

À professora Doutora Heline Sivini Ferreira, que contribuiu imensamente com a minha evolução

acadêmica durante todo o curso de mestrado e, assim como minha orientadora, defendeu a consistência do

trabalho, quando questionado.

À professora Doutora Cláudia Maria Barbosa, cujos ensinamentos em disciplina específica sobre

o Poder Judiciário levarei para toda a vida acadêmica e judicante.

À professora Doutora Vera Karam de Chueiri, pela paciência com que ouviu a proposta teórica

deste trabalho, apresentando valiosas sugestões à sua adequação e conteúdo.

A todos os professores do Programa de Mestrado da PUCP-PR com quem pude cursar

disciplinas e evoluir academicamente. Se hoje vejo o direito de outra maneira, devo isto a todo o corpo

docente.

À minha assessora Lorena Furquim de Godoy, cujo auxílio na obtenção da bibliografia

necessária a realização do presente foi imprescindível.

A bibliotecária , pela importante colaboração na obtenção da bibliografia, em especial textos

publicados em revistas especializadas.

À Secretaria do Programa de Pós-Graduação da PUC-PR, pela ajuda durante todo o curso.

A todos os que, direta ou indiretamente, auxiliaram na realização deste trabalho.

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O poder que se manipula, os favores que se mendigam, o dinheiro que se acumula, as honrarias que se conseguem, têm certo valor efêmero que pode satisfazer os apetites daquele que não leva dentro de si, em suas virtudes intrínsecas, as forças morais que embelezam e qualificam a vida; a afirmação da própria personalidade e a quantidade de humanismo posto na dignificação do nosso “eu”. Viver é aprender, para ignorar menos; é amar, para se vincular à parte maior da humanidade; é admirar, para compartilhar as excelências da natureza e dos homens; é um esforço para se melhorar, um incessante afã de elevação em direção aos ideais definidos. Muitos nascem; poucos vivem. (José Ingenieros)

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RESUMO

O presente trabalho aborda a função desempenhada pelo Poder Judiciário no contexto do atual Estado

Democrático de Direito, em que princípios como a soberania e a divisão de poderes vêm sendo

relativizados à conta do sistema econômico vigente, o capitalismo. Destaca-se que a argumentação por

dedução que respalda o mecanismo de subsunção individual do fato à norma não parece satisfazer à

plêiade de conflitos postos à cura do julgador, em que o político e o jurídico se imbricam, interpenetram e

disputam espaço na agenda social. Observa-se que a maneira de o Poder Judiciário se adequar às novas

funções que lhe são exigidas perpassa pela argumentação, desde que apresentada livre de tendências

individuais autoritárias ou fundamentadas exclusivamente na lógica sistêmica (no sentido habermasiano).

Para respaldar a argumentação, poderá se utilizar o magistrado de encadeamentos teóricos que,

preferencialmente, dialoguem entre si, de maneira a que possam apresentar relação de

complementariedade e não antagonismo, visando ao desenvolvimento do Estado. No presente trabalho,

utilizam-se as teorias preconizadas por Ronald Dworkin, Jürgen Habermas, Robert Alexy, Klaus Günther,

Alexander Bickel e Herbert Wechsler, ademais da escola econômica do direito para demonstrar que a

análise dos apanágios teóricos pode contribuir para o estabelecimento de critérios argumentativos que

venham a auxiliar o juiz a construir a solução jurídica que se coadune com o ordenamento, sem descurar

de critérios valorativos, da sociedade e do caso concreto. Empreende-se, ao final, análise de votos

oriundos do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, verificando sua eventual

compatibilidade com as teorias expostas.

Palavras-chave: Poder Judiciário. Democracia. Argumentação. Estado Democrático de Direito.

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ABSTRACT

This paper discusses the role played by the Judiciary in the current Democratic State context, where

principles such as sovereignty and separation of powers are being considered relatively on account of the

current economic system, i.e. capitalism. It is noteworthy that the deduction argumentation, which

supports the individual subsumption mechanism from fact to rule, does not seem to satisfy the multitude

of conflicts placed before the judge’s consideration, where political and legal considerations overlap,

interpenetrate and fight for space on the social agenda. According to observations, the way the Judiciary

adapts to the new required functions embraces argumentation, provided the latter is presented free of

individual authoritarian trends or is based solely on systemic logic (in the Habermasian sense). To support

his or her arguments, the magistrate may use theoretical linkages that dialogue preferably with each other,

so as to provide a complementary relationship rather than antagonism, aiming at the development of the

State. In this paper, the theories advocated by Ronald Dworkin, Jürgen Habermas, Robert Alexy, Klaus

Günther, Alexander Bickel and Herbert Wechsler are used in addition to the economic school of law, to

demonstrate that the analysis of the theoretical features may contribute to the establishment of

argumentative criteria that may help the judge to build a legal solution consistent with the legal order,

without neglecting the criteria of value, society and the individual case. At the end of the paper, an

analysis was made of some votes of the Superior Court of Justice and of the Supreme Court, verifying

their compatibility with the expounded theories.

Key words: Judiciary. Democracy. Arguments. Democratic State.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................. 12

CAPÍTULO PRIMEIRO.................................................................................. 17

Estado constitucional: compreendendo o percurso histórico que exige a clareza

argumentativa estatal

1 Releitura da Soberania..................................................................................... 17

1.1 Soberania e divisão de poderes........................................................................... 28

2 Estado e Sociedade: breve

escorço................................................................................................................ 33

2.1 Estado liberal....................................................................................................... 34

2.2 Estado Social....................................................................................................... 40

2.3 Estado neoliberal................................................................................................. 47

3 Poder Judiciário, democracia e políticas

públicas............................................................................................................... 53

CAPÍTULO SEGUNDO...................................................................................

ENTRE JUSTIFICAÇÃO E APLICAÇÃO – PARTE

I........................................................................................................................... 64

1 Propostas teóricas ............................................................................................ 64

1.1 Substancialismo e procedimentalismo................................................................ 64

2 Teoria da argumentação jurídica.................................................................... 81

2.1 Teoria da argumentação jurídica para Robert Alexy

............................................................................................................................ 84

2.2 Teoria da argumentação no direito e na

moral.................................................................................................................... 96

CAPÍTULO TERCEIRO................................................................................

ENTRE JUSTIFICAÇÃO E APLICAÇÃO – PARTE II

1 Breve escorço...................................................................................................... 112

2 Propostas teóricas -

continuação....................................................................................................... 113

2.1 Teoria dos princípios constitucionais

neutros................................................................................................................ 113

2.2 Escola econômica do

direito.................................................................................................................. 120

CAPÍTULO QUARTO

APLICAÇÃO

1 Justificação e aplicação .................................................................................. 150

2 Argumentação aplicada................................................................................... 151

2.1 Substancialismo e procedimentalismo

............................................................................................................................ 151

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2.2 Teoria da argumentação jurídica – enfoque dado por Robert Alexy

............................................................................................................................. 159

2.3 Teoria da argumentação jurídica – enfoque dado por Klaus

Günther................................................................................................................ 170

2.4 Teoria dos princípios constitucionais neutros

............................................................................................................................. 180

CONCLUSÕES................................................................................................. 187

REFERÊNCIAS................................................................................................ 192

ANEXOS.............................................................................................................. 202

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1. Introdução

O trabalho que segue resulta de inquietação teórica consistente em perquirir

acerca da existência de parâmetros jurídicos a serem expostos nas decisões judiciais de

modo que mesmo em situações em que aparentemente a análise de determinada testilha

pareça denotar ponto de intercessão entre a atuação judicante e a atribuição de outros

Poderes constituídos, a força do direito deva prevalecer1, formatada pelo ordenamento e

limitando as condutas proscritas diante do quadro normativo e axiológico existente2.

Em feição mais ampla, trata-se de investigar se – e de que maneira – poderia

o Poder Judiciário atuar hodiernamente, no contexto de sociedade globalizada em que a

soberania, divisão de poderes e princípios conexos, bases do sistema democrático

atualmente vigente, mostram-se abalados, malferidos, diminuídos e aplainados pela

ingerência do sistema econômico dominante, o capitalismo.

A concepção tradicional de soberania, entendida outrora como os limites

territoriais de cada ente federativo, não mais se aplica no contexto da sociedade atual.

Fatores como ingerência externa do capital, globalização da economia, diminuição da

importância política das necessidades reais do cidadão frente à obsolescência artificial

criada pelo consumismo sem barreiras ou fronteiras, amesquinhamento da cultura local,

tradicional e histórica e recrudescimento da moldura jurídica internacional com

1 Rodolf Von Ihering já mencionava quanto ao ponto: “A paz é o fim que o direito tem em vista, a luta é o meio de que se serve para conseguir. Por muito tempo, pois que o direito ainda esteja ameaçado pelos ataques da injustiça – e assim acontecerá enquanto o mundo for mundo – nunca ele poderá subtrair-se à violência da luta. A vida do direito é uma luta: luta dos povos, do Estado, das classes, dos indivíduos. Todos os direitos da humanidade foram conquistados na luta; todas as regras importantes do direito devem ter sido, na origem, arrancadas àquelas que a elas se opunham, e todo o direito, direito de um povo ou direito de um particular, faz presumir que se esteja decidido a mantê-lo com firmeza. O direito não é uma pura teoria, mas uma força viva. Por isso a justiça sustenta numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força bruta; a balança sem a espada é a impotência do direito. Uma não pode avançar sem a outra, nem haverá ordem jurídica perfeita sem que a energia com que a justiça aplica a espada seja igual à habilidade com que maneja a balança. O direito é um trabalho incessante, não somente dos poderes públicos, mas ainda de uma nação inteira.” IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. Tradução de João Vasconcelos. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 01. 2 Robert Alexy, no prefácio de sua obra “Teoria da Argumentação jurídica”, faz menção à exigência, pelo Tribunal Constitucional Alemão, da exposição racional da argumentação no seio de decisões judiciais. Observe-se o que menciona: “A Primeira Turma do Tribunal Constitucional Federal exigiu, na sua resolução de 14 de fevereiro de 1973 (resolução sobre o desenvolvimento do Direito), que as decisões dos juízes devem basear-se em argumentações racionais. Essa exigência de racionalidade da argumentação deve ser estendida a todos os casos em que os juristas argumentam. A questão sobre o que é a argumentação racional ou argumentação jurídica racional não é um problema que interessa apenas aos teóricos ou filósofos do Direito. Ela se apresenta com a mesma urgência ao jurista prático e interessa a todo cidadão que seja ativo na arena pública. Da possibilidade de uma argumentação jurídica racional dependem não só o caráter científico da Ciência do Direito, mas também a legitimidade das decisões judiciais.” ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação jurídica – A teoria do Discurso Racional como teoria da fundamentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. Rio de Janeiro: editora Gen/Forense, 2011, p. XI.

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fundamento econômico em face dos valores jurídicos nacionais parecem ter afetado

diretamente a ideia de soberania e a divisão de poderes dela necessariamente decorrente,

de tal sorte a limitá-la e aplainá-la desmesuradamente.

Tal situação produz efeitos econômicos, políticos, ambientais e sociológicos

importantes a traduzir verdadeiro embate entre o capital, seus limites, e o

desenvolvimento interno de cada ente federativo.

Diante de tal cenário, os Poderes constituídos revelam-se perplexos com a

dinâmica global da movimentação do capital e, bem por isso, não se desincumbem a

contento de atuação que revele a aplicação da moldura constitucional para a qual foram

concebidos. A divisão de poderes constitucionalmente definida não parece se adequar à

realidade social extremamente complexa que se verifica nos dias atuais, na qual pulula

um sem número de novos conflitos cuja origem, direta ou indireta, remonta aos novos

influxos e paradigmas da própria globalização.

Ao Poder Judiciário, hodiernamente, não cabe apenas o papel de adjudicar

ao cidadão o direito que lhe outorga o ordenamento jurídico-positivo. A divisão de

poderes não apresenta mais apenas função refreadora, de modo que a atuação positiva,

proativa e com intuito colaborador entre os Poderes constituídos faz-se imperiosa para

salvaguardar a democracia e viabilizar o desenvolvimento calcado na liberdade e bem-

estar.

Especificamente quanto ao Poder Judiciário, a transformação pela qual

passou o Estado Democrático de Direito se traduz na dificuldade de fundamentação de

decisões em conflitos que não se limitem a aplicação do mecanismo de subsunção do

fato à norma previamente já existente e exposta no ordenamento jurídico. Há casos,

notadamente envolvendo políticas públicas e direitos fundamentais, em que o Poder

Judiciário ultima por adotar postura quase-política na fundamentação de seus Julgados,

olvidando-se, por vezes, que sua função é a de resguardar o ordenamento e os valores

correspondentes e não estabelecer diretrizes políticas a serem seguidas.

O quadro atual da evolução social parece demandar cada vez mais do Poder

Judiciário, notadamente quanto a consecução de funções que não mais se restringem à

adjudicação do direito consagrado no ordenamento jurídico. Esta fase fora ultrapassada

e não cabe mais como elemento de definição da função judicial. Impõe-se, portanto,

ajustá-la, definindo-se critérios jurídicos para a resolução de conflitos, a fim de que sob

o pretexto de se adequar à nova formatação do Estado Democrático de Direito, o Poder

Judiciário não ultime por diminuir desarrazoadamente as atribuições dos demais

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Poderes constituídos e, com isso, a própria diretriz de distribuição de poderes emanada

da Carta Magna.

Algumas propostas teóricas foram, para tanto, apresentadas no presente

trabalho, sendo expostas em caráter sequencial conforme dialogam entre si.

Em primeiro momento, apresentou-se o pensamento de autores que

preconizam visão tida como substancialista e procedimentalista do direito frente aos

conflitos analisados. Como expoente da primeira corrente fora mencionado Ronald

Dworkin, cujas ideias voltadas a existência de uma comunidade de princípios, ideal de

integrity e a possibilidade de o juiz resolver hard cases baseado em argumentos de

princípios trazem muitas luzes ao pouco iluminado caminho do esclarecimento da

função jurisdicional neste Estado Democrático de Direito de peculiar formatação.

Conquanto Dworkin tenha o juiz como agente necessário à criação do

melhor direito a ser aplicado ao caso, não o situa propriamente no interior do processo

de elaboração da norma; isto é, parte da existência de uma pauta valorativa já

preexistente, a partir da qual o juiz trabalhará a solução do caso posto à sua apreciação,

revelando, com fundamento principiológico, o melhor direito aplicável à espécie, sendo

esta a recomendação de todo o ordenamento, em conjunto considerado.

Jürgen Habermas, já em outro flanco, parte de pressuposto diverso.

Concebendo o direito como medium a viabilizar o diálogo entre o mundo da vida e o

sistema, compreende que o juiz deve ser um coparticipante do processo de criação das

normas que ele próprio aplicará na sequência.

A linha argumentativa exposta pelo autor será melhor explicitada alhures

neste estudo, mas por ora, em sede introdutória, forçoso mencionar que de acordo com

Habermas, a legitimação da política e do poder dependem da teoria do direito

fundamentada na linguagem e discurso, funcionando, ambos, como institucionalização

de processos e pressupostos comunicacionais necessários para uma formação discursiva

da opinião e da vontade, possibilitando o exercício da autonomia política e a criação

legitima do direito. Por outro lado, o Estado Democrático de Direito, para ele, tem sua

constituição, compreensão e operacionalização intrinsecamente ligadas a estrutura co-

original de produção de normas.

O juiz, neste contexto, situa-se como um copartícipe do mundo da vida que

sustenta as pretensões de justiça cotidianamente vivenciadas pela comunidade e que

aplica as leis aprovadas para reger a sua vida em comum, colocando-se no lugar de cada

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um dos afetados pelo seu provimento, com a certeza de que as normas gerais e abstratas

não foram feitas para gerar resíduos de injustiça para ninguém.

Assentadas as premissas expostas por Dworkin e Habermas, analisam-se, na

sequência, as teorias sustentadas por Robert Alexy e Klaus Günther. Com precisão

quase matemática e tendo em linha de conta a necessidade de exposição racional de

argumentos, Alexy traça um caminho a ser percorrido pelo magistrado por ocasião do

exame de casos controvertidos, de maneira a que as respostas, traçadas pelo

ordenamento, exsurjam inequivocamente, quase como decorrentes do resultado de uma

equação.

Elabora o Autor um sofisticado método de justificação, interna e externa,

por meio da qual uma fundamentação seja a base da outra, tornando o comportamento

decisório judicial o mais previsível possível, ainda que ponderações axiológicas devam

ser levadas a cabo.

Ainda nessa linha, Klaus Günther, com sua teoria da argumentação no

direito e na moral, estabelece interessante distinção entre a justificação e a aplicação de

normas, destacando que o caso concreto deverá ser o elemento vital para a decisão

acerca da norma aplicável.

Se, em um primeiro momento, fora a Constituição trazida à tona por meio

dos argumentos de princípios (Dworkin), o juiz introduzido no processo dialógico da

produção de normas (Habermas) e definidos critérios científicos para elaboração da

decisão judicial (Alexy), Günther relembra a importância de não se olvidar da realidade

traduzida pelos casos, considerando-a em todos os seus aspectos, de maneira a esgotar

as possibilidades de aplicação de normas definidas pelo ordenamento jurídico.

Não se trata de tópica jurídica3, mas sim do esgotamento da real importância

do caso concreto e de todas as suas características consideradas por oportunidade da

definição da melhor – e única – regra aplicável ao desate da controvérsia.

Retomando o raciocínio constitucional – já, agora, munido e incrementado

por critérios científico-racionais –, expõe-se a teoria dos princípios constitucionais

neutros, sustentada por Herbert Wechsler e Alexander Bickel, segundo a qual se pode

obter do exame da Carta Magna um marco jurídico que transpassa e se sobrepõe a

qualquer interesse de classe, econômico, político ou, mesmo colorido partidário. Com

base nestes vetores, poderia o Magistrado seguramente decidir, aliviado de argumentos

direcionados ao eventual malogro às atribuições de outros Poderes Constituídos. 3 Como mencionado pelo próprio Klaus Günther, como adiante se terá a ocasião de expor.

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Os princípios constitucionais neutros funcionariam como uma espécie de

zona neutra e, com base neles, poderiam ser emitidas decisões que desautorizassem

comportamentos ou omissões hauridas dos demais Poderes sem a consequência do

afastamento das determinações inerentes à distribuição dos Poderes emanada da própria

Carta da República.

Embora, contudo, se esteja investigando a possível existência de critérios

jurídicos aptos a fundamentar a decisão jurisdicional haurida no contexto do atual

Estado Democrático de Direito, contribuições oriundas de outras ciências não podem ser

desconsideradas, notadamente quando a interface com o Direito é evidente e apresenta

resultados de acentuada importância para a solução de refregas.

Nesse particular, analisam-se as contribuições que a escola econômica do

direito pode oferecer ao estudo em voga. Examinam-se, especificamente, os critérios de

eficiência, escolha racional (diversa da argumentação racional, como adiante se exporá),

teoria dos custos da transação, teoria dos jogos e maximização de utilidades, verificando

se e em que medida podem oferecer auxílio à temática exposta.

Estas são, em breve resumo, as ideias desenvolvidas no estudo que ora se

apresenta.

O trabalho se divide em introdução, quatro capítulos e conclusão. No

primeiro capítulo serão abordadas as questões atinentes à crise da soberania, divisão de

poderes, ademais da evolução do Estado desde o liberalismo até o neoliberalismo; e,

finalmente, o papel do Judiciário no contexto atual. Ainda neste capítulo é estudada a

transformação pela qual passou o Estado Democrático de Direito e, como consequência,

os Poderes constituídos, notadamente o Poder Judiciário.

Nos capítulos segundo e terceiro são abordadas as teorias

supramencionadas, testadas no âmbito jurisprudencial no quarto capítulo.

Sob o aspecto metodológico, o trabalho utiliza o método dedutivo como

forma de abordagem, com enfoque procedimental monográfico. A título de técnica de

pesquisa, utilizou-se da bibliografia já existente, ademais de textos inseridos em revistas

jurídicas especializadas e dados obtidos na rede mundial ‘internet’.

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ESTADO CONSTITUCIONAL: COMPREENDENDO O PERCURSO

HISTÓRICO QUE EXIGE A CLAREZA ARGUMENTATIVA ESTATAL

1. Releitura da soberania

De acordo com a concepção tradicional ditada pelas normas jurídicas

internas e externas, a soberania se encerra nos limites territoriais de cada ente

federativo. De tal sorte, direitos, liberdades e atuações de cada ente denotam limites

rígidos e inequívocos no ponto em que se inicia a esfera de ingerência de outro país4.

Afora parte a regulamentação decorrente do direito internacional – muitas

vezes com objetivo explícito da paz mundial e implícito da prevalência econômica de

algum país em detrimento de outro5 –, não se conhece ainda no panorama mundial outra

moldura que possa servir de embasamento à organização social, política e jurídica de

um povo em relação a outro sem que se recorra ao uso da força e/ou dominação militar.

Conquanto existam situações pontuais que coloquem sob exame mais

acurado a delimitação exposta – tal como a ainda hoje não resolvida questão da

aplicação de direitos indígenas originários ou sua acolhida (imposta, observe-se) pelo

ordenamento nacional referente ao país ao qual se encontram fixados6, exemplo

4 “O Estado, como grupo social máximo e total, tem também o seu poder, que é o poder político ou poder estatal. A sociedade estatal, chamada também de sociedade civil, compreende uma multiplicidade de grupos sociais diferenciados e indivíduos, aos quais o poder político tem que coordenar e impor regras e limites em função dos fins globais que ao Estado cumpre realizar. Daí se vê que o poder político é superior a todos os outros poderes sociais, os quais reconhece, rege e domina, visando a ordenar as relações entre esses grupos e os indivíduos entre si e reciprocamente, de maneira a manter um mínimo de ordem e estimular um máximo de progresso à vista do bem comum. Essa superioridade do poder político caracteriza a soberania do Estado (conceituada antes), que implica, a um tempo, independência em confronto com todos os poderes exteriores à sociedade estatal (soberania externa) e supremacia sobre todos os poderes sociais interiores à mesma sociedade estatal”. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 111. 5 O documento n.° 319 elaborado pelo Banco Mundial, ao empreender diagnóstico do Poder Judiciário em países diversos em cultura, tradição e desenvolvimento (como verbi gratia, Venezuela, Peru, Equador, Honduras, Guatemala, Alemanha, Japão etc), entender o próprio Banco como “novo participante na reforma do Judiciário” e apontar sugestões e recomendações genéricas, não parecer adotar outra postura senão a que prima pela ingerência do capital mesmo no âmbito interno da própria organização institucional de cada país. O documento n.° 319 do Banco Mundial encontra-se disponível em <http://www.sitraemg.org.br/conheca-o-documento-319-do-banco-mundial/>. Acesso em 09 janeiro 2012. 6 De acordo com arguta observação de Carlos Frederico Marés: “A cultura de Estado, e o Direito que com ela foi gerado, encarnava a concepção burguesa clássica de que não há estamentos intermediários entre o cidadão e o Estado, acabando com as corporações, coletivos, grupos homogêneos, etc. É a cultura do individualismo e do império da vontade individual. O Estado, ele mesmo passou a ser concebido como um indivíduo, uma pessoa de natureza especial, mas singular, mesmo que encarnasse ou tentasse encarnar a vontade de todos. Nesta concepção não se podia conceber enclaves de grupos humanos com direitos próprios de coletividade, não reconhecidos nem integrados no sistema da Direito estatal. Os povos indígenas deveriam ser esquecidos, para dar lugar a cidadãos livres, sempre individuais, sempre com vontade individual, pessoa. Sendo pessoa, o Estado ou o individuo indígena, seria titular de direitos e os

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candente da prevalência do universalismo radical em detrimento do relativismo7 –, fato

é que significativa parcela da comunidade internacional não parece ter se dado conta à

suficiência que o sistema econômico hodiernamente vigente em quase todos os países

do globo aplainou de forma tal a soberania que parece faltar apenas algum ato formal

que reconheça seu completo defenestramento8.

Se em primeiro momento o advento do mercantilismo e incipiente

capitalismo que se seguiu colaboraram para a delimitação de fronteiras – o que

facilmente se explica pela necessidade econômica, visto que a comercialização de

produtos impunha observância de regras e o advento de regulamentação interna e

externa9 –, a fase mais atual e agressiva do capitalismo demanda, ao revés,

abrandamento de fronteiras jurídicas, abertura econômica irrestrita e subserviência dos

poderes da República, ainda que de forma implícita, às exigências levadas a cabo pelo

sistema econômico10.

Atualmente, de tal sorte se revelam entrelaçados os sistemas econômicos

adotados pelos entes federativos que não se pode cogitar da atuação independente de

teria garantidos. O índio, não o seu grupo, sua comunidade, sua tribo ou seu povo”. MARÉS, Carlos Frederico. O renascer dos povos indígenas para o direito. Curitiba: Juruá, 1998, p. 62. 7 A escala de gradações entre universalismo e relativismo radical, permeado pelo universalismo fraco ou relativismo forte foi cunhada por Jack Donelly. DONNELLY, J. Universal Human Rights in Theory and in Practice. Ithaca: Cornell University Press, 2003, p. 15. 8 Karl Polanyi observa, a propósito, que “Nenhuma sociedade poderia sobreviver durante qualquer período de tempo, naturalmente, a menos que possuísse uma economia de alguma espécie. Acontece, porém, que, anteriormente à nossa época, nenhuma economia existiu, mesmo em princípio, que fosse controlada por mercados. Apesar da quantidade de fórmulas cabalísticas acadêmicas, tão persistentes no século dezenove, o ganho e o lucro feitos nas trocas jamais desempenharam um papel importante na economia humana. Embora a instituição do mercado fosse bastante comum desde a Idade da Pedra, seu papel era apenas incidental na vida econômica.”. POLANYI, Karl. A grande transformação. Rio de Janeiro: Campus-Elsevier, 2000, p. 59. 9 “A partir do século dezesseis, os mercados passaram a ser mais numerosos e importantes. Na verdade, sob o sistema mercantil, eles se tornaram a preocupação principal dos governos. Entretanto, não havia ainda sinal de que os mercados passariam a controlar a sociedade humana. Pelo contrário. Os regulamentos e regimentos eram mais severos do que nunca.” POLANYI, Karl, op. cit., p. 69. 10 Ellen Meiksins Wood pontua, nessa toada, que “o capitalismo não apenas gerou novas e crescentes necessidades de expansão constante, mas também produziu outra forma de dominação, diferente de qualquer uma que tenha existido no passado: dominação não através do controle político e militar direto, mas através de imperativos econômicos e da subordinação ao mercado manipulado em benefício do capital imperial. Testemunha a existência dessa nova ordem mundial o fato de que as principais potências capitalistas não se engajam mais em conflitos geopolíticos e militares diretos visando a divisão do mundo colonial. Em vez disso, elas se engajam na competição econômica. Não existe ilustração mais dramática dessa mudança que a emergência da Alemanha e do Japão, com a ajuda dos seus antigos adversários, como os maiores competidores econômicos dos Estados Unidos – numa relação tipicamente contraditória de competição e incômoda cooperação. O FMI, o Banco Mundial e o GATT (General Agreement on Tariffs and Trade, o precursor da OMC) foram desenhados para administrar um sistema no qual o desenvolvimento econômico mundial depende em larga medida da aceitação das condições impostas pelos Estados Unidos. Este regime é o que conhecemos por ‘globalização.” WOOD, Ellen Meiksins. O que é o (anti)capitalismo. REVISTA CRÍTICA MARXISTA. São Paulo: Revan, n. 17, p. 37-50, ano 2003, p. 42-43.

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algum Poder, exercendo parcela da soberania, desconsiderando os efeitos que eventual

decisão terá no panorama jurídico-econômico11. Mesmo os conflitos individuais levados

à apreciação das Cortes de Justiça, independentes na forma e espírito, podem alcançar

resultado que sacrifique o individual em prol do coletivo se entrevisto sob a feição

econômica12.

O fenômeno é inequívoco e não parece apresentar opção de caminho

diverso. A soberania parece profundamente abalada, para citar o mínimo, pela

ingerência externa do capital corroborada pela atuação política de segmentos

econômicos diversos e por vezes discrepantes entre si, exigências de grupos

internacionais, globalização da economia, diminuição da importância política das

necessidades reais do cidadão frente à obsolescência artificial criada pelo consumismo

sem barreiras ou fronteiras, amesquinhamento da cultura local, tradicional e histórica13 e

recrudescimento da moldura jurídica internacional com fundamento econômico em face

dos valores jurídicos nacionais14.

O fenômeno da desmistificação da soberania é silencioso e não revela sinais

estatais evidentes, conquanto exerça cotidianamente influência na vida do indivíduo,

11 “Todos os aspectos da vida que se tornam mercadorias são retirados da esfera de responsabilidade democrática e passam a atender não à vontade do povo, mas às exigências do mercado e do lucro.” WOOD, Ellen Meiksins, op. cit., p. 41. 12 BRASIL. Lei n.° 12.016 de 07 de agosto de 2009 – DOU 10.08.2009. Disciplina o mandado de segurança individual e coletivo e dá outras providências. Art. 15. Quando, a requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada ou do Ministério Público e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, o presidente do tribunal ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso suspender, em decisão fundamentada, a execução da liminar e da sentença, dessa decisão caberá agravo, sem efeito suspensivo, no prazo de 5 (cinco) dias, que será levado a julgamento na sessão seguinte à sua interposição. Texto na íntegra disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12016.htm. Acesso em 09 janeiro de 2012. 13 Observa o Professor Carlos Frederico Marés acerca do ponto que: “Contradições muito mais complexas, porque não comportam definição jurídica prévia, são aquelas existentes no próprio seio de uma comunidade, como, por exemplo, a preservação cultural ou natural, e o chamado desenvolvimento econômico. (...)Essas contradições serão crescentes e o Direito pode resolvê-las impondo a prevalência dos direitos coletivos sobre os individuais, mas não poderá fazê-lo com a estrutura que tem hoje, em relação aos conflitos e se dois interesses coletivos venham a se apresentar de forma legítima.” MARÉS, Carlos Frederico. Bens culturais e sua proteção jurídica. Curitiba: Juruá, 2006, p. 33-34. 14 “Com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em meados da década de 1990, a globalização econômica, caracterizada pelo "livre comércio", foi exaltada pelos grandes empresários e políticos como uma nova ordem que viria beneficiar todas as nações, gerando uma expansão econômica mundial cujos frutos acabariam chegando a todas as pessoas, até às mais pobres. Entretanto, um número cada vez maior de ambientalistas e ativistas de movimentos sociais logo percebeu que as novas regras econômicas estabelecidas pela OMC eram manifestamente insustentáveis e estavam gerando um sem-número de conseqüências tétricas, todas elas ligadas entre si — desintegração social, o fim da democracia, uma deterioração mais rápida e extensa do meio ambiente, o surgimento e a disseminação de novas doenças e uma pobreza e alienação cada vez maiores.” CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 141.

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não se podendo, contudo, permitir seja obnubilada a ideia de que o ser humano é o fim e

não o meio para o Estado.

Com a movimentação incessante do capital principalmente por meio da

atuação empresarial de grandes corporações, embates econômicos e políticos entre

países e governos que, com o onírico objetivo da consecução satisfatória de políticas

públicas voltadas aos cidadãos em realidade trazem à baila com as suas ações, condutas

e posicionamentos os exclusivos interesses do capital; e, finalmente, incremento do

paradigma de consumo na sociedade em geral, não há mais como entender razoável,

existente e efetivo o exercício da soberania na sua feição clássica, tida como o poder

interno de cada país de ditar em seu território as normas, políticas e diretrizes aptas a

embasar o desenvolvimento.

Aplainou-se, diminui-se e minguou-se de tal sorte a soberania que afora o

seu aspecto formatado para caber nas voláteis, fluidas e aparentemente esclarecedoras

palavras contidas nos discursos dos governantes, sequer se cogita da esquematização

política e econômica desconsiderando os interesses velados – porém candentes – das

grandes corporações, detentoras do capital apto a garantir o fluxo de investimentos

mesmo nos países de menor envergadura no cenário mundial15.

De tal gravidade se tornou a situação que o soçobro da autonomia plena dos

governos parece inafastável. Já se pode, atualmente, cogitar como tendência os

oligopólios mundiais ou galáxias oligopólicas, concentrando-se o mercado mundial em

grupo de poucas empresas multinacionais, em grande parte oriundas de países

desenvolvidos.

Trata-se do denominado “capitalismo de aliança”, forma predatória do

capitalismo apta a refletir uma expansão dos fluxos de investimento externo direto

concentrado nos Estados Unidos, União Europeia e Japão16.

Apenas para exemplificar, já no remoto ano de 1993, entre os 100 (cem)

maiores entes econômicos 51 (cinquenta e um) eram empresas e 49 (quarenta e nove)

Estados soberanos. Ainda à mesma época no Canadá, França, Bélgica, Brasil, México e 15 Dados divulgados em janeiro de 2011 pela Conferência da ONU para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad) confirmam que pela primeira vez na história os países emergentes receberam mais investimentos que os ricos, que ainda vivem as incertezas da recuperação econômica, alta taxa de desemprego e turbulências no mercado financeiro. A Europa apresentou queda de 22% (vinte e dois por cento) nos investimentos recebidos no ano passado, o Japão de 83%. (oitenta e três por cento) e os Estados Unidos de 43% (quarenta e três por cento). Juntas, as economias dos emergentes receberam em 2010 mais de 53% (cinquenta e três por cento) de tudo que foi investido no mundo e cresceram 10% (dez por cento). Disponível em <http://www.unctad.org.br.> Acesso em 09 fevereiro 2011. 16 Dunning e Narula, 1996, in Observatório Social – os investimentos das multinacionais no Brasil. Disponível em <http://www.os.org.br.> Acesso em 06 janeiro 2011.

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Grã-Bretanha as empresas multinacionais empregavam em média 20% (vinte por cento)

da mão-de-obra industrial e forneciam 20% (vinte por cento) da produção industrial17.

José Carlos de Magalhães, outrora, afirmou com acerto que “Se o Estado

exerce soberania política, a empresa multinacional exerce soberania econômica.”18.

Assim é que na seara política, a democracia vem sofrendo desmesurado abalo como

decorrência do sistema econômico vigente19. O panorama atual revela que com o

movimento dinâmico do capital entre fronteiras a gerar, como consequência, a

diminuição da soberania, as grandes corporações detentoras dos recursos influenciam

politicamente o atuar dos países em que se instalam ou, mesmo, em cujas pretensões

porventura esbarrem. O contrário, todavia, ainda não se verificou, o que denota

subserviência político-econômica dos países frente ao poderio do capital.

Neste contexto, resta à sociedade civil e às entidades que a representam o

vislumbre de alguma mudança, necessária a respeitar os direitos humanos e as

liberdades fundamentais.

Isso porque, consoante lembra Ricardo Lobo Torres a propósito da

fenomenologia internacional dos direitos humanos, a nova concepção do conceito de

cidadania não mais pode estar estreitamente atrelada a cada Estado, devendo ser

considerada em contexto internacional, de maneira a que ao homem deva ser assegurado

amplo quadro de direitos e deveres no panorama internacional, estes tendo como

alicerce os direitos humanos e a justiça em sentido ontológico20.

17 MELLO, Celso de Albuquerque. Direito Internacional Econômico. Rio de Janeiro. Renovar: 1993, p. 106. 18 MAGALHÃES, José Carlos de. Direito Econômico Internacional. Curitiba. Juruá: 2010, p. 212. 19 Robert A. Dahl, analisando a democracia sob o aspecto da atuação do capital por intermédio das empresas transnacionais, destacou que a única forma geral de uma ordem econômica compatível com a democracia e eficiência seria um sistema de socialismo de mercado, com a adoção do processo democrático também às empresas. DAHL, Robert A. Democracy and its critics. Sketches for an advanced democratic country. Michigan: Yale University, 1989, p. 09. 20 “De feito, urge construir a concepção de cidadania jurídica ou legal. Definindo-se a cidadania, a nosso ver, como o pertencer à comunidade, que assegura ao homem e a sua constelação de direitos e o seu quadro de deveres, só a análise ética e jurídica abre a possibilidade de compreensão desse complexo status. A cidadania já não está ligada à cidade nem ao estado nacional, pois se afirma também no espaço internacional. Apenas as idéias de direitos humanos e de justiça podem construí-la no sentido ontológico. Embora a cidadania seja situacional, expressando a relação com o Estado, dela se extraem as conseqüências no plano da normatividade dos direitos fundamentais e da justiça material. É interessante observar que essa reaproximação entre cidadania e direito vem sendo reclamada tanto por juristas como por intelectuais de outras áreas do pensamento. A reorientação da filosofia política e da filosofia do direito no sentido da ética, com o abandono dos pressupostos históricos que as informavam, fez com que as ciências sociais stricto sensu passassem do paradigma positivista e empirista para o ambiente da normatividade, que liga o direito à ética. A caminhada de Habermas, no seu livro Faktizität und Geltung, no campo da sociologia empírica para o da filosofia do direito e da ética do discurso sintetiza esse novo momento em que o vértice da reflexão sobre o Estado e a Sociedade Civil se apoia na temática dos direitos e da justiça. A ‘virada kantiana’, ou seja, o retorno do pensamento ocidental nas últimas décadas

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Nesta direção, a Organização Internacional do Trabalho, em Conferência

que se realizou em 1998, deliberou acerca da existência e configuração de alguns

direitos sociais e trabalhistas como direitos humanos fundamentais21. Na mesma

vertente, a OCDE, no ano de 2000, atualizou as chamadas Diretrizes Gerais da OCDE

para as Multinacionais22, sendo que no mesmo ano a OIT constituiu um documento

específico sobre as multinacionais, intitulado Declaração Tripartite de Princípios sobre

as Empresas Multinacionais e a Política Social23.

A Organização das Nações Unidas, na década de 90, criou o Global

Compact, programa de adesão voluntária por parte das empresas, as quais devem se

orientar por um conjunto de princípios e compromissos sociais, trabalhistas, ambientais

e éticos, assim delimitados: apoiar e respeitar a proteção aos direitos humanos dentro de

sua esfera de influência; assegurar que suas próprias corporações não sejam cúmplices

de abusos contra os direitos humanos; garantir a liberdade de associação e

reconhecimento do direito de negociação coletiva; eliminar todas as formas de trabalho

forçado e compulsório; eliminar efetivamente o trabalho infantil; eliminar a

discriminação em relação ao emprego e ocupação; apoiar uma abordagem preventiva

aos desafios ambientais; adotar iniciativas promotoras de maior responsabilidade

ambiental; encorajar o desenvolvimento e difusão de tecnologias ambientais limpas. Os

compromissos definidos foram: a) Os membros devem expressar um compromisso

público e promover os princípios e objetivos do Global Compact; b) Os membros

devem publicar ao menos um exemplo concreto de suas "melhores práticas" na página

web da ONU ao menos uma vez por ano; e c) Os membros devem procurar se associar a

uma organização especializada da ONU para promover projetos em parceria24.

Ocorre que as iniciativas e diretrizes mencionadas não se fazem

compulsórias ou trazem em seu bojo qualquer punição expressa. Trata-se apenas das

denominadas ‘soft law’, com condão recomendatório e cuja violação traz não mais do

que sanção social oriunda da opinião pública25.

ao imperativo categórico de Kant, que deixa de ser simplesmente ético para se apresentar também como imperativo categórico jurídico, serve de pano de fundo para a renovação do debate.” TORRES, Ricardo Lobo et alli. Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 251-253. 21 Disponível em <http://www.oit.org.br>. Acesso em 17 janeiro 2011. 22 Disponível em <http://www.fazenda.gov.br/sain/pcnmulti/diretrizes.asp>. Acesso em 17 janeiro 2011. 23 Disponível em <http://www.oit.org.br>. Acesso em 17 janeiro 2011. 24 Disponível em <http://www.os.org.br.> Acesso em 20 janeiro 2011. 25 “O Código de Conduta é, como já foi declarado, um ‘soft law’, ou seja, um direito recomendatório, ou ainda, um pré-direito. Talvez a sanção mais eficaz em caso de sua violação seja a opinião pública.” MELLO, Celso de Albuquerque, op. cit, p. 118.

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Ainda assim, contudo, têm recebido adesões crescentes por parte de

governos, no primeiro caso, e de empresas, no segundo. No caso da OCDE, 39 (trinta e

nove) países já aderiam a um conjunto de direitos humanos, trabalhistas, ambientais e

de práticas anticorrupção. No que diz respeito ao Global Compact, esta iniciativa, além

de contar com a legitimidade conferida pelo sistema das Nações Unidas, já conta com a

adesão de cerca de 2000 (duas mil) empresas, provenientes de 80 (oitenta) países

diferentes, partindo do mesmo conjunto básico de direitos presentes nas Diretrizes da

OCDE26.

Talvez a iniciativa que melhor tenha traduzido a intercessão entre os valores

democráticos tão visados pelo Estado de Direito e as empresas cujo enfoque primário é

o lucro fora o Código de Conduta elaborado pela OCDE. Em que pese tratado como

pré-direito ou direito recomendatório – o que equivale dizer que não traz em seu cerne

qualquer sanção pela violação das diretrizes que expõe –, ainda assim consubstancia

instrumento de acentuada importância para delimitação ética e valorativa dos

empreendimentos levados a cabo pelas pessoas privadas.

Entre inúmeros regramentos, diretrizes e recomendações, destacam-se os

seguintes:

a) Según se establece em el presente Código, as empresas transnacionales deben reconocer y respetar la soberanía nacional de los países em que funcionam, así como el derecho de cada Estado a ejercer soberanía plena y permanente sobre sus recursos y sobre las actividades económicas dentro de su territorio. b) Las empresas transnacionales deben respetar los objetivos y valores sociales y culturales de los países em que funcionan. c) Las empresas transnacionales deben respetar los derechos humanos y las libertades fundamentales. d) Las empresas transnacionales no deben injerirse em los asuntos políticos internos de los países em que funcionan recurriendo a actividades subversivas encaminadas a influir em los sistemas políticos y sociales de esos paíeses. e) Las empresas transnacionales no deben injerirse en los asuntos que sólo incumben a los gobiernos. f) Las empresas transnacionales deben dividir el proceso de adopción de decisiones entre sus entidades a fin de permitir que éstas actúen como buenos ciudadanos (...)27.

Note-se que valores fundamentais como a soberania, direito doméstico,

objetivos e liberdades fundamentais foram positivadas no código de conduta para que as

26 Dados disponíveis em <http://www.os.org.br.> Acesso em 20 janeiro 2011. 27 COSTA, Carlos Jorge Sampaio. O Código de Conduta das empresas transnacionais. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 115-133.

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grandes corporações não venham a sobrepor seus próprios objetivos ao lucro em face

dos princípios, comandos e valores caros à democracia.

Se, por um lado, revela-se possível argumentar no sentido de que o modelo

econômico atual viabiliza o progresso e, como consequência, o desenvolvimento, não se

pode olvidar, outrossim, que os custos do progresso acometem a própria sobrevivência

da sociedade28, em especial no tocante às questões ambientais.

Atualmente, vive-se etapa ímpar da evolução não apenas da sociedade,

senão também do Estado em si. O regime econômico que se fez patente no cenário

mundial – o capitalismo – vem enfraquecendo instituições, destruindo culturas,

ensimesmando os seres no tocante às necessidades materiais e arrebatando a ideologia

teórica que se em primeiro momento concebia o Estado como forma organizacional apta

a garantir a sobrevivência e evolução, já não mais assim entende, preferindo os ditames

de valores fugidios, vazios e ocos oriundos do capital29.

Como advertiu Karl Polanyi, a extensão do papel regulador e

intervencionista da política na economia capitalista, durante os anos trinta e após,

soletrou uma nova era, a da “grande transformação". Essa grande transformação ocorreu

através de dolorosos processos sociais, gerando uma reificação da vida econômica e um

processo de barbarização. Nesse contexto, para o autor, a ideia de um mercado que se

regula a si mesmo era puramente utópica. Uma instituição como esta não poderia existir

de forma duradoura sem aniquilar a substância humana e a natureza da sociedade, sem

destruir ao homem ou transformar seu ecossistema em um deserto30.

A inclusão da natureza e do ser humano no mercado significou, portanto,

para Polanyi, subordinar a substância da própria sociedade às leis do mercado. A 28 Adorno e Horkheimer, a propósito do progresso, já observaram outrora que: “a adaptação ao poder do progresso envolve o progresso do poder, levando sempre de novo àquelas formações recessivas que mostram que não é o malogro do progresso, mas exatamente o progresso bem-sucedido que é culpado de seu próprio oposto. A maldição do progresso irrefreável é a irrefreável regressão”. ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 41. 29 Juan Ramón Capella, tratando do que denominou ‘defeito de construção’ da sociedade capitalista, destaca que: “No capitalismo, os mecanismos e sujeitos sociais que controlam a eficiência econômica são os mesmos que decidem a produção e determinam a distribuição. Diferenciar ambas as questões é tarefa de organização social efetivamente emancipatórias. (...) O defeito ou falha fundamental da sociabilidade moderna, capitalista, existente na estrutura de todas as sociedades que se mantém e reproduzem mediante esse modo de produção, e que se manifesta com independência relativa da fase histórica que atravessam essas sociedades, faz-se compreensível se se considera o papel subalterno da força de trabalho nelas. Esse defeito fundamental da estrutura de relações que caracteriza como capitalista a uma sociedade explica também a limitação estrutural dos processos democráticos nesse tipo de sociedades: o ‘defeito estrutural’ estabelece limites infranqueáveis à democratização no âmbito representado como político ou ‘público de Estado’. CAPELLA, Juan Ramón. Os cidadãos servos. Porto Alegre: Sério Antônio Fabris, 1998, p. 81-82. 30 POLANYI, Karl, op. cit., p. 164-168.

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sociedade humana passa a ser apenas um acessório do sistema econômico, de modo que

uma economia de mercado só pode funcionar numa sociedade de mercado. Isso ultima

por engendrar o desmoronamento da sociedade. Separar o trabalho das outras atividades

da vida e sujeitá-lo às leis do mercado foi o mesmo que “aniquilar todas as formas

orgânicas da existência e substituí-las por [...] uma organização atomista e

individualista"31.

O progresso, nessa linha, é feito à custa de desarticulação social, ensejando

também a destruição dos ecossistemas necessários à garantia da vida. Tudo,

curiosamente, transforma-se em objeto, a iniciar pela própria natureza que assegura a

vida em sociedade32.

A esta altura da evolução social, surge o que Jürgen Habermas denominou

de ideologia tecnocrática, entendida como “racionalidade instrumental/estratégica que

anima a força produtiva dos mercados e do capital em expansão (...)”, de modo que

afastada a razão comunicativa entre os seres humanos e enlevando apenas a razão

instrumental, tem-se o advento de supostas normas técnicas embasadas por também

supostos conhecimentos cientificamente comprovados e que, em realidade, apenas

ultimam por justificar e garantir, dogmaticamente, a submissão da natureza ao homem

aos auspícios do capital33.

31 Idem, p. 170-174. 32 Délton Winter de Carvalho, descrevendo a transição entre a sociedade burguesa, a industrial e, posteriormente, a que se convencionou denominar sociedade de risco, assim esclarece acerca da sociedade industrial, conceito que será retomado adiante, em tópico específico: “(...) a massificação das relações sociais surgidas a partir da Revolução Industrial apresenta a necessidade de uma reorientação integrada entre sociedade, direito e economia, em irritações recíprocas. A partir do século XIX, a formação de uma sociedade industrial, estabelecida em classes, gera ressonâncias nos sistemas sociais, com a potencialização da técnica e da ciência. A Revolução Industrial redunda em ressonâncias sociais policontextuais. Isto é, enquanto no direito há a formação de uma ciência jurídica, sistematicamente organizada e representada pelas grandes codificações do século XIX, a economia opera sob um modelo capitalista de forma industrial, e a política inicia as construções do Welfare State”. CARVALHO, Délton Winter de. Dano ambiental futuro – a responsabilização civil pelo risco ambiental. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2008, p. 56. 33 Rogério Gesta Leal assim explica o pensamento de Jürgen Habermas acerca do tema: “No texto Conhecimento e Interesse percebemos que o autor aprofunda sua reflexão epistemológica, dando conta dos fundamentos de sua teoria dos interesses cognitivos, oportunidade em que reivindica a unidade indissociável de conhecimento e interesse. Em outras palavras, Habermas procura demonstrar que a neutralidade das ciências é uma exigência que não resiste ao exame crítico das condições do conhecimento como tal, pelo simples fato de que este invariavelmente está arraigado em certos interesses. Com tal perspectiva, o autor alemão explicita a fragilidade do argumento que sustenta a neutralidade das ciências naturais, revelando o interesse que orienta o processo do conhecimento das mesas, a saber, aqui em especial, o interesse técnico de dominação da natureza. (...)É interessante antecipar, com Habermas, que na perspectiva de ações instrumentais ou estratégicas desenvolvidas pelos sujeitos sociais, há um interesse destacadamente técnico, baseado em regras técnicas, pelas quais o homem se relaciona com a natureza, submetendo-a ao seu controle para fins pragmáticos voltados à satisfações interpessoais. De outro lado, naquelas ações humanas que visam não só atingir pragmaticamente um fim de caráter não necessariamente coletivo, é possível perceber-se um outro tipo de interesse, fundamentalmente

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Nas palavras de Habermas:

distingue-se radicalmente de todas as outras ideologias do passado porque é a única que visa esse resultado, não através da legitimação das normas, mas através da sua supressão: o poder não é legítimo por obedecer a normas legítimas, e sim por obedecer a regras técnicas, das quais não se exigem que sejam justas, e sim que sejam eficazes. Se os fundamentos do poder não precisam ser tematizados, não é porque repousam sobre uma normatividade legítima, e sim porque não existe, a rigor, o que legitimar: a lógica das coisas, sendo o que é, não pode ser alterada por decisões políticas. A ideologia tecnocrática é muito mais indevassável que as do passado, porque ela está negando, na verdade, a própria estrutura da ação comunicativa, assimilando-a à ação instrumental. Pois enquanto aquela, como vimos, se baseia numa intersubjetividade fundada em normas, que precisam ser justificadas (mesmo que tal justificação se baseie em falsas legitimações), esta se baseia em regras, que não exigem qualquer justificação. O que está em jogo, assim é algo de muito radical, que é nada menos que uma tentativa de sabotar a própria estrutura de interesses da espécie, que inclui, ao lado do interesse instrumental, também o interesse comunicativo.34

A consequência sob o enfoque ambiental, tal como advertiu o Autor, é a da

que a ideologia tecnocrática – calcada em justificações técnico-científicas – afasta o

debate tematizado acerca das questões centrais em torno das quais gira a própria

evolução social. Ignoram-se, em vista do mero crescimento econômico, riscos

potenciais decorrentes, verbi gratia, da utilização de aparatos químico-biológicos em

lavouras, cultivo e atividades conexas, em prol de normas supostamente técnicas que

admitem racionalizar o risco, embasadas por parâmetros pretensamente seguros.

Ainda nas palavras de Habermas:

A consequência da nova constelação é que as decisões práticas que afetam a coletividade são agora transformadas em problemas técnicos, resolvidos por uma minoria de experts, que têm o Know-how necessário. Impõe-se uma despolitização das massas. Esta passa a ser a consequência e requisito da nova forma de dominação, legitimada pelo poder de coação (Sachzwänge) da racionalidade técnica. A redução das decisões políticas a uma minoria (a nova elite de tecnocratas) significa ao mesmo tempo um esvaziamento da atividade prática em todas as instâncias da sociedade (política, social, e mesmo econômica) e a penetração do Estado (instância política) nas duas outras, submetidas a uma crescente administração.35

comunicativo, que fomenta os homens a se relacionarem entre si, por meio de normas linguisticamente articuladas, e cujo objetivo é o entendimento mútuo. Ambas as formas de conhecimento, geradas pelos respectivos interesses, servem a um interesse mais fundamental: o da emancipação da espécie.”. LEAL, Rogério Gesta. A teoria do conhecimento em Habermas: conceitos aproximativos. In: REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS. Belo Horizonte, volume 9, 1999, p. 186-187. 34 Apud, LEAL, Rogério Gesta, op. cit., p. 188-189. 35 Apud, LEAL, Rogério Gesta, idem, p. 188.

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Dessa forma, a proscrição da ideia de que os discursos tematizados e sob o

aspecto prático ambiental devem ser “conduzidos entre todos aqueles que sejam

‘discursivamente competentes’ e que deveriam, idealmente, incluir todos os

interessados (...)”36 afasta a própria democracia, entendida esta como a possibilidade de

todos quanto integrem a sociedade participarem das decisões ou deliberações que os

causem efeitos37.

Denota-se, à conta do exposto e em exame perfunctório, que a soberania,

divorciada de parâmetros tradicionais e embasada, sobretudo, por critérios econômicos

não mais se presta, só por si, a viabilizar o desenvolvimento do país sob os enfoques

político, jurídico e social, aptos, portanto, a garantir o enlevo da liberdade dos

indivíduos38.

Aliás, como entender, diante deste quadro, que ainda exista soberania?

Nesse contexto, como vislumbrar, entrementes, a atuação dos Poderes Constituídos,

constitucionalmente independentes, harmônicos entre si e direcionados aos valores

apregoados pela Carta da República? Se a teoria da separação de poderes, em sua

origem, presta-se a limitar o poder do Estado, como conceber bem delimitada a própria

separação se a soberania resta abalada? 39

36 Ibidem, p. 189-190. 37 Peter Demant, a propósito da democracia, observa que o conceito de “cidadão” deve ser expandido para incluir a democracia como método apto a viabilizar e legitimar a coexistência de tantos homens diferentes, sendo, para tanto, necessário negar as diferenças grupais, as desigualdades particulares. DEMANT, Peter. Direitos para os Excluídos. In: Jaime Pinsky e Carla Bassanezi. (Org.). Historia da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003, p. 344. 38 “A perspectiva da liberdade não tem necessariamente de ser processual (embora os processos realmente sejam importantes, inter alia, para avaliar o que está acontecendo). A consideração básica, como procurei mostrar, é nossa capacidade para levar o tipo de vida que com razão valorizamos. Essa abordagem pode proporcionar uma visão do desenvolvimento bem diferente da costumeira concentração sobre PNB, progresso tecnológico ou industrialização, que têm sua importância contingente e condicional, mas não são as características definidoras do desenvolvimento.” SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 323. 39 Danielle Anne Pamplona, a respeito da separação de poderes concebida como forma de limitação do poder do Estado, destaca que “O contexto da aplicação da separação de poderes deixa à evidência que foi uma tentativa de limitação ao poder do Estado. Efetivamente, uma das maneiras de limitar o poder político do Estado é adotar a doutrina da separação de poderes.”. Adiante, ao destacar o papel político do Supremo Tribunal Federal, deixa entrever o abalo na concepção original da teoria da separação de poderes, notadamente como decorrência de alteração na concepção do papel do Estado: “Não se pode negar a característica de tribunal político ao Supremo Tribunal Federal, seja porque decide conflitos políticos, seja porque a própria defesa da Constituição é expressão da política ou, ainda, porque tem o poder de efetuar o controle de constitucionalidade.” PAMPLONA, Danielle Anne. O Supremo Tribunal Federal e a decisão de questões políticas – A postura do juiz. Curitiba: Juruá editora, 2011, p. 28-87. A alteração na concepção do papel do Estado que, por sua vez, produz efeitos na teoria da separação de poderes, tem o abalo na soberania como um de seus fatores, o que motivou a análise desta em conjunto com a prefalada doutrina. Os demais fatores serão alhures abordados, no corpo do texto que segue no subitem seguinte.

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1.1. Soberania e Divisão de Poderes

Com a formulação de novos desafios ao direito, embates principiológicos,

choques normativos entre regras que embasam direitos de estaturas discrepantes e,

mesmo, criação de novos ramos dogmáticos que objetivam explicar fenômenos sociais

que se verificam candentes e inafastáveis40, a clássica teoria da divisão de poderes passa

por momento de reflexão41, perpassando-se dos papéis bem definidos e estáticos à crise

gerada pela especificidade e aumento das demandas sociais, provocando acentuada

intercessão na atuação dos órgãos e instituições responsáveis pela organização e

manutenção do Estado.

Diante desse quadro, o conhecido sistema dos freios e contrapesos não mais

se atém à função refreadora; ao contrário, presta-se a estabelecer diretrizes visando

ingerências positivas. Nesta vertente, uma nova visão acerca da divisão dos poderes

poderá ensejar, em último grau, o desenvolvimento do país não apenas sob o enfoque

econômico, senão também político, jurídico e social, apto a garantir o enlevo da

liberdade dos indivíduos42. Ultimado balanceamento da atuação dos Poderes da

República e, principalmente, efetivando-se adequada distribuição de recursos públicos,

poder-se-á alcançar com plenitude o bem-estar como decorrência da igualdade em si,

40 “Os movimentos sociais emergentes – tanto no campo como nas cidades – estão abrindo um novo espaço político, onde se plasmam as identidades étnicas e as condições ecológicas para o desenvolvimento sustentável dos povos que habitam o planeta, e da humanidade em seu conjunto. Estes movimentos estão gestando novos direitos – ambientais, culturais, coletivos – em resposta a uma problemática ambiental que emerge como uma crise de civilização, efeito do ponto de saturação e do transbordamento da racionalidade econômica dominante.” LEFF, Enrique. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Rio de Janeiro: Vozes, 2001, p. 346. 41 “É visível a crise do Estado e de seu Direito neste final de século. Todos os primados do Direito chamado moderno, seus fundamentos, o direito individual como direito subjetivo, o patrimônio como bem jurídico, a livre manifestação de vontade estão abalados. Com este abalo outros dogmas perdem a credibilidade, como a separação de poderes, a neutralidade e o profissionalismo do poder judiciário, a representatividade do parlamento, a soberania nacional, a supremacia da Constituição. Esta crise é diferente de outras já havidas e às vezes mal superadas, porque atinge o âmago, os alicerces do sistema jurídico. As correções de rota feitas até agora puderam fazer mudanças no sistema jurídico que mantiveram sua essência. Entre as mudanças mais importantes estão o reconhecimento de pessoas jurídicas não comerciais, a criação de limitações administrativas, a interferência do Estado na ordem econômica, a definição de função social para a propriedade, a supremacia e a eficácia normativa das Constituições. Todos estes avanços não conseguiram abalar, mas ao contrário, reforçaram os fundamentos que marcaram a criação do direito moderno, especialmente a propriedade privada como a máxima expressão do direito individual. A nova crise atinge exatamente este direito, porque desloca o centro do sistema, quer era ordem privada, para a ordem pública, do direito individual para o coletivo.” MARÉS, Carlos Frederico. Os direitos invisíveis. In: OLIVEIRA, Francisco; PAOLI, Maria Célia. Os sentidos da democracia: políticas do dissenso e hegemonia global. São Paulo: Vozes/FAPESP, 1999. p. 307-308. 42 SEN, Amartya, op. cit., p. 323.

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esta não sob o aspecto meramente formal, mas sim como manifestação garantida e

indevassável da cidadania43.

O Poder Judiciário se insere neste contexto não mais apenas com a função

típica de resolução de conflitos44 - ainda que sempre tenha tido funções atípicas de

regulamentação e execução de diretrizes normativas45 –, revelando, outrossim, papel de

indicador dos vetores a serem adotados pelos demais Poderes em ordem a consagrar a

efetividade da Carta da República e, notadamente, os direitos e garantias nela inseridos.

Tal se dá pela exegese jurisdicional dos direitos fundamentais e posterior diálogo com

os demais Poderes a fim de articular as atividades estatais e correlacioná-las às pautas

sociais hauridas da Lei Fundamental.

Encontrando-se a soberania diminuída, aplainada em seara política e acuada

economicamente, parece caber ao Poder Judiciário garantir por meio de seus

pronunciamentos típicos a realização de direitos fundamentais, sociais, ambientais e

conexos, individuais ou coletivos, todos garantidos pela Constituição da República. 43 “A igualdade é um ideal político popular, mas misterioso. As pessoas podem tornar-se iguais (ou, pelo menos, mais iguais) em um aspecto, com a consequência de tornar-se desiguais (ou mais desiguais) em outros. (…) Existe uma diferença entre dar um tratamento igualitário às pessoas, com relação a uma ou outra mercadoria ou oportunidade, e tratá-las como iguais”. DWORKIN, Ronald. A virtude soberana – a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 03. 44 Em que pese o ordenamento positivo, por vezes, estabeleça também função normativa e consultiva, tal como se depreende do artigo 23, incisos IX e XII do Código Eleitoral brasileiro - Lei n.° 4.737, de 15.07.1965 - DOU 19.07.1965: “Art. 23. Compete, ainda, privativamente, ao Tribunal Superior: IX - expedir as instruções que julgar convenientes à execução deste Código; XII - responder, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem feitas em tese por autoridade com jurisdição, federal ou órgão nacional de partido político;”. BRASIL, Lei n.° 4.737, de 15 de julho de 1965. Institui o Código eleitoral. Disponível na íntegra em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4737.htm>. Acesso em 09 janeiro 2012. 45 Celso Antônio Bandeira de Mello esclarece à suficiência o tema: “Com efeito, ninguém duvida que o Poder Legislativo, além dos atos tipicamente seus, quais os de fazer leis, pratica atos notoriamente administrativos, isto é, que não são nem gerais, nem abstratos e que não inovam inicialmente na ordem jurídica (por exemplo, quando realiza licitações ou quando promove seus servidores) e que o Poder Judiciário, de fora parte proceder a julgamentos, como é de sua específica atribuição, pratica estes mesmos atos administrativos a que se fez referência. Acresce que, para alguns, o processo e julgamento dos crimes de responsabilidade, atividade posta a cargo do Legislativo, é exercício de função jurisdicional, irrevisível por outro Poder, de sorte que o referido corpo orgânico, além de atos administrativos, e de par com os que lhe concernem normalmente, também praticaria atos jurisdicionais. Outrossim, conforme opinião de muitos, o Judiciário exerceria atos de natureza legislativa, quais, os seus regimentos internos, pois neles se reproduziriam as mesmas características das leis: generalidade e abstração assim como o atributo de inovarem inicialmente na ordem jurídica, ou seja, de inaugurarem direitos e deveres fundados unicamente na Constituição, tal como ocorre nas leis. De seu turno, o Poder Executivo expede regulamentos, atos que materialmente são similares às leis e, na Europa, muitos destes regulamentos inovam inicialmente na ordem jurídica, tal como o fazem as leis. É certo, ainda, que o Executivo também decide controvérsias. É o que faz, exempli gratia, nos processo que tramitam perante o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) destinados a apurar e reprimir os comportamentos empresariais incursos em abuso de poder econômico ou nos processos de questionamento tributário submetidos aos chamados ‘Conselhos de Contribuintes’. É verdade que tais decisões só são definitivas para ela própria Administração, imutabilidade esta que alguns denominam de ‘coisa julgada administrativa’.” MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 31-32.

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Prever sem realizar, estipular sem garantir e conceber sem cuidar são formas que não se

coadunam com o Estado Democrático de Direito46.

Tal vertente encontra, entretanto, abrigo na Lex Mater pátria?

A Constituição da República Federativa do Brasil, no artigo 2°, dispõe que

“São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o

Executivo e o Judiciário”47. O conteúdo normativo do texto constitucional recebeu

influência do ideário apregoado por Montesquieu no sentido de que os Poderes da

República devem preferencialmente apresentar funções típicas bem delimitadas, de

maneira que possam exercer uns sobre os outros fiscalização e decote de atuações

proscritas sob o aspecto positivo48.

Partindo-se de tal marco teórico, eventual questionamento ao acerto,

eficácia ou aplicação da divisão de poderes desconsiderando particularidades de cada

Estado vinha decerto acompanhada de ideologias totalitárias49. Acostumou-se a

conceber que o sistema de freios e contrapesos seria ideal a garantir a paz interna e, sob

aspecto mais amplo, também no cenário externo; e que o cidadão, protegido da

46 Nessa linha, Antonio Enrique Pérez Luño sustenta que atualmente mesmo as normas só existem enquanto tais se resultantes de processo de interpretação pelo Judiciário, que, assim agindo, corrigiria distorções oriundas do desvirtuamento do sistema jurídico por agentes econômicos ou políticos. Confira-se excerto que em expõe o pensamento mencionado: “(...) Hoy se tiende a sustituir la noción de norma jurídica como ‘norma dato’, es decir, las formulaciones promulgadas por el legislador, por la de ‘norma resultado’, que supone el momento completo y culminante de la elaboración normativa por los operadores jurídicos. De ello, se desprende que para las corrientes jurídico metodológicas actuales la norma no es el presupuesto, sino el resultado del proceso de su interpretación y aplicación. (...) En los Estados de Derecho no debe confundirse la fidelidad a la ley, com la subsunción. La fidelidade de los operadores jurídicos a la legalidade no tiene porqué suponer uma concepción formalista de la interpretación y aplicación del Derecho. La fidelidade a la ley no debe confundirse, em definitiva, con su interpretación literal, sino con la búsqueda de su sentido y objetivos. El jurista intérprete debe atender a los contenidos materialies de la legislación que remiten al sistema de valores éticos y políticos que sirven de fundamento.” LUÑO, Antonio Enrique Pérez. In LEAL, Rogério Gesta; LEAL, Mônica Clarissa Henning. Ativismo judicial e Déficits Democráticos: Algumas experiências Latino-Americanas e Européias. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011, p. XIV. 47 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível na íntegra em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em 09 janeiro 2012. 48 Jean Jacques Chevallier bem destaca o pensamento de Montesquieu: “Quem o diria! A própria virtude precisa de limites. Só se impede o abuso do poder quando, pela disposição das coisas, o poder detém o poder. O que supõe, não o poder único e concentrado, mas uma fragmentação do poder, e certa distribuição de poderes separados.” Observa, ainda, que “a expressão clássica separação dos poderes, aliás, nunca empregada por Monstesquieu, é bem chã, bem débil para exprimir noção tão rica” CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. Rio de Janeiro: Agir, 1995, p. 139. 49 Segundo Montesquieu, aliás, “Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas, e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos”. Apud MENDES, Gilmar, et alli. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 145.

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ingerência invasiva e arbitrária do Estado, exerceria de maneira plena, inquestionável e

evidente a sua liberdade constitucional.

Conquanto não se descure que o exercício unipessoal do poder realmente

traga, ínsito a si, a corrupção e abuso, não se pode deixar de cogitar que frente aos

novos desafios trazidos ao Estado Democrático de Direito a atuação independente,

porém concatenada, dos poderes viabiliza máxima efetividade dos direitos

fundamentais, consagração material da Carta da República e, sobretudo, o atendimento

aos anseios sociais.

A doutrina constitucional moderna, aliás, vem entendendo que a atuação

conjunta e direcionada aos valores constitucionais parece ser o ponto nodal da atual

releitura do sistema de freios e contrapesos50. Há, de outro turno, quem entenda que

jamais teria havido por parte de Montesquieu a intenção da completa separação de

poderes, mas sim combinação das forças inerentes a cada qual51. A atuação afinada

entre os Poderes seria, nesta vertente, ínsita à própria teoria cunhada por Montesquieu.

Para além da discussão travada, verifica-se que hodiernamente existe uma

crise dogmática cuja solução não perpassa pela adaptação de um sistema que não lhe

cabe mais enquanto diretor da nova roupagem que se verifica no segmento social,

jurídico, político e econômico. A crise fora gerada e gestada pela evolução de institutos,

50 “Inicialmente formulado em sentido forte – até porque assim o exigiam as circunstâncias históricas – o princípio da separação dos poderes, nos dias atuais, para ser compreendido de modo constitucionalmente adequado, exige temperamentos e ajustes à luz das diferentes realidades constitucionais, num círculo hermenêutico em que a teoria da constituição e a experiência constitucional mutuamente se completam, se esclarecem e se fecundam” MENDES, Gilmar, op. cit., p. 146. 51 “No Livro XI do Esprit des Lois, Montesquieu desenvolveu a famosa doutrina de que todo bom governo se devia reger pelo princípio da divisão dos poderes: legislativo, executivo e judiciário. E o art. 16° da Déclaration dês droit de l’homme et du citoyen du 26 Août 1789 transformava este princípio em dogma constitucional: ‘’Toute societé dans laquelle la garantie des droits n’est pás assurée, ni la séparationdes pouvoirs détermiinée, n’a point de constituition.’ Hoje, tende a considerar-se que a teoria da separação dos poderes engendrou um mito. Consistiria este mito na atribuição a Montesquieu de um modelo teórico reconduzível à teoria dos três poderes rigorosamente separados (...). Cada poder recobriria uma função própria e sem qualquer interferência dos outros. Foi demonstrado por Einsenmann que esta teoria nunca existiu em Montesquieu: por um lado, reconhecia-se ao executivo o direito de interferir no legislativo porque o rei gozava do direito de veto; em segundo lugar, porque o legislativo exerce vigilância sobre o executivo na medida em que controla as leis que votou, podendo exigir aos ministros conta da sua administração; finalmente, o legislativo interfere sobre o judicial quando se trata de julgar os nobres pela Câmara dos Pares, na concessão de amnistias e nos processos políticos que deviam ser apreciados pela Câmara Alta sob acusação da Câmara Baixa. Além disso, mais do que separação, do que verdadeiramente se tratava era de combinação de poderes: os juízes eram apenas a boca que pronunciava as palavras da lei; o poder executivo e o legislativo distribuíam-se por três potências: o rei, a câmara alta e a câmara baixa, ou seja, a realeza, a nobreza e o povo (burguesia). O verdadeiro problema político era o de combinar estas três potências e desta combinação poderíamos deduzir qual a classe social e política favorecida.” CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2000, p. 108-109.

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visões, paradigmas e concepções, de modo que não pode ser confinada à trilha pela qual

trafegavam anteriores molduras52.

Trata-se, pois, de evolução substantiva e não meramente instrumental.

Entender as novas funções que se abrem inequivocamente aos Poderes da República

examinando apenas o modo de exercício de suas funções tradicionais, típicas e atípicas,

pode ser útil apenas para compreender as limitações que se lhes antolham, mas não para

conceber fenômeno mais amplo que se abre aos olhos dos indivíduos enquanto

cidadãos.

A atual sociedade apresenta conflitos que não mais se podem resolver à

custa da decisão solitária de determinado legitimado pela via eletiva, pelas ideias

técnico-jurídicas de uma turma julgadora (por mais suprema que se revele), ou, ainda,

pela difusa participação dos representantes indiretos da sociedade em sede legislativa.

Impõe-se não apenas a atuação protagônica de um dos poderes – submetido, sabe-se, à

análise corretiva dos demais –, senão o diálogo e atuação conjunta de todos enquanto

segmentos da estrutura de poder estatal. Apenas assim se poderá alcançar solução que

atenda aos primados constitucionais, garanta o desenvolvimento estatal pela via do

bem-estar dos cidadãos e consagre os direitos previstos na Carta, notadamente a

dignidade da pessoa humana.

Como, no entanto, fora possível alcançar no decorrer da evolução do

conceito de Estado e rumos assumidos pela sociedade a formatação que ora se

apresenta? Em que momento do caminhar estatal direcionado aos atuais adjetivos

Democrático e de Direito a flexibilização da soberania, sob os influxos econômicos – e,

consequentemente, políticos –, veio a permitir ingerências externas de tal envergadura

que as domésticas atuações política, econômica e ambiental não mais lhe apetecem em

exclusivo?

52 “Estes novos direitos coletivos não carecem apenas de reformas profundas na estrutura do poder judiciário, mas em todo o Estado, porque seria inviável imaginar a sua realização completa sem mudanças profundas. Algumas reformas podem permitir que os direitos econômicos de grandes empresas ou mesmo de consumidor sejam atendidos, mas o essencial necessita de uma reforma ainda mais profunda. O Estado está realmente envelhecendo, a operação plástica que o neoliberalismo deseja fazer-lhe não lhe poderá curar a alma. O seu dogma mais sedimentado, a harmônica e independente divisão de poderes se vê, com a chegada destes novos direitos, em fissura latente. O direito brasileiro reconhece a existência de lacunas no sistema (o que de per si é um rompimento de dogma) e busca colmatá-las com a criação do mandado de injunção e da ação de inconstitucionalidade por omissão, tentando timidamente entregar ao Judiciário o papel de legislador, ou pelo menos de suprir a lacuna não legislada. A solução é tímida, mas a fissura está posta. A intocável divisão entre os poderes começa a ruir, é necessário, porém, cuidado: neste campo qualquer passo em falso pode levar à tirania, pondo a democracia em perigo e, se ela é posta em perigo, a transformação do Direito para garantir eficácia aos direitos coletivos é posta em risco.” MARÉS, Carlos Frederico, op. cit., p. 330-332.

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A fim de responder ao indagado, breve escorço do caminhar estatal e

movimento paralelo da sociedade se faz necessário para, ao depois, ser retomada a

direção ora apresentada.

2. Estado e sociedade – breve escorço.

Historicamente, as necessidades vivenciadas pela sociedade vêm sendo

experimentadas também pelo aparelho estatal, de tal modo que se pode observar um

movimento paralelo entre o caminhar social e o desenvolvimento das instituições e

aparatos públicos.

Se em determinado momento da vida em sociedade fez-se necessário

acreditar o ser humano, liberando-o para experimentar seus valores e evoluir de maneira

individual, o Estado se mostrou liberal, encolhendo, diminuindo e se enquadrando à

exata proporção em que sua ausência se revelava imprescindível53.

Posteriormente, já por ocasião da afirmação de valores que refugiam ao

âmbito do indivíduo e alcançavam envergadura mais complexa e atinentes ao grupo, o

Estado veio a suprir carências e aplainar dificuldades, nomeadamente no bojo do

segmento mais carente da sociedade. Trata-se do Estado social, prenhe de regras de

conteúdo axiológico voltadas à solidariedade54.

A evolução do Estado se confunde, pois, com a consolidação do conceito

que lhe é inerente e, no mesmo rumo, com as características assumidas pela sociedade

que o compõe.

Assim, se em pontual momento histórico a sociedade demandava a atuação

diminuta, esquadrinhada e previamente definida do Estado, outra solução não se

53 Jorge Reis Novais, esclarecendo acerca da doutrina sustentada por Adam Smith, a separação do Estado-economia e as limitações do Estado Liberal, observa que “garantida, assim, a paz externa e a segurança interna, toda acção política superveniente se revela não só supérflua como, eventualmente, prejudicial, na medida em que surge como ingerência perturbadora de uma ordem natural”. NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de Direito. Coimbra: Almedina, 2006, p. 61. 54 De acordo com José Luis Monereo Pérez, “(...) la noción de Estado social no solamente encierra exigencias concretas del particular frente al poder público, sino que tiene sentido pleno cuando pone de manifiesto que una democracia sólo puede funcionar si ésta se extiende a la sociedade y ofrece a todas las clases sociales las mismas oportunidades en el proceso económico. De este modo, el Estado social y democrático de Derecho no sólo es condición indispensable para una vida com dignidad humana. Es también la base de cualquier lucha democrática por um ordenamiento jurídico y económico que tenga em cuenta los derechos humanos económicos, sociales y culturales”. PÉREZ, José Luis Monereo. La defensa del estado Social de Derecho. Espanha, El Viejo Topo, 2009. p. 73.

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revelava cabível senão a formatação do Estado, por meio da lei, atento a tais

parâmetros, sob pena de violação à própria liberdade dos indivíduos55.

Na sequência dos acontecimentos históricos, no entanto, constatou-se que o

distanciamento do Estado, a pretexto de garantir a liberdade, ultimava por impor

desigualdade, relegando ao desdém as particularidades dos indivíduos, o que exigia

atuação estatal garantidora dos direitos56.

Conquanto posteriormente retomada a feição liberal, agora sob o viés

regulatório do denominado neoliberalismo, o sistema econômico já se encontrava

imiscuído nos meandros estatais de maneira a tornar disforme e, em grande parte

desconexa, a atuação dos Poderes constituídos, revelando a crise da soberania e da

divisão de poderes.

A fim, portanto, de contextualizar a dinâmica da crise, passa-se a analisar as

feições liberal, social e neoliberal do Estado, ademais da mesma movimentação sob o

viés da sociedade.

2.1. Estado liberal.

Paulo Bonavides, em obra intitulada “Do Estado liberal ao Estado social”

trata das origens do liberalismo, o papel da liberdade enquanto paradigma a definir a

55 Gustavo Zagrebelski, em obra intitulada “El Derecho Ductil”, assim explica a vertente liberal do Estado e seu enquadramento social primando pela liberdade: “Pero el Estado liberal de derecho tenía necesariamente uma connotación substantiva, relativa a las funciones y fines del Estado. En esta nueva forma de Estado característica del siglo XIX lo que destacaba em primer plano era ‘la protección y promoción del desarrollo de todas las fuerzas naturales de la población, como objetivo de la vida de los individuos y de la sociedad’. La sociedade, con sus proprias exigencias, y no la autoridad del Estado, comenzaba a ser el punto central para la comprensión del Estado de derecho. Y la ley, de ser expresión de la voluntad del Estado capaz de imponerse incondicionalmente en nombre de intereses transcendentes proprios, empezaba a concebirse como instrumento de garantía de los derechos. (...) Con estas formulacionoes, la tradicional concepción de la organización estatal, apoyada sólo sobre el principio de autoridade, comienza a experimentar um cambio. El sentido general del Estado liberal de derecho consiste en el condicionamento de la autoridad del Estado a la libertad de la sociedad, en el marco del equilibrio recíproco establecido por la ley”. ZAGREBESLKI, Gustavo. El derecho dúctil. Madrid: Editorial Trotta. Cap. 2, 1995, p. 23. 56 Juan Ramón Capella, todavia, tece interessante crítica acerca da política de implementação de direitos objetivada pelo Estado em sua feição social, observando o seguinte: “(...) as políticas de ‘conquistas de direitos’ praticadas pela esquerda social na época do ‘Estado do Bem-estar’ são frágeis e insuficientes ao mesmo tempo. Um ‘direito social’ não é senão a atribuição ao Estado – aos funcionários do Estado – da tarefa de gerir determinados interesses reconhecidos juridicamente dos sujeitos sociais. Com as ‘políticas de direitos’ esses sujeitos ficam desagregados e, conseguintemente, incapazes de gerir por si tais interesses: convertem-se em sujeitos carentes de todo poder que não seja, faticamente, vácuo da intervenção eleitoral para consentir ‘representantes políticos’ formalmente encarregados de direitos e controlar a atuação dos funcionários públicos.”. CAPELLA, Juan Ramón. op. cit, p. 110.

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atuação mínima do Estado e sua posterior faceta social, ocasionada, entre outros fatores,

pela redução drástica da liberdade como consequência da própria liberdade57.

A liberdade e sua correlação com o Estado liberal deve, segundo o Autor,

ser posta em confronto dialético com a realidade estatal, de maneira a que se possa

compreender o pensamento político que por oportunidade da Idade Moderna veio a

ensejar a conquista da democracia58.

Assim é que, fazendo menção ao que Carl Schmitt denominou ‘Estado

burguês de direito’, alude que o Estado sempre fora o fantasma que assombrou o

indivíduo, de modo que o poder, imprescindível ao funcionamento do aparelho estatal,

aparecia como maior inimigo da liberdade59.

Efetivamente, como alude o Autor, sendo o Estado não um prius, mas um

posteriori na convivência humana, não se poderia cogitar do monopólio estatal do

poder, visto que a teoria jusnaturalista, de resto baseada no paradigma kantiano do

respeito mútuo da liberdade de cada um, impõe o exercício das aptidões individuais à

margem de todo esboço de coação estatal60.

De toda sorte, com o enfraquecimento do poder absoluto dos reis e

incremento do comércio praticado pela burguesia, o Estado tornou-se realidade

incontestável. Com a Revolução Francesa, menciona, a burguesia formulou princípios

filosóficos que incutiam na sociedade as premissas da representação, positivismo

despido de construções interpretativas fundamentadas na concepção de justiça de cada

julgador e, por fim, como primeira fase do constitucionalismo, a separação dos

poderes61.

Jorge Reis Novais, observando que a caracterização liberal do Estado de

Direito se funda na ideal separação entre o Estado e a Sociedade, aponta os seguintes

pressupostos – ou, como alude, ideologia das três separações – para a correspondente

caracterização do período: a) separação entre política e economia, caracterizada pelo

fato de que o Estado devia se limitar a garantir a segurança e a propriedade dos

cidadãos, deixando a vida econômica entregue à auto-regulação do mercado62; b)

57 BONAVIDES, Paulo. Do Estado liberal ao Estado Social. São Paulo: editora Malheiros, 2009, p. 38. 58 BONAVIDES, Paulo. op. cit., p. 39. 59 Idem, p. 39-40. 60 Ibidem, p. 40-41. 61 Ibidem, p. 42-45. 62 Adam Smith, citado por Jorge Reis Novais, assim mencionava quanto ao ponto: “No sistema da liberdade natural, o soberano tem somente rês deveres a desempenhar (...): o primeiro é proteger a sociedade de qualquer violência ou invasão por parte das outras sociedades independentes. O segundo é proteger, tanto quanto possível, cada membro da sociedade contra a injustiça ou opressão de qualquer

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separação entre o Estado e a Moral, considerando que a moralidade não representa

assunto que possa ser resolvido pela coação externa ou assumido pelo Estado, mas

apenas pela consciência autônoma do indivíduo63; c) separação entre o Estado e a

sociedade civil64, pois o Estado deve apenas ter como foco a garantia da paz social a

permitir, como consequência, o desenvolvimento da sociedade civil segundo suas

próprias regras65. O instrumento a ensejar as separações anunciadas seria a legislação.

A lei, preeminente à época do liberalismo, revelava a vontade absoluta do

povo, não podendo sequer ser questionada quanto à legitimidade, pena de ruína da

sistemática liberal fundamentada na intervenção estatal mínima. Entendimento reverso,

outro membro, ou seja, o dever de estabelecer uma rigorosa administração da justiça. E o terceiro dever é criar e manter certas obras e instituições públicas que nunca atraiam o interesse privado de qualquer indivíduo ou pequeno grupo de indivíduos na sua criação e manutenção, na medida em que o lucro não compensa as despesas.”. SMITH, Adam. The Wealth os Nations. Apud, NOVAIS, Jorge Reis, op. cit., p. 61. 63 “Assim como Adam Smith afirmara a autonomia da esfera económica face à política, também Kant, através de uma operação paralela, autonomiza a moral relativamente à legalidade. Se na economia a abstenção do Estado garantia um processo nascido do livre encontro dos interesses individuais, também no campo da moralidade não pode haver, para Kant, ingerência ou coacção exterior nas esferas da exclusiva responsabilidade das consciências individuais. À auto-regulação do mercado de A. Smith corresponde, em Kant, a auto-eleição dos fins e a auto-regulação da esfera moral de cada um, sendo excluída qualquer moral social enquanto moralidade assumida como fim do Estado e imposta do exterior às consciências individuais. Para Kant, e em inteira contraposição ao Estado de polícia, não deve o Estado prosseguir quaisquer fins morais, quaisquer tarefas de realização do bem comum ou visar a felicidade dos súbditos; o seu único fim é o Direito, no sentido de que lhe compete exclusivamente assegurar a ordem jurídica, garantir a cada um a liberdade exterior que lhe permita determinar os seus próprios critérios morais e procurar a felicidade pessoal.” Idem, 66. 64 “Das duas separações analisadas – Estado-economia e Estado-ética – resulta, no plano global, a separação Estado-sociedade. Na sociedade civil desenvolvem-se livremente, ainda que numa relação de conflitualidade, as autonomias morais e económicas dos particulares, cuja coexistência pacífica cabe ao Estado garantir. O Estado, se bem que dotado de uma racionalidade e fins próprios, abandona qualquer intenção de promover um bem comum, um interesse público, em favor da livre expansão dos interesses individuais. Qual ‘guarda-nocturno’ (Nachtwachterstaat, na expressão de Lassale) colocado numa posição de exterioridade entre os particulares, o Estado só tem que assegurar o livre jogo da concorrência entre os particulares e impedir a invasão das respectivas esferas de autonomia.” Ibidem, p. 69. 65 Ibidem, p. 59. Wilhelm Von Humboldt, citado por Jorge Reis Novais, vislumbra duas formas diversas de atuação perpetradas pelo Estado quanto ao conteúdo de suas atividades direcionado aos cidadãos: atuação ora em dimensão positiva na procura da felicidade e do bem material e moral da nação; ou em dimensão negativa, limitada a evitar o mal proveniente da natureza ou provocado pelos homens. Humboldt rejeita a atuação positiva, pois, segundo menciona, tal viria a se opor ao livre desenvolvimento da individualidade e da personalidade humana, cujos pressupostos são a liberdade de ação e diversidade de condições. Jorge Reis Novais acompanha a crítica, destacando, ainda, que “Quanto mais o Estado procura responder às insuficiências da sociedade civil, mais essas insuficiências se multiplicam e novos males se revelam.”. Humboldt, portanto, conclui, que “(...) a expectativa da ajuda do Estado, o esmorecimento da iniciativa pessoal, a presunção falsa, a preguiça, a incapacidade! O vício de onde nascem estes males é, depois, por eles engendrado; o corpo de funcionários cresce, a burocracia aumenta e o formalismo que envolve necessariamente os problemas que se procuravam resolver gerará, por si só, novos e avolumados problemas.” NOVAIS, Jorge Reis. Ibidem, p. 70-71. Curioso destacar que os problemas que arrefeceram o Estado Social de Direito foram antecipados pelo Autor.

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inequivocamente tido como opressor, significava decerto o retorno aos parâmetros

dogmáticos próprios do absolutismo na linha da Idade Média66.

Talvez a exceção à dogmática então vigente fique por conta do particular

desenvolvimento e consolidação constitucional da sociedade norte-americana,

porquanto à época em que na Europa se discutia, por oportunidade da Revolução

Francesa, a estrita aplicação da lei sem qualquer interpretação afora a meramente

gramatical, pouco tempo após, por oportunidade do julgamento do ‘leading case’

Marbury v. Madison, a Corte Suprema norte-americana assentou entendimento em

sentido diametralmente oposto, tendo afirmado, por meio do Chief Justice Marshall:

Aqueles que aplicam uma disposição aos casos particulares devem necessariamente expor e interpretar essa disposição. Se duas normas conflitam entre si, as cortes devem decidir quanto à validez de cada uma. Assim também é quando uma lei esteja em conflito com a Constituição; se tanto a lei quanto a Constituição incidem sobre um caso particular, a Corte deve decidir sobre o caso confirmando a lei e desconsiderando a Constituição, ou confirmando a Constituição e desconsiderando a lei. A Corte deve determinar qual das disposições conflitantes regulam o caso. Isso é próprio da essência da função judicial67.

Note-se que o julgamento do caso mencionado se deu em 1803, quando

ainda sequer o Estado Social havia despontado. Como, então, explicar, a diferença no

desenvolvimento constitucional da sociedade norte-americana? A doutrina que se

debruçou acerca do tema parece ter consolidado entendimento no sentido de que o

contexto histórico norte-americano não permitiu a formação de classes nos moldes da

66 Gaetano Silvestri, em passagem do livro “La Separazione dei poteri” em que aborda especificamente a Revolução Francesa e a consequência para liberalismo na específica feição da divisão de poderes, assim observa: “Tutto il sistema dela separazione dei poteri presuppone la supremazio dela legge. Ogni interferenza indebita di un potere nella sfera riservata ad un altro è un attentato al principio di legalità. Se la legge disciplinasse oggetti particolari o il corpo legislativo interferisse nell`atività amministrativa, la cura di interessi particolari inquinerebbe le assemblee e le leggi finirebbero di essere generali. Se il potere executivo potesse emanare regole generali o sottrarsi all impero dela legge, nessuno sarebbe più scuro dela persona e dei suoi beni. Se il potere giudiziario avesse la potestà di emanare regolamenti o annulare atti dell´amministrazione, la sua soggezione ala legge verrebbe meno, giacchè contro l´abuso perpetrato nell´eserciziio di queste attribuizioni non sarebbe possible far ricorso ad un altro potere independente per far valere, quanto meno ai vertici, una qualche forma di responsabilità” (tradução livre: Todo sistema de separação dos poderes pressupõe a supremacia da lei. Qualquer interferência indébita de um poder na esfera privada a um outro é um atentado ao principio da legalidade. Se a lei disciplinasse objetos particulares ou o corpo legislativo interferisse na atividade administrativa, o cuidado dos interesses particulares poluiria as assembleias e as leis acabariam sendo gerais. Se o poder executivo pudesse emanar regras gerais ou não submeter-se ao império da lei, ninguém seria mais seguro de sua pessoa e de seus bens. Se o poder judiciário tivesse o poder de emanar regulamentos ou anular atos da administração a sua submissão às leis valeria menos, já que contra o abuso no exercício dessas atribuições não seria possível fazer recurso a um outro poder independente para fazer valer uma outa forma de responsabilidade.). SILVESTRI, Gaetano. La separazione dei poteri. Milano: Dott A. Giuffrè editore, 1984, p. 56-57. 67 Marbury v. Madison, 5 US 137 (1803).

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sociedade europeia, em que a burguesia perpetrou, de fato e de direito, as revoluções

que ultimaram por limitar o poder estatal em prol da liberdade. Nos meandros norte-

americanos, a liberdade foi construída levando em conta parâmetros tópicos definidos

pela Suprema Corte e não, propriamente, pela moldura normativa impingida pelo

Parlamento68.

Retornando, todavia, ao paradigma liberal clássico, é de ver que o Estado

liberal de direito, consolidado no século XIX, apresentava, segundo Zagrebelski,

conotação substantiva, relativas às suas funções e fins. Em primeiro plano, portanto,

objetivava a proteção e promoção de todas as “forças da população” como objetivo da

vida dos indivíduos e da própria sociedade. A sociedade, portanto, com suas próprias

exigências, passava a ser o ponto central da compreensão do Estado de direito e a lei o

instrumento de garantia dos direitos então gerados69.

Otto Mayer, citado por Zagrebelski, expôs que o Estado Liberal se

caracteriza pela concepção da lei como ato deliberado do Parlamento representativo que

apenas se concretiza acaso os seguintes fatores se verifiquem: a) supremacia da lei sobre

a Administração; b) subordinação dos direitos dos cidadãos apenas à lei, com exclusão,

pois, dos poderes autônomos da Administração; c) presença de juízes independentes

com competência exclusiva para a aplicação da lei às controvérsias surgidas entre os

cidadãos e entre estes e a Administração. O Estado liberal de direito, para Otto Mayer,

assumia significado que compreendia a representação eletiva, direitos dos cidadãos

baseados em leis e a separação de poderes70.

A separação dos poderes, aliás, consubstanciava pedra de toque no

liberalismo, ante a necessidade de limitação do poder estatal, que apenas se 68 Gaetano Silvestri se afina à doutrina mencionada, observando que: “È comune osservazione che la struttura costituzionale americana è natta nell´ambito di uma società relativamente homogênea, dove non esistevano le stratificazioni socialie dela vecchia Europa. In un símile contesto sociale, non aveva alcun senso la trasposizione dela forma tradizionale delregimen mixtum; i ter poteri dello Stato perdevano ogni residua connotazione di classe.” (tradução livre: É observação comum que a estrutura constitucional americana é nascida de uma sociedade relativamente homogênea, onde não havia estratificação social da velha Europa. Em tal contexto social, não fazia sentido a transposição da forma tradicional de regime misto; e o Poder do Estado perdeu a conotação residual de classe) SILVESTRE, Gaetano, op. cit., p. 02-03. 69 Zagrebelski assim explica seu pensamento acerca do Estado liberal de Direito: “Pero el Estado liberal de derecho tenía necesariamente una connotación substantiva, relativa a las funciones y fines del Estado. En esta nuevea forma de Estado característica del siglo XIX lo que destacaba em primer plano era ‘la protección y promoción del desarrollo de todas las fuerzas naturales de la población, como objetivo de la vida de los indivíduos y de la sociedad’. La sociedade, con sus proprias exigencias, ya no la autoridade del Estado, comenzaba a ser el punto central para la comprensión del Estado de derecho. Y la ley, de ser expresión de la voluntad del Estado capaz de imponerse incondicionalmente en nombre de interesses transcendentes próprios, empezaba a concebirse como instrumento de garantía de los derechos.” ZAGREBESLKI, Gustavo. El derecho dúctil, op. cit., p. 23. 70 Idem, p. 23.

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circunscrevia ao resguardo da soberania externa, paz interna e exercício da autoridade

por meio das funções policiais e judiciais71.

Conjugando a separação de poderes ferrenhamente defendida com o

paradigma legal inflexível verificado no liberalismo, a liberdade poderia ser exercia à

plenitude, afastada que se apresentava da invasiva intromissão estatal72.

Ocorre, todavia, que a liberdade figurante era, em realidade, a revelada pela

burguesia, que se permitia falar ilusoriamente em nome de toda a sociedade73,

proclamando bases teóricas que, ao cabo de sua idealização, tinham o intuito do

comércio como pano de fundo. A divisão de poderes, à época, prestou-se à limitação do

Estado, de modo que a decomposição da soberania na pluralidade dos poderes

salvaguardaria a própria liberdade e, por consequência, aos ideais burgueses aptos a

denotar o já incipiente capitalismo em formação74.

Amparados pela liberdade, regulação mínima legal e impossibilidade de o

Poder Judiciário assumir posicionamentos afrontosos ao direito posto, abusos se

verificavam, notadamente na celebração de contratos visando atividades desenvolvidas

pela indústria. Registros históricos de depoimentos prestados à época denotam que a

71 Assim esclarece, a propósito, Maria Cecília Weigert Lomelino de Freitas: “De qualquer forma, o principal esteio do liberalismo foi a separação dos três poderes de Montesquieu, cuja principal finalidade era a limitação do poder estatal, o que não ocorreu na prática (...). No estado liberal, portanto, era mínima a intervenção do Estado nas esferas sociais e econômicas. O Estado apenas desempenha suas finalidades relacionadas ao exercício da soberania e da autoridade, reduzindo-se a funções estritamente judiciais e policiais.”. FREITAS, Maria Cecília Weigert Lomelino de. O Estado e os meios alternativos de resolução de conflitos. In: Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região. Curitiba, volume 34, p. 179-210, 2009, p. 184. Também Dário José Kist pontua a respeito: “Vitorioso o Estado burguês, através da Revolução Francesa, mister era desenvolver uma técnica que resguardasse a citada liberdade – liberdade burguesa, pois, embora teoricamente aplicável a toda comunidade humana, na realidade não foi estendida às demais classes –, o que era indispensável para a manutenção do status quo estabelecido. A separação de poderes, tal qual pensada por Montesquieu, cumpriu esta tarefa. A liberdade estaria salva decompondo a soberania estatal em três poderes distintos entre si, e que, por esta razão, funcionariam como limites à atuação dos demais, com o que se evitaria o arbítrio e a indiscriminada ingerência estatal na vida individual.” KIST, Dário José. O Estado Social e o surgimento dos direitos fundamentais da segunda geração. In: AJURIS. Porto Alegre, v. 26, n. 80, p. 82-103, dez. 2000, p. 87. 72 Ainda Zagrebelski, tratando da atuação Administrativa apenas à vista da existência de parâmetros legais; e, ao contrário, da liberdade do cidadão acaso inexistente lei que a restrinja, assim explica a correlação da liberdade com a legalidade: “Esta distinta posición frente a la ley, que diferenciaba a la Administración pública de los sujetos privados, era la consecuencia de asumir, junto ao principio de legalidad, el principio de libertad como pilar del Estado de derecho decimonónico. La protección de la libertad exigía que las intervenciones de la autoridad se admitiesen sólo como excepción, es decir, sólo cuando viniesen previstas en la ley. Por eso, para los órganos del Estado, a los que no se les reconocía ninguna autonomía originaria, todo lo que no estaba permitido estaba prohibido; para los particulares, cuya autonomia, por el contrario, era reconocida como regla, todo lo que no estaba prohibido estaba permitido. La ausencia de leyes era un impedimento para la acción de los órganos del Estado que afectara a los derechos de los ciudadanos; suponía, em cambio, una implícita autorización para la acción de los particulares. Como acertadamente se ha dicho, libertad del partícula en línea de principio, poder limitado del Estado en línea de principio.” ZAGREBELSKI, Gustavo, op. cit., p. 28. 73 BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 44. 74 Idem, p. 45.

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liberdade, exercida à plenitude e com a chancela legal do Estado75, em verdade ultimava

por diminuir ou ceifar ela própria76.

Como salientou Paulo Bonavides, se antes da Revolução francesa o rei tinha

ascendência sobre o fator econômico, após a consolidação do liberalismo a situação se

inverteu77. Isaiah Berlin também observou, a propósito, que:

oferecer direitos políticos, ou salvaguardas contra as intervenções do Estado, para homens que estão seminus, iletrados, subnutridos e doentes é zombar de sua condição; eles precisam de ajuda médica e educação, antes que possam entender ou se utilizar de sua ampliada liberdade. O que é liberdade para aqueles que não podem dela fazer uso? Sem adequadas condições para a utilização da liberdade, qual o seu valor?78

2.2. Estado Social.

Como mencionado supra, o exercício da liberdade, ainda que fundamentado

em parâmetros legais consolidados por instrumento legislativo, ultimou por acarretar a

perda da própria liberdade. O Estado, eficiente no processo de elaboração de leis, mas

ineficiente quanto à garantia da dignidade da pessoa humana, teve de reavaliar os rumos

assumidos em virtude da dogmática liberal então vigente.

75 José Renato Nalini, a propósito, destaca entendimento esposado pela mais alta Corte inglesa nos anos 30, em que restou decidido, sob o influxo liberal, que “a pobreza é uma desgraça pela qual o direito nenhuma responsabilidade pode assumir.”. Conclui, pois, que “O ideal da igualdade, a inovação revolucionária dos movimentos do século XVIII, não passou de uma proclamação bombástica e estéril. Pois a igualdade assim atingida era mais frequentemente uma fachada que uma realidade, era uma derrisão em face daqueles a quem se poderia aplicar a frase cáustica segundo a qual era todos livres de dormir debaixo da ponte”. NALINI, José Renato. Novas perspectivas no acesso à justiça. Revista de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. São Paulo, v. 224, p. 05-20, 1997, p. 13. 76 Em maio de 1849 o jornal Ashton Chronicle entrevistou John Birley que assim descreveu sua jornada de trabalho: “Nosso período regular de trabalho ia das cinco da manhã até as nove ou dez da noite. No sábado, até as onze, às vezes meia-noite, e então éramos mandados para a limpeza das máquinas no domingo. Não havia tempo disponível para o café da manhã e não se podia sentar para o jantar ou qualquer tempo disponível para o chá da tarde. Nós íamos para o moinho às cinco da manhã e trabalhávamos até as oito ou nove horas quando vinha o nosso café, que consistia de flocos de aveia com água, acompanhado de cebolas e bolo de aveia tudo amontoado em duas vasilhas. Acompanhando o bolo de aveia vinha o leite. Bebíamos e comíamos com as mãos e depois voltávamos para o trabalho sem que pudéssemos nem ao menos nos sentar para a refeição.”. Também crianças trabalhavam à exaustão, em nome da liberdade de contratação e atividade econômica então em ascendência. Jonathan Downe foi entrevistado por um representante do parlamento britânico em junho de 1832 e assim expôs: “Quando eu tinha sete anos de idade fui trabalhar na fábrica do Sr. Marshall em Shrewsbury. Se uma criança se mostrasse sonolenta o responsável pelo turno a chamava e dizia, “venha aqui”. Num canto da sala havia uma cisterna de ferro cheia de água. Ele pegava a criança pelas pernas e a mergulhava na cisterna para depois mandá-la de volta ao trabalho.”. Dados obtidos em <http://www.planetaeducacao.com.br/portal/artigo.asp?artigo=504>. Acesso em 18/05/2011. 77 BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 55. 78 Apud VIEIRA, Oscar Vilhena. Neoliberalismo e estado de direito. In: REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS CRIMINAIS. São Paulo, v. 4, n. 14 p. 201-214, abril-junho 1996, p. 214.

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Parece consenso expor que tal tomada de posição teve as experiências

políticas posteriores à primeira guerra mundial como marcos históricos principais; e

como marcos jurídicos iniciais a Constituição mexicana de 1917 e a de Weimar em

1919, sucedida pela Lei Fundamental de Bonn de 194979.

A ideia de separação Estado-sociedade passou a ser reavaliada, ante o

fracasso da sua aplicação irrestrita. Seus pressupostos teóricos, outrossim, sofreram

releitura, verificando-se, por conseguinte, fenômeno descrito como estadualização da

sociedade e, como contraponto, a socialização do Estado em ordem a caracterizar a

feição social que se verificava doravante80.

Sob o aspecto filosófico, as vertentes teóricas denominadas Escola Histórica

do Direito e neo-escolástica, sustentadas, reciprocamente por Von Savigni e Santo

Tomás de Aquino pretenderam rediscutir o positivismo e a própria sociedade industrial

que se verificou no ápice do liberalismo81. Passou-se a conceber a propriedade sob o

aspecto Aristotélico-tomista da funcionalidade, de modo que não se negava o direito de

propriedade, condicionando-o a servir, primordialmente, à satisfação das necessidades

humanas, de tal sorte a que atendesse às justas necessidades do titular, beneficiando, ao

mesmo tempo, todas as pessoas que convivem em sociedade82.

A doutrina individualista gerou, notadamente com a Revolução Industrial,

burgueses e proletários, patrões e empregados e, quase como consequência, ricos e

79 NOVAIS, Jorge Reis, op. cit., p. 179. Também Ingo Wolfgang Sarlet identifica tais marcos: “(...) A Alemanha foi não apenas o berço do socialismo científico de Karl Marx e Friedrich Engels, mas também da social-democracia (com Lassale), bem como da própria noção de um estado social e democrático de direito, bastando aqui a referência à Constituição de Weimar (1919), vertente do constitucionalismo social deste século.” SARLET, Ingo Wolfgang. O Estado social de direito, a proibição de retrocesso e a garantia fundamental da propriedade. In: AJURIS. Porto Alegre, volume 25, n. 73, p. 210-236, 1998, p. 212-213. 80 NOVAIS, Jorge Reis, op. cit., p. 180. 81 Assim explica Dario José Kist: “Por seu turno, a Monarquia que, juntamente com a Igreja, fora alijada do poder pela Revolução, buscava uma reabilitação. Patrocinou, para tanto, diversos movimentos culturais, que tiveram reflexos nas concepções jurídicas. É o caso, apenas a título de exemplo, do movimento conhecido por Romantismo, cuja versão jurídica encontra-se na Escola Histórica do Direito, com seu principal corifeu Von Savigni. Seus básicos postulados são o culto da história e a volta ao passado, que nada mais significam do que a tentativa de retornar aos idos e perdidos dias e reinado. A férrea oposição que Savigni fez à Codificação, longa manus da Revolução e garantia da perpetuação de seus princípios, e da qual nasceu o Positivismo Jurídico, em verdade é a oposição ao tipo de sociedade estabelecida em 1789. Outro importante movimento que procurou questionar e contrariar a já sociedade industrial, e este por conta da Igreja, é o movimento que se desenvolveu no interior da Igreja Católica, conhecido por neo-escolástica. A nomenclatura já indica as origens, ou seja, busca trazer para os meados do século XIX a doutrina escolástica dos primeiros séculos deste milênio, cujo principal autor foi Santo Tomás de Aquino, que viveu na primeira metade do século XIV.” KIST, Dário José. O Estado Social e o surgimento dos direitos fundamentais da segunda geração. In: AJURIS. Porto Alegre, v. 26, n. 80, p. 82-103, dez. 2000, p. 90. 82 KIST, Dário José. op. cit., p. 94-95.

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pobres, o que se divorciava em muito da apregoada liberdade outrora proclamada em

todos os âmbitos e segmentos sociais83.

Karl Marx, diante da constatação da impossibilidade de o liberalismo

atender aos anseios sociais, preconizava que a classe proletária tomasse o poder,

utilizando-se da força, acaso necessário. Entendia que o sufrágio universal não se

afigurava suficiente para superar os privilégios burgueses, na medida em que as leis

estariam comprometidas politicamente quanto ao conteúdo. Assim, a burguesia tinha de

ser destruída a ferro e fogo, de modo a estabelecer a igualdade social com a consequente

abolição do Estado e todos os seus meios de controle social, inclusive o Direito,

instituindo-se sociedade comunista84.

Se, outrora, direcionava-se o foco da atividade estatal à liberdade;

doravante, com maior ingerência na ordem econômica, social e específico fito de

auxiliar os menos favorecidos, tal se desloca à igualdade, verificando-se preocupação

maior com o bem comum em substituição ao individualismo do Estado liberal85.

Igualmente, contribui para a situação mencionada o fato de que o Estado deixou de ter

seu eixo normativo e administrativo gerenciado apenas e exclusivamente por uma única

classe social. Com a ampliação do direito de voto às mais diversas classes sociais e não

apenas às privilegiadas, também os correspondentes interesses daquelas passaram a ser

trabalhados na seara parlamentar e administrativa, positivando-se, por conseguinte,

valores e diretrizes principiológicas com grande apelo social86.

83 Idem, p. 90. 84 Ibidem, p. 92-93. 85 Ingo Wolfgang Sarlet noticia que na Alemanha, em cuja atual Constituição o Estado Social e Democrático de Direito é previsto como postulado (artigo 20, inciso I, da Lei Fundamental), o Tribunal Federal Constitucional definiu que além da propriedade entrevista sob o aspecto funcional-social, outros princípios de índole Constitucional também salvaguardam as posições jurídico-subjetivas prestacionais de direito público no Estado. São elas: “a) o princípio da proteção da confiança, desenvolvido a partir do postulado do estado de direito (art. 20, inc. III, da LF); b) o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. I, da LF); c) o princípio do estado social (art. 20, inc. I, da LF); e d) o princípio geral da igualdade (art. 3º, inc. I, da LF).” SARLET, Ingo Wolfgang. op. cit, p. 227. 86 Marcel Queiroz Linharez assim explica o fenômeno que se verificou no âmbito da atividade estatal no período pós-segunda guerra mundial: Consolida-se após a Segunda Guerra Mundial o Estado Social, cuja missão é a busca da igualdade social, antes garantida em seu aspecto formal. Para atingir este escopo, o Estado deve intervir na ordem econômica e social para ajudar os menos favorecidos; a preocupação maior desloca-se da liberdade para a igualdade. Há uma preocupação com o bem comum, em substituição ao individualismo do Estado Liberal. Adicione-se a isso a passagem do Estado monoclasse liberal ao Estado pluriclasse. Com a ampliação do direito de voto às mais diversas classes sociais, e não mais apenas às classes privilegiadas, também os interesses daquelas classes passam a contar com representantes junto ao Poder Legislativo, o que leva à positivação dos valores e aspirações destes grupos sociais.” LINHARES, Marcel Queiroz. O Estado social e o princípio da subsidiariedade: reflexos sobre o conceito de serviço público In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Estado do Paraná. Curitiba, volume 33, p. 209-224, 2000, p. 217-218.

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Jean Jaques Rousseau, cujas bases ideológicas fundamentaram o Estado

Social, preocupava-se não com a limitação ao poder – diversamente de Locke e

Montesquieu que, quanto ao ponto, direcionavam a limitação ao direito natural e à

separação dos poderes, respectivamente –, mas sim com sua entrega a quem realmente

se revelasse o titular. Como consequência, a burguesia não mais figurava como a única

classe que detinha o Poder, ainda que pela legítima atuação estatal revestida por leis e

enunciados normativos amparados por decisões jurisdicionais, sendo a totalidade do

povo a quem caberia, sob os auspícios contratualistas, o gerenciamento e condução do

Estado por meio da participação política87.

Jorge Miranda posiciona-se, a propósito da sistemática estatal no pós-

segunda guerra, que o Estado Social nada mais representaria senão uma segunda fase do

Estado constitucional, na medida em que a despeito das fundamentações e ideologias

que se mantém – tais como iluminismo, jusracionalismo e liberalismo filosófico –, a

liberdade, pública ou privada, das pessoas continua a ser o valor básico da vida coletiva

e a limitação do poder político um objetivo permanente; e, por outro lado, o povo

continua a figurar como unidade e totalidade dos cidadãos, tal como proclamado por

ocasião da Revolução Francesa88.

Explicando a correlação entre liberdade e igualdade, em ordem a corroborar

o primeiro dos argumentos expostos supra, o Autor observa que tanto na concepção

liberal como social, verificam-se liberdade e igualdade; porém, naquela igualdade figura

como titularidade dos direitos, demandando-se liberdade para todos, ao passo que nesta

concepção, social, a igualdade se revela como concreta forma de agir e a liberdade a

própria igualdade puxada para a ação. Discorre que sob o viés liberal, a liberdade de

cada um tem como limite a liberdade dos outros; e, em contraponto, na concepção social

o limite mencionado prende-se com a igualdade material e situada, de tal sorte que os

87 Segundo Dário José Kist: “Pode-se afirmar, portanto, que a grande contribuição de Rousseau para o Estado Social reside no postulado de que a justificação e legitimação do poder político tem bases populares, e o consentimento é a essência do poder. Ou seja, a democracia é o caminho insuperável para a aceitação do poder estatal, e esta participação popular na formação da vontade política fatalmente vai garantir características sociais ao poder. O principal instrumento que Rousseau vislumbra para a realização deste postulado é o sufrágio universal. Nisso reside sua radical discordância com a doutrina liberal, que postulava o voto censitário, evidentemente restrito à classe burguesa – democracia restrita e tolhia, pois. É por isso que se viabiliza a afirmação de que Rousseau lançou as bases do Estado que, além de Social, é democrático. É a ‘vontade geral’, que implica na participação universal dos cidadãos, a única a legitimar o poder. Este terá uma conotação social, e a prevalência dos interesses sociais sobre os individuais é a sentença de morte para o radical liberalismo, que necessita de um absoluto recuo da sociedade para a realização da liberdade individual.” KIST, Dário José. op. cit., p. 91-92. 88 MIRANDA, Jorge. Estado social e direitos fundamentais. In: REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Brasília, edição comemorativa, p. 199-219, 2005, p. 208.

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direitos constitucionais de índole individualista podem resumir-se num direito geral de

liberdade e os direitos de índole social num direito geral à igualdade89.

Em conclusão ao raciocínio, Jorge Miranda expõe que no Estado social de

Direito a liberdade possível não pode ser sacrificada em troca de quaisquer metas, por

mais justas que sejam, a alcançar o futuro. Impõe-se a criação de condições de liberdade

– de fato e não meramente jurídica – de maneira a que se possa alcançar a liberdade

igual para todos, construída através da correção de desigualdades e não através de uma

igualdade sem liberdade; “sujeita às balizas materiais e procedimentais da

Constituição”; e, por fim, “susceptível das modulações que derivem da vontade popular

expressa pelo voto”90.

Com a consolidação do Estado em sua feição social, as Constituições que

sobrevieram se revelaram prenhes de direitos fundamentais e sociais, expondo, em

regra, amplo catálogo e balizas comuns umas às outras, todas, no entanto, com intuito

de salvaguardar o cidadão e garantir o bem-estar social. Não é por acaso, inclusive, que

esta etapa do percurso estatal veio a ser conhecida como Estado de bem-estar-social.

A Constituição Mexicana, promulgada em 05 de fevereiro de 1917,

consagrava o nacionalismo, prevendo expressamente o compromisso do Estado com a

educação e reforma agrária. Previa, outrossim, disposições hostis ao poder econômico

representado pela burguesia, dispondo, verbi gratia, proibição do trabalho do menor de

14 (catorze) anos, a garantia da trabalhadora gestante contra demissão e à jornada

especial, a participação nos lucros das empresas e um sistema de previdência social91.

A Declaração dos Direitos do povo Trabalhador e Explorado editada na

Rússia em 1918, adotando premissas oriundas do pensamento marxista, dispunha que a

propriedade privada da terra estava abolida. Determinava o confisco dos bancos,

controle dos trabalhadores sobre as empresas, contendo, ainda, mensagens de “esmagar

impiedosamente todos os exploradores” e “repúdio completo da política bárbara da

civilização burguesa.”92.

A Constituição Alemã de 1919 – conhecida como a Constituição de

Weimar, porquanto promulgada nesta cidade em razão de que Berlim se encontrava

destruída pela primeira guerra mundial – determinou, no artigo 153, a sujeição da

propriedade privada a uma função social, dispondo que “A propriedade é garantida pela

89 MIRANDA, Jorge. op. cit., p. 209-210. 90 Idem, p. 210-211. 91 KIST, Dário José. op. cit., p. 95. 92 Idem, p. 96.

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Constituição. Seus conteúdos e limites resultam das disposições legais (...) A

propriedade obriga. Seu uso deve, ademais, servir ao bem comum.”. Também trouxe

previsão da reforma agrária (artigo 155), proteção ao trabalho (artigo 157), direito de

sindicalização (artigo 159), previdência social (artigo 161), entre outros93.

Finalmente, ainda considerando o panorama internacional, a Declaração

Universal dos Direitos do Homem, da Organização das Nações Unidas, firmada em 1º

de janeiro de 1942, trata, no artigo 55, do compromisso das nações firmatárias, inclusive

o Brasil, de promover as condições sociais necessárias a uma vida digna. Dispõe, assim,

que “(...) As Nações unidas favorecerão: a) níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e

condições de progresso e desenvolvimento econômico e social.”94.

Sintetizando as características do Estado Social, assim menciona Paulo

Bonavides, citado por Dário José Kist:

Em síntese, quando o Estado, coagido pelas pressões e reinvindicações da classe trabalhadora, confere a esta o direito ao trabalho, à previdência, à educação; quanto intervém na economia, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, controla profissões, compra produção, financia exportações, concede créditos, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, cria dependência ao seu próprio poder econômico, político e social, enfim, quando estende sua influência para todos os campos que antes eram reservados à iniciativa privada, este Estado será Social95.

Sucedeu, entrementes, que o crescimento dos direitos sociais e econômicos

ultimou por burocratizar em demasia o Estado, que se viu na condição de concretizar

administrativamente exigências legais com objetivo de ajustar a liberdade oriunda do

Estado Liberal à igualdade do Estado providência. Na mesma vertente, o inchaço da

máquina estatal demandava maior arrecadação e dispêndio de verbas públicas, o que,

aliado ao gerenciamento ineficiente como consequência do agigantamento da máquina,

viabilizava a prática de comportamentos proscritos por agentes públicos.

Idealizada a vertente keynesiana do Estado para que agisse nos campos

social e econômico, mostrou-se ineficiente justamente em tal seara, inviabilizando-se,

93 Ibidem, p. 96-97. 94 Ibidem, p. 97. 95 Ibidem, p. 98.

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em vista dos fatores supramencionados, que assegurasse o bem comum pela realização

dos direitos sociais e individuais nos vários setores da sociedade96.

Em paralelo, o advento da pós-modernidade97-98 – gerada, segundo Danilo

Zolo citado por Walber de Moura Agra, pelo fenômeno da complexidade social nas

sociedades de economia avançada e o processo de integração em escala global, a

globalização99 – expôs o enfraquecimento do Estado como decorrência da

impossibilidade de atendimento à plêiade de demandas sociais. Como consequência da

impossibilidade de o Estado atender às expectativas de uma sociedade pluricultural com

marcante conflituosidade oriunda da desubstancialização100, a pós-modernidade não

96 Ainda Marcel Linhares acerca da problemática exposta: “O crescimento dos chamados direitos sociais e econômicos ampliou desmesuradamente o rol das atribuições estatais, transformando-o em Estado empresário, em Estado investidor, com uma ação interventiva que conduz a ineficiência dos serviços públicos. De fato, houve um acréscimo da máquina administrativa (burocratização) e dos setores em que o Estado é chamado a atuar, que acabou por levar à ineficiência do Estado prestador de serviços, gravada pela crise financeira enfrentada pelos países da América Latina. Assim, a exigência de um Estado que agisse nos campos social e econômico para assegurar a justiça social, levou à exacerbação de suas atividades e à saturação de sua capacidade operacional, inviabilizando a realização deste objetivo inerente ao Estado Social de Direito: assegurar o bem comum, pela realização dos direitos sociais e individuais nos vários setores da sociedade.”. LINHARES, Marcel Queiroz. op. cit., p. 218-219. 97 O termo não passa ileso às críticas acadêmicas. Nelson Saldanha, citado por Walber de Moura Agra observa o seguinte: “O termo moderno vai mencionado no título com o sentido que lhe deu a historiografia dos séculos XVIII e XIX, ou seja: aludindo ao mundo ocidental que se segue ao Renascimento, ao aparecimento do capitalismo e ao da Reforma. De dentro do moderno desdobra-se o ‘contemporâneo’, ou surge como etapa posterior. Com esses conceitos, dispenso pessoalmente o rótulo de pós-moderno, que muitos vêm utilizando para designar as coisas correspondentes à crise da modernidade. Para mim são, ainda, modernidade. Prefiro empregar para o tema o termo secularização, que se refere à passagem do padrão sociocultural teológico para o leigo (e logo depois racional): a passagem que se deu no mundo clássico mais ou menos nos séculos V e IV a.C. e que ocorreu no Ocidente no trecho que abrande os séculos XVII e XVIII.” SALDANHA, Nelson. O Racionalismo Moderno e a Teoria do Poder Constituinte. Revista da ESMAFE. Recife, v. 8, n. 18, p. 481, jul/dez, 2003. Apud AGRA, Walber de Moura. Pós-modernidade, crise no estado social de direito e crise na legitimação da jurisdição constitucional. In: REVISTA DA ESMAPE – ESCOLA SUPERIOR DA MAGISTRATURA DE PERNAMBUCO. Recife, v. 9, n. 19, p. 575-610, jan/jun. 2004, p. 576. 98 A origem da pós-modernidade é assim explicada por Walber de Moura Agra: “A pós-modernidade é a consequência direta do desenvolvimento da infra-estrutura econômica dos países capitalistas desenvolvidos, fruto da revolução tecno-informática. Esse ritmo geométrico de modificações na sociedade, em consonância com as modificações tecnológicas, agravam ainda mais a possibilidade de encontrar princípios que possam ser compartilhados por toda a sociedade, que por sua vez está bastante fragmentada pela diversificação de lugares na cadeia produtiva.” AGRA, Walber de Moura, op.cit., p. 577. 99 “Segundo o professor Danilo Zolo, as motivações da crise do Estado Democrático Social de Direito podem ser creditadas a duas causas distintas: o fenômeno da complexidade social nas sociedades de economia avançada e o processo de integração em escala global, a globalização. Em decorrência do primeiro, assume relevo a crise nas estruturas normativas, que devido ao seu caráter genérico e abstrato não atendem às expectativas de uma sociedade pluricultural, marcada pela conflituosidade nas relações sociais. No segundo, o tema central é a erosão da soberania dos Estados nacionais, com a prevalência do poder dos sujeitos transnacionais. Acredita Zolo que todas as crises que assaltam a organização política atual podem ser resumidas em uma crise do Estado de Direito, atingindo de modo frontal a sua estrutura de garantia dos direitos fundamentais.” Idem, p. 585. 100 “A pós-modernidade aponta para um processo de desubstancialização porque a valoração científica passa a ser feita com referência ao cidadão, acumulando ao mesmo tempo as funções de sujeito e de objeto, autor da produção científica e da apropriação do conhecimento. Tomar o homem como referência

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somente evidenciou que o Estado social não se apresentava como solução definitiva a

atender aos anseios sociais, mas também que os princípios que serviram de amparo

desde o Estado liberal – entre os quais o da separação de poderes e o da soberania –

deveriam sofrer sérios questionamentos.

Como retornar ao Estado de cunho liberal não representa a solução viável e,

noutro flanco, o Estado social tampouco se mostrou eficaz o suficiente para garantir o

atendimento às necessidades sociais, fez-se necessário ajustar a trilha então assumida no

caminhar estatal para, observando-se os parâmetros pós-modernos, consagrar os

preceitos insertos nas Constituições que em seu bojo traziam não apenas normas, mas

também princípios que, sob o influxo pós-positivista, permitissem que o direito enfim

alcançasse a sociedade.

2.3. Estado neoliberal.

Se em um primeiro momento o Poder Legislativo fez-se diminuto (Estado

liberal), viabilizando ao indivíduo o exercício de suas capacidades individuais; na

sequência agigantou-se, regulando à completude (ao menos se acreditava que chegasse a

tanto) as relações sociais. O Poder Executivo, no auge do liberalismo, limitava-se a

garantir o exercício pleno da liberdade e, em viés promocional e paternalista decorrente

do Estado Social, comprometeu-se a levar a cabo políticas públicas voltadas à

igualdade.

No Estado Social, o Poder Executivo assumiu função de importância

candente, atuando mais no viés normativo do que propriamente administrativo. Percebe-

se, pois, que a separação de poderes já se revela comprometida ao menos quanto à

forma em que inicialmente fora idealizada101.

significa que, como os seus interesses são cambiantes de acordo com as suas relações sociopolítico-econômicas, a produção de uma ontologia que contemple todos os interesses se mostra de difícil elaboração. Finda-se a possibilidade de se mensurar uma teoria através de um único parâmetro, que passa a ser avaliada e mensurada sob os mais diversos prismas.” Ibidem, p. 577. 101 Sílvio Dobrowolski, comentando acerca do declínio do Poder Legislativo e a concentração do poder em mãos do Executivo por oportunidade do Estado Social assim menciona: “Transformada em solução, a lei perde os seus contornos clássicos: passa a regular casos concretos e determinados, durante a contingência temporal em que isso for necessário ou possível. (...) Por motivo dessas mudanças na legislação, o Poder Legislativo entra em crise. Os Parlamentos declinam, incapazes de atender aos reclamos da atualidade, porque delineados para uma época em que se legisla pouco, e não em massa e sobre problemas que anteriormente ninguém imaginava pertencerem ao campo legislativo. (...) Dessa impotência parlamentar em tomar as decisões necessárias, a par do acréscimo de atividade material do Estado, desloca-se o centro do poder político do Legislativo, para o Executivo. O Governo passa a ser o centro de impulso e decisão política. Dispõe do pessoal com as qualificações exigidas e dos instrumentos apropriados para a ação. A própria função legislativa é a ele atribuída, ou lhe cabe complementar normas apenas esquematizadas pelo Parlamento. A iniciativa das leis é, na maioria dos casos, exercida pelo

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Quanto ao Poder Judiciário, a pós-modernidade passou a demandar atuação

que não mais restringia suas funções típicas ao enquadramento fático de condutas à

moldura legal, mas sim ao exame principiológico dos conflitos postos à cura do

magistrado102. Nesse sentido, a passagem do Estado liberal ao Social e, posteriormente,

ao neoliberal, exacerbou dificuldade na concepção e separação de funções de cada um

dos vértices estatais, o que reflete diretamente na concepção de soberania103.

Com o início da década de 80 no século XX, o Estado Social começa a

ceder passo ao novo liberalismo que se anunciou como consequência da impossibilidade

de atendimento aos anseios da sociedade, agigantamento da máquina estatal, inflação

legislativa, burocratização excessiva, crise econômico financeira, revolução tecnológica

e, sobretudo, a globalização104.

Governo. (...) entre o político com investidura pública e o especialista dotado de autoridade operacional sustentada pelo conhecimento, a lógica da organização leva a preferir o segundo.”. DOBROWLSKI, Sílvio. A expansão do poder no estado social – aspectos ideais para contê-las. REVISTA DE INFORMAÇÃO LEGISLATIVA. Brasília, v. 86, n. 23, p. 105-124, abr./jun., 1985, p. 112-114. 102 Algumas causas de tal situação serão melhor abordadas adiante, mas desde logo convém fixar que a constitucionalização de direitos, esvaziamento do espaço público em decorrência do agigantamento das influência econômicas e a apatia política figuram entre tais. 103 “No âmbito das relações de poder, produz-se uma (re)configuração de toda estrutura política mundial, gerando, de fato, uma acentuada imbricação entre as decisões econômicas e as decisões políticas. A ‘mercadolatria’ submete as decisões políticas aos projetos econômicos em escala global. Evidencia-se a relativização da soberania dos Estados nacionais e o deslocamento dos centros decisórios para entidades financeiras que ditam as regras nos quatro cantos do planeta. (...) Este desmonte do Estado implica, necessariamente, a perda da autonomia dos poderes e o seu consequente desequilíbrio, ante a imposição inexorável das forças e regras do mercado e da supressão crescente da soberania dos Estados nacionais. Esta assimetria do exercício do poder, que rompe com a lógica do equilíbrio dos poderes, se manifesta por diversas razões. A ruptura com o modelo tradicional do Estado de Direito se verifica pela imposição cada vez mais acentuada de programas de ajuste econômico, que submetem as políticas nacionais aos interesses do capitalismo globalizado.” CARVALHO, Thiago Fabres de. A teoria da divisão de poderes no contexto do neoliberalismo: alguns dilemas da democracia em tempos de globalização econômica. In: REVISTA DE ESTUDOS CRIMINAIS. Sapucaia do Sul, v. 1, n. 3 p. 60-70, 2001, p. 66-67. 104 Quanto à globalização, embora tratada como assunto recorrente e atual, importa mencionar, como lembrado por Roberto Campos, citado por Rogério Medeiros Garcia de Lima, que tal não revela fenômeno recente e, tampouco, nunca antes visto na história da humanidade. Assim menciona o Autor: “Este século começou (até 1914) com a globalização da ‘belle époque’. Sob certos aspectos, essa globalização foi mais intensa que a atual, pois, além do livre comércio, havia a livre movimentação de capitais e de pessoas. Foi uma época de ‘grandes migrações’. Dessarte, a globalização contemporânea pós-muro de Berlim é apenas uma retomada de tendência após um longo interregno coletivista. Nos séculos 15 e 16 houvera a globalização geográfica, com as grandes descobertas das Américas e dos novos caminhos para a Índia, China e Japão. Mais remotamente, ainda, no começo deste milênio, houve a maior de todas as globalizações, a formação do Império Romano. O latim se tornou a língua franca de todo o mundo civilizado de então; o ‘denarium’ foi uma espécie de moeda única; o direito romano passou a moldar as instituições jurídicas da época; e os engenheiros de Roma desenvolveram e exportaram a tecnologia de infra-estrutura (aquedutos, portos e estradas). Setorialmente, houve também várias globalizações. A globalização ‘cultural’, pela hegemonia da cultura helenística do século 5 a.C até o século 2 d.C.. A difusão dramática do Cristianismo foi uma espécie de globalização ‘religiosa’.” CAMPOS, Roberto. A globalização revisitada, ensaio no jornal “Folha de São Paulo”, edição de 07 de junho de 1998, p. 1-4. Apud: LIMA, Rogério Medeiros Garcia de. Neoliberalismo e globalização: para entender o mundo em que vivemos. In: REVISTA DE DIREITO ADMINISTRATIVO. Rio de Janeiro, v. 225, p. 131-141, jul./set. 2001, p. 134-135.

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O neoliberalismo se caracteriza, pois, como reação teórica e política ao

Estado de Bem-estar. Frederick Von Hayek, tido como precursor do neoliberalismo,

destacou, a propósito da ruptura com o intervencionismo estatal, que tal doutrina “(...) é

muito mais que um programa econômico, senão que uma transformação global de toda

sociedade em todas as suas dimensões.”105

De acordo com a visão neoliberal, as imperfeições e crises do mercado

somente se corrigem com mais mercado, figurando a liberdade econômica como

fundamento da liberdade política. A democracia estaria estruturada sob a manutenção e

afirmação do livre jogo das forças do mercado, tendo como pressuposto que a economia

global seria auto-regulável, tendente à natural superação de crises, desequilíbrios e

capaz de distribuir equitativamente os seus benefícios em todo o mundo106.

A formação teórica do economista austríaco Frederick Von Hayek chegou

ao ponto de estabelecer concepção própria do Estado de Direito, entendendo-o apenas

existente se e enquanto apto a salvaguardar a liberdade por meio do afastamento da

intervenção do Estado na economia e do crescimento do poder discricionário dos

burocratas para estabelecer e levar a cabo a realização de metas sociais que ameacem

diretamente a liberdade.

Segundo Hayek, o Estado de Direito somente se caracterizaria se presentes

as seguintes características: a) a lei deve ser abstrata, geral e prospectiva, para que o

legislador não possa escolher uma pessoa ou grupo para que seja alvo de sua coerção ou

privilégio; b) a lei deve ser conhecida e certa (estável), para que as pessoas possam

planejar; c) a lei deve ser aplicada de forma igual para todos, cidadãos e autoridades, o

que ocasiona a diminuição da promulgação de leis injustas; d) deve haver uma divisão

entre legisladores e aplicadores do direito, juízes e administradores, de modo que as leis

não sejam feitas para solucionar casos concretos; e) impõe-se a existência de controle

judicial dos atos discricionários da administração para a correção de leis mal aplicadas;

f) legislação e políticas (públicas) também devem ser separadas, justificando-se a

coerção estatal apenas por meio de lei, para prevenir a coerção discriminatória de

indivíduos; g) deve haver, outrossim, uma carta de direitos não exaustiva para a

proteção da esfera privada107.

105 CARVALHO, Thiago Fabres de, op. cit., p. 64. 106 Idem, p. 65. 107 VIEIRA, Oscar Vilhena, op. cit., p. 203-204.

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Note-se que na concepção do autor evitam-se particularidades e exige-se o

afastamento da atuação estatal da esfera econômica e política, salvaguardando-se as

liberdades individuais necessárias à movimentação do capital no mercado.

Ainda concebendo o Estado de Direito sob o viés da proteção à economia de

mercado, tem-se Lon Fuller, que, em ‘The morality of Law’, posiciona-se no sentido de

que o Estado deve se afastar de parâmetros substantivos de justiça e noções de direito

natural. Para ele, o propósito dos sistemas legais deve ser submeter a conduta humana à

orientação e controle de regras gerais; e, para se alcançar tal intento, os sistemas legais

devem incorporar uma série de “excelências” que irão constituir a “moralidade interna

do direito”108.

Não se exige, para o Autor, uma carta de direitos ou, ainda, clara separação

de poderes. O Poder Judiciário, aliás, sequer figuraria como a melhor instituição para

policiar o processo de aplicação do Direito. Importa, na realidade, verificar a relação de

reciprocidade haurida da moralidade e economia de mercado, pois através das

instituições e procedimentos adotados por uma sociedade organizada exsurge rede

anônima e constante de colaboração entre os seus membros.

Vendo as sociedades de troca como ambiente propício para a realização da

moralidade interna do direito, aponta “três condições ótimas para a eficácia da noção de

dever”: a) a voluntariedade, de ambas as partes, com que a relação de reciprocidade, da

qual a obrigação deriva, constitui-se; b) a igualdade entre as obrigações a serem

prestadas pelas partes, que só podem ser estabelecidas pelo mercado; e c) a

reversibilidade, ou seja, que a sua posição nas relações contratuais não seja sempre a

mesma, podendo a todo tempo determinada parte trocar de lugar com a outra.

Adotando tais premissas e tendo o mercado como elemento formador

inclusive do Estado de Direito, Lon Fuller entende que restará deveras facilitado o

cumprimento de deveres e obrigações, independentemente de coerção estatal109.

Ressaltam-se com tal concepção a capacidade de o Autor de retirar de uma

sociedade regida pelo mercado uma formulação normativa do Estado de Direito; a ideia

de reciprocidade, inerente ao mercado, de sorte a que o direito alcança eficácia não

108 Algumas das excelências citadas pelo Autor são: a) a existência de regras, que devem ser públicas, prospectivas, não contraditórias entre si, compreensíveis e estáveis para que as pessoas possam por elas se pautar; b) congruência entre as regras e sua efetiva aplicação e administração. Idem, p. 205-206. 109 Ibidem, p- 205-207.

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apenas quando fruto da vontade consensual dos cidadãos, mas quando existe a

disponibilidade de respeitar mutuamente o exercício dos direitos110.

Decerto baseando-se nas concepções teóricas sobrelevadas e considerando,

ainda, a conjuntura político-econômica que se verificava como fruto, entre outros

fatores, da globalização, os Estados Unidos e a Inglaterra, sob os governos de Ronald

Reagan e Margaret Thatcher, concretizaram no cenário mundial nova política

econômica, fundamentada na redução do Estado tal qual aos parâmetros liberais, porém

com o diferencial da regulação das atividades desempenhadas pelas empresas111.

Pretende-se, pois, o Estado que: estimula e subsidia a iniciativa privada;

democratiza a Administração Pública pela participação dos cidadãos nos órgãos de

deliberação e de consulta e pela colaboração entre público e privado na realização das

atividades administrativas do Estado; encolhe-se para que a atuação do particular ganhe

espaço; empreende parcerias entre o Poder público e os entes privados, de sorte a

substituir a Administração quanto à elaboração de atos unilaterais, não mais se

concebendo a Administração estritamente sob os parâmetros autoritários, verticalizados

e hierarquizados112.

Neste contexto, passa a ter importância o princípio da subsidiariedade, a

exigir que a atuação direta do Estado somente se verifique acaso demonstrada a

incapacidade de o mercado resolver internamente o problema dos interesses

coletivos113, ou em casos que demandem a correção de falhas concernentes à atuação

empresarial.

110 Ibidem, p- 207. 111 “Com efeito, ao iniciar-se a década de 80, no século XX, o chamado Welfare State, que combinava democracia liberal na política com dirigismo econômico estatal, cede espaço a novo liberalismo. A crise econômica dos anos oitenta e os novos padrões de produtividade e rentabilidade, fornecidos pela revolução tecnológica, colocaram sob questionamento o ‘Estado do Bem-estar Social’ e as políticas de benefícios social praticadas. Os Estados Unidos e a Inglaterra, sob os governos, respectivamente, de Ronaldo Reagan e Margaret Thatcher, lideraram a implantação de uma nova política econômica, baseada precipuamente em conceitos liberais: Estado ‘mínimo’, desregulamentação do trabalho, privatizações, funcionamento do mercado, sem interferência estatal, e cortes de benefícios sociais.” LIMA, Rogério Medeiros Garcia de, op. cit., p. 133. 112 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública. São Paulo: Atlas, 2002, p. 16. 113 Marcel Queiroz Linhares assim esclarece a aplicação do princípio da subsidiariedade no contexto do Estado neoliberal: “O princípio da subsidiariedade exige que a atuação direta do Estado na atividade econômica, entendida em sentido amplo, demande prova específica da incapacidade do mercado de resolver internamente o problema da satisfação dos interesses coletivos. Assim, permaneceriam a cargo do Estado as atividades que lhe são próprias como ente soberano, e por isso consideradas indelegáveis ao particular (segurança, defesa, justiça, relações exteriores, legislação, polícia) e deveriam ser orientadas pelo princípio da subsidiariedade às atividades sociais (educação, saúde, pesquisa, cultura, assistência), exercidas apenas supletivamente pelo Estado, quando a iniciativa for deficiente.” LINHARES, Marcel Queiroz, op. cit., p. 220.

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Evidentemente, não se confunde o Estado subsidiário com o Estado mínimo.

Isso porque nesta feição, o ente estatal somente exerce atividades essenciais, relegando

todas as demais à iniciativa privada, de acordo com a ideia de liberdade individual do

Estado Liberal. Naquele, por outro lado, o Estado realiza as atividades típicas do Poder

Público e também as sociais e econômicas que os particulares não conseguem

empreender nos meandros da livre iniciativa e competição114, ademais, de corrigir

distorções decorrentes da própria atividade empresarial visando ao lucro115.

Não se pode olvidar, contudo, que embora o princípio da subsidiariedade

traga em seu cerne a redução das tarefas atribuídas ao Estado116, a redução da

intervenção no domínio econômico não pode desconsiderar os princípios jurídicos

essenciais da cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e do

pluralismo jurídico, além da erradicação da pobreza e da marginalização e redução das

desigualdades sociais, sob pena de negativa da construção de uma sociedade justa, livre

114 Idem, p. 220. 115 A correção das denominadas falhas de mercado constitui ponto estudado pela escola econômica do direito, definidas por Figueiredo como “toda a situação de anormalidade de efeito danoso, potencial ou efetivo, ao devido processo competitivo de determinado nicho de nossa economia, tendo resultados negativos para o bem-estar socioeconômico da população (...)”. Guestrin cita alguns exemplos de falhas do mercado: mercados imperfeitamente competitivos; barreiras de entrada decorrentes de limitações de ordem legal; barreiras de entrada decorrentes de altos custos sociais, informação imperfeita, externalidades ou efeitos externos, custos de transação relevantes, bens públicos e instabilidade do mercado. No Brasil, órgãos com a Comissão de Valores Mobiliários – CVM e o CADE verificam e corrigem as falhas de mercado sob os aspectos principais da assimetria informacional, poder díspar dos agentes econômicos e externalidades. JAKOBI, Karin Bergit. A atuação da CVM na regulação do mercado de capitais e na consagração do full disclosure, sob o enfoque da análise econômica do direito. 2011, 182f. Dissertação apresentada para obtenção do título de Mestre em direito no programa de mestrado em Direito Socioambiental – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2011. 116 Sustentando a aplicação diferenciada do apanágio teórico do princípio da subsidiariedade no Brasil e Europa, amparado pelo incremento das atividades sociais do Estado e não sua diminuição em vista dos ideais neoliberais, assim expõe Tarso Cabral Violin: “(...) a aplicação do princípio da subsidiariedade nos países subdesenvolvidos nos remete à necessidade de um Estado interventor e prestador de serviços, uma vez que o terceiro setor e o mercado não são suficientes para garantir a emancipação do indivíduo, o fim das desigualdades, uma sociedade justa. Assim, exemplificativamente, se na Europa ocidental a aplicação do princípio da subsidiariedade nos leva à diminuição da atuação direta do Estado e repasse dos serviços sociais ao terceiro setor, não há como essa regra ser seguida, ipsis litteris, em nosso tão desigual País.”. A veemente crítica do Autor em relação ao Estado neoliberal é pertinente e merece reprodução: “O neoliberalismo-gerencial vem sendo responsável pela expansão do não-estado, do Estado à margem, do Estado comprimido, com a desconstrução do Estado ampliado, democrático, social, e do seu aparelho, a Administração Pública. Torna o Estado um inimigo a ser combatido, numa sociedade em que apenas os melhores podem progredir, na qual a desigualdade é um valor positivo, não redundando em melhor distribuição de renda, maior integração social, mas apenas mais mercado, num projeto regressivo. Assim, ao invés de melhorar o estado e a Administração Pública, pretende substitui-los pelo privatismo.”. VIOLIN, Tarso Cabral. Uma análise crítica do ideário do terceiro setor no contexto neoliberal e as parcerias com a administração pública. In: REVISTA ZENITE DE LICITAÇÕES E CONTRATOS - ILC. Curitiba, v. 13, n. 150 p. 678-685, agosto 2006, p. 680.

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e solidária, o que viria em confronto ao estabelecido na própria Constituição da

República117.

Por outro lado, importa destacar o papel desempenhado pela sociedade civil

em ordem a viabilizar que o Estado, ainda que sob o influxo do capital, possa vir a

desempenhar as atividades essenciais e caras à Constituição, de sorte a engrandecer a

democracia118.

Juan Ramón Capella, nesta esteira, posiciona-se no sentido de que a criação

de vínculos comunitários viabilizará a tomada de ações no espaço público estatal com o

objetivo de, no cerne político, “reinventar, com formas institucionais novas, (...) a

democratização já conhecida.”119. Dessa forma, estar-se-á evitando que as questões

sociais e políticas não sejam encaradas apenas como ajustes econômicos empreendidos

e adequados em escala global120.

Nessa linha, poderia a sociedade traduzir democraticamente seus anseios ao

aparelho público sem macular a ordem constitucionalmente instituída no contexto de

um Estado formatado para dar importância candente às questões econômicas? Acaso

positivo, como fazê-lo?

3. Poder Judiciário, democracia e políticas públicas

Entendida, outrora, como regime subversor da ordem social (na medida em

que excluía a submissão de mulheres, crianças e escravos) ou reunião de um pequeno

número de cidadãos capaz de fomentar constante risco à ordem social121, a democracia

117 LINHARES, Marcel Queiroz, op. cit., p. 221-222. 118 Alain Torraine, citado por Rogério Medeiros Garcia de Lima, observou, com razão, que “A democracia está ameaçada, por um lado, pelos regimes totalitários que utilizam o liberalismo econômico para prolongar seu próprio poder, e, por outro, pelos Estados comunitários que se encontram tanto no Leste com no Oeste, no Sul como no Norte. Contra essas duas ameaças, as sociedades políticas democráticas reagem sem vigor, mais preocupadas com o consumo ou emprego do que com a política, enquanto as instituições nacionais estão absorvidas por tarefas de gestão econômica. A ação democrática, que parece estar presente em toda a parte, refugia-se, à margem das instituições oficiais, nas associações voluntárias que, tendo surgido a partir de objetivos humanitários, tornaram-se as principais defensoras dos direitos das minorias e das nações e categorias sociais oprimidas ou excluídas.” LIMA, Rogério Medeiros Garcia de, op. cit., p. 137-138. 119 CAPELLA, Juan Ramón, op. cit., p. 226. 120 Vivian Cristina Lima, citando Boaventura de Souza Santos, destaca que “O Estado deve ser visto como um movimento de força social, um componente de espaço público não estatal impedindo a apropriação desse espaço pelas forças despóticas do mercado. Boaventura de Souza Santos traz a ideia por nós acatada de um Estado como um novíssimo movimento social, um Estado articulador que não tem mais o monopólio da governação, mas que detém o monopólio da metagovernação, o monopólio da articulação.” LIMA, Vivian Cristina. A Teoria da Constituição: limites, possibilidades e perspectivas na pós-modernidade. In: IDAF – INFORMATIVO DE DIREITO ADMINISTRATIVO E RESPONSABILIDADE FISCAL. Curitiba, v. 1, n. 6 p. 496-510, janeiro 2002, p. 507. 121 Fábio Konder Comparato, em trabalho intitulado “Repensando a democracia”, observa, a propósito do mencionado supra, que desde a antiguidade clássica até meados do século XIX, a democracia era

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atualmente consubstancia o manto principiológico sob o qual praticamente todos os

regimes políticos vigentes, excluídos os de caráter totalitários, deixam-se agasalhar.

Ainda assim, a concepção de governo do povo é desenvolvida em caráter

meramente formal, garantindo-se a participação popular apenas por meio do exercício

do direito ao voto122. Conceber a democracia em sede material ultima por exigir a

participação efetiva da população no trato dos assuntos e políticas públicas,

notadamente as que ensejem gerenciamento de recursos e aplicação dos ativos

financeiros gerados pela tributação que se recolhe do contribuinte123.

Alguns instrumentos já se verificam no cenário pátrio e moldura normativa

correspondente, tais como o orçamento participativo e a consecução de audiências

públicas. Ocorre, no entanto, que a definição e realização de políticas públicas ainda se

encontra sob o exclusivo critério da pessoa que se encontra à testa da administração

pública, com eventual análise corretiva, deveras controvertidas, por meio do Poder

Judiciário.

A questão se torna ainda mais dificultosa tendo em linha de conta que o

conceito ‘políticas públicas’ não se revela esclarecedor em sede doutrinária. A leitura

atual sobre o tema aponta a existência, ao menos, de três vertentes distintas: políticas

públicas como atividade; políticas públicas como norma; e, finalmente, como estratégia

governamental.

compreendida como um “regime subversor da hierarquia social”, na medida em que não haveria mais a submissão das mulheres, crianças e escravos a ninguém e, desta maneira, deixariam de subsistir os bons costumes e outros sentimentos virtuosos. Pontua, ainda, que alguns autores, como por exemplo, James Madison, consideravam, inclusive, que por se tratar de uma reunião de um pequeno número de cidadãos, a democracia fomentava o espírito de facção, representando um “constante risco à ordem social. COMPARATO, Fábio Konder. Repensar a democracia. In: LIMA, Martonio Mont' Alverne Barreto; ALBUQUERQUE, Antonio de Menezes (Orgs.). Democracia, Direito e Política: Estudos Internacionais em Homenagem a Friedrich Müller. Florianópolis: Conceito Editorial, 2006. p. 189-224. p. 190. 122 Ainda Fábio Konder Comparato esclarece acerca da democracia entrevista sob aspecto puramente formal, observando que a democracia moderna, que teve gênese na América do Norte, representou uma inversão funcional de sua matriz grega, tendo em vista que o sistema de representação popular, constitui-se como um entrave à soberania do povo e se prestou à mascarar a solidificação de uma oligarquia que dominou o poder soberano. COMPARATO, Fábio Konder, op. cit., p. 191. 123 Ana Maria D’ávila Lopes observa que a concepção de cidadania como um direito que demanda participação do titular está presente na Constituição Federal Brasileira de 1988. Para a Autora, portanto, o cidadão deixou de ser um simples expectador para ser protagonista da construção de sua própria história. Na classificação de Canotilho a norma do art. 1º, II, pode ser considerada como um princípio-garantia, haja vista instituir direta e imediatamente uma garantia aos cidadãos. LOPES, Ana Maria D´ávila. A participação política das minorias no Estado democrático de direito brasileiro. In: BARRETO LIMA, Martonio Mont'Alverne; ALBUQUERQUE, Paulo Antonio de Menezes. (Orgs.). Democracia, Direito e Política: estudos internacionais em homenagem a Friedrich Müller. Florianópolis: Conceito Editorial, 2006, v. 1, p. 83-96.

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Acerca da primeira visão, a dificuldade de conceituação fora da seguinte

maneira traçada por Fábio Konder Comparato:

A primeira distinção a ser feita, no que diz respeito à política como programa de ação, é de ordem negativa. Ela não é uma norma, ou seja, ela se distingue nitidamente dos elementos da realidade jurídica, sobre os quais os juristas desenvolveram a maior parte de suas reflexões, desde os primórdios da iurisprudentia romana. (...) Mas se a política deve ser claramente distinguida das normas e dos atos, é preciso reconhecer que ela acaba por englobá-los como seus componentes. É que a política aparece, antes de tudo, como uma atividade, isto é, um conjunto organizado de normas e atos tendentes à realização de um objetivo determinado. O conceito de atividade, que é também recente na ciência jurídica, encontra-se hoje no centro da teoria do direito empresarial (em substituição ao superado ‘ato de comércio’) e constitui o cerne da moderna noção de serviço público, de procedimento administrativo e de direção estatal na economia. A política, como conjunto de normas e atos, é unificada pela sua finalidade. Os atos, decisões ou normas que a compõem, tomados isoladamente, são de natureza heterogênea e submetem-se a um regime jurídico que lhes é próprio.124

Entendida como norma, as políticas públicas se distinguiriam dos

regramentos genéricos e abstratos precisamente pela ausência de tais atributos. Ao

revés, seriam forjadas para a realização de objetivos determinados, atuando de forma

complementar às normas vigentes, preenchendo os espaços correspondentes de sorte a

concretizar os princípios e regras125.

Entrevista como estratégia governamental, as políticas públicas se

diferenciam do poder político, evidenciando-se impositivo o recorte alusivo à área em

que implementadas, tais como: política social, política econômica, fiscal, de saúde,

habitacional, de assistência, inter plures.

Luciana Vargas Netto Oliveira, em estudo denominado “Estado e políticas

públicas no Brasil: desafios ante a conjuntura neoliberal”, assim esclarece:

124 COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. Apud BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas – reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 23-24. 125 Maria Paula Dallari Bucci assim explica: “Poder-se ia dizer que as políticas públicas atuam de forma complementar, preenchendo os espaços normativos e concretizando os princípios e regras, com vista a objetivos determinados. Caberia, então, encontrar lugar (ou melhorar os seus contornos) para uma categoria jurídico-formal, situada provavelmente abaixo das normas constitucionais e acima ou ao lado das infraconstitucionais. Por esse raciocínio, as políticas públicas corresponderiam, no plano jurídico, a diretrizes, normas de um tipo especial, na medida em que romperiam as amarras dos atributos de generalidade e abstração – que extremam as normas dos atos jurídicos, esses sempre concretos –, para dispor sobre matérias contingentes. Na pirâmide kelseniana, tais normas não seriam de fácil acomodação.” BUCCI, Maria Paula Dallari, op. cit., p. 26-27.

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Políticas são atos oriundos de relações de força existentes na sociedade, materializados sob diversas formas. São denominadas de públicas quando essas ações são comandadas por agentes estatais e destinadas a alterar as relações sociais existentes. As políticas públicas são manifestações das relações de forças sociais refletidas nas instituições estatais e atuam sobre campos institucionais diversos em função do interesse público, destinando-se a alterar as relações sociais estabelecidas. (...) As políticas públicas são ‘um conjunto de medidas agilizadas e sistematizadas pelo governo para atuar, com maior eficiência, nos mecanismos de produção, distribuição e consumo de bens já instituídos ou em constante renovação.126

Quer se tenham as políticas públicas como atividade ou norma, necessário

considerar que a respectiva efetivação assume importância candente na aplicação do

princípio democrático, porquanto atreladas ao exercício da cidadania.

Evidentemente, o gerenciamento de recursos públicos e a consecução das

políticas públicas previamente constantes na pauta governamental são matérias que

condizem diretamente com a democracia, na medida em que o interesse público

demanda a aplicação dos recursos de maneira paralela aos interesses de classe, pessoais

ou moralmente questionáveis127. Some-se a isto o fato de que, como anteriormente

explicitado, o capital exerce notória influência no gerenciamento do aparelho público e,

em último grau, também na vida do cidadão.

À falta, todavia, de instrumentos efetivos e aptos a garantir a participação

dos cidadãos na escolha das políticas públicas prioritárias em cada segmento da

sociedade, poderia o Poder Judiciário assumir tal papel, ou, ao revés, estaria atuando de

maneira contramajoritária e se arvorando em funções que não lhe apetecem?

Dito de outra forma: definida a política pública adotada pelo Estado para

alguma temática, ou mesmo em sentido gerencial mais amplo, poderia o Poder

Judiciário ponderar, ainda que tendo como base os direitos fundamentais definidos na

Carta da República, algum aspecto da política escolhida em sede legal e executiva sem

infringir frontalmente a separação dos poderes ou se utilizar de critérios exclusivamente

políticos?

126 OLIVEIRA, Luciana Vargas Netto. Estado e políticas públicas no Brasil: desafios ante a conjuntura neoliberal. Serviço Social e Sociedade. São Paulo, n. 93, p. 101-123, março 2008, p. 102. 127 Ainda Luciana Vargas Netto, acerca do ponto, destaca que “(...)o núcleo central é o locus onde se realiza o embate em torno de interesses, preferências e ideias: os governos. Nesse sentido, a reflexão centra-se no espaço que cabe ao governo sobre as decisões, sendo esse permeado de pressões de grupos de interesses que estão fora do poder, de interesses daqueles que estão efetivamente no poder, de interesses de classe, entre outros. Desse modo, infere-se que existe uma ‘autonomia relativa do Estado’, que é permeável a influências externas e internas.” OLIVEIRA, Luciana Vargas Netto, op. cit., p. 102-103.

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Se, em primeiro momento, a lei figurava como parâmetro seguro de

definição das questões sociais, com o incremento da complexidade social tornou-se

insuficiente, o que demandou atuação ativa do Poder Judiciário, realizando, ainda que

de forma contramajoritária, os princípios e valores insertos na Carta da República.

Deu-se, pois, o que se convencionou chamar ativismo judicial, que, embora

não possa ser confundido com posicionamentos ditos progressistas assumidos pelo

Poder Judiciário128 ou com a prolação de decisões embasadas exclusivamente em

critérios consequencialistas129, caracteriza-se, principalmente, pela “criação do direito”

por oportunidade do julgamento de questões inicialmente de cunho político130.

128 José Guilherme Berman, com apoio em Kmiec e Ely, lembra a inexistência de relação necessária entre posições politicamente progressistas e a defesa do ativismo judicial. BERMAN, José Guilherme. Ativismo judicial, judicialização da política e democracia. In: AJURIS. Porto Alegre, v. 36, n. 116, p. 209-226, dezembro 2009, p. 217. 129 Fábio Martins de Andrade observa, a propósito do consequencialismo como critério de postura ativista adotada pelo Supremo Tribunal Federal notadamente por oportunidade do período em que atuou na Corte o então Ministro Nelson Jobim, que “Quando nos debruçamos sobre a análise jurisprudencial, releva assinalar que o comprometimento do Supremo Tribunal Federal com o ativismo judicial não significa necessária comunhão com o discurso de fundamentação que invoque a proteção dos direitos fundamentais. É que sob certo aspecto tem se aproximado mais de um ativismo judicial proporcionado pelo pensamento conseqüencialista do que pela perspectiva teórica do neoconstitucionalismo. Já apontamos em outra oportunidade que, nos últimos tempos, o Supremo Tribunal Federal tem adotado um posicionamento dito ‘consequencialista’, vale dizer, bastante atento às consequências práticas de suas decisões. A razão prática tem passado a exercer um papel preponderante na administração da Justiça, sobrepondo-se, por vezes, às razões eminentemente teóricas. Tal orientação, no entanto, pode conduzir a desvios indesejáveis.” ANDRADE, Fábio Martins de. O consequencialismo, a modulação temporal dos efeitos e o ativismo judicial nas decisões do Supremo Tribunal Federal e o estado de direito. REVISTA DIALÉTICA DE DIREITO TRIBUTÁRIO. São Paulo, n. 172, p. 34-43, jan. 2010, p. 41-42. 130 Keenan Kmiec, citado por José Guilherme Berman, estabeleceu as seguintes características aptas a caracterizar uma decisão como ativista: “Uma primeira ideia de ativismo judicial poderia vir associada a um aumento no número de atos invalidados pelo Judiciário em nome de ofensas à Constituição. (...) Por esta razão, a primeira definição de ativismo judicial fica limitada aos casos em que há a invalidação de atos de constitucionalidade discutível. Ou seja, uma decisão será considerada ativista não quando declarar uma lei inconstitucional, mas sim quando declarar uma lei cuja inconstitucionalidade seja, no mínimo, duvidosa. (...) A segunda concepção de ativismo é a que o liga à prática de não observar os precedentes judiciais existentes ao decidir uma determinada questão. (...) De acordo com este critério, o Judiciário seria ativista quando não adotasse, em suas decisões, a metodologia geralmente aceita para a solução de casos constitucionais. (...) De acordo com mais esta concepção de ativismo judicial, os juízes adotariam tal postura quando decidissem os casos motivados por razões pessoais (estratégicas), e não com base em razões públicas. Aqui, a utilização de um determinado método se daria de forma deliberada, visando a atingir determinada resposta. A decisão será ativista, neste sentido, quando a) o juiz tem um motivo velado para decidir daquela maneira; b) a decisão se afastar dos parâmetros de correção. O tamanho do ativismo depende de quanto se desvia desse parâmetro. (...) Este último critério apresentado parece ser o mais útil (...) Consiste, com efeito, na criação do direito pelo Judiciário, que deixaria de se limitar a interpretar as leis já existentes.” BERMAN, José Guilherme, op. cit., p. 211-213. Luís Roberto Barroso, por outro lado, entende que “o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. (...) A idéia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição;

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Luís Roberto Barroso aponta três causas principais do que denomina

“judicialização da vida”, a saber: a redemocraticação do país, com a promulgação da

Constituição de 1988131; a constitucionalização abrangente de questões antes deixadas

para o processo político majoritário e legislação ordinária132; e o sistema brasileiro de

controle de constitucionalidade, tido pelo autor como um dos mais abrangentes do

mundo133. A propósito do ativismo judicial, destaca, tendo como parâmetros as causas

supramencionadas, que não cabe ao Supremo Tribunal Federal outra alternativa senão

pronunciar-se sobre as questões controvertidas, já que assim o fazendo, não estará a

criar um “modelo juriscêntrico de hegemonia judicial”, mas apenas limitando-se “a

cumprir, de modo estrito, o seu papel constitucional, em conformidade com o desenho

institucional vigente.”.

Neste viés, a Constituição figura como o porto seguro a partir do qual seria

possível ao Poder Judiciário extrair – e fundamentar – os valores que terá como norte

(iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas.” BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática: retrospectiva 2008. REVISTA DE DIREITO DO ESTADO. Rio de Janeiro, v. 4, n. 13, p. 71-91, jan./mar. 2009, p. 75. 131 “A primeira causa de judicialização foi a redemocratização do país, que teve como ponto culminante a promulgação da Constituição de 1988. Nas últimas décadas, com a recuperação das garantias da magistratura o Judiciário deixou de ser um departamento técnico-especializado e se transformou em um verdadeiro poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto com outros Poderes. No Supremo Tribunal Federal, uma geração de novos Ministros já não deve seu título de investidura ao regime militar. Por outro lado, o ambiente democrático reavivou a cidadania, dando maior nível de informação e de consciência de direitos a amplos segmentos da população, que passaram a buscar a proteção de seus interesses perante juízes e tribunais. Nesse mesmo contexto, deu-se a expansão institucional do Ministério Público, com aumento da relevância de sua atuação fora da área estritamente penal, bem como a presença crescente da Defensoria Pública em diferentes partes do Brasil. Em suma: a redemocratização fortaleceu e expandiu o Poder Judiciário, bem como aumentou a demanda por justiça na sociedade brasileira.” BARROSO, Luís Roberto, op. cit., p. 73. 132 “A segunda causa foi a constitucionalização abrangente, que trouxe para a Constituição inúmeras matérias que antes eram deixadas para o processo político majoritário e para a legislação ordinária. Essa foi, igualmente, uma tendência mundial, iniciada com as Constituições de Portugal (1976) e Espanha (1978), que foi potencializada entre nós com a Constituição de 1988. A Carta brasileira é analítica, ambiciosa, desconfiada do legislador. Como intuitivo, constitucionalizar uma matéria significa transformar Política em Direito. Na medida em que uma questão – seja um direito individual, uma prestação estatal ou um fim público – é disciplinada em uma norma constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica, que pode ser formulada sob a forma de ação judicial.” Idem, p. 73. 133 “A terceira e última causa da judicialização, a ser examinada aqui, é o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, um dos mais abrangentes do mundo. Referido como híbrido ou eclético, ele combina aspectos de dois sistemas diversos: o americano e o europeu. Assim, desde o início da República, adota-se entre nós a fórmula americana de controle incidental e difuso, pelo qual qualquer juiz ou tribunal pode deixar de aplicar uma lei, em um caso concreto que lhe tenha sido submetido, caso a considere inconstitucional. Por outro lado, trouxemos do modelo europeu o controle por ação direta, que permite que determinadas matérias seja levadas em tese e imediatamente ao Supremo Tribunal Federal. A tudo isso se soma o direito de propositura amplo, previsto no art. 103, pelo qual inúmeros órgãos, bem como entidades públicas de privadas – as sociedades de classe de âmbito nacional e as confederações sindicais – podem ajuizar ações diretas. Nesse cenário, quase qualquer questão política ou moralmente relevante pode ser alçada ao STF.” Ibidem, p. 74.

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para atravessar as águas tormentosas dos conflitos em cujo bojo se encontram questões

sociais e políticas.134

Garapon, capitaneando juntamente com Cappelletti o que se convencionou

denominar Escola histórico-sociológica, observou que os processos de mudança social

que ocorreram ao longo do tempo ensejaram crescente atuação do mercado nas decisões

políticas. Assim, na medida em que se enfraquecia o Estado, desmoronava-se

igualmente, porém de maneira simbólica, a sociedade democrática, a ponto de se

verificar a desnacionalização de suas características e o advento de poder supranacional

oriundo da internacionalização do direito, crise da legitimidade representativa e

contratualização das relações sociais135, o que recomenda postura ativista do Poder

Judiciário.

134 Ran Hirschl, em “The New Constiutionalism and the Judicialization of Pure Politics Worlwide”, in Fordham Law Review, vol. 75, 2006, estabelece critérios que distinguem a judicialização de questões políticas do ativismo judicial. Assim são descritos por José Guilherme Berman: “Outro fenômeno relacionado ao desenvolvimento do protagonismo judicial, e que me parece distinto do ativismo judicial, é chamado genericamente de ‘judicialização da política’. A expressão, contudo, comporta ao menos três faces distintas, ainda que inter-relacionadas, como destaca Ran Hirschl, professor de ciência política e direito na Universidade de Toronto. (...) Em um nível mais abstrato, Hirschl faz referência à popularização do discurso jurídico em praticamente todos os conflitos da vida moderna. Segundo ele, os conflitos sociais são capturados pelo direito e passam a ser resolvidos por meio da aplicação de normas e procedimentos ‘quasi-judicial’, o que seria consequência de uma crescente complexidade, característica das sociedades altamente regulamentadas surgidas com o estado de bem-estar-social. Esta primeira face da judicialização é chamada pelo autor canadense de ‘judicialização das relações sociais’. Um segundo nível, mais concreto, da judicialização da política decorreria da expansão do papel dos tribunais na determinação de políticas públicas, notadamente aquelas ligadas a direitos constitucionais. Embora Hirschl aponte para casos que digam respeito às tradicionais liberdades civis clássicas como os principais exemplos desta face da judicialização (notadamente o devido processo legal, a privacidade e a igualdade perante a lei), não se pode ignorar o fato de que em diversos ordenamentos a proteção constitucional não se limita aos direitos civis e políticos, avançando também sobre direitos sociais. (...) Por fim, surge uma terceira classe de judicialização, que parece ser a mais problemática de todas: a judicialização da megapolítica, em que controvérsias políticas centrais, responsáveis pela definição do próprio conceito de comunidade, têm a sua resolução delegada ao Judiciário.”. BERMAN, José Guilherme, op. cit., p. 218-219. 135 GARAPON, Antoine. Le Gardien de Promesses. Paris: Odile Jacob, 1996, p. 19-25. O posicionamento do Autor fora bem captado e relatado por Tiago Neiva Santos que, em trabalho acerca do ativismo judicial assim mencionou: “Para Garapon, representante da Escola histórico-sociológica, os processos de mudança social, que ocorreram ao longo do tempo, assentaram a ocorrência de uma crescente atuação do mercado nas decisões políticas. (...) Na medida em que se enfraquecia o Estado, se desmoronava simbolicamente a sociedade democrática (...) Era a passagem do Estado assistencialista para o Estado privatizado. Para o mencionado autor essas mudanças sociais criaram o espaço necessário para a existência de um individualismo capitalista cada vez mais influente, e com isso abriu-se a possibilidade do crescimento de uma necessidade de contratualização das relações sociais. Além disso, foi ressaltado também pelo autor que a evolução do direito guiou-se para a desnacionalização de suas características, fazendo emergir assim um poder supranacional que teve como consequência preponderante a passagem da democracia para um mundo jurídico-burocrático, desviando-se a função do cidadão para o Estado. De outro lado, um efeito diverso e direto dessa individualização do cidadão em relação às políticas exercidas pelo poder público é o aumento de causas a serem decididas no Poder Judiciário. Justamente por estar o cidadão alheio ao cenário político e avesso às discussões políticas, cada vez menos ele se integra ao cenário político e cada vez mais exerce esse papel em outra seara, qual seja, a judicial. Sendo assim, Garapon observa a ampliação do poder conferido ao Poder Judiciário como um efeito decorrente da assimilação da liberdade e do bem-estar social, ambos supervalorizados nas democracias emergentes.

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Cappelletti, em igual cariz, posiciona-se no sentido de que a

representatividade plena é um conceito utópico, notadamente considerando que o

processo de criação do direito se dá por diuturna presença de interpretações jurídicas

que variam de acordo com o grau de construtivismo interpretacional. Em assim sendo,

concede-se uma espécie de legitimidade democrática ao Poder Judiciário para a criação

de direito jurisprudencial136. Robert Alexy, nesta quadra, chega ao ponto de sustentar a

legitimidade da Corte Constitucional com base no que denomina “representação

argumentativa”137.

Evidentemente, porém, não se pode olvidar que em algumas situações não é

o Poder Judiciário o fórum mais adequado para a discussão de questões técnicas

especializadas inseridas nos meandros de outro Poder; ou, por outro lado, decidir

desconhecendo os efeitos sistêmicos gerados pelo provimento judicial138. Uma

Nesse sentido, explicitou ele que seriam fatores preponderantes para ampliação da aplicabilidade efetiva do direito: o fim da guerra fria, a internacionalização do Direito, a crise da legitimidade representativa e a contratualização das relações sociais. Todos itens presentes em democracias emergentes que procuram legalizar e conformar os seus poderes em torno das realizações econômicas das sociedade.” SANTOS, Tiago Neiva. Ativismo judicial: uma visão democrática sobre o aspecto político da jurisdição constitucional. In: REVISTA DE INFORMAÇÃO LEGISLATIVA. Brasília, v. 44, n. 173, p. 271-284, jan./mar. 2007, p. 275. 136 SANTOS, Tiago Neiva, op. cit., p. 276. 137 Flávio Pedron noticia o pensamento de Robert Alexy: “Em recente trabalho, Alexy busca justificar a legitimidade de uma Corte Constitucional não em razão da potencial participação e aceitação racional da sociedade, mas a partir do que ele considera uma representação argumentativa: ‘The representation of the people by a constitutional court is, in contrast, purely argumentative. The fact that representation by parliament is volitional as well as discursive shows that representation and argumentation are not incompatible. On the contrary, an adequate concept of representation must refer – as Leiholz puts it – to some ideal values. Representation is more then – as Kelsen proposes – a proxy, and more than – as Carl Schmitt maintains – tendering the repraesentandum existent. To be sure, it includes elements of both, that is, representation is necessarily normative as well as real, but these elements do not exhaust this concept. Representation necessarily claims to correctness. Therefore, a fully-fledged concept of representation must include an ideal dimension, which connects decision with discourse. Representation is thus defined by the connection of normative, factual, and ideal dimensions’. Nesse sentido, o déficit de legitimidade das Cortes Constitucionais poderia ser superado pela existência de pessoas capazes de avaliar as pretensões de validade de correção das normas.” PEDRON, Flávio Quinaud. A contribuição e os limites da teoria de Klaus Günther: a distinção entre discursos de justificação e discursos de aplicação como fundamento para uma reconstrução da função jurisdicional. REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UFPR. Curitiba, n. 48, p. 187-201, 2008, p. 199. 138 Citando Cass Sustein e Adrian Vermeulle, Luís Roberto Barroso assim explica acerca dos critérios mencionados: “A doutrina constitucional contemporânea tem explorado duas idéias que merecem registro: a de capacidades institucionais e a de efeitos sistêmicos. Capacidade institucional envolve a determinação de qual Poder está mais habilitado a produzir a melhor decisão em determinada matéria. Temas envolvendo aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade podem não ter no juiz de direito o árbitro mais qualificado, por falta de informação ou conhecimento específico. (...) Também o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejados pode recomendar, em certos casos, uma posição de cautela e deferência por parte do Judiciário. O juiz, por vocação e treinamento, normalmente estará preparado para realizar a justiça do caso concreto, a microjustiça. Ele nem sempre dispõe das informações, do tempo e mesmo do conhecimento para avaliar o impacto de determinadas decisões, proferidas em processos individuais, sobre a realidade de um segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público. (...) Ter uma avaliação criteriosa da própria capacidade institucional e optar por

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advertência, no entanto: os critérios da observância à capacidade institucional e dos

efeitos sistêmicos gerados por uma decisão, conquanto oriundos da prudência e cautela,

não podem se prestar à negativa de competência jurisdicional.

O quadro atual da evolução social parece demandar cada vez mais do Poder

Judiciário, de modo que a consecução de suas funções que não mais se restringe ao

mecanismo da adjudicação do direito a quem o postula intersubjetivamente. Esta fase

fora ultrapassada e não cabe mais como elemento de definição da função judicial139.

Observe-se que mesmo na Inglaterra, manancial do sistema common law,

tem se verificado tendência, notadamente com a edição do ‘Human Rights Act’ de 1998

e a ‘Constitutional Reform Act’ de 2005, de fortalecimento da independência do Poder

Judiciário, de moldes a viabilizar a possibilidade de prolação de decisões que sopesem

critérios políticos de escolha legislativa decorrente do princípio da soberania do

parlamento em contraste com estatutos normativos previamente definidos. Tal como nos

regimes de civil law, parece ter sido ultrapassada a fronteira da atividade judicante

meramente atrelada aos conflitos intersubjetivos para conferir maior envergadura à

função jurisdicional140.

não exercer o poder, em auto-limitação espontânea, antes eleva do que diminui.” BARROSO, Luís Roberto, op. cit., p. 85. 139 Observa Luís Roberto Barroso acerca do ponto: “De fato, desde o final da Segunda Guerra Mundial verificou-se, na maior parte dos países ocidentais, um avanço da justiça constitucional sobre o espaço da política majoritária, que é aquela feita no âmbito do Legislativo e do Executivo, tendo por combustível o voto popular. No Canadá, a Suprema Corte foi chamada a se manifestar sobre a constitucionalidade de os Estados Unidos fazerem testes com mísseis em solo canadense. Nos Estados Unidos, o último capítulo da eleição presidencial de 2000 foi escrito pela Suprema Corte, no julgamento de Bush v. Gore. Em Israel, a Suprema Corte decidiu sobre a compatibilidade, com a Constituição e com atos internacionais, da construção de um muro na fronteira com o território palestino. A Corte Constitucional da Turquia tem desempenhado um papel vital na preservação de um Estado Laico, protegendo-o do avanço do fundamentalismo islâmico. Na Hungria e na Argentina, planos econômicos de largo alcance tiveram sua validade decidida pelas mais altas cortes. Na Coréia, a Corte Constitucional restituiu o mandato de um presidente que havia sido destituído por impeachment. Todos estes casos ilustram a fluidez da fronteira entre política e justiça no mundo contemporâneo.” Idem, p. 72. 140 André Rodrigues Cyrino, em interessante estudo acerca do tema dos direitos humanos e criação de Corte Constitucional na Inglaterra, observa que o Human Rights Act de 1988 possibilitou que, em certa medida, o Poder Judiciário declarasse a incompatibilidade de atos normativos editados pelo Parlamento se em confronto com direitos humanos elencados no estatuto. Igualmente, a Constitutional Reform Act de 2005 ensejou a criação de uma corte Constitucional cujo funcionamento, e até mesmo a localização, apartam-se em definitivo do Parlamento, esvaziando a própria competência jurisdicional tradicionalmente exercida pela Câmara dos Lordes e pelo Lorde Chanceler. Observem-se excertos do trabalho: “(...) O HRA não altera a soberania do Parlamento. Todavia, tal lei de 1998 confere às cortes inglesas autoridade para que as mesmas possam aferir a juridicidade da legislação eventualmente em conflito com os direitos fundamentais consagrados pelo estatuto. Eis uma grande mudança. Com efeito, estabelece o diploma de direitos humanos a possibilidade de as altas cortes britânicas declararem, em casos concretos, que a legislação doméstica é incompatível (declaration of incompability) com os direitos fundamentais dispostos no estatuto de 1988. Isto é: as leis posteriores ao HRA estão sujeitas a uma análise de compatibilidade com os direitos humanos expressamente consagrados pelo Parlamento inglês em 1998. (...) As mudanças não param no HRA. Recentemente, um novo ingrediente é adicionado à cambiante Constituição britânica, trazendo ainda mais questões sobre o futuro constitucional deste país, notadamente

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A problemática, em realidade, já não mais se atém à definição dos precisos

limites entre as atribuições dos Poderes da República, mas sim ao enquadramento

jurídico da resolução das questões políticas levadas ao exame do Poder Judiciário141.

Neste vértice, quer no sistema da ‘civil law’, quer na ‘common law’142, não

há como se admitir que o processo de produção do direito seja levado a cabo pelo Poder

Judiciário à míngua da observância de parâmetros legais e constitucionais já

previamente definidos nos estatutos normativos vigentes a revelarem a adoção de

critérios de aferição jurídica do conflito e não meramente políticos. Entendimento em

sentido reverso geraria decerto efeitos nefastos, já que não haveria, em princípio,

controle da atividade jurisdicional quanto à criação do direito, que, aliás, tornar-se-ia

pulverizado de acordo com cada conflito e idealizado conforme cada Julgador o

entendesse pertinente.

Há que se definir, portanto, critérios jurídicos para a análise judicial de

questões que se revelam limítrofes entre a atribuição dos Poderes Legislativo e

Executivo e a competência do Poder Judiciário. O tema é vasto, sendo que iterativas

propostas já foram apresentadas, de modo que nos dois capítulos que seguem alguns

posicionamentos serão abordados, numerus apertus, com ênfase nos seguintes eixos:

atuação constitucional; o posicionamento teórico da figura do juiz; o caso concreto; e os

no que diz respeito – e é isso que se quer destacar – ao papel do Poder Judiciário. A edição do Constitutional Reform Act, em 2005 (CRA), o qual faz mais que jus ao próprio nome, promove profundas reformas na Constituição britânica, o que tem gerado grandes debates na Inglaterra. (...) O principal objetivo da reforma constitucional foi promover uma radical reestruturação do Poder Judiciário britânico, destacando-se duas mudanças paradigmáticas: (i) a criação de uma Corte Constitucional; e (ii) o esvaziamento das funções jurisdicionais da Câmara dos Lordes e do Lorde Chanceler: os 12 Law Lords serão os primeiros membros da nova Corte, que começará a funcionar em outubro de 2008.” CYRINO, André Rodrigues. Revolução na Inglaterra? Direitos humanos, corte constitucional e declaração de incompatibilidade das leis. Novel espécie de judicial review? REVISTA DE DIREITO DO ESTADO. Rio de Janeiro, v. 2, n. 5, p. 267-288, jan./mar. 2007. 141 Ainda Fábio Martins de Andrade lembra que “(...) houve na história recente do Supremo Tribunal Federal um momento muito bem delineado no qual o discurso político invadiu o discurso jurídico. Significa dizer que, por vezes, as considerações sobre a conveniência, a oportunidade e as consequências de eventual decisão passaram a assumir relevante papel na tomada de decisão pelos Ministros. A preocupação com a governabilidade passou a integrar o espectro decisório da Suprema Corte. Enfim, o pragmatismo ou o conseqüencialismo ganhou força no discurso dos Ministros do Pretório Excelso. Tal momento, não por acaso, converge com a passagem do homem político Nelson Jobim pela Corte. A tendência politicamente orientada no discurso dos Ministros e, de modo geral, na colocação da Corte diante dos demais ramos políticos e da sociedade civil parece ser herança deixada pelo então Ministro Nelson Jobim.”. ANDRADE, Fábio Martins de, op. cit., p. 34. 142 José Guilherme Giacomuzzi noticia que René David, em conferência proferida em janeiro de 1969, já observava o fenômeno da aproximação dos sistemas da ‘common law’ e ‘civil law’, destacando que “Uma evolução enfim parece produzir-se em nossa época, que tende a aproximar a família da common law dos direitos de família romano-germânica.” GIACOMUZZI, José Guilherme. Os poderes das agências americanas e o judicial review – leading case e básicas observações. AJURIS. Porto Alegre, v. 30, n. 90, p. 169-184, jun. 2003, p. 169.

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ensinamentos hauridos também de ciências diversas ao direito, em especial à

econômica.

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ENTRE JUSTIFICAÇÃO E APLICAÇÃO – PARTE I

1. Propostas teóricas.

Algumas propostas teóricas na sequência descritas têm como escopo, direta

ou indiretamente, a solução do imbróglio da atuação do Poder Judiciário em situações

de conflito com as atribuições de outros Poderes. Note-se que as teorias mencionadas,

elencadas de maneira não exaustiva, apresentam critérios jurídicos por meio dos quais o

juiz poderá se pautar para a definição de questões controvertidas. Não há espaço para

exclusivas ponderações políticas de conveniência e oportunidade levadas a cabo pelo

Julgador, o que viabiliza a definição dos atuais contornos da competência exercida pelos

juízes como ainda inscrita no rol de sua estrita missão constitucional.

1.1. Substancialismo e Procedimentalismo?

A propósito da temática, duas vertentes desde logo merecem alusão quanto

à atuação do Poder Judiciário e a sua correlação com a democracia: a feição substancial

e procedimental143.

A primeira, preconizada por Ronald Dworkin, tem como fundamento a

democracia entrevista com base em critérios constitucionais, não constatando qualquer

viés antidemocrático na atuação judicial fundada em princípios.

Dworkin pretende, por meio de sua teoria, superar o modelo proposto pelo

positivismo e utilitarismo, o que denomina, em cunho genérico, de teorias

dominantes144. Entende o direito como integridade (“Law as integrity”) e observa que os

143 Não há como deixar de observar que a menção a substancialismo e procedimentalismo não foi idealizada pelos Autores mencionados no texto. Embora se classifiquem as vertentes mencionadas à luz das ideias preponderantes no pensamento de cada Autor, cresce a compreensão no sentido de que as teorias são, em realidade, antes complementares do que propriamente antagônicas. Amélia Sampaio Rossi, em interessante capítulo denominado “O distanciamento da perspectiva positivista em função do posicionamento de Ronald Dworkin: Hart versus Dworkin, oposição ou complementariedade?”, do seu livro “Neoconstitucionalismo Ultrapassagem ou releitura do positivismo jurídico?” observa, a propósito, que “(...) a retomada do debate Hart-Dworkin, especialmente após a publicação do Post Scriptum de Hart, analisada de uma maneira mais detida, mostra que, apesar das diferenças essenciais entre as duas grandes visões, é necessário também singularizar, principalmente, a proximidade teórica entre os dois autores para que possa ser percebida a existência de uma região fronteiriça entre as duas perspectivas (a perspectiva positivista e a não positivista ou pós-positivista que demarca o paradigma do constitucionalismo contemporâneo). Essas duas perspectivas ainda têm seus limites por serem mais precisamente delineados até mesmo para que se possa afirmar, com mais segurança, a transposição da dita fronteira.” ROSSI, Amélia Sampaio. Neoconstitucionalismo Ultrapassagem ou releitura do positivismo jurídico? Curitiba: Juruá editora, 2011, p. 61. 144 “A teoria dominante tem duas partes e insiste na independência de cada uma delas. A primeira parte é uma teoria sobre o que é o direito: em linguagem menos dramática, trata-se de uma teoria sobre as

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princípios ocupam papel central e preponderante na arquitetura constitucional,

funcionando não apenas como baliza interpretativa, senão também como forma de

revelar o direito já criado e que precisa ser realizado.

O positivismo, sustentado principalmente por Hans Kelsen em sua teoria

pura do direito, promove nítida separação entre direito e política, ensejando análise

meramente formal dos conflitos, tendo como base apenas e tão somente a moldura

normativa que se verifica candente para fins de ordenação social145. Afasta-se, assim, o

potencial do direito como instrumento de emancipação e transformação social, o que é

sustentado por Dworkin ao conceber a sociedade como uma ‘comunidade de princípios’

e, na mesma linha, também por Jürgen Habermas ao tratar da cooriginalidade do direito

enquanto medium na implementação da ação comunicativa.

A leitura positivista, de acordo com Dworkin, não pode desconsiderar a

tensão existente entre o direito posto e a necessidade de sua correção em vista das

condições presentes, atuais. A decisão que adjudique ao cidadão o direito que lhe cabe

em cada caso, se baseada exclusivamente em critérios meramente vinculados ao direito

preexistente e situados estritamente dentro da moldura normativa que já se verifica

evidente, não satisfaz, porque não se encontra justificada a partir de uma concepção de

condições necessárias e suficientes para a verdade de uma proposição jurídica. Esta é a teoria do positivismo jurídico, que sustenta que a verdade das proposições jurídicas consiste em fatos a respeito das regras que foram adotadas por instituições sociais específicas e em nada mais do que isso. A segunda parte é uma teoria acerca do que o direito deve ser e sobre o modo como as instituições jurídicas que nos são familiares deveriam comportar-se. Esta é a teoria do utilitarismo, que sustenta que o direito e suas instituições deveriam estar a serviço do bem-estar geral e tão somente isso. As duas partes da teoria dominante derivam da filosofia de Jeremy Bentham.” DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. VII-VIII. 145 Sustenta o Autor: “Quando a si própria se designa como ‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela se propõe a garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental. Isto parece-nos algo de per si evidente. Porém, um relance de olhos sobre a ciência jurídica tradicional, tal como se desenvolveu no decurso dos sécs. XIX e XX, mostra claramente quão longe está ela de satisfazer à exigência da pureza. De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo fato de estas ciências se referirem a objetos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito. Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do direito em face destas disciplinas, fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza de seu objeto.” KELSEN, Hans. Teoria Pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 1-2. Não se pode deixar de observar que durante os anos o positivismo jurídico veio a ser profundamente estudado e, aos moldes cartesianos, fragmentado em diversas espécies. Para uma leitura acerca das diversas espécies de positivismo, em especial o positivismo inclusivo, exclusivo e ético, confira-se o livro acima mencionado, de autoria de Amélia Sampaio Rossi, em especial o capítulo 3. ROSSI, Amélia Sampaio, op. cit., p. 83-130.

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justiça que revele os princípios morais e políticos que, em determinado momento

histórico e diante de preciso recorte temporal, vigem em cada sociedade.

Se, por um lado, a recomendação do autor é no sentido de que a adjudicação

deve se dar “as unoriginal as possible” (o menos original possível), desvelando-se

apenas o que previamente já fora adotado nas decisões políticas e aplicando o direito

preexistente, nem por isso os princípios devem ser postos de lado e ignorados ao

momento da decisão. Antes, deve ser trilhado o caminho inverso, de sorte a que os

vetores principais e nucleares do sistema informem as regras que pretendem concretizá-

los, de maneira a que a decisão seja consentânea à racionalidade e justiça146.

O positivismo, neste aspecto, deve ser relativizado de maneira a viabilizar

certa ‘discricionariedade judicial’, admitindo-se que o juiz crie direito novo para decidir

determinada controvérsia que lhe fora submetida quando as normas que já se verificam

postas no direito legislado não sejam suficientes, só por si, para tanto, não podendo

apresentar resposta precisa. Nestas condições, estará o juiz atuando não como um

substituto de legislador (“deputy to the legislature”), mas sim como “legislador

substituto” (“deputy legislature”), o que se afigura plenamente admissível acaso

concebido o direito enquanto integridade e a sociedade como informada por princípios

que lhe sirvam de norte.

Como, todavia, poderia o juiz atuar neste viés sem malferir, frontal ou

veladamente, a separação de poderes e diminuir a Constituição?

Analisando a resolução de casos difíceis, Dworkin cunha a distinção entre

argumentos de princípio e de política como critério judicial para desfecho de tais

conflitos.

Destaca que os argumentos de política justificam uma decisão política,

fomentando ou protegendo algum objetivo coletivo da comunidade como um todo. Ao

contrário, o argumento de princípio justifica a decisão política, garantindo e respeitando

o direito constitucional de um indivíduo ou de um grupo, ainda que contrário à

maioria147. Para Dworkin, é equivocada a ideia de que atuando com argumentos de

146 DWORKIN, Ronald, op. cit., p. 85-87. 147 “Os argumentos de política justificam uma decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou protege algum objetivo coletivo da comunidade como um todo. O argumento em favor de um subsídio para a indústria aeronáutica, que apregoa que tal subvenção irá proteger a defesa nacional, é um argumento de política. Os argumentos de princípio justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um indivíduo ou de um grupo. O argumento em favor das leis contra a discriminação, aquele segundo o qual uma minoria tem direito à igualdade de consideração e respeito, é um argumento de princípio. Estes dois tipos de argumentos não esgotam a argumentação política. Às vezes, por exemplo, uma decisão política, como a de permitir isenções extras de um imposto

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princípio, a Corte estaria a proferir decisões de índole antidemocrática. Argumentando

com o caso do aborto, pondera que eventual decisão da maioria ultimaria por adotar

opiniões morais, justamente o que viria em malogro à teoria da representação148.

A atuação do legislador pode – e deve, aliás – ser pautada em ambos os

argumentos, ao passo que ao julgador cabe apenas tratar, na resolução de casos postos à

sua cura, dos argumentos de princípio, o que, a um só turno, afasta a alegação de déficit

democrático ao proferir decisão em certa medida com viés contramajoritário e, de outra

toada, ainda refuta a ponderação de que ao criar direito novo com a sua decisão, estaria

aplicando novel enquadramento jurídico à situação de fato preexistente.

A argumentação em torno de princípios ainda permite corrigir a feição

utilitarista estritamente voltada às ponderações consequencialistas e direcionadas apenas

ao bem-estar geral e eventual benefício ou custeio da sociedade149. Considerando que o

juiz ao decidir aplicando argumentos de princípio estaria dando especial relevo aos

comandos nucleares do sistema, entende a atividade judicial neste aspecto como

essencial à evolução da democracia e apta a incrementar – e não diminuir – o princípio

da separação de poderes, ajustando a sua aplicação ao caráter axiológico que decorre da

Constituição.

Neste processo de interpretação, o juiz não poderá desconsiderar ou

simplesmente ignorar a história institucional ou a moralidade política da sociedade,

mas, ao revés, fazer prevalecer a ideia de que os pronunciamentos judiciais realizam

direitos políticos que já existem, levando-se em conta a história institucional,

moralidade, prática e justiça, conciliando-os e (re)equilibrando-os sem o necessário

sacrifício de um em detrimento do outro150.

de renda para os cegos, pode ser defendida como um ato de generosidade ou virtude pública, e não com base em sua natureza de políticas ou de princípio. Ainda assim, os princípios e as políticas são os fundamentos essenciais da justificação política”. Idem, p. 129-130. 148 Ibidem, p. 100. 149 Dworkin concebe o utilitarismo como teoria política que une direitos e objetivos não de modo causal, mas tornando a força de um direito contingente ao seu poder, como direito, para promover algum tipo de objetivo coletivo. Na mesma esteira, pondera que a concepção econômica do direito, abaixo abordada, não subverte a tese que preconiza. Ibidem, p. 150-154. 150 “A tese dos direitos, segundo a qual as decisões judiciais tornam efetivos os direitos políticos existentes, sugere uma explicação mais satisfatória do ponto de vista dessas duas exigências. Se essa tese é válida, a história institucional age, não como uma restrição do juízo político dos juízes, mas como um componente de tal juízo, pois a história institucional faz parte do pano de fundo que qualquer juízo plausível sobre os direitos de um indivíduo deve levar em consideração. Os direitos políticos são criações tanto da história quanto da moralidade: aquilo a que um indivíduo tem direito, na sociedade civil, depende tanto da prática quanto da justiça de suas instituições políticas. Desse modo, desaparece a alegada tensão entre originalidade judicial e história institucional: os juízes devem fazer novos julgamentos sobre os direitos das partes que a eles se apresentam, mas esses direitos políticos antes refletem as decisões políticas tomadas no passado do que a elas se opõe. Quando um juiz opta entre uma regra estabelecida por

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O retorno ao pensamento originalista – situação da qual não se necessita

preocupar em solo pátrio, eis que boa parte dos “founding fathers” encontram-se vivos e

emitindo opiniões, notadamente como Parlamentares – não parece, no entanto, revelar-

se uma opção interessante, sob pena de se atrelar as opiniões judiciais a critérios

históricos vetustos e, em grande medida, ultrapassados151.

A decisão, portanto, calcada em argumentos de princípios, deve trazer as

luzes da moralidade, história institucional, precedentes e coerência política, lançando-as

sobre o pouco iluminado caminho da resolução de casos que, primo ictu oculi, não

apresentem solução precisa e previamente delineada pelo ordenamento jurídico.

Atuando dessa maneira, estará o juiz resgatando a jurisdição enquanto princípio de

integridade política.

A teoria exposta por Ronald Dworkin considera, em grande parte, uma

virada principiológica na interpretação das normas jurídicas. Concebe-se, nessa linha,

que o Autor realiza uma ‘leitura moral’ da Constituição, desapegando-a ao positivismo

estrito152 e, de igual sorte, afastando-a do caráter utilitarista/econômico que poderia

malograr a adjudicação da melhor regra, de acordo com certa discricionariedade

judicial, ao caso concreto analisado, cuja resposta não se revela previamente tratada e

concebida no interior do sistema.

O ideário é caracterizado como de feição substancialista justamente pelo

caráter preponderante dos princípios frente à normatividade positiva já delineada nos

quadrantes jurídicos objetivos. O ‘judicial review’ assume contornos de direcionamento

constitucional da melhor trilha, definida pelo poder judiciário, a ser seguida pela

sociedade. Dá-se bastante relevância ao ativismo judicial, aparentemente relativizando

parâmetros normativos já esquadrinhados pelos representantes do povo.

um precedente e uma nova regra que se considera mais justa, ele não está fazendo uma escolha entre história e justiça. Em vez disso, faz um julgamento que requer uma certa conciliação entre considerações que em geral se combinam em qualquer cálculo de direitos políticos, mas que aqui competem uma com a outra.”. Ibidem, p. 136-137. 151 Ibidem, p. 101. 152 Ou “exclusivo”, como menciona Amélia Sampaio Rossi: “O positivismo exclusivo ou restrito, ao contrário do tipo anterior, não aceita a incorporação da moral pelo direito e entenderá, portanto, que a validez jurídica de uma norma jamais poderá estar sujeita a considerações e argumentos de índole moral. Joseph Raz, que é um dos principais nomes deste modelo de positivismo, entende que a validade das normas jurídicas está sempre determinada pelos fatos sociais e, portanto, não há qualquer possibilidade de o direito e a moral estarem conceitualmente unidos. ROSSI, Amélia Sampaio, op. cit., p. 101.

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Tal caraterística fica bem clara por oportunidade do exame, em rápida

visada, da história dos precedentes tidos como ativistas emanados da Corte Suprema dos

Estados Unidos, notadamente na era Lochner e Warren153.

Apesar de Ronald Dworkin procurar, com inequívoco êxito, corrigir a

distorção do déficit democrático na atuação judicial por oportunidade do ‘judicial

review’ quando o caso a ser decidido venha a pôr em confronto a decisão judicial com a

normatização já existente, parece considerar a perspectiva do julgador como terceiro

externo ao sistema jurídico já posto, cuja atividade interpretativa procura (re)articular o

constitucionalismo, democracia, atuação jurisdicional, direito enquanto integridade e

comunidade de princípios.

Desconsidera, talvez por adotar parâmetros substancialistas alusivos ao

direito já posto – ainda que oriundo da compatibilização entre princípios e regras –, que

o julgador deve estar inserido, assim como toda a sociedade, no processo de produção

de normas, o que, sob uma perspectiva emancipatória, embasa a compreensão do

sistema normativo como veículo de comunicação entre o indivíduo e sociedade.

Habermas ajusta, nesse ponto, a utilização do direito enquanto mediador

entre a sociedade e o conflito, atribuindo ao indivíduo – nele também considerado o juiz

– a responsabilidade pela coprodução das normas jurídicas que virá a aplicar.

Conquanto existam variações da análise de normas à luz de parâmetros

constitucionais em salvaguarda da democracia – tais como o controle de

constitucionalidade fundamentado em princípios neutros154 e a teoria do discurso da

153 O comentário é pertinente em virtude do fato de que tais períodos foram caracterizados na história da Suprema Corte Norte-Americana como de maior ativismo judicial, embora tanto as Eras Lochner quanto a Warren sejam historicamente situadas em recortes temporais anteriores ao advento da teoria preconizada por Ronald Dworkin. Em relação à Corte Lochner, Estefânia Maria Queiroz Barboza observa que “(...) é considerada como exemplo de ativismo judicial conservador, porquanto, sob a égide do Estado Liberal, admitia a imparcialidade do Estado e aceitava como natural as diversidades existentes na sociedade, sendo considerada ativista na medida em que interveio nas políticas tomadas pelo executivo e Legislativo, declarando as leis inconstitucionais, mas conservadora, uma vez que atuava de acordo com o Estado Liberal”. No tocante à Era Warren, destaca a Autora que “a partir de 1953, sob a presidência de Earl Warren, a Suprema Corte americana assume o seu período mais criativo de ativismo judicial, sendo este período – de 1953 a 1969 – conhecido como a ‘Corte Warren’. Esse período é o que mais interessa ao presente estudo, visto que representou uma Corte ativista ‘que buscou significativa mudança social, com enfoque na proteção dos direitos fundamentais e no princípio da isonomia, propiciando verdadeira revolução constitucional nos Estados Unidos’.” BARBOZA, Estefânia Maria Queiroz. Jurisdição constitucional – entre constitucionalismo e democracia. Belo Horizonte: editora Fórum, 2007, p. 100-102. 154 Tal como destacado por Herbert Wechsler e Alexandrer Bickel, aquele observando que existe legitimidade dos Tribunais para o controle de atos oriundos de outros Poderes se fundamentada a decisão em princípios que transcendam o caso em exame e possam ser aplicados em todas as situações idênticas no futuro; e este sustentando a correspondência entre princípio e discricionariedade. BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Jurisdição constitucional – entre constitucionalismo e democracia. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007, p. 58-61.

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aplicação das normas no direito e na moral155 a serem analisadas na sequência –,

contrapõe-se de maneira veemente à teoria substantiva a vertente procedimentalista.

Nesta esteira, Hart e Habermas são os teóricos que mais se sobressaem

quanto às críticas e ponderações, embora apenas este último consagre a coparticipação

do juiz enquanto produtor das normas que aplicará. A democracia procedimental

prioriza o processo democrático independentemente dos resultados a serem obtidos, de

maneira que cabe ao Poder Judiciário observar, em princípio, os critérios de conteúdo

previamente definidos pelos Poderes com atribuição constitucional para tanto,

reservando-se à análise das molduras formais no processo de elaboração legislativa

trazidas à tona pela Carta da República156.

Habermas, a propósito do procedimentalismo, critica a invasão da política e

da sociedade pelo Direito. Entende que o paradigma procedimentalista se afasta dos

ideários liberal e social preconizados, outrora, pela forma de Estado que lhes

corresponderam. O juiz, para ele, não deve ser entendido como Hércules, tal como

sustentado por Dworkin, mas sim como membro de uma comunidade de homens livres

e iguais, um copartícipe do mundo da vida que sustenta as pretensões de justiça

cotidianamente vivenciadas pela comunidade e que aplica as leis aprovadas para reger a

sua vida em comum, colocando-se no lugar de cada um dos afetados pelo seu

provimento, com a certeza de que as normas gerais e abstratas não foram feitas para

gerar resíduos de injustiça para ninguém157.

A construção do pensamento habermasiano incita à reflexão acerca do

status atribuído ao direito e, por via reflexa, ao juiz que o aplica nos meandros do

sistema.

155 GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Tradução de Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 39. 156 BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz, op. cit., p. 50. Explicando o processo histórico que, ao menos nos Estados Unidos, deu ensejo à democracia procedimental, menciona a mesma Autora: “A democracia procedimental surge como uma oposição ao ativismo judicial americano, tanto da Era Lochner, em que a Suprema Corte declara inconstitucionais as medidas legislativas que procuram implementar a política do New Deal do Presidente Roosvelt, quanto da Era Warren, em que o ativismo se dá de forma intervencionista, manifestando-se a Corte inclusive sobre políticas públicas. É que, apesar de o judicial review ser aceito pela sociedade americana, a preponderância do ativismo judicial e do princípio constitucional naquele período levou os críticos a desenvolverem uma teoria para limitar este poder, de modo a “proteger” a democracia” Idem., p. 26. Conquanto a ideia de judicial self-restraint (teoria da auto-restrição ou autocontenção judicial) não se equipare, em tudo e por tudo, ao procedimentalismo, o comentário se afigura relevante no tocante ao escorço histórico da situação verificada nos EUA. 157 STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição Constitucional e hermenêutica. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, p. 156.

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Expondo seu ideário, esclarece o autor que com o alvorecer do iluminismo, a

humanidade pouco temia acerca de possíveis adversidades naturais que revelassem o

desconhecido. Não mais se cogitavam de deuses mitológicos, forças supremas naturais

que engendrassem, ante o temor que causavam, comportamentos visando salvaguardar a

integridade física dos indivíduos e, por consequência, a organização social por meio de

princípios de índole superior.

A ideologia mítica até então dominante cedeu lugar ao aspecto mecanicista

delineado por Descartes. Preconizava-se não mais barganhar com o desconhecido,

respeitando-o e obedecendo-o, mas sim fragmentá-lo em tantas quantas fossem as partes

necessárias para compreendê-lo cientificamente.

Até então, a sociedade, entendida por Habermas como tradicional, consagrava

valores religiosos e míticos que rendiam sentido às ações individuais e coletivas, de tal

sorte que a forma de divisão do trabalho, posição social, papel desempenhado por

homens e mulheres e, ainda, distribuição de riqueza e pobreza encontravam-se

inequivocamente atrelados a valores de interpretação única, baseados e lastreados em

questões atinentes à compreensão do mundo e, bem assim, da natureza que os

envolvia158. A compreensão do mundo e natureza conduzia à única interpretação

possível da ordem social existente, isto é, a que se fundava na tradição, esta originada da

observância e respeito do plexo valorativo que se tinha candente159.

158 Assinala o Autor, a respeito do ponto: “Em instituições arcaias, que se apresentam com uma pretensão de autoridade aparentemente inatacável, pode-se detectar uma fusão semelhante entre facticidade e validade no nível do saber disponível tematicamente, portanto, do saber que já passou pelo agir comunicativo, porém numa figura inteiramente diferente, a qual também estabiliza expectativas de comportamentos. Em instituições de sociedades tribais protegidas por tabus, as expectativas cognitivas e normativas solidificam-se, formando um complexo indiviso de convicções, que se liga a motivos e orientações axiológicas. A autoridade de instituições detentoras de poder atinge os que agem no interior de seu mundo vital social. A partir daí, este não é mais descrito na perspectiva pragmático-formal do participante, como saber que serve de pano de fundo, uma vez que é objetivado na perspectiva do sociólogo observador. O mundo da vida, do qual as instituições são uma parte, manifesta-se como um complexo de tradições entrelaçadas, de ordens legítimas e de identidade pessoais – tudo reproduzido no agir comunicativo.” HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entre facticidade e validade I. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 2003, p. 42. 159 “Ainda hoje em dias nossas reações, profundamente arraigadas, em relação ao tabu do incesto, fazem lembrar que, nos domínios nucleares de sociedades organizadas pelo parentesco, a estabilidade de expectativas de comportamento teve que ser garantida através de convicções apoiadas numa autoridade ‘fascinosa’, ao mesmo tempo intimidante e atrativa, e isso sob o umbral no qual a coação sancionadora se separa irreversivelmente da coação sublimada em força de convicção oriunda de razões evidentes. Aquém desse umbral, a validade mantém a força do fático, seja na figura de certezas do mundo da vida, subtraídas à comunicação, por permanecerem em segundo plano, seja na figura de convicções disponíveis comunicativamente, as quais dirigem o comportamento, porém, sob os limites impostos à comunicação por uma autoridade fascinosa, ficando, pois, subtraídas à problematização”. HABERMAS, Jürgen. op. cit., p. 43-44.

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Houve, todavia, um momento de ruptura. O advento do sistema econômico

capitalista, oriundo do incremento do mercantilismo; os enquadramentos estatais que

surgiram como forma de viabilizar a organização social que já não tinha a visão

religiosa e mítica como fundamento, senão a ideologia mecanicista e baseada no

antropocentrismo exacerbado; o dissenso de opiniões no seio social, entre outros

fatores; ultimaram por exigir alteração radical da vida social e, por conseguinte, da

própria organização até então existente160.

A passagem para a modernidade, assim identificada por Habermas, fora

concomitante a toda a movimentação social, política, ideológica e filosófica que se deu

na sociedade em geral. A complexidade da vida tornou-se de tal sorte insuperável que a

própria tradição cedeu passo a outras formas de controle social e político. A religião,

ciência, moral, política, direito e economia passaram a revelar uma lógica própria que

não admitia interferência uns dos outros. Mesmo as concepções moral e religiosa, que

outrora determinavam as ações individuais e coletivas, não puderam se situar em

cenário superior às outras formas de conhecimento, apresentando lógica própria que

tampouco escapava das aferições individuais e coletivas quanto ao acerto das

ponderações que lançavam.

Nesse contexto, Habermas identificou que a ruptura da sociedade tradicional

para a moderna em realidade significou o retrato do que denominou separação entre o

que concebeu como “sistemas” e “mundo da vida”. Segundo ele, a sociedade moderna

se reproduz materialmente porque neutraliza os potenciais de conflitos e de dissenso sob

a forma de ação orientada para o êxito, consistente, este, entre outras coisas, na

produção, compra e venda de mercadorias, administração das leis e infraestrutura

necessária para a circulação de bens e pessoas161.

Existe, pois, uma lógica na sociedade moderna, focada na reprodução material e

que se encontra assentada na neutralização do dissenso. Esta lógica, porquanto voltada a

160 “Entrementes, as sociedades modernas tornaram-se tão complexas, ao ponto de essas duas figuras de pensamento – a de uma sociedade centrada no Estado e da sociedade composta de indivíduos – não poderem mais ser utilizadas indistintamente. A própria teoria marxista da sociedade convencera-se da necessidade de renunciar a uma teoria normativa do Estado. Aqui, no entanto, a razão prática deixa seus vestígios filosófico-históricos no conceito de uma sociedade que se administra democraticamente a si mesma, na qual o poder burocrático do Estado deve fundir-se com a economia capitalista. O enfoque sistêmico, no entanto, renunciando a qualquer tipo de conteúdo normativo da razão prática, não trepida em apagar até esses derradeiros vestígios. O Estado passa a formar um subsistema ao lado de outros subsistemas sociais funcionalmente especificados; estes, por sua vez, encontram-se numa relação configurada como ‘sistema-mundo-circundante’, o mesmo acontecendo com as pessoas e a sociedade.” Idem, p. 18-19. 161 Ibidem, p. 36-37.

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garantir o funcionamento do sistema, fora denominada pelo autor de lógica sistêmica,

sendo a ação decorrente dela meramente instrumental, isto é, direcionada ao êxito das

sociedades modernas162.

Nesse meandro, a ação instrumental se presta a garantir o funcionamento do

mercado, por meio de diversos mecanismos econômicos apontando unicamente no

sentido do incremento da produção e aumento do lucro; e, bem assim, das condutas

adotadas no interior da estrutura estatal, em especial a Administração, que se pauta, de

acordo com a ação instrumental, por princípios, valores e regras que têm como foco o

desenvolvimento estatal fundamentado no crescimento econômico.

Ocorre, todavia, que a lógica sistêmica não se presta a eliminar por completo as

testilhas sociais, ou, ainda, os potenciais de conflito que os geram e gestam. A despeito

de limitar o campo em que se verificam candentes os conflitos apenas com o fito de que

não venham a revelar óbice ou dificuldade à reprodução material da sociedade, não os

elimina. Isso porque em que pese se tenha verificado, nas palavras de Habermas, uma

colonização do mundo da vida pela lógica sistêmica, não há como eliminar – e nem

mesmo se desejaria, aliás – o plexo valorativo ínsito ao indivíduo163.

Tendo em linha de conta que o êxito político-econômico não se identifica

necessariamente com a liberdade e desenvolvimento social, impõe-se que o sistema,

regido pela ação instrumental, seja contraposto e complementado pelos próprios

participantes do processo que se encontram nele inseridos. Parte Habermas do

pressuposto de que a ação instrumental deve ser temperada com a ação dita

comunicativa, por meio da qual os participantes da discussão possam ser ouvidos, em

igualdade de condições e sem receios, acerca das questões que se põem à cura do

sistema.

Assim agindo, estará o sistema sendo alimentado por influxos comunicativos,

incrementando a esfera política pública e garantindo a observância, fundamentada na

concordância, das melhores opções ao desenvolvimento da sociedade, na medida em

que tais serão gestadas pelos próprios destinatários das ações estatais e

mercadológicas164.

A ação comunicativa, todavia, demanda, para plena aplicação, alguns requisitos

elencados pelo autor, podendo ser citados, em resumo, o direito de argumentar e de

162 Ibidem, p. 44-45 e 58. 163 Ibidem, p. 49. 164 Ibidem, p. 127.

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discordância a qualquer momento do resultado alcançado, ademais da discussão ampla,

geral e irrestrita por parte dos atores sociais do direcionamento da ação instrumental

apta a conduzir o sistema165.

O direito, neste aspecto, funciona inequivocamente como instância mediadora

entre o sistema e o mundo da vida, transformando o poder comunicativo em poder

administrativo. Apresenta-se, pois, como de dupla face, trabalhando no sistema e no

mundo da vida; aquele porque traduz a linguagem jurídica utilizada para fins de

condução da vida em sociedade e este porque, logrando obter a co-originalidade no

processo de produção de normas, estará o mundo da vida trazendo contribuições

comunicativas à lógica sistêmica cuja essência é instrumental166.

Entretanto, a compreensão do direito não pode ser à completude levada a cabo

apenas à vista de interpretação positivista. Impõe-se, para salvaguardar a efetividade da

ação comunicativa, que as potencialidades normativas presentes nos processos de

autoprodução e autocompreensão não se esgotem na positividade. Tampouco efetiva se

revelaria a ação comunicativa se a compreensão do direito fosse embasada unicamente

por parâmetros sistêmicos, pautados em linhas políticas ou mercadológicas.

Ancorados no mundo da vida, valores que propiciam transformações na vida

social não podem ser obnubilados ou esquecidos pelo direito, na medida em que

precisamente o fato de distinguirem-se de outros meios exclusivamente sistêmicos,

quais o dinheiro e o poder administrativo, permite que transpasse livremente às

165 Ibidem, p. 139-147. 166 “Em termos da teoria do agir comunicativo, o sistema de ação ‘direito’ enquanto ordem legítima que se tornou reflexiva, faz parte do componente social do mundo da vida. Ora, como este só se reproduz junto com a cultura e as estruturas da personalidade, através da corrente do agir comunicativo, as ações jurídicas formam o medium através do qual as instituições de direito se reproduzem junto com as tradições jurídicas compartilhadas intersubjetivamente e junto com as capacidades subjetivas da interpretação de regras do direito. Por fazerem parte do componente da sociedade, estas regras do direito formam ordens legítimas de um nível superior; ao mesmo tempo, porém, enquanto simbolismo jurídico e enquanto competências jurídicas socializatórias adquiridas, elas estão representadas nos outros dois componentes do mundo da vida. Os três componentes participam originariamente na produção de ações jurídicas. Do direito participam todas as comunicações que se orientam por ele, sendo que as regras do direito referem-se reflexivamente à integração social realizada no fenômeno da institucionalização. Todavia, o código do direito não mantém contato apenas com o medium da linguagem coloquial ordinária pelo qual passam as realizações de entendimento, socialmente integradoras, do mundo da vida; ele também traz mensagens dessa procedência para uma forma na qual o mundo da vida se torna compreensível para os códigos especiais da administração, dirigida pelo poder, e da economia, dirigida pelo dinheiro. Nesta medida, a linguagem do direito pode funcionar como um transformador na circulação da comunicação entre sistema e mundo da vida, o que não é o caso da comunicação moral, limitada à esfera do mundo da vida.”. Ibidem, p. 112.

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peculiaridades sistêmica e comunicativa, interagindo com ambas e viabilizando a

compreensão de todo o fenômeno discursivo167.

Dessa sorte, o processo de produção do direito, vale dizer, sua positividade

(facticidade), não pode estar exclusivamente atrelado ao vínculo interno com a coerção,

sob pena de se afastar da legitimidade que garantirá a observância irrestrita pelos

membros da comunidade jurídica que empreenderam e levaram a cabo o processo em si

da produção normativa.

Assim, a liberdade, embasada na universalidade, somente poderá ser

alcançada com o auxílio do medium apto a tanto, fundamentado este na moral, cuja

função de resguardo do espaço de ação individual é deveras importante; e observando

determinado procedimento por meio do qual se possa estabelecer como avaliar um

conflito de ação, de modo que seriam válidas somente as máximas que todos possam

aceitar (sob o aspecto dialógico, isto é, reconhecimento por parte de todos e não da

pessoa consigo mesmo).168

Neste meandro, assume especial relevância a teoria da linguagem, desenvolvida

por Habermas exata e precisamente com o fito de viabilizar, sob uma perspectiva

emancipatória, a compreensão entre direitos subjetivos e direito público ou entre

direitos humanos e soberania popular, isto é, entre autonomia pública e autonomia

privada, institucionalizando as formas de discussão, de participação e de deliberação

que permitam o surgimento do maior número possível de vozes, de tematizações, de

valores e de interesses169.

Aparta-se, desde logo, a teoria da linguagem da compreensão meramente

gramatical que se pode haurir das normas170. Exige-se mais, isto é, que um ato de fala,

compreendido este na forma institucionalizada, não signifique apenas discriminar as

condições sob as quais pode ser caracterizado como verdadeiro, mas os parâmetros de

167 A moral, neste contexto, revela-se de candente importância. Ultimada a consecução da ação comunicativa, dissensos devem ser resolvidos à base do princípio do discurso, viabilizando-se a todos os que participam do processo de elaboração das normas iguais oportunidade de manifestação, argumentação e discordância das questões e temas que compõem a pauta sistêmica direcionada à reprodução material da sociedade e sua organização interna. Ocorre, no entanto, que para viabilizar o funcionamento do princípio do discurso e, como tal, ensejar a conclusão colimada, deve ser observado procedimento que se preste a tanto. Nesta especial condição a moral assume relevância, visto que o poder de integração social do direito consiste não somente na coerção eficaz, caracterizando-o como o sistema de ação; mas, sobretudo, na aceitação racional de suas regras, feição correspondente à liberdade. A moral, como sistema de saber (embora não se restrinja a tanto), tem o condão de aliviar a pessoa das altas exigências a que está submetida para julgar e agir moralmente, reduzindo-a a uma pessoa de direito. 168 Ibidem, p. 146. 169 Ibidem, p. 115. 170 “A forma gramatical de mandamentos universais nada diz sobre sua validade.”. Ibidem, p. 137.

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validade pertinentes à verdade em si, justeza normativa e veracidade. Isso porque, de

acordo com Habermas, o conceito de ação comunicativa depende da demonstração da

existência de um acordo comunicativo, obtido, sem qualquer margem a dúvida, pela

teoria da linguagem a conduzir ao princípio do discurso171.

Repise-se que o exercício correto e preciso da teoria da linguagem e,

sequencialmente, o discurso que dela emane revela, para o Autor, a própria exegese do

que se pode compreender como Estado Democrático de Direito, visto que sua

constituição, compreensão e operacionalização estão intrinsecamente ligados a estrutura

co-original de produção de normas a imbricar a mudança qualitativa das tarefas do

próprio Estado. A legitimação da política e do poder dependem, pois, da teoria do

direito fundamentada na linguagem e discurso, funcionando, ambos, como

institucionalização de processos e pressupostos comunicacionais necessários para uma

formação discursiva da opinião e da vontade, possibilitando o exercício da autonomia

política e a criação legitima do direito172.

Com efeito, a ideia é a de que as normas não retiram sua validade ou

legitimidade do poder de coerção. Reconhecidas como válidas a despeito de condições

históricas e espaciais, devem poder ser aceitas por qualquer cidadão de um Estado

Democrático de Direito. Assim se dá porque o princípio do discurso açambarca o

princípio da universalidade (atrelado à moral) para formar o princípio da democracia e o

direito, posto como processo de formação normativa, devendo ser produzido,

compreendido e observado pelos destinatários enquanto autores das normas.

Retornando à teoria da linguagem, a fim de compreender como o princípio do

discurso pode ser dela obtido, verifica-se que Habermas traz à tona alguns pressupostos

ideais de observância necessária para a consecução do processo de fundamentação das

pretensões de validade: 1) todos os potenciais participantes do discurso devem dispor de

igual chance de proferir atos de fala, colocando questões e oferecendo respostas

livremente; 2) devem existir, por todos, iguais chances de interpretações, afirmações,

171 “(...) o processo legislativo democrático precisa confrontar seus participantes com as expectativas normativas das orientações do bem da comunidade, porque ele próprio tem que extrair sua força legitimadora do processo de um entendimento dos cidadãos sobre regras de sua convivência. Para preencher a sua função de estabilização das expectativas nas sociedades modernas, o direito precisa conservar um nexo interno com a socialmente integradora do agir comunicativo.” Ibidem, p. 115. 172 Ibidem, p. 155-167, especialmente p. 165, em que menciona o Autor: “O princípio do discurso só pode assumir a figura de um princípio da democracia, se estiver interligado com o medium do direito, formando um sistema de direitos que coloca a autonomia pública numa relação de pressuposição recíproca e, vice-versa, qualquer exercício da autonomia política significa, ao mesmo tempo, uma interpretação e configuração desses direitos, em princípio não saturados, através de um legislador histórico.”.

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sugestões, esclarecimentos e justificações, ademais de problematizações das pretensões

de validade e críticas correspondentes; 3) admitidos no discurso apenas os falantes que

possuam iguais chances de empregar atos de fala, expressando suas posições,

sentimentos e intenções; 4) admitidos no discurso apenas os falantes que possuam

iguais chances de empregar atos de fala regulativos.173

Tais pressupostos, compreendidos pelo autor como situação de fala ideal,

conduzem ao exercício da linguagem livre de coerções sistemáticas à comunicação,

regulando as situações factuais do discurso. Considerando que a tensão entre facticidade

e validade reside nos meandros da linguagem, somente no âmbito do discurso se poderá,

se obedecido o processo que o regule e viabilize a participação dos destinatários como

co-autores do processo de produção de normas, ter uma norma como válida e, como

consequência, aceita racionalmente174.

Não se pode descurar ou apartar, todavia, o risco estrutural do dissenso,

consistente na possibilidade de um dos atores optar por dizer não à validade da norma.

Tal conduziria, adotadas as premissas anteriores, à perturbação da ordem social como

consequência. A adoção de atitude performativa, neste caso, não conduziria

necessariamente à efetivação da teoria reconstrutiva da sociedade baseada e lastreada na

ação comunicativa e no princípio do discurso.

A estabilização do dissenso, no entanto, pode nesta situação ser alcançado pela

compreensão simbólica do mundo da vida, tendo como enfoque a reprodução cultural

(cultura), integração social (sociedade) e socialização (personalidade), pois o complexo

de tradições culturais, de ordens legítimas e de identidades pessoais possui natureza

histórica, importando reconhecer que, de acordo com Habermas, existe espaço no

173 Robert Alexy, em sua teoria da argumentação jurídica, expõe, ao final de sua obra assim intitulada, algumas regras fundamentais e de razão que se compatibilizam, em parte, com o que Habermas entende como pressupostos ideais de observância necessária para a consecução do processo de fundamentação das pretensões de validade. A teoria da argumentação jurídica, tal como exposta por Alexy, será melhor abordada abaixo, mas desde logo parece pertinente apenas trazer breve resumo das regras enunciadas. Assim: “1. REGRAS FUNDAMENTAIS (1.1) Nenhum falante pode contradizer-se. (1.2) Todo falante só pode afirmar aquilo que ele mesmo acredita. (1.3) Todo falante que aplique um predicado F a um objeto A deve estar disposto a aplicar F também a qualquer objeto igual a A em todos os aspectos relevantes. (1.3 ) Todo falante só pode afirmar os juízos de valor e de dever que afirmaria dessa mesma forma em todas as situações em que afirme que são iguais em todos os aspectos relevantes. (1.4) Diferentes falantes não podem usar a mesma expressão com diferentes significados. 2. REGRAS DE RAZÃO (2) Todo falante deve, se lhe é pedido, fundamentar o que afirma, a não ser que possa dar razões que justifiquem negar uma fundamentação. (2.1) quem pode falar pode tomar parte no discurso. (2.2) (a) Todos podem problematizar qualquer asserção. (b) Todos podem introduzir qualquer asserção no discurso. (c) Todos podem expressar suas opiniões, desejos e necessidades.” ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica – A teoria do Discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. Rio de Janeiro: GEN – editora Forense, 2011, p. 287-288. 174 HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 154-155.

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processo de liberalização dos potenciais de racionalidade decorrentes da ação

comunicativa para risco de dissenso de tomadas de posição de sim/não em relação a

pretensões de validade criticáveis no decorrer da evolução social.

Assim, o processo jurídico de normatização discursiva, em que garantido

também o espaço de dissenso, enseja e acarreta o alcance do princípio da democracia

como especificação e decorrência necessária do princípio do discurso (princípio ‘D’),

este capaz de legitimar as normas de ação surgidas no manancial do direito e auxiliadas

por argumentos ético-políticos, pragmáticos e morais, sempre, porém, primando pela

prioridade da justiça175.

Empreendendo correlação entre a teoria da linguagem, princípio do discurso e

democracia então alcançada, pode-se vislumbrar, ainda em seu âmago, tensão existente

entre autonomia pública e privada, que nada mais traduz senão conflito entre o

individualismo e republicanismo, figurando ambos como facetas da autonomia

correspondente.

Como já salientado anteriormente, para Habermas a formação coletiva da

vontade somente pode ser tida como livre se e enquanto fundada no livre intercâmbio de

argumentos e opiniões, além do pressuposto de que as decisões possam ser alcançadas

pelos membros como o resultado dos argumentos mais convincentes e justificáveis entre

todos os apresentados, ainda que se verifiquem – e consagrem – espaços de dissensos

legitimamente observados.

O confronto entre individualismo (liberalismo) e republicanismo, portanto,

pressupõe, para fins do pleno exercício da legitimidade democrática, que fundamentos

comuns sejam encontrados por meio da comunicação que permita a aceitação de normas

de conduta, crenças e opiniões, tanto individuais quanto coletivas.

175 Idem, p. 147-149, 158, nesta última assim constando: “A ideia de autolegislação de cidadãos não pode, pois, ser deduzida da autolegislação moral de pessoas singulares. A autonomia tem que ser entendida de modo mais geral e neutro. Por isso introduzi um princípio do discurso, que é indiferente em relação à moral e ao direito. Esse princípio deve assumir – pela via da institucionalização jurídica – a figura de um princípio da democracia, o qual passa a conferir força legitimadora ao processo de normatização. A ideia básica é a seguinte: o princípio da democracia resulta da interligação que existe entre o princípio do discurso e a forma jurídica. Eu vejo esse entrelaçamento como uma gênese lógica de direitos, a qual pode ser reconstruída passo a passo. Ela começa com a aplicação do princípio do discurso ao direito a liberdades subjetivas de ação em geral – constitutivo para a forma jurídica enquanto tal – e termina quando acontece a institucionalização jurídica de condições para um exercício discursivo da autonomia política, a qual pode equipar retroativamente a autonomia privada, inicialmente abstrata, com a forma jurídica. Por isso, o princípio da democracia só pode aparecer como núcleo de um sistema de direitos. A gênese lógica desses direitos forma um processo circular, no qual o código do direito e o mecanismo para a produção do direito legítimo, portanto, o princípio da democracia, se constituem de modo co-originário.”

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O individualismo (liberalismo), como explicita Habermas, tem como

embasamento a autonomia privada, entendido como igual distribuição de liberdades de

ação entre os sujeitos de direito com escopo de proteger a liberdade de arbítrio e a

liberdade ética, aquela compreendida como autorização conferida ao indivíduo para agir

sem precisar prestar contas ou justificar-se publicamente; e esta tida por Habermas

como a seleção e incorporação crítica de valores culturais em projetos de vida

individualmente traçados176.

O Republicanismo, de outra toada, caracteriza-se pelo engajamento político,

interesse pelos assuntos públicos e a participação nos processos de formação da

vontade, revelando o que se pode compreender por autonomia pública. O ideário

traçado por Habermas denota, pois, que o conceito de autonomia pública nasce da

exigência republicana e como resultado da autodeterminação da vontade coletiva,

considerando o intento da comunidade política de conceber de forma independente suas

próprias metas e aplicá-las. Evidente que situações díspares, como ameaças externas

(guerras, invasão) ou internas (ditador, oligarquias) existem e se verificam, mas o ideal

do republicanismo pressupõe a possibilidade de autonomia pública divorciada de

situações extremas e afrontosas ao princípio democrático em si.

Tratando de ambos os viés, Habermas identifica que a compreensão liberal

sobrepõe a dimensão privada sobre a pública, ao passo que a compreensão republicana

situa a pública defronte à autonomia privada, gerando ora o ‘paternalismo de leis’, ora a

‘ditadura da maioria’, situações não desejáveis ao princípio democrático. Ter-se-á com

o paternalismo das leis a supremacia da autonomia privada frente à pública,

caracterizada como uma suspeita contra as resoluções da vontade coletiva, entrevistas

como formas de suprimir as individualidades. Diz-se paternalismo exatamente por

adotar concepção liberal segundo a qual a supremacia normativa da autonomia privada

entende conhecer quais condutas os próprios destinatários das ações adotariam à

condução autônoma de suas vidas.

A ditadura da maioria, por outra senda, preconiza a definição estatal do melhor

comportamento a ser trilhado em sede individual, suprimindo indevidamente a esfera de

liberdade do indivíduo, cuja opinião passa a não ter mais relevância – ou pouca

influência – para o exercício de seu mister individual. A supremacia da autonomia

pública, neste caso, ressoa candente, pois a liberdade de autogoverno vai a tal ponto

exacerbada que evidencia supressão das liberdades de opinião e vontades individuais. 176 Ibidem, p. 329.

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Oprimem-se, neste caso, as minorias políticas, étnicas e culturais existentes nos Estados

contemporâneos.

Para Habermas, as duas situações identificadas, geradas pela supremacia ora da

autonomia particular, ora pública, não são desejáveis, na medida em que a legitimidade

de normas jurídicas encontra agasalho unicamente nos processos deliberativos em que

as vozes de todos os participantes (concernidos) possam ser igualmente consideradas

(feição individual) e a vontade coletiva (feição pública) possa ser produzida segundo a

livre aceitação dos melhores argumentos discutidos e definidos177.

Para tanto, Habermas apresenta algumas “categorias insaturadas de direitos” a

serem observadas, aptas a viabilizar a situação ideal que propicie a teoria do discurso

plenamente aplicada: a) direito à maior medida possível de igualdade nas liberdades

subjetivas de ação; b) direito ao status de membro numa associação voluntária de

parceiros do direito; c) postulação judicial e proteção jurídica individual; e, por fim, d)

direitos à participação igualitária nos processos públicos de formação de opinião e de

vontade178.

Adotadas tais categorias e observando-se não o primado do individualismo

sobre o republicanismo (autonomia privada frente à pública, ou vice-versa), ter-se-á que

o direito se interligará realmente à capacidade integradora da ação comunicativa,

trazendo à tona a legitimidade das suas correspondentes normas do fato de que os seus

destinatários se vejam como autores. Desacoplar-se-á, pois, o sistema do mundo da

vida, de sorte a transformar a coletividade em uma comunidade jurídica que, ao tempo

em que prima por projetos comuns visando a convivência de igualdade de posições de

pessoas que não compartilham necessariamente do mesmo consenso básico, também

agregam legitimamente opiniões individuais direcionadas ao objetivo comum.

Ao Poder Judiciário caberia, pois, não empreender análise eminentemente

principiológica desapegada ao texto legal, ainda que com a boa intenção de enlevar a

Constituição da República. Cabe-lhe, enquanto coparticipiante do processo de

elaboração de normas aceitas racionalmente em virtude de ação comunicativa e

princípio do discurso no âmbito da democracia, garantir a observância do regramento

177 “O direito de escolha, que é interpretado como liberdade positiva, transforma-se no paradigma dos direitos em geral, não somente pode ser constitutivo para autodeterminação política, mas também por que se pode ler em sua estrutura o modo como a inclusão numa comunidade de indivíduos com iguais direitos está unidade à autorização individual para tomadas de posição próprias e contribuições autônomas.” Ibidem, p. 336. 178 Ibidem, p. 159.

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posto, com especial atenção à categoria insaturada de direitos que confere viabilidade ao

ordenamento.

Conquanto a premissa procedimental parta do postulado de que as leis

figuram com entes devidamente aprovados e embasados em critérios democráticos,

calha relembrar que o processo de elaboração de leis não se aparta da própria evolução

econômica pela qual passou o Estado. Desse modo, antes de trazerem em seu bojo

critérios meramente axiológicos, os entes normativos noticiam, sob o aspecto do direito

positivo, as vertentes econômicas que se revelam candentes ao sabor do momento.

Cabe, pois, ao Poder Judiciário resguardar e retomar e democracia por meio da correção

de rota do ordenamento jurídico, direcionando-o aos princípios fundamentais expostos

pela Carta da República.

Como, todavia, o faria o Poder Judiciário? Tendo em consideração o direito

posto e a partir dele estabelecendo interpretação jurídica que melhor se coadune com os

preceitos insertos na Carta da República? Ou, ao revés, criando o próprio direito que

melhor entenda ao caso posto à sua apreciação?

2. Teoria da argumentação jurídica

Com o fito de empreender controle racional do discurso jurídico, a teoria da

argumentação veio a lume tendo como pressuposto que a decisões jurídicas se revelam

corretas se e enquanto baseadas em processos de justificação racional com base no

direito posto, precedentes e dogmática179. Afastam-se, de um lado, as emoções,

sentimentos e convicções, tidos, de maneira estóica, como inúteis ao trabalho

intelectual180.

179 Esclarece Geilza Fátima Cavalcanti Diniz acerca do ponto: “A teoria da argumentação jurídica é um dos principais corolários da virada linguística, analisada pela filosofia da linguagem e desenvolvida especialmente por Wittgenstein, Austin, Hare, Habermas e outros. O giro linguístico foi um importante desenvolvimento da filosofia ocidental ocorrido durante o século XX e sua principal característica é a mudança de foco da filosofia para a linguagem. As teorias da argumentação jurídica propriamente ditas são ainda mais recentes, tendo sido desenvolvidas, entre outros, por Chäim Perelman, Toulmin e Wiehweg (BRAATZ, 2007, p. 133-147). Por ela, busca-se uma controlabilidade racional do discurso jurídico, estipulando-se regras e formas a serem seguidas no discurso racional, a fim de possibilitar a correção do mesmo. Busca-se efetivar, por intermédio da boa argumentação, a boa prática jurídica, com maior correção das decisões judiciais, especialmente nos casos ditos difíceis, nos quais há uma maior abertura ou até mesmo uma lacuna legislativa e é necessário que o julgador fundamente a sua decisão, como requisito de legitimidade.” DINIZ, Geilza Fátima Cavalcanti. Teoria da argumentação jurídica e loves knowledge no caso da antecipação do parto do feto anencéfalo. REVISTA DE INFORMAÇÃO LEGISLATIVA. Brasília, v. 47, n. 188, p. 255-276, out./dez. 2010, p. 257. 180 “Pretendendo-se demonstrar que o discurso jurídico pode ser fundamentado racionalmente, olvida-se e rechaça-se tudo o que não é racional e, portanto, são considerados irracionais, para a maior parte dos filósofos, os sentimentos, as emoções e as convicções pessoais, que podem estar subjacentes às decisões judiciais. Em outras palavras, partindo do pressuposto do direito como ciência, a teoria da argumentação

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Propugna-se por maior racionalidade, objetividade, mais certeza e menos

imprecisão, evitando-se, a todo custo, a subjetividade, já que tais parâmetros em nada

contribuiriam à resolução de casos difíceis (hard cases), em que se deve optar por

escolhas trágicas (tragic choices).

Aventa-se, mesmo, que a possibilidade de justificação racional do discurso

jurídico é questão que se atrela à própria solidez do Estado democrático, por meio da

cientificidade da linguagem do direito181. A racionalidade e a universalidade

proporcionam, segundo este viés dogmático, a legitimidade da legislação e a

controlabilidade das decisões judiciais, requisitos caros e indispensáveis ao Estado

democrático de Direito182.

O emotivismo filosófico, por reconhecer um caráter preponderante das

emoções no discurso jurídico183, a teoria da love knowledge184 e teorizações afins são

afastadas, minimizadas ou compartimentadas, ao menos, pela argumentação racional,

que, lastreada no positivismo, condenando as emoções e vedando a subjetividade, jurídica postula a racionalidade das decisões judiciais, por intermédio de uma argumentação pertinente, que possibilite o controle dessa racionalidade do discurso. O pressuposto é que as decisões jurídicas sejam corretas no que tange às pressuposições da ordem jurídica vigente, com base em uma justificação racional, que envolve a tomada de decisão com base na lei, nos precedentes e na dogmática.” DINIZ, Geilza Fátima Cavalcanti, op. cit., p. 257. 181 Cláudia Toledo, a propósito da teoria da argumentação, observa: “Apenas se caracterizam como consensos racionais (e, dentro deles, o jurídico) aqueles passíveis de uma justificação discursiva segundo regras de argumentação. Por isso, as decisões tanto políticas quanto jurídicas nesse tipo de Estado expressam o acordo que melhor satisfaz racionalmente os interesses dos participantes do discurso, com a formação comum do juízo mediante a ponderação daqueles interesses expressos em argumentos, respeitando-se a autonomia do outro. A racionalidade que, nas ciências da natureza, apresenta-se sob a forma da verdade de suas proposições, é, no Direito, como ciência normativa, evidenciada pela correção de suas assertivas. Esta correção deve estar presente tanto na teoria quanto na prática jurídica, pois ambas, para ultrapassarem o âmbito da mera doxa, carecem de demonstração racional de suas afirmações.”

TOLEDO, Cláudia. Teoria da argumentação jurídica. REVISTA FORENSE. Rio de Janeiro, v. 104, n. 395, p. 613-626, jan./fev. 2008, p. 613-614. 182 TOLEDO, Cláudia, op. cit., p. 619. 183 “O emotivismo filosófico, por outro lado, reconheceu um caráter preponderante das emoções no discurso jurídico. Para essa corrente, não existem verdades morais independentes dos sujeitos individuais, pois aquelas derivam dos sentimentos que cada um tem acerca de determinado assunto. Critica-se o emotivismo por seu radicalismo, especialmente ao supor que os juízos morais sempre estão de acordo com sentimentos de aprovação ou reprovação, pois os juízos morais nem sempre exprimem emoções e podem ser baseados em critérios exclusivamente objetivos, como o cumprimento da lei em situações em que há subsunção direta.” DINIZ, Geilza Fátima Cavalcanti, op. cit., p. 258 184 Geilza Fátima Cavalcanti Diniz assim explica a teoria da love knowledge, cunhada por Martha Nussbaum: “Pelo love knowledge, constata-se que a emoção não se opõe à argumentação racional (...). Criar-se-ia, de tal modo, uma postura ética interessada com o bem-estar das pessoas cujos problemas venham a ser colocados ao crivo do judiciário, retomando-se os postulados aristotélicos de bem comum. Logo, o bom julgador deve entabular uma relação emocional e prática com os problemas de seus jurisdicionados, para melhor se aproximar da busca pela justiça. O juiz que não abre mão da emoção ao julgar julgaria não para uma massa anônima e indiferenciada, mas para o ser humano individual e singular (...) O love´s knowledge pretende então trazer o estudo das emoções ao centro da análise filosófica, sem o medo da complexidade que essa análise possa significar. As emoções humanas necessitam de reflexão como aliadas da teoria da argumentação jurídica, isto é, é preciso descobrir as verdades do coração que influenciaram ou até mesmo determinaram a tomada de uma decisão.” Idem, p. 259.

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pretende estabelecer critérios quase matemáticos para a solução de casos em que os

juízos de valor não encontram espaço.

A exigência de justificação e de correção, essencial nos meandros da

argumentação racional, pode ser embasada pela legislação positiva, não sendo

recomendáveis os julgamentos de valor. Não se verifica, a priori, correlação entre os

julgamentos de valor e os métodos de interpretação jurídica, assim como as proposições

e conceitos da dogmática jurídica, de modo a que se possa justificá-los e fundamentá-los

suficientemente em nome do caráter científico do direito185.

A utilização de julgamentos de valor pode, inclusive, conduzir a incertezas

que se situam em seara diversa da possibilidade de justificação e controle. Teodomiro

Noronha Cardozo, em trabalho que aborda a teoria da argumentação jurídica, observa

que o Supremo Tribunal Federal, por oportunidade do julgamento do Habeas Corpus no

73.662-9/MG, concedeu, em 21 de maio de 1996, a liberdade a um acusado de estupro

que contava, à época do fato, com 21 (vinte e um) anos de idade e a vítima com 12

(doze) anos, sob o argumento central, exarado pelo Ministro Marco Aurélio, relator, no

sentido de que “Nos nossos dias, não há crianças, mas moças de 12 anos.”186.

Ocorre que para que se possa alcançar a pretensão de correção nos discursos

jurídicos, de acordo com Alexy, não se pretende que o enunciado jurídico afirmado,

proposto ou ditado como sentença seja mais racional, senão somente que no contexto de

um ordenamento jurídico vigente possa ser racionalmente fundamentado. Neste

meandro, observa, ainda, que quem decide no contexto da ordem jurídica válida com

base na argumentação racional é o sujeito hipotético dos objetivos pressupostos nos

argumentos objetivos teleológicos, sugerindo que a correção do discurso deva ser

justificada pela racionalidade da argumentação187.

A forma de justificação racional varia de acordo com os autores que se

propõem a analisar o tema. Perelman, verbi gratia, entende que uma argumentação

185 Teodomiro Noronha Cardozo assim relembra o ensinamento do Autor citado: “Alexy indaga até que ponto são necessários os julgamentos de valor e como deve ser determinado o relacionamento entre esses julgamentos de valor e os métodos de interpretação jurídica, assim como as proposições e conceito da dogmática jurídica e, como esses julgamentos de valor podem ser racionalmente fundamentados ou justificados. A resposta a esta questão, continua Alexy, é de grande significação prática e teórica, pois dela depende a decisão sobre o caráter científico da jurisprudência, que tem enorme peso para o problema da legitimidade da regularização de conflitos sociais através de sentenças judiciais.” CARDOSO, Teodomiro Noronha. Teoria da argumentação jurídica: exigência de correção nos discursos jurídico e prático geral. REVISTA DA ESMAPE – ESCOLA SUPERIOR DA MAGISTRATURA DE PERNAMBUCO. Recife, v. 9, n. 20, t. II, p. 23-44, jul./dez. 2004, p. 30. 186 CARDOZO, Teodomiro Noronha, op. cit., p. 31-32. 187 Idem, p. 33-34.

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dirigida a um auditório universal deve convencer o leitor do caráter coercivo das razões

fornecidas, de sua evidência, de sua validade intemporal e absoluta, independente de

contingências locais ou históricas. Chaim Samuel Katz, por sua vez, destaca que a

racionalidade deve ser entrevista sob o ponto de vista do método científico estável e

universal, ao passo que Niklas Luhmman pontua que a legitimidade das decisões

judiciais não está na decisão, mas no processo decisório, ou seja, no procedimento,

residindo a segurança jurídica na probabilidade de que uma decisão será proferida188.

Evidentemente, o pano de fundo que envolve a discussão da argumentação

meramente valorativa no bojo de decisões judiciais envolve, em verdade, a questão da

neutralidade, imparcialidade e (im)possibilidade de ingerência do Poder Judiciário na

análise e decisão de questões de índole política. Haveria o ativismo levado o Judiciário

ao extremo da atuação meramente política, ou, como ressalta Zaffaroni, tal não seria

possível, já que não se pode politizar um poder essencialmente já político em sua

origem189?

Conquanto seja razoável admitir, com Alexy e Müller, que a atividade do

juiz, ao momento em que decide um caso com fundamento no direito positivo, não é

meramente cognitiva, possuindo certa porção de criatividade ao realizar uma valoração

com objetivo de solucionar um problema concreto, divorcia-se da argumentação

racional a decisão motivada em critérios que não podem ser justificados e postos à

prova científica da linguagem jurídica190.

Vejamos como trata o tema Robert Alexy e, na sequência, o ideário exposto

por Klaus Günther.

2.1. Teoria da argumentação jurídica para Robert Alexy

Robert Alexy considera que é possível, com seriedade, estabelecer critérios

capazes de identificar a racionalidade de decisões fundadas em juízos de valor. Ao tratar

da teoria da argumentação jurídica, identifica vários tipos de discussões jurídicas: i)

discussões da ciência jurídica (dogmática); ii) deliberações dos juízes; iii) debates

perante os tribunais; iv) tratamento de questões jurídicas nos órgãos legislativos; v)

188 Ibidem, p. 34-35. 189 Ibidem, p. 35. 190 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Sobre o conceito de norma e a função dos enunciados empíricos na argumentação jurídica segundo Friedrich Müller e Robert Alexy. REVISTA DE DIREITO CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL. São Paulo, v. 11, n. 43, p. 98-109, abr./jun. 2003, p. 101.

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comissões ou comitês de discussões jurídicas; vi) discussão dos problemas jurídicos,

onde são apresentados argumentos jurídicos na mídia191.

Observa que a metodologia jurídica poderia auxiliar a solucionar o

problema da fundamentação das decisões jurídicas se fosse capaz de apresentar regras

ou procedimentos para tanto, sendo uma das possíveis soluções os cânones de

interpretação. Ocorre que tanto o número de cânones, como sua respectiva ordem

hierárquica e grau de precisão são controvertidos, o que afasta a possibilidade de

concebê-los como forma razoável de solução da problemática exposta192.

Por outro lado, a Ciência do Direito e a jurisprudência não podem prescindir

de valorações ou juízos de valor. O autor relembra o ensinamento de Karl Larenz,

segundo o qual “a aplicação da lei não se esgota na subsunção, mas exige, em grande

medida, valorações do aplicador.”193. Como, então, compatibilizar a valoração com a

resolução racional de conflitos? E, assim o fazendo, existiria a possibilidade de

fundamentação racional?

Pretendendo desatar o nó górdio posto em virtude dos questionamentos e

compatibilizando a fundamentação racional com o juízo de valor que o tribunal terá de

empreender ao resolver algum caso, o autor enuncia três vias já percorridas em seara

dogmática: i) a ideia, sustentada por Karl Engisch e Chaim Perelman, de que quem

decide tem de se ajustar aos valores da coletividade ou de círculos determinados,

deixando-se a busca pelas valorações racionais para os filósofos; ii) referir-se a

valorações que, de alguma maneira, podem ser extraídas do material jurídico existente

(incluindo-se as anteriores decisões); e iii) recorrer-se a princípios suprapositivos. A

estes critérios, Alexy ainda acrescenta “apelar para conhecimentos empíricos”.

Contra a primeira ideia argumenta com a falta de exatidão quer dos valores

da coletividade, quer das valorações conforme os círculos determinados. Observa que

mesmo com a ajuda dos métodos das ciências sociais, valorações não são

191 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. Rio de Janeiro: GEN Editora Forense, 2011, p. 290. 192 A respeito do número de cânones de interpretação, o Autor menciona que Savigny distingue os elementos gramatical, lógico, histórico e sistemático da interpretação, ao passo que para Larenz seriam cinco os critérios: o sentido literal, o significado da lei segundo o contexto, as intenções e metas normativas do legislador histórico, os critérios objetivo-teleológicos e o mandamento de interpretação conforme a constituição. Wolff, por outro lado, menciona as interpretações filológicas, lógicas, sistemática, história, comparativa, genética e teleológica. Quanto à hierarquia, menciona a dificuldade existente no estabelecimento de algum grau de precedência. Finalmente, quanto à imprecisão, destaca que para cada intérprete o objetivo a ser alcançado pode alterar significativamente a interpretação da norma. ALEXY, Robert, op. cit., p. 20-21. 193 Idem, p. 23.

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suficientemente concretas para servir como fundamentação da decisão. De outra toada,

como familiarizar a coletividade com os casos postos ao exame, a fim de que se possa

obter algum juízo correspondente? Tal parece, ao menos no contexto brasileiro, no

mínimo onírico.

Atacando a segunda via, destaca que o sistema de valorações do

ordenamento jurídico não constitui medida fixa que determine como se deve conduzir

certa valoração. As normas apresentam divergência sob o ponto de vista valorativo,

sendo certo, de outro tanto, que nenhum princípio é realizado ilimitadamente.

Refutando a terceira ideia, observa que também não se pode prescindir de

procedimento para a delimitação e precisão da ordem valorativa existente em algum

enunciado normativo, se é que se poderia extrair algum inerente à regra194.

A teoria da argumentação elaborada por Robert Alexy pretende estabelecer

critérios que, segundo o autor, faltam em relação às vias apresentadas, a fim de que se

possa delimitar o itinerário percorrido pelo magistrado para decidir racionalmente

alguma questão que lhe seja posta à apreciação.

Para tanto, situa o discurso jurídico como caso especial do discurso prático

geral195, compreendendo que ambos (o discurso jurídico e o discurso prático geral)

objetivam a correção dos enunciados normativos196, sendo certo que em relação ao

discurso jurídico existe uma série de condições limitadoras (sujeição à lei, consideração

obrigatória dos precedentes, enquadramento na dogmática elaborada pela Ciência do

direito), o que lhe confere a nota da especialidade. Nessa linha, a argumentação jurídica

se distingue da argumentação prática geral pelo fato de que aquela se vincula ao direito

vigente197.

Conquanto a tese do caso especial (o discurso jurídico é, pelo autor,

considerado como caso especial do discurso prático geral) possa ser refutada sob

diversos argumentos 198, Robert Alexy compreende que a teoria do discurso racional

como teoria da argumentação jurídica não pressupõe que todas as discussões jurídicas

devam colocar-se como discursos no sentido de uma comunicação sem coerção e sem 194 Ibidem, p. 26-29. 195 O discurso pode ser compreendido, de acordo com o Autor, como “atividade linguística da correção dos enunciados normativos em um sentido, todavia, a ser precisado”. O discurso prático, portanto, seria a correção, em si, dos enunciados. Ibidem, p. 30. 196 Vale dizer: a referência das discussões jurídicas a questões práticas, isto é, a questões sobre o que pode ser feito e omitido; e que a discussão dessas questões se dê sob o prisma da pretensão de correção. Ibidem, p. 210. 197 Ibidem, p. 210. 198 Entre os quais alguns mencionados e afastados pelo próprio Autor: (a) não trata de questões práticas; (b) não objetiva correção; e (c) não pode sequer ser classificada como discurso. Ibidem, p. 210-216.

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restrições, mas somente que nas discussões jurídicas os debates ocorrem sob a pretensão

de correção.

Nisto consiste, como o autor mesmo informa, o núcleo de sua tese: constatar

que a pretensão de correção também se sustenta no discurso jurídico, assim como no

discurso prático geral, mas com o diferencial de que as decisões possam ser

fundamentadas racionalmente no âmbito do ordenamento jurídico vigente e não em

proposições normativas em questão199.

Partindo dessa premissa, observa que a argumentação jurídica deve ter por

foco a lógica das premissas aduzidas (justificação interna) em conjunto com a correção

de tais premissas (justificação externa)200.

Com o fito de fazer “uma ponte sobre o abismo existente entre a norma e a

descrição do fato”201, a justificação interna se presta a conduzir a decisão à

racionalidade por meio da aplicação do princípio da universalidade, este caracterizado

por uma regra da qual decorra a decisão.

Assim, a justificação interna pode ser aferida por meio de uma série de

regras apontadas pelo autor, figurando entre tais: a) para a fundamentação de uma

decisão jurídica, deve-se aduzir ao menos uma norma universal; b) à decisão jurídica

deve seguir-se logicamente ao menos uma norma universal junto a outras proposições;

c) a determinação do peso do argumento de distintas formas deve ter lugar segundo

regras de ponderação; d) há que se tomar em consideração todos os argumentos que

sejam possíveis propor e que podem incluir-se por sua forma entre os cânones da

interpretação202.

Com o objetivo de comprovar a racionalidade que a justificação interna

conduz à decisão jurídica, Alexy apresenta uma séria de esquemas, iniciando por um

silogismo simples, em que se parte de uma regra universal e uma premissa fática para,

ao final, ser encontrada uma solução; até situações mais complexas, em que se constata

a inexistência de regras de viável aplicação ao caso concreto, a pluralidade de regras

aplicáveis, ou, ainda, a pluralidade de interpretações oriundas da mesma regra para o

caso único203.

199 Ibidem, p. 216-217. 200 Anote-se aqui, para facilitar a compreensão da tese exposta pelo autor, que justificação pode ser entendida como sinônimo de fundamentação. 201 ALEXY, Robert, op. cit., p. 227. 202 CARDOZO, Teodomiro Noronha, op. cit., p. 39-40. 203 A exposição da teoria concatena equações matemáticas com explicações jurídicas, pretendendo, assim, o Autor comprovar a possibilidade de racionalizar a fundamentação da decisão judicial, ao menos no que

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Reconhece, portanto, que o silogismo não pode ser unicamente aplicado

como esquema apto a ensejar a fundamentação racional em situações complexas,

notadamente quanto à ausência de regra, particularidade que não poderá prescindir da

atividade dedutiva do juiz a partir das normas previamente dadas. Anota que, nesse

caso, “as premissas não extraídas do direito positivo aparecem explicitamente em toda a

sua extensão”204.

Não se pretende, com a justificação interna, “entrar com profundidade tanto

nas especificidades dos fatos como nas particularidades da norma”, mas apenas

estabelecer um método racional a partir do qual se possa extrair um esquema – por

vezes incompleto, mas que será devidamente preenchido por meio da justificação

externa – em que se possa extrair racionalidade a partir de regras universais, o que virá a

garantir a justiça formal ao caso em testilha.

A justificação interna, todavia, não é descabida, considerando que mesmo

nas situações mais complexas em que não se possa aplicar um esquema de silogismo

simples ou se venha a empreender atividade criativa pelo órgão decisório, terão sido

expostas as premissas que devam ser justificadas externamente205. O juízo sobre a

racionalidade de uma decisão, contudo, pertence ao campo da justificação externa.

Com o fito de apresentar critérios de correção à justificação interna – e até

mesmo complementando-a diante da utilização da atividade dedutiva do juiz nos casos

da inexistência de regra aplicável – surge a justificação externa, que pretende

fundamentar a premissas a partir de critérios de justeza e racionalidade.

A justificação externa tem como objetivo a fundamentação das premissas

usadas na justificação interna. Dito de outro modo e com o propósito de aclarar o

pensamento: a justificação externa é uma fundamentação que pretende justificar a

fundamentação (interna).

toca ao critério da justificação interna. Explicando a insuficiência do esquema de fundamentação simples consistente no silogismo, aduz: “O esquema de fundamentação (...) é insuficiente em casos complicados, que se apresentam, por exemplo: (1) quando uma norma, como a do § 823, ap. 1, do BGB, contém diversas propriedades alternativas do fato hipotético, (2) quando sua aplicação exige um complemento por meio de normas jurídicas explicativas, limitativas ou extensivas, (3) quando são possíveis diversas consequências jurídicas, ou (4) quando na formulação da norma se usam expressões que admitem diversas interpretações.” ALEXY, Robert, op. cit., p. 221. 204 “Em muitos casos, a norma com que se começa não é sequer uma norma de direito positivo. A exigência de dedução conduz precisamente ao contrário do ocultamento da parte criativa da aplicação do direito: as premissas não extraídas do direito positivo aparecem explicitamente em toda sua extensão. Fundamentar essas premissas não extraídas diretamente do direito positivo é tarefa da justificação externa.” Idem, p. 226. 205 Ibidem, p. 227.

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Algumas premissas podem ser utilizadas, segundo Alexy, para que se possa

alcançar o intento da justificação externa. Em primeiro lugar, pode ser utilizada a

premissa das regras de direito positivo, que oferece a possibilidade de demonstrar a

conformidade da justificação interna com os critérios de validade do ordenamento

positivo. Na sequência, podem ser utilizados os enunciados empíricos, devendo-se

recorrer “a uma escala completa de formas de proceder que vão desde os métodos das

ciências empíricas, passando pelas máximas da presunção racional, até as regras de ônus

da prova no processo”. Por último – e aqui consiste o cerne da justificação externa –

podem ser utilizadas premissas que não são nem enunciados empíricos nem regras de

direito positivo, mas sim critérios que decorrem da argumentação jurídica206.

Os critérios oriundos da argumentação jurídica, por sua vez, podem ter por

base um ou alguns dos seguintes elementos: (1) lei; (2) Ciência do Direito; (3)

precedente; (4) razão; (5) empiria207; (6) formas especiais de argumentos jurídicos208.

206 Ibidem, p. 228-229. A bem da verdade, como esclarece o Autor, o critério de argumentação jurídica, ou seja, a terceira premissa, estará presente também nos demais, na medida em que auxiliará a extrair a validade da norma, ademais do estabelecimento de fatos empíricos. O correto, portanto, para alcançar a justificação externa parece ser a correlação entre as três premissas. Veja-se o excerto em que expõe o pensamento: “Há múltiplas relações entre esses três procedimentos de fundamentação. Assim, na fundamentação das premissas que não têm um caráter jurídico-positivo nem empírico, desempenham papel considerável as regras do direito positivo e os enunciados empíricos. Na fundamentação de uma norma segundo os critérios de validade de um ordenamento jurídico pode ser necessário interpretar as regras que definem os critérios de validade. Isso tem especial importância se, entre os critérios de validade, encontram-se limites constitucionais; por exemplo, um rol de direitos fundamentais. A argumentação jurídica pode ser de importância decisiva não só na interpretação de uma norma válida, mas também no estabelecimento da validade dessa norma. Finalmente, isso vale também para o estabelecimento de fatos empíricos. Assim, o que se considera como fato na fundamentação pode depender da interpretação de uma regra do ônus da prova. Precisamente, estas variadas inter-relações tornam necessário, se não se quer confundir tudo, distinguir cuidadosamente os três métodos de fundamentação mencionados. Só assim se podem analisar suas interconexões.” Ibidem, p. 228-229. 207 A argumentação empírica toma por base enunciados sobre fatos singulares, sobre ações concretas, motivos dos agentes, acontecimentos ou estados de coisas. É preciso, para a utilização do empirismo, observar a interdisciplinariedade do direito em relação às diversas áreas do conhecimento (Economia, Sociologia, Psicologia, Medicina, Linguística etc), de sorte a que se possa argumentar racionalmente. Ibidem, p. 230-231. 208 As formas especiais de argumentos jurídicos se atrelam aos cânones interpretativos, utilizando o Autor seis espécies: o argumento semântico, que pode ser usado para justificar, criticar, ou mostrar que uma interpretação é admissível, ao menos, semanticamente; o argumento genético, que corresponde à vontade de legislador. Evidentemente, compreender o que pode ser definido como vontade do legislador parece dificultoso, o que fez com que o Autor compreendesse que o argumento genético deve ser complementado por enunciados sobre a vontade do legislador, cuja validade, denominada de “requisito de saturação” deverá ser obtida tanto pela determinação da vontade dos que participam no processo e na legislação, como na especificação de um uso da linguagem; argumento histórico, que se verifica quando se expõem fatos que se referem à história do problema discutido, observando-se razões favoráveis ou desfavoráveis a uma interpretação; argumentos comparativos, que, tomando por base numerosas premissas empíricas e pelo menos uma premissa normativa, considera como referência a experiência de outra sociedade; argumentos sistemáticos, que se compreende tanto como referência a situação de uma norma no texto legal, como a referência à relação lógica ou teleológica de uma norma com outras normas, fins e princípios; e argumentos teleológicos, que direcionados a fins racionais e prescritos objetivamente no contexto do ordenamento jurídico vigente, propiciam a caracterização normativa de um estado de

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Alexy atribui grande importância aos cânones interpretativos no âmbito da

teoria do discurso e em especial no que tange aos critérios hauridos da argumentação

jurídica. Ademais de elencá-los enquanto argumentos209, ainda discorre acerca do papel

que desenvolvem no cenário do discurso, destacando que caracterizam a estrutura do

ordenamento jurídico210. Se, por um lado, como observa, os cânones, por si sós, não

oferecem a garantia de que se encontre o único resultado correto, também não podem

ser reduzidos apenas a simples instrumentos de legitimação secundária de uma decisão,

nomeadamente porque têm grande e especial relevância no contexto da atribuição de

peso de um argumento para que se possa alcançar uma fundamentação racional211.

A maneira, todavia, como serão utilizados os cânones jurídicos, assim como

os critérios para argumentação passam, necessariamente, pela apresentação de teses

dogmáticas. O autor adverte, todavia, que não se verifica ainda uma teoria da dogmática

jurídica aceita de maneira geral, notadamente por identificar nesta “Ciência do Direito

em sentido mais estrito e próprio” ao menos três atividades: (1) a descrição do direito

vigente; (2) sua análise sistemática e conceitual; e (3) a elaboração de propostas para a

solução de casos jurídico-problemáticos212.

A importância do estudo que realiza passa, segundo a teoria do autor,

principalmente pela última das atividades descritas, visto que compreender a dogmática

em si significará, por igual, ter elementos que embasem argumentos jurídico-racionais

aptos a solução dos casos postos ao exame do Julgador. A justificação externa, como

coisas prescrito ou um fato prescrito. Interessante observar, com os argumentos teleológicos, que apresentando argumentação racional e tendo em linha de conta um sujeito hipotético como destinatário da missão de compreender qual fim se deve contemplar como racional ou prescrito objetivamente no ordenamento jurídico vigente, o Autor trabalha a aplicação de princípios para, com o auxílio de enunciados normativos mais concretos, estabelecer o que se deve entender como fins caracterizados normativamente, isto é, como estado de coisas prescrito ou um fato prescrito. Ibidem, p. 231-241. 209 Vide nota anterior. 210 Quanto ao papel desempenhado pelos cânones interpretativos, expõe os seguintes: a) o campo de sua aplicabilidade, destacando que com exceção da interpretação semântica todas as formas de argumentos podem também se utilizar numa multiplicidade de novos contextos; b) o seu status lógico, o qual pode ser obtido de acordo com uma regra pressuposta; c) o requisito de saturação, responsável por definir a completude do argumento, isto é, se contém todas as premissas pertencentes possíveis; d) as diversas funções das diversas formas, se correlacionadas à vontade da lei, do legislador, ou vinculado aos órgãos decisores; e) a hierarquia, enunciando a existência de um catálogo de graus ou hierarquia de cânones, cuja pretensão de definição revela confronto entre teoria objetiva e subjetiva, a primeira levando em conta parâmetros definidos objetivamente e a segunda tomando por base o caso concreto; f) a resolução do problema da hierarquia na teoria do discurso jurídico, o que se poderá cogitar pela contribuição da teoria do discurso quanto à forma oportuna de se utilizar racionalmente os diferentes argumentos, considerando, sobretudo, também a dimensão pragmática da fundamentação e, ainda, o estabelecimento de critérios aptos a aumentar a probabilidade de que numa discussão se chegue a uma conclusão correta, isto é, racional. ALEXY, Robert, op. cit., p. 231-241. 211 Idem, p. 241-247. 212 Ibidem, p. 247.

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parâmetro de correção da justificação interna, demanda a observância de critérios

científicos que podem ser extraídos senão completamente, ao menos em grande parte,

da dogmática. Dessa forma, não se pode prosseguir no desenvolvimento da teoria do

discurso que envolva a justificação externa sem a apreciação detida da forma de

argumentação levando em conta parâmetros dogmáticos.

Nesta esteira é que Robert Alexy passa a expor as dimensões empírico-

descritivas, analítico-logica e prático-normativa da dogmática213 para, aludindo às

críticas existentes, mencionar conceito que situa a dogmática como matemática

social214. Em sua visão, contudo, a utilização de argumentos sistemático-conceituais

oriundos da dogmática deve ser considerada em conjunto com outros, de origem prática

de tipo geral, a fim de que se possa obter uma racional e necessária fundamentação da

decisão judicial.

Para tanto e já adentrando à dogmática enquanto fundamentação, deve-se ter

em foco que: i) a dogmática deve ser considerada não propriamente como uma

atividade, senão como a apresentação de enunciados; 2) tais enunciados, embora

relacionados à legislação e jurisprudência, com elas não se identificam apenas em

relação à descrição da legislação ou razões de decidir emanadas pela Corte, admitindo-

se a contribuição do juiz para o desenvolvimento; 3) devem formar um todo coerente, o 213 “Na dimensão empírico-descritiva pode-se distinguir, sobretudo, a descrição da práxis dos tribunais e a averiguação da vontade fática do legislador. A dimensão analítico-lógica inclui tanto a análise dos conceitos jurídicos como também a investigação das relações entre as diferentes normas e princípios. Finalmente, procede segundo uma dimensão prático-normativa, por exemplo, quem propõe e fundamenta a interpretação de uma norma, uma nova instituição, ou quem critica uma decisão judicial quanto a seus defeitos práticos e elabora uma contraproposta”. Importa observar, tal como exposto pelo Autor, que existe correlação entre as dimensões mencionadas, de maneira que embora possam ser identificadas em separado, atuam hic et nunc em conjunto. Em suas palavras: “Entre estas três dimensões há numerosas relações. Assim, a descrição do direito vigente pressupõe um determinado instrumental conceitural. A análise lógica do direito vigente não é possível sem a sua descrição e, para elaborar propostas de normas e de decisões, visto que elas ocorrem no âmbito do ordenamento jurídico existente, é necessário o conhecimento desse ordenamento.” Ibidem, p. 248. 214 Para explicar a dogmática enquanto matemática social, vale-se Robert Alexy dos ensinamentos de B. Windscheid, no seguinte sentido: “Se a interpretação terminou sua tarefa, fica o desenvolvimento dos conceitos contidos nas proporções jurídicas obtidas através deles. A própria noção de proposição jurídica é representada também em conceitos, isto é, em agrupamentos de elementos de pensamento; trata-se de decompor os conceitos nas suas partes constituintes, de mostrar os elementos de pensamento contidos neles. Poder-se ir mais ou menos longe nesta operação; os elementos descobertos podem por sua vez apresentar-se como uma combinação de outros elementos mais simples, e assim sucessivamente. A nova Ciência do Direito tem a tendência de ir o mais longe possível na decomposição dos conceitos. E nisso consiste seu mérito. Pois, de fato, da exaustiva compreensão do conteúdo dos conceitos contidos nas proposições jurídicas depende não só a total compreensão do Direito, mas também a segurança na sua aplicação. A decisão final é resultado de um cálculo, cujos fatores são os conceitos jurídicos; o cálculo, evidentemente, produzirá um resultado tão mais seguro quanto mais determinado o valor dos fatores. Ao mesmo tempo, é óbvio que só a partir da completa compreensão dos conceitos jurídicos se pode revelar o verdadeiros sistema do Direito, a união interna de suas proposições.” A crítica mais veemente veio por conta de Jhering, refutando o “culto da lógica que pretende transformar a Jurisprudência numa matemática do Direito”. Ibidem, p. 250-251.

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que importa dizer: 3.1) não podem se contradizer; 3.2) na formulação dos diferentes

enunciados utilizam-se os mesmos conceitos jurídicos; 3.3.) utilizando-se os mesmos

conceitos jurídicos, possível se faz fundamentar relações de inferência que ocorrem

entre eles; 4) devem funcionar institucionalmente, isto é, receber apreciação

independentemente da dimensão temporal (discussões podem ser retomadas e,

consequentemente, rejeitadas ou mantidas) ou de objeto (efeitos); 5) e, finalmente,

devem ter conteúdo normativo, não podendo ser resolvida apenas à custa de argumentos

empíricos215.

A utilização da dogmática, se observados os critérios mencionados, servirá à

fundamentação racional de uma decisão judicial. Alerte-se, contudo, que a justificação

se distingue da mera comprovação de enunciados dogmáticos, vez que enquanto

naquela se verifica que um enunciado deriva de outros enunciados, nesta a

fundamentação tem por base também os enunciados práticos do tipo geral. Dessa sorte,

não se pode, confundindo uma atividade por outra, ter-se por racionalmente

fundamentada uma decisão que leve em conta a comprovação de enunciados

dogmáticos lastreada em argumentos práticos do tipo geral. Tal escaparia,

inquestionavelmente, da própria possibilidade de comprovação sistemática da

fundamentação utilizada216 e, por via de consequência, afastaria o controle de

consistência da decisão217.

As ideias fundamentais, portanto, para a utilização dos enunciados

dogmáticos e atribuir correção, sob o aspecto da justificação externa em relação à

interna, sem que argumentos práticos do tipo geral venham a predominar e inviabilizar o

controle de consistência da decisão, são as seguintes, tais como expostas por Robert

Alexy: i) todo enunciado dogmático, se é posto em dúvida, deve ser fundamentado

mediante o emprego, pelo menos, de um argumento prático de tipo geral; ii) todo

enunciado dogmático deve enfrentar uma comprovação sistemática, tanto em sentido

estrito como em sentido amplo218.

215 Ibidem, p. 250-252. 216 A comprovação sistemática, para o Autor, pode ser feita em sentido estrito, consistente em “constatar se o enunciado em questão se ajusta sem contradições à série dos enunciados dogmáticos já aceitos, assim como às normas jurídicas vigentes” e em sentido amplo, buscando-se “determinar se, mediante os enunciados dogmáticos em questão, podem-se justificar juízos a serem fundamentados ou enunciados normativos singulares em relação a enunciados normativos singulares a serem fundamentados por todos os outros enunciados dogmáticos e normas jurídicas, de acordo com as regras do discurso prático geral.”. Ibidem, p. 258-259. 217 “A argumentação dogmática não pode, por isso, se reduzir à argumentação prática geral, mas a argumentação prática geral constitui a base da argumentação dogmática.” Ibidem, p. 259. 218 Ibidem, p. 259-260.

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Bem se pode perceber que os argumentos práticos do tipo geral não podem

predominar no cenário da utilização de enunciados dogmáticos. Porém, deles não se

pode prescindir, paradoxalmente, visto que os enunciados dogmáticos não podem se

limitar à lógica das normas vigentes e dos enunciados empíricos. Qual, então, a

importância, de fato, da argumentação dogmática no contexto da justificação externa?

Retomando raciocínio anterior, tem-se que a justificação externa se presta a

fundamentar – ou, nos dizeres de Alexy, atribuir correção – à justificação interna. Em

conjunto, viabilizarão a exposição de argumentos racionais e passíveis de controle, o

que, sob o prisma da teoria da argumentação, diminuirá em muito a utilização de

critérios situados fora dos parâmetros científicos definidos pelo Direito para a

elaboração de uma decisão (tal como a emoção, como anteriormente visto). Embora,

portanto, os enunciados dogmáticos não possam prescindir dos argumentos práticos do

tipo geral, também assumem outras funções nos meandros do ordenamento e aplicação

do direito, de maneira a conferir, objetivamente, consistência ao sistema em si,

tornando-o viável219. Bem por isso não podem ser eliminados ou simplesmente

substituídos pelos argumentos práticos do tipo geral. Tal viria, sobretudo, em desfavor

do próprio princípio da universalidade e justiça enquanto critério formal de aplicação de

normas.

A visão que se deve ter da dogmática jurídica, dessa forma, é instrumental,

prestando-se a contribuir para a “função de estabilização e de controle à realização do

princípio da universalidade”, de modo que, como regra geral, “se são possíveis

argumentos dogmáticos, devem ser usados”, pois conferirão racionalidade à decisão220.

219 O Autor elenca basicamente seis funções da dogmática, neste particular: 1) função de estabilização, consistente em, com a ajuda dos enunciados dogmáticos, restar viável a reprodução de determinadas soluções a questões práticas, tal como ocorre quando um tribunal aplica um enunciado já previamente deslindado, sem a necessidade de discuti-lo novamente; 2) função de progresso, viabilizando a ampliação da discussão jurídica na dimensão temporal, objetiva e pessoal, fazendo a própria dogmática progredir ao tempo em que “torna possível oferecer comprovações e diferenciar os enunciados dogmáticos numa medida consideravelmente maior do que seria possível em discussões que se desenvolvem de forma pontual.”; 3) função de descarga, na medida em que sem uma razão especial apta a exigir nova comprovação do enunciado, tal não se revela necessário. Luhmann, neste ponto, observa que a dogmática também apresenta função de carga e não meramente descarga, na medida em que conforme a elaboração conceitual do Direito aumenta, em igual proporção, a dificuldade da decisão; 4) função técnica, viabilizando “uma função de informação, (...) ensino e aprendizagem da matéria jurídica e, com isso, sua capacidade de transmissão”; 5) função de controle, visto que, neste aspecto, “a dogmática permite decidir casos não de maneira isolada, mas relacionados com uma série de casos já decididos e ainda por decidir. Aumenta, por isso, o grau de eficácia do princípio da universalidade e serve, nesta medida, à justiça.”; 6) função heurística, contendo “uma série de modelos de soluções, distinções e pontos de vista que não apareceriam se se tivesse de começar sempre novamente”. Ibidem, p. 260-265. 220 Ibidem, p. 266-267. A fundamentação com enunciados dogmáticos pode se dar de maneira pura, quando “o enunciado a ser fundamentado se segue de outros enunciados dogmáticos, juntamente com

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Contribuirá também para a racionalidade propugnada pela teoria da

argumentação jurídica – ainda no contexto da justificação externa – a utilização de

precedentes que, como regra, devem ser aplicados. A não utilização de precedentes se

sujeita ao princípio da inércia perelmaniano que atribui a carga da argumentação a quem

queira deles se afastar, o que contribui para a estabilização institucional na solução de

conflitos relacionados a fatos símiles. Não se pode descurar, ainda, que os enunciados

dogmáticos estão incorporados também nos precedentes, de sorte a que, por meio das

funções de estabilização, de progresso e de descarga221, mira-se no alcance da segurança

jurídica e proteção da confiança, ademais, evidentemente, da racionalidade222.

No contexto da teoria da argumentação, a utilização de precedentes para

racionalizar os fundamentos inerentes a uma decisão devem observar as seguintes

regras: a) “Quando se puder citar um precedente a favor ou contra uma decisão, deve-se

fazê-lo.”; e b) “Quem quiser se afastar de um precedente, assume a carga da

argumentação.”223.

Como resultado do ideário exposto, compreende o autor que a necessidade

do discurso jurídico surge da debilidade das regras e formas do discurso prático geral, já

que não prescrevem de que premissas normativas devem partir os participantes do

discurso, sendo o ponto de partida constituído pelas meras convicções de cada qual;

nem todas as etapas da argumentação encontram-se fixadas; e algumas regras do

discurso somente podem ser cumpridas de maneira aproximada, havendo sempre a

possibilidade de que não se alcance acordo algum.

Se, por um lado, o discurso prático geral apresenta regras débeis e que,

acaso exclusivamente adotadas, inviabilizam uma fundamentação racional, a

observância exclusiva do discurso jurídico também não atende à mesma expectativa de

justificação, ante: a) a vagueza da linguagem do Direito; b) a possibilidade de conflitos

enunciados empíricos apenas ou com a adição de normas jurídico-positivas”; ou impuro, quando são necessárias premissas normativas adicionais. Ibidem, p. 256. 221 Vide nota acima. 222 ALEXY, Robert, op. cit., p. 267-270. 223 Idem, p. 270. Com o intento de objetivar ainda mais a utilização dos precedentes, o Autor expõe algumas técnicas de observância necessária para o alcance da racionalidade. Menciona o distinguishing, que se presta a “interpretar de maneira estrita a norma que se deve considerar sob a perspectiva do precedente, por exemplo, mediante a introdução de uma característica do fato hipotético não existente no caso a ser decidido, de modo que não seja aplicável a este caso” e o overruling que, por sua vez, consiste na rejeição do precedente. Quanto às formas de aplicação dos precedentes, Alexy ainda trata da analogia, argumentum a contrario, argumentum a fortiori e argumentum ad absurdum cuja explicação não demanda maiores digressões. Ao final da exposição das técnicas e uso das formas de aplicação dos precedentes, enuncia que “as formas de argumentos jurídicos especiais devem ser saturadas”, a fim de que a fundamentação possa ser explorada em todos os contextos que o caso demanda. Ibidem, p. 270-276.

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normativos; c) a possibilidade de casos que exigem uma regulação jurídica, inexistente

nas normas vigentes; e d) a possibilidade de decidir em casos especiais contra a

literalidade da norma224.

A utilização exclusiva quer do discurso prático geral quer do jurídico não

propiciam, por seus defeitos e ambiguidades, o alcance da fundamentação racional,

aumentando ainda mais a área de incerteza quanto ao possível discursivamente.

A imbricação de ambos, no entanto, considerando o discurso jurídico como

espécie do discurso prático geral, garante, ou ao menos se presta a garantir, a

observância do princípio da universalidade, conexão da argumentação empírica com as

premissas normativas, utilização correta e encadeada dos cânones interpretativos e a

consistência necessária, inclusive baseada em precedentes, para a fundamentação

racional perquirida. As debilidades, assim, ficam amenizadas em favor de fundamentos

racionais e enquadramentos previamente delimitados para a prolação de decisão,

delimitando-se e enquadrando-se nos seus estritos moldes todos os argumentos que não

possam, de pronto, encontrar justificação interna ou correspondência no grau de

correção da justificação externa.

A teoria exposta por Robert Alexy, como se pode observar, esmiúça os

diversos aspectos da argumentação racional, pretendendo delimitar as formas e

maneiras por meio das quais se pode proferir uma decisão de maneira racional e

desacoplada de critérios de índole não-jurídicos. Parte-se do pressuposto da regra, sem,

contudo, tê-la como suficiente enquanto discurso jurídico.

Como salientado no início do presente tópico, a decisões jurídicas se

revelam corretas se e enquanto baseadas em processos de justificação racional com base

no direito posto, precedentes e dogmática. Pretende-se, com a teoria ora analisada,

estabelecer um modo racional e justificável da decisão judicial.

Vejamos, na sequência, outra teoria, ainda correlacionada com o tema da

argumentação, que também pretende explicar a motivação das decisões judiciais, agora,

todavia, sob o viés da justificação e aplicação das normas.

2.2. Teoria da argumentação no direito e na moral – justificação e

aplicação

Klaus Günther pretende, com seu trabalho apresentado em “Teoria da

Argumentação no direito e na moral – justificação e aplicação”225, explicitar a 224 Ibidem, p. 280-281.

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diferenciação que se há de empreender entre a justificação e a aplicação das normas no

contexto do julgamento de casos.

Para tanto, reconhece, já por oportunidade das linhas inaugurais, que a

definição da relação entre a ação, norma e a situação constitui um dos principais

problemas enfrentados pela teoria da sociedade, em especial no que tange à tarefa de

julgar226. Embora já se tenham testado perspectivas aristotélicas, sistêmicas, positivistas

e ligadas ao racionalismo crítico, nenhuma delas parece ter oferecido, a contento,

resolução para a questão da correlação entre norma, fato e decisão227.

Trabalhando com a tese de que não é possível abdicar da razão prática – o

que, aliás, o diferencia do viés habermasiano, que não deduz a validade das normas

jurídicas da moralidade, estabelecendo uma relação de co-originariedade e

complementariedade entre ambas228 –, elabora teoria por meio da qual a justificação das

225 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral – justificação e aplicação. Tradução de Cláudio Molz. Rio de janeiro: Forense, 2011. 226 GÜNTHER, Klaus, op. cit., p. VII. 227 Idem, p. X-XV e 4. Eneas Romero de Vanconcelos observa, a respeito do ponto, que “A resposta para esta questão tem como pressuposto as diversas formas de compreensão do papel do direito no contexto das profundas divisões que marca as democracias plurais contemporâneas”. Mencionando Andrew Arato e Michel Rosenfeld resume algumas das propostas mais relevantes: “1) em um extremo, encontra-se o Critical Legal Studies movement, que tende a colapsar o direito em política e que considera as normas jurídicas suficientemente porosas ou contraditórias para cumprir os objetivos daqueles que detém o maior poder político; 2) no outro extremo, situam-se aqueles que concebem o direito como independente e essencialmente separável da ética e da política. O mais proeminente advogado desta posição é Niklas Luhmann cuja autopoiese das normas jurídicas considera o direito como um sistema auto-referencial que permanece normativamente fechado; 3) Um outro modo de lidar com a problemática do nexo entre direito, ética e política é através da adaptação da dicotomia Kantiana entre o direito e o bom de modo a subsumir a estrutura básica do sistema jurídico – ou, pelo menos, do sustentáculo da ordem constitucional. O primeiro e mais influente esforço sistemático nesta direção é obviamente a filosofia política de John Rawls como está elaborada em sua Teoria da Justiça, e a mais próxima versão no campo da jurisprudência é encontrada na teoria do direito e da Constituição de Ronald Dworkin. Ambos Rawls e Dworkin tentam estabelecer a unidade normativa e a coesão da política sobre o campo contestado de concepções do bom, mas ambos são forçados a fazer sacrifícios tão grandes ao longo do caminho que seriamente compromete a força de suas últimas conclusões. 5) o projeto filosófico e jurisprudencial de Habermas em entre Facticidade e Validade pode ser compreendido como uma tentativa de integração do que é mais atraente nas teorias como as de Rawls, Dworkin e Michelemann sem tombar preso as suas respetivas limitações.” VASCONCELOS, Eneas Romero de. O discurso de aplicação dos direitos fundamentais na teoria do Estado Democrático de Direito: o que pensa o Supremo Tribunal Federal. Disponível em <http://www.mp.ce.gov.br/esmp/.../discurso_aplicacao_direito_fundamental.pdf.> Acesso em 20 setembro 2011, p. 4-6. 228 Habermas, como lembra Eneas Romero de Vasconcelos e já abordado linhas acima, compreende que “o direito serve de mediador entre sistema e mundo da vida de modo a garantir a integração social; partindo da teoria da ação comunicativa, propõe-se a uma nova leitura da relação entre direito, democracia e moral. Direito e moral passam a ser vistas como co-originários, operando em diferentes níveis de referência e com fundamento em diferentes normas de ação. Habermas abandona, aqui, a relação de subordinação entre direito e moral, herdeira do jusnaturalismo, que replicava o direito da moral, na qual ainda se percebe resquícios da tradição platônica. Diferentemente das normas morais, as normas jurídicas que pressupõe a sua institucionalização legítima, não sobrecarregam a comunicação dos indivíduos. Neste contexto, ‘o direito moderno tira dos indivíduos os fardos das normas morais e as transfere para as leis que garantem a compatibilidade das liberdades de ação. Estas obtém sua

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normas se atrelaria ao caráter de sua validade, ao passo que a aplicação seria situada na

esfera do caso concreto, notadamente quanto à adequabilidade da norma ao caso229.

O discurso de justificação se diferencia, portanto, do discurso de aplicação

da norma, já que aquele procura constatar a validade do enunciado, obtido,

principalmente, através do princípio da universalidade em caráter fraco. A aplicação,

por outro lado, circunscreve-se às situações que emanam do caso concreto e, portanto,

vincula-se ao princípio da universalidade em caráter forte, de moldes a viabilizar a

imparcialidade e coerência que se espera do ordenamento230. Não se trata, propriamente,

de delimitar espécies que emanem do gênero normas, quais os princípios e regras,

embora o autor não reprima, em si, a diferenciação, apenas a divorciando da finalística

colimada pela teoria que preconiza. O objetivo, antes de verificar se as normas se

aplicam de acordo com o modelo tudo ou nada e os princípios em observância ao peso

que o caso concreto exige, é analisar qual norma será aplicada no caso em foco, a

despeito da existência de uma ou mais regras que se revelem válidas e legítimas sob o

aspecto do sistema jurídico.

legitimidade através de um processo legislativo que, por sua vez, apoia-se no princípio da soberania popular’. Já Klaus Günther, recusando a co-originalidade entre Direito e Moral proposta por Habermas, parte do pressuposto de que não é possível abdicar da razão prática. Na moral, formulam-se discursos de justificação, em que elabora a fundamentação das normas; na aplicação do direito surge o discurso de aplicação da norma para a situação concreta.”. VASCONCELOS, Eneas Romero de, op. cit., p. 7-8. 229 Günther, Klaus, op. cit., p. 1-6, consoante introdução à edição brasileira elaborada por Luiz Moreira. 230 Nesse ponto, o trabalho de Klaus Günther se aproxima das conclusões de Dworkin em relação ao direito como integridade, assim observando: “O ideal de tomar decisões a respeito de normas jurídicas em concordância com uma teoria política completamente coerente foi ampliado e especificado por Dworkin, sob o conceito da integrity. Ainda que surja como princípio independente, ele obtém a sua importância apenas ao lidar com outros princípios fundamentais de uma comunidade política, como lealdade, justiça e devido processo (due process); e isso, como a virtude de lidar coerentemente com estes princípios, expressa-se na máxima de tratar casos iguais de modo igual.” Critica, contudo, Dworkin neste aspecto por considerar que o ideal da integrity não é utilizado como regra semântica (que aplica consistentemente uma norma singular em casos iguais), mas no sentido de um conceito de relacionamento que exige a compatibilidade de uma decisão com virtualmente todos os princípios. Portanto, “a desvantagem dessa proposta é que Dworkin restringe os princípios a serem considerados ao contexto de uma comunidade política. Com isso, a moral factual se torna ponto de referência integrante. Entretanto, o princípio da integrity não precisa encontrar necessariamente o seu limite no contexto dado de uma moral política. É que o direito a igual respeito e consideração – representado pela integrity, no modelo que Dworkin introduz – ostenta um conteúdo universalista que é somente o que torna frutífero o modo como ele reclama.” A fim de ajustar o princípio da integrity no contexto da aplicação das normas, o Autor destaca três leituras diversas: “a) Igual respeito e consideração poderia exprimir a ideia de imparcialidade (...)”, de modo que “ao fundamentar uma norma, essa regra operacionaliza o sentido universal recíproco da ideia de imparcialidade somente se considerarmos de modo igual os interesses individuais (...). Portanto, à medida que o ideal da integrity visa tratar cada indivíduo como portador de direitos iguais, será possível explicá-lo com maior precisão em uma teoria procedimental.”; “b) A vinculação, na forma de um experimento ideal, do princípio da integrity com o ideal de uma comunidade política deixa claro que ela depende de relações solidárias de convivência.”; e “c) ser compreendido como um princípio para argumentações de adequação. (...) O direito de ser tratado como igual em consideração e respeito aparece, nesse ponto, como o direito de tratamento igual de casos iguais, - mas não relacionados a uma norma isolada, e sim a uma porção de princípios como direitos.” Idem, p. 268-275.

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A justificação de normas e sua respectiva aplicação, de acordo com

Günther, apresentam objetivos diversos e partem de princípios também discrepantes. A

elaboração de normas válidas é pautada pelo princípio universalista (U), que, em caráter

fraco, pretende considerar os interesses de todos os possíveis afetados pela norma em

discussão231.

O discurso de justificação se inicia com o seguinte questionamento: “será

que é possível fundamentar a validade de uma norma independentemente das situações

da sua aplicação?”. Para responder ao indagado, observa que a validade de um

enunciado normativo deve ser observada à luz do tipo de consequências que resultariam

da sua aplicação232. Isso porque, aplicando-se o princípio U, a norma somente poderá

ser validamente aceita se, ocupando-se o lugar do implicado (teoria da troca de

papéis233), for possível aplicá-la em situações semelhantes sem descurar de seu

conteúdo semântico234. O autor denomina o princípio “U”, nesta hipótese, como

231 Argemiro Cardoso Moreira Martins e Cláudio Ladeira de Oliveira assim explicam o pensamento de Klaus Günther, neste particular: “Apenas a fundamentação de normas é orientada por (U), ao passo que a aplicação de normas já fundamentadas aos casos concretos exige uma perspectiva distinta. (...) Günther, ao delimitar um âmbito de justificação e um âmbito de aplicação das normas, está, em realidade, distinguindo entre dois tipos de discursos orientados por questões diversas. O discurso de justificação diz respeito à elaboração de normas válidas, pautadas pelo princípio universalista (U), que busca considerar os interesses de todos os possíveis afetados pela norma em discussão. Este tipo de discurso tem lugar, especificamente, no momento de justificação de uma norma moral. Ocorre que o discurso de justificação assim concebido, tem sua legitimidade derivada do imperativo de se considerar todos os interesses dos afetados pela norma em discussão. A polêmica da justificação de uma norma é pautada pela antecipação de possíveis casos pertinentes, considerados em aspectos gerais e exemplares. Antecipa-se, com isso, uma série de consequências possíveis. Ocorre que a discussão desses casos possíveis se dá na medida em que é possível generalizá-los, ou seja, selecionam-se os fatos a partir do critério do traço em comum com outras hipóteses tidas por relevantes e não a partir do aspecto particular de cada situação.” MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; OLIVEIRA, Cláudio Ladeira de. A contribuição de Klaus Günther ao debate acerca da distinção entre regras e princípios. REVISTA DIREITO GV. Belo Horizonte, v. 02, n. 1, p. 241-254, jan./jun. 2006, p. 243. 232 GÜNTHER, Klaus, op. cit., p. 10-17. 233 Flávio Quinaud Pedron explica a teoria mencionada, remontando ao pensamento exposto por Klaus Günther: “Segundo Günther, se um olhar através da história da Filosofia for lançado, poderá ser percebido que, desde muito, se busca um princípio da universalização, capaz de explicar de maneira suficiente uma troca de papéis entre o agente e a pessoa envolvida na ação buscada. Uma proposta foi a ‘regra de ouro’, a qual exige que no curso do julgamento sobre a ação, o agente se coloque no lugar daqueles que poderão ser atingidos. Outras versões levantam exigências de imparcialidade de modo que o agente não se deixe dominar por seus próprios interesses, podendo defender publicamente suas ações à luz das razões guiadas por uma lei universal. Contudo, na compreensão de Wiggins, lembra Günther, a simples mudança não basta para garantir a justeza moral de uma ação; sua proposta, então, concebe o princípio da universalização a partir de uma análise conjunta de três posições: do agente, do afetado e do expectador.” PEDRON, Flávio Quinaud. A contribuição e os limites da teoria de Klaus Günther: a distinção entre discursos de justificação e discursos de aplicação como fundamento para uma reconstrução da função jurisdicional. REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UFPR. Curitiba, n. 48, p. 187-201, 2008, p. 188. 234 “Se chegarmos à conclusão de que a norma está fundamentada porque podemos aceitá-la também em situações semelhantes, e se ocuparmos o lugar do implicado, esta avaliação só terá validade dentro do alcance que o conteúdo semântico desta norma atingir. O conteúdo semântico é pressuposto da

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“princípio-ponte”, capaz de “estabelecer uma ponte entre a norma e os interesses de

todos os implicados, de modo que a validade da norma pode ser condicionada à

concordância de todos os implicados”235.

Neste âmbito, ainda no contexto da validade, há de se perquirir as

consequências e “efeitos colaterais” da observância geral da norma, o que somente se

poderá empreender pela antecipação das situações de aplicação236. “U” demanda que

“se considerem as consequências e os efeitos colaterais de uma observância ou

aplicação geral da norma carecedora de justificação”237, de maneira a que se possa

apurar o interesse comum de todos os afetados.

Evidentemente, a apuração nestes termos será não apenas dificultosa, senão

pragmaticamente impossível, notadamente considerando a mutabilidade de interesses e

as conveniências pessoais traçadas pelos processos históricos e sociais. Importa, neste

aspecto, que “a exigência ideal da consideração de todos os interesses deve ser satisfeita

na medida do possível”, podendo tal critério ser extraído “da concordância de todos os

interessados em torno da antecipação das consequências previsíveis dentro de certos

limites temporais e cognitivos.”238.

E é justamente pela “diversidade de possíveis situações de aplicação que,

per se, produz primeiro o material, no qual podemos aferir o direito à validade de uma fundamentação.” O caráter forte do princípio moral “U” terá importância por ocasião da aplicação das regras, como adiante se verá. Idem, p. 16. 235 Ibidem, p. 23. 236 Há uma evidente correlação entre a justificação e aplicação, materializada pelo princípio “U”, conforme o reconhece o próprio Autor, ao destacar que características especiais da situação de aplicação podem “ser relevantes na reflexão sobre se a norma ainda poderia ser aceita”. Importa, mesmo, é verificar a aplicação do princípio “U”, quer em seu caráter fraco, quer forte. Ibidem, p. 16. 237 Ibidem, p. 25. 238 As duas observações citadas entre aspas foram lançadas por Argemiro Cardoso Martins e Cláudio Ladeira de Oliveira, que, contribuindo para a correta compreensão do pensamento de Klaus Günther, assim explicam: “O que importa em um discurso de justificação é a determinação do conteúdo semântico de uma norma para que ela seja traduzida em ‘termos universais’ passíveis de aceitação por todos os interessados em circunstâncias gerais e previsíveis. Ora, o imperativo de considerar o interesse de todos exige condições ideais de tempo e de conhecimento que, obviamente, não se confirmam na realidade. É impossível prever todas as consequências decorrentes da aplicação de uma norma. Mesmo que dispuséssemos de conhecimento ilimitado quanto aos possíveis ‘efeitos colaterais’, ele não seria útil para a feitura de uma norma geral e abstrata de caráter universal. Günther assinala, ainda, o problema de se determinar quais são os interesses dos participantes de um processo de justificação de uma norma, uma vez que os interesses das pessoas são mutáveis e circunscritos a certos horizontes históricos e sociais. Embora nesse processo as condições ideais de tempo e de conhecimento não sejam satisfeitas, o princípio não é abandonado. A exigência ideal da consideração de todos os interesses deve ser satisfeita na medida do possível. Assim, num primeiro momento, o discurso de justificação de uma norma atenderia ao critério da universalização em sua ‘versão fraca’, assim expressa por Günther: ‘Uma norma é válida se as consequências puderem ser aceitos por todos, sob as mesmas circunstâncias, conforme os interesses de cada um individualmente.’. Trata-se aqui da concordância em torno da antecipação das consequências previsíveis dentro de certos limites temporais e cognitivos. Em um segundo momento, Günther procura compensar a ‘versão fraca’ do princípio (U), por meio do discurso de aplicação de uma norma válida.” MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; OLIVEIRA, Cláudio Ladeira de, op. cit., p. 244.

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norma.”239. Exemplificando o que mencionou, retoma uma situação vivida por Kant240

para, na sequência, ponderar que se diante de uma situação especial é certo (adequado)

aplicar a norma, “esta somente se converterá em elemento constitutivo, necessário à

reflexão, se os efeitos da observância geral de uma norma puderem ser aceitos por todos

em conjunto em cada situação individual.”241.

Portanto, tal como Habermas, conclui, no que toca à justificação, que

somente podem ser consideradas aquelas consequências e aqueles efeitos colaterais que

previsivelmente resultarem da observância geral da norma242. Tal consubstancia o

caráter fraco do princípio da universalidade243 que, de acordo com Günther, desiste de

procurar compreender exatamente para cada situação qual norma seria aplicável e quais

características situacionais seriam mais relevantes para os interesses de todos os

afetados244. Ao revés e sem descurar do princípio da imparcialidade que garante a

observância da mesma regra para símiles situações, considera que “a validade se refere

apenas à questão se, como regra, a norma está dentro dos nossos interesses comuns.”245.

A análise específica de qual regra anteriormente já tida como válida incidirá

em determinado caso será levada a cabo em momento diverso ao da justificação, isto é,

por oportunidade da aplicação, ocasião em que, considerando o princípio da

universalidade em sentido forte, serão tomadas em consideração as características e

especificidades que o contexto fático apresenta.

O discurso de aplicação tem como objetivo a prevalência do melhor

argumento, sendo utilizado como maneira de complementar a norma válida levando em

consideração os efeitos colaterais não antecipados ou momentaneamente

desconsiderados por ocasião do discurso de justificação, agora, todavia, discutindo-se a

situação individual controvertida com todas as suas características e singularidades, a

fim de que se possam determinar todos os possíveis efeitos da norma.

239 GÜNTHER, Klaus, op. cit., p. 26. 240 O caso fora assim descrito por Argemiro Cardoso Moreira Martins e Cláudio Ladeira de Oliveira: “Um perseguido político em fuga da força policial prussiana adentra uma aula do famoso filósofo que o abriga embaixo de sua mesa. Logo a seguir, os policiais entram em cena e o questionam sobre o fugitivo. Kant se vê diante de um dilema moral: diz a verdade e entrega o perseguido à cruenta polícia política ou mente e salva a vida de uma pessoa, transgredindo uma norma moral universal.” MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; OLIVEIRA, Cláudio Ladeira de, op. cit., p. 243. 241 GÜNTHER, Klaus, op. cit., p. 28-29. 242 Idem, p. 30. 243 “Uma norma é válida se as consequências e os efeitos colaterais de sua observância puderem ser aceitos por todos, sob as mesmas circunstâncias, conforme os interesses de cada um, individualmente.”. Ibidem, p. 30. 244 Ibidem, p. 31. 245 Ibidem, p. 31.

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Haverá de se empreender, pois, uma descrição completa de todas as

circunstâncias não antecipadas pela descrição normativa. O propósito, dessa forma,

passa a ser compreender, examinar e verificar qual a norma aplicável ao caso concreto,

diante das especificidades que se apresentam, refutando-se todas as demais que, prima

facie, revelaram-se aparentemente aplicáveis. Pretende-se testar a correção da norma, no

sentido da sua aplicação individual e única ao caso posto sob a apreciação, sem olvidar,

no entanto, do princípio da imparcialidade, a fim de que com tal atuar seja possível

atingir a coerência do próprio sistema.

Neste aspecto, uma primeira distinção a ser realizada é a que Klaus Günther

expõe, com apoio em Baier, entre as normas prima facie e as definitivas. Apresentando

exemplo recorrente na filosofia no tocante à distinção entre normas que mandam fazer

algo apenas consoante suposição genérica e normas que mandam fazer algo de modo

absoluto ou definitivo, pretende destacar a problemática envolvendo a colisão das

normas no contexto de sua aplicação246.

A norma prima facie, como menciona, é aquela que impõe um compromisso

ou indica uma determinada direção apenas aparentemente, ao passo que as normas

definitivas (absolutas ou efetivas) impõem um compromisso correlacionando a norma

ao “aqui e agora, na situação concreta.”247. A norma prima facie aplicável a

determinado caso considera a cláusula ceteris paribus (mantendo-se iguais as demais

coisas), de modo a que se refere sempre à concordância geral (quanto à validade) e

aplicabilidade sob as circunstâncias inalteradas. A norma definitiva, todavia, não admite

menos do que a análise exaustiva de todas as características da situação para que se

possa com isso delimitar a perfeita moldura a ser aplicada em cada caso, entendendo-a e

246 “O exemplo padrão é o caso de (X) que fez a promessa a Smith de aceitar um convite para a sua festa, mas que, entrementes, é informado de que o seu melhor amigo, Jones, adoeceu gravemente e necessita da sua ajuda. Caso (X) se decida a corresponder ao seu dever de prestar auxílio e amizade a Jones, estará rompendo a promessa feita a Smith”. Observa, na sequência, acerca do exemplo: “Uma vez que, com isso, a promessa e o dever de cumpri-la não ficaram simplesmente invalidados ou anulados, tentou-se caracterizar a norma precedente como responsabilidade prima facie, a qual deveria ser distinguida de uma responsabilidade definitiva. Evidentemente, esse exemplo parece simplista, porque a solução é óbvia. É possível estabelecer uma norma definitiva, como: ‘em situações do tipo (S1) conceder-se-á, ao dever de prestar auxílio, prioridade diante do dever de cumprir as suas promessas’. A trivialidade desse exemplo, porém, não nos deverá iludir quanto ao fato de que, com essa solução, não se esclareceu nem como o caráter de validade das normas originalmente aplicáveis deveria ser definido na relação com a norma definitiva, nem de que modo nós, sobretudo em situações complexas, poderíamos encontrar uma norma definitiva adequada.” Ibidem, p. 197. 247 Ibidem, p. 198.

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concebendo-a como a vontade querida pelo ordenamento jurídico enquanto

manifestação de integridade normativa248.

Evidentemente, justamente pela necessidade de se perquirir qual a norma

aplicável a cada situação, assume importância verificar a existência de eventual colisão

entre as normas válidas. Neste ponto, Klaus Günther se divorcia completamente dos

ensinamentos de Robert Alexy, vez que situa a problemática da colisão não na esfera da

validade das normas, mas sim na adequação249.

Alexy tem para si a compreensão de que a distinção entre o caráter prima

facie e o caráter definitivo de normas se situa na estrutura das normas e no seu efeito

coercitivo. Assim, partindo da diferenciação entre princípios e regras, aqueles somente

conteriam ordens prima facie, ao contrário das regras, que prescreveriam uma ação de

modo definitivo. A consequência que ressoa candente é que os princípios poderão ser

restritos por meio de regras ou princípios em colisão, adotando-se, neste particular, o

princípio da ponderação; e as regras, de outro tanto, acaso colidam entre si não podem

prescindir de uma cláusula de exceção ou decisão acerca da validade de uma em

detrimento de outra250.

A propósito da sugestão, Klaus Günther considera que Alexy ajusta o

problema da colisão ao caso concreto, não indicando critérios segundo os quais seja

possível analisar a adequação de enunciados de preferência ou, tampouco, qual a

estrutura da aplicação dos princípios. Destaca que para Alexy apenas se “evidenciará”,

sem qualquer modelo racional, qual norma exige argumentação de adequação em

determinadas situações de aplicação251. Tal não satisfaz à teoria da argumentação e, em

248 “Por isso podemos dizer que a validade de uma norma sempre se refere à concordância geral, e sua aplicabilidade ocorre sob circunstâncias inalteradas. A pressuposição implícita, que procedemos com esta cláusula ceteris paribus (mantendo-se iguais as demais coisas) em discursos de fundamentação, desdobrará os seus verdadeiros efeitos apenas em discursos de aplicação. Em discursos de fundamentação servirá para excluir artificialmente a consideração de diversas situações de aplicação. Em discursos de aplicação, porém, não será possível sustentar por mais tempo essa ficção. É que somente saberemos se as circunstâncias da situação de aplicação são as mesmas que as pressupostas na da fundamentação depois de examinarmos todos os sinais característicos da situação, isto é, depois de proferirmos um discurso de aplicação.” Ibidem, p. 200-201. 249 “Portanto, será no discurso de aplicação que encontraremos o problema de colisão. As normas válidas sob circunstâncias inalteradas poderão colidir ao examinarmos todas as circunstâncias de uma situação. No discurso de fundamentação constataremos tão somente que, sob circunstâncias inalteradas, não há normas que colidam com a norma carecedora de fundamentação. A colisão, nesse caso, seria um problema da adequação e não da validade de normas.”. Ibidem, p. 201. 250 Ibidem, p. 203. 251 “Consequentemente, Alexy ajusta o problema de colisão ao caso concreto. Por meio da lei de colisão e da sua ampliação na forma da ‘lei de ponderação’, será possível formar enunciados de precedência referentes às circunstâncias especiais do caso, cujos sinais característicos factuais, combinados com uma determinada consequência jurídica, poderão ser transformados em uma regra definitiva. A adequação de um princípio resultará da determinação da relação frente a todos os demais princípios aplicáveis na

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especial, ao discurso de aplicação, na medida em que fica patente a dificuldade de

encontrar critérios que permitam uma decisão clara.

Pretendendo uma correção de rota, Klaus Günther separa o modo de

aplicação de uma norma de seu conteúdo deontológico, introduzindo, para fins de

aplicação, o princípio da imparcialidade. Efetivamente, “teria pouco sentido estabelecer,

de modo definitivo, algo no âmbito do efetiva e juridicamente possível, se em cada

situação devêssemos contar com colisões.”252. Diante dessa perspectiva de dificuldade

de uma argumentação racional – não se olvide que este é o escopo da própria teoria da

argumentação, isto é, definir critérios racionais para justificar as decisões –, a ideia de

imparcialidade servirá para que se encontrem as normas definitivas levando em conta a

concordância entre “os sinais característicos factuais da norma e a descrição de sinais

característicos situacionais relevantes.”253.

Assume importância, nesta quadra, o princípio da universalidade em sentido

forte, já que preconiza a universalidade sob o caráter semântico, isto é, sob um princípio

moral universalista254.

situação, e das condições efetivas, das quais a concretização do princípio dependerá. Obviamente, Alexy não indica critérios, segundo os quais fosse possível avaliar a adequação de um enunciado de preferência. Entretanto, o conceito de estrutura de norma já restringe os pontos de vista a serem examinados, ao se estabelecerem princípios que, como mandamentos de otimização, visam, de modo otimizado quanto às possibilidades efetivas e jurídicas, concretizar um estado. A lei de ponderação define o tipo de relação segundo graus de importância e de restrição, de modo que é possível indicar cada caso que necessita de fundamentação. O motivo pelo qual este tipo de argumentação de adequação seria exigência da estrutura dos princípios continua nebuloso. Somente se evidenciará que determinadas normas exigem argumentações de adequação em situações de aplicação.” Ibidem, p. 205. 252 Ibidem, p. 207. 253 Ibidem, p. 207. 254 Ibidem, p. 213. Tendo em conta a densidade da teoria neste ponto e a importância para o presente trabalho, vale a pena reproduzir excerto do texto elaborado por Argemiro Cardoso Moreira Martins e Cláudio Ladeira de Oliveira a fim de aclarar as ideias reproduzidas: “O discurso de aplicação parte da existência de normas válidas e aplicáveis prima facie que deverão ser adequadas a um determinado caso. Uma norma aplicável prima facie é aquela cuja aplicação não deve ser determinada, exclusivamente, pela identidade semântica entre os fatos hipoteticamente descritos na disposição normativa e aqueles utilizados na descrição do caso concreto e singular. É também necessário considerar os fatos não previstos. No exemplo do fugitivo, não se pode desconsiderar a consequência da observância da norma que proíbe a mentira: a delação de uma pessoa inocente que, com isso, tem a vida ameaçada. Trata-se, na verdade, da aplicação do princípio da imparcialidade no âmbito do discurso. No discurso de justificação, a imparcialidade existe quando se consideram todos os interesses envolvidos. No discurso de aplicação, por sua vez, a imparcialidade é assegurada pela consideração de todos os fatos relevantes do caso. A ideia de imparcialidade permite a consideração, em nosso exemplo, do interesse do foragido, que pode encontrar respaldo na norma que proíbe a delação de um inocente. A partir da proposta de discussão de uma norma em dois níveis, pode-se atender ao princípio (U) em sua ‘versão forte’, assim expressa por Günther: ‘Uma norma é válida e, em qualquer hipótese, adequada, se em cada situação especial as consequências e os efeitos colaterais da observância geral desta norma puderem ser aceitos por todos, e considerados os interesses de cada um individualmente.’. É importante sublinhar que não se está retomando a discussão sobre a validade de uma norma, como ocorre no discurso de justificação. Na aplicação de uma norma válida ela emerge como aplicável prima facie, de par com outras normas igualmente válidas e possivelmente aplicáveis, o que significa dizer que a adequação de uma norma ao caso individual precisa

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Desse modo, enquanto Robert Alexy procura resolver o problema da colisão

entre princípios trazendo às luzes o caso concreto e a partir dele empreendendo a

ponderação que compreende cabível, Klaus Günther pensa que mesmo em disputa de

valores a questão não se afasta da mera aplicação das regras anteriormente tidas como

válidas. Trata-se de impor um modelo racional ao processo de ponderação e não de

relegá-lo ao caso em discussão.

Desvia-se a perspectiva da resolução dos conflitos do caso concreto ao

ordenamento que, agindo de maneira integral e coerente, viabilizará a definição da

correta norma a ser aplicável à res in iudicium deducta255.

Assim é que a partir do capítulo 3 da terceira parte de sua obra passa a

descrever os critérios utilizados para o que denomina “segundo estágio de

argumentação”256, correlacionado ao discurso de aplicação das normas. Assim procede

preambularmente tratando da argumentação de adequação na moral e, já na quarta parte,

da argumentação no direito.

Como elemento de lógica de adequação inicialmente proposto, compreende,

como já mencionado anteriormente, ser necessária a descrição completa da situação.

Nesse meandro, importa verificar qual o recorte situacional determinado pelas normas

prima facie aplicáveis ao caso. A partir delas, deve-se considerar, em primeiro plano, a

regra de consistência semântica (também denominada por Robert Alexy de regra

fundamental do discurso prático geral) segundo a qual “uma norma que seja válida sob

condições inalteradas deverá ser aplicada a cada situação em que estas mesmas

circunstâncias estiverem presentes” para, em seguida, justificar, se for o caso, o motivo

pelo qual pretende afastar-se do tratamento igual a casos iguais propostos. Tal será

também ser justificada. É neste segundo nível, o de aplicação de uma norma, que se deve atender ao ‘senso de adequabilidade’ na determinação da norma cabível a um caso singular, de maneira que possa ser aceita como legitima por todos os interessados. Ocorre que a norma adequada ao caso será determinada após o exame de todas as normas aplicáveis prima facie, bem como de todos os fatos relevantes.” MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; OLIVEIRA, Cláudio Ladeira de, op. cit., p. 245. 255 “Nesse exato ponto, surge uma discordância fundamental de Günther com as teses de Robert Alexy. Para este último, um conflito normativo deste gênero se resolve por meio de uma ponderação de valores traduzidos em ambos os princípios colidentes. Para Günther, contrariamente, não se trata de uma disputa entre valores, mas da determinação de uma norma mais adequada ao caso concreto, cuja determinação não passa pelo processo de sopesamento de valores. Günther não vislumbra na ponderação de valores um critério racionalmente verificável para determinar qual a norma adequada ao caso. (...) A devida solução do conflito normativo deve ser buscada em um outro nível, que possibilite uma melhor fundamentação da norma aplicável ao caso. Um modelo mais apropriado é vislumbrado por Günther na teoria da ‘integridade’ proposta por Ronald Dworkin.”. Idem, p. 247. 256 GÜNTHER, Klaus, op. cit., p. 217.

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possível considerando outros sinais característicos situacionais “que fundamentem uma

diferença relevante em relação aos sinais característicos pressupostos como iguais.” 257.

Não há espaço neste momento, porém, para argumentos hipotéticos. Como

adverte Günther, “a verdade de cada uma das manifestações é condição necessária de

uma descrição situacional completa”. Dessa forma, considerar abstratamente e/ou

efetivar conclusão hipotética acerca dos elementos situacionais postos à prova não cabe

enquanto descrição completa do caso. Deve-se ter em foco o que de fato existe e, partir

disso, verificar se a regra de consistência semântica deve ser aplicada; e, acaso negativo,

justificar as razões para tanto considerando fatos existentes e comprovados.

Em seguida, verifica-se se “a descrição dos dados, contida na norma,

concorda com a descrição situacional verdadeira”, a fim de que se possa constatar a

existência de algum sinal característico que deve ser considerado para fins de aplicação,

justificando-o258. Trata-se do que Robert Alexy denominou, expressão com a qual anui

Günther, concordância de “regras de uso lexical”, aptas a fundamentar e justificar a

aplicação da norma diante de um sinal característico que a situação apresenta e, ainda,

levando em conta cânones de interpretação, pré-julgamentos (jurisprudência) ou

argumentos dogmáticos259.

Apresentada a descrição situacional completa, com suas variantes,

relevância e sinais característicos, deverá ser relacionado, na sequência, o caso com

todas as outras normas aplicáveis, de maneira a se conduzir a um “esgotamento

normativo” que menciona todas as normas possivelmente aplicáveis. Para definir,

portanto, a norma definitiva, aponta o autor que se deve proceder a “um tipo de

imaginação moral” que consiste em ponderar diversos “pontos de vista possíveis

257 Idem, p. 218. 258 Ibidem, p. 219. 259 “Regras de uso lexical asseguram a passagem interna da descrição situacional e da norma para a conclusão final, na qual elas constatarão ou estabelecerão (postular) a identidade de significação dos termos (...)” Em discursos jurídicos, são os cânones da interpretação, bem como a fundamentação por meio de pré-julgamentos e preceitos da dogmática que cumprem esta finalidade. (...) Regras de uso lexical explicitam ou postulam não só o modo correto de utilização dos termos usados em uma norma, mas, simultaneamente, selecionam determinados sinais característicos da respectiva situação. A sua função consiste justamente em fundamentar a concordância do termo da norma com a descrição da situação, por meio de uma diferenciação cada vez mais precisa dos significados, até identificar o significado.”. Variantes situacionais possíveis e em diversos graus também devem ser consideradas, de acordo com o Autor, para a completa descrição do fato e, bem assim, de determinado sinal característico. Ibidem, p. 220-224.

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normativamente relevantes em uma situação, e avaliá-los nas suas relações,

consequências e efeitos colaterais”260.

Definida a aplicação da norma diante das regras de consistência semântica

ou de uso lexical, passa-se à etapa seguinte, alusiva à coerência, que se presta “à

resolução daqueles problemas de colisão que são sistematicamente criados por meio de

um cumprimento argumentativo da pressuposição de integralidade.”. Não se trata, como

anota o autor, do conflito no âmbito da validade, já superado por ocasião do discurso de

fundamentação, mas sim de definir o discurso de aplicação261.

Günther apresenta alguns critérios para tanto. Citando Baier, menciona a

existência da “seleção de hierarquia” como um dos critérios possíveis para a resolução

da colisão anunciada. Esta consiste na ponderação naturalmente tendente à precedência

de uma regra se e enquanto ajustada aos pontos de vista morais existentes na sociedade

e que se coadunem com um contexto ético. Alexy, segundo aludido por Günther,

também utiliza este critério ao empreender a ponderação de princípios, já que a

dimensão do detrimento de um princípio dependerá da importância de outro segundo

condições factuais de determinada situação262.

Bem se percebe a imprecisão de tal critério, porquanto a introdução de

modelos de valor na estrutura da norma constitui óbice à própria argumentação

enquanto método, considerando que as condições de adequação não devem prejudicar a

validade de uma norma263.

260 “Entretanto, a mera ampliação da descrição situacional ainda não basta para conduzir a argumentação de adequação para um final bem-sucedido. Os demais sinais característicos situacionais incluídos no debate, pelo oponente, não são, por sua vez, desprovidos de referência, mas, sim, novamente relevantes para outras normas. Deveremos, portanto, relacionar a descrição situacional completa com todas as outras normas aplicáveis. (...) A descrição situacional completa é submetida a um ‘esgotamento normativo’ que menciona todas as normas possivelmente aplicáveis. Com isso, movemo-nos no nível da colisão de normas, que exige a passagem para o estágio do pensamento crítico (critical thinking). (...) em terminologia tradicional, poderíamos chamar a capacidade pressuposta para isso de um tipo de força de imaginação moral, que consiste em ponderar diversos pontos de vista possíveis normativamente relevantes em uma situação, e avalia-los nas suas relações, consequências e efeitos colaterais. Será decisivo, porém, tomar como ponto de partida a exigência de uma descrição situacional completa.”. Ibidem, p. 226. 261 “A colisão de normas não pode ser reconstruído como um conflito de pleitos de validade, porque as normas em colisão ou as variantes de significado concorrentes somente se correlacionam em uma situação concreta.” Ibidem, p. 226-227. 262 Ibidem, p. 227-228. 263 “O critério segundo o qual nos orientamos na ponderação de normas em colisão, não poderá, por sua vez, conter uma prerrogativa material que qualifique determinados pontos de vista normativos como precedentes a outros. A concepção dos princípios de Alexy, como mandamentos de otimização, havia-nos alertado quanto ao perigo que poderá surgir ao se projetar, por exemplo, um modelo de valor em uma teoria de estrutura de normas. A decisão por uma norma adequada se reduz, neste caso, a uma decisão pelo estado relativamente melhor que, na respectiva situação, também será o ótimo. O problema assim aludido consiste no perigo de se introduzir, no momento de determinar a estrutura de argumentação, os

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O autor, então, rejeita tal critério, entendendo que a adequação deve ser

entrevista apenas à luz de critério formal, consistente na “coerência da norma com todas

as demais normas e todas as variantes de significado aplicáveis em uma situação”.

Como a estrita alusão ao critério formal não parece esclarecer muito, passa a delimitar o

que denomina critérios de coerência, elencando-os da seguinte forma: a) uma norma

será adequada em dada situação se ela for compatível com todas as outras variantes de

significado aplicáveis na situação analisada e com todas as normas prima facie

aplicáveis e se a validade de cada uma das variantes de significado e de cada uma das

normas puder ser justificada em um discurso de fundamentação264; b) uma norma é

adequadamente aplicável em uma situação se ela for compatível com todas as outras

normas aplicáveis na mencionada situação que fazem parte de um modo de vida

determinado, passíveis de justificação em um discurso de fundamentação265.

Conclui, portanto, que a coerência somente cabe enquanto critério de

adequação, devendo ser forçosamente excluída da fundamentação das normas, sob pena

de se chegar ao seguinte esquema normativo; “se q, então é devido fazer p”. Conquanto

os critérios expostos não resolvam, por si só, a problemática da construção de uma

relação de coerência dentro do plexo de normas aplicáveis, já se viabiliza o afastamento

tanto da teoria de eticidade, na qual a validade está sempre incluída na adequação;

quanto das teorias de coerência moral em sentido mais estrito, que “não apenas

determinam a aplicação, mas também a fundamentação de validade de uma norma

segundo a sua posição na relação de equilíbrio com outras normas.”.

Em verdade, considerando que a coerência reconhece como “dada” apenas a

validade moral das normas que estiverem suspensas em discursos de fundamentação, é

critérios materiais que, por si próprios, deveriam constituir tema de uma argumentação de adequação. Um conceito procedimental de adequação ou uma aplicação procedimental de normas deveria, entretanto, conter-se diante de tais critérios materiais implícitos. Se se pretende que exista adequação na consideração de todos os sinais característicos situacionais, o método de consideração não poderá, por sua vez, ser determinado por meio de critérios materiais.” Ibidem, p. 228. 264 O próprio Autor critica o critério por ele enunciado, observando como desvantagem que nunca se saberá quais normas em uma situação serão passíveis de justificação em um discurso de fundamentação. Pontua, ainda, que o critério demanda uma capacidade de imaginação normativa infinita que possibilite antecipar cada norma virtualmente universalizável e aplicável a respectiva situação. A insuficiência do primeiro critério conduz, segundo Günther, ao segundo critério acima destacado. Ibidem, p. 230-231. 265 A referência a modo de vida como mencionado pelo Autor se correlaciona a um sistema ético, de tal maneira a que “Com a universalização do pleito de validade no estágio pós-convencional de argumentação moral, já não haverá mais determinação procedimental da situação de aplicação. Modos de vida descentrados não dispõem de ‘sistemas éticos’.”. Entretanto, observa, criticamente, que “Um mundo da vida assim exigirá um alto teor de fantasia construtiva e de capacidade de imaginação normativa, para relacionar todos os sinais característicos situacionais com os pleitos normativos nos quais se expressa um interesse universal-recíproco, a fim de fazer jus à simultaneidade da absoluta distinção de cada uma das situações e da validade universal de normas morais.” Ibidem, p. 231.

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preciso avançar ao critério formal estabelecendo paradigmas que definam “quais sinais

característicos em uma situação são normativamente relevantes.”266. Disso o autor trata

na quarta parte de sua obra, agora especificamente voltando seu labor à argumentação

de adequação no direito.

Antes, porém, menciona que precisamente neste momento se verifica a

necessidade de se diferenciar as normas jurídicas das morais, o que previamente não se

afigurava imprescindível na medida em que “a meta consistia tão somente em construir

uma teoria da aplicação imparcial de normas válidas”267.

Com tal intento, destaca que o princípio “U” na feição direcionada à

validade das normas (“a validade das normas dependerá de que as consequências e os

efeitos colaterais da sua observação, sob circunstâncias inalteradas para os interesses de

cada um individualmente, sejam aceitas por todos os implicados conjuntamente”)

somente poderá ser aplicado como regra de argumentação em discursos se

correlacionado com o princípio da reciprocidade, consistente em que cada um dos

participantes virtuais do discurso venha a assentir ao dever de observar a norma ainda

que outra seja a intenção decorrente de seu ego. Citando Locke, relembra que a

constituição do Estado reside menos no perigo da guerra civil do que, propriamente, no

fato de cada um se considerar seu próprio juiz268.

Apenas tendo em conta o princípio da reciprocidade se poderá cogitar da

existência de sujeitos de direito, constituindo a linguagem normativa não mais do que a

relação entre os participantes do discurso cuja demanda mútua seja a observância

efetiva de normas válidas269. A validade factual do princípio da reciprocidade, neste

âmbito, é obtida à conta de procedimentos que garantam a aplicação empírica efetiva de

decisões imparciais. O autor aponta duas condições para tanto: a) recursos de poder

266 Ibidem, p. 231-232. 267 Ibidem, p. 239. 268 “Uma ética cognitivista não necessitaria preocupar-se enormemente com o problema da motivação, se no fato de que não se observarem normas válidas e adequadas não estivesse contida, por sua vez, uma violação do princípio da reciprocidade universal. O critério de validade, estabelecido com o princípio moral (U), vincula expressamente a validade de uma norma com a pressuposição da sua observância geral. A aceitabilidade das razões apresentadas pelos participantes do discurso está, portanto, sob a condição resolutiva de que também a norma será efetivamente observada por todos (...) A base moral para a fundamentação de uma constituição de Estado, segundo Locke, reside menos no perigo de uma guerra civil do que na violação, que lhe subjaz, do princípio da reciprocidade, quando ‘cada um (é) o seu próprio juiz’”. Ibidem, p. 241-242. 269 “O único sentido desse ‘direito’ consiste em tornar possível a validade efetiva do princípio da reciprocidade. Somente sob essas pressuposições é que a equiparação kantiana entre Direito e prerrogativa de mútua coação é fundamentada. O Direito constitui uma relação entre os participantes virtuais do discurso cuja demanda mútua seja a observância efetiva de normas válidas. Com isso, reconhecem-se, reciprocamente, como ‘sujeitos de direito’”. Ibidem, p. 242.

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organizados de maneira procedimental e institucional, aptos a neutralizar pesos

desiguais de poder; e b) recursos que produzam empiricamente decisões cujos

pressupostos já estiverem clara e inequivocamente previamente definidos270.

Assim, observadas as condições mencionadas, o direito ocupará o lugar de

fator estabilizador da expectativa geral à observância do princípio da reciprocidade e,

em consequência, viabilizará a aplicação do princípio “U” em ambos os aspectos, fraco

e forte, na seara da justificação e aplicação das regras. A moral não seria, por si só,

capaz de se desincumbir de tal intento, o que torna imprescindível a utilização do direito

e a diferenciação entre ambas as esferas no que toca à teoria desenvolvida.

Sob a batuta do direito, portanto, será possível conceber como critério para a

adequação das normas a distinção entre regras e princípios no contexto das condições de

ação sob as quais as normas são aplicadas (e não na estrutura da norma, tal como

sustenta Alexy). Assim, quanto às regras, a partir de uma perspectiva interna do sistema,

“se uma determinada instituição como a do legislador tiver decidido antecipadamente a

respeito da adequação da norma, ela poderá ser aplicada como uma regra”, já que a

institucionalização prévia acarreta a desconsideração de alguns contextos situacionais

prévios271.

270 “O fato de se dispor de recursos para produzir empiricamente uma decisão, portanto, não pode ser exposto às mesmas fraquezas motivacionais, por cuja compensação fundamentou-se moralmente o direito. Para controlar esse perigo, não obstante, dispõe-se novamente apenas do Direito. Por isso, ele deverá estabelecer as pressuposições do seu uso, mesmo naqueles procedimentos que simultaneamente garantem decisões imparciais e são empiricamente efetivos, isto é, que estão institucionalizados em uma sociedade. Desse modo, a validade factual do princípio da reciprocidade é obtida por procedimentos nos quais estão fixadas, de modo genericamente válido, normas jurídicas positivadas que serão imparcialmente aplicadas em um ‘juízo orientado pelas circunstâncias do caso presente’ e que poderão ser impostas somente conforme este processo decisório. O fato de que normas jurídicas são fundamentadas e aplicadas em discursos institucionalizados, segundo esses cenários, em nada muda o seu pleito por validade e adequação situacional. Esse pleito só será restrito à medida que os discursos satisfaçam duas condições: por um lado, requerem-se recursos de poder – de novo organizados segundo modelos procedimentais – a fim de neutralizar pesos desiguais de poder; por outro lado, recursos que produzam empiricamente decisões somente poderão ser utilizados se previamente já estiverem decididos, clara e inequivocamente, os seus pressupostos. Normas jurídicas gerais e singulares precisam, portanto, derivar de discursos capazes de ser concluídos por meio de uma decisão. Com isso, diferentemente do discurso prático, eles estão sob condições de exigibilidade de tempo e de conhecimento incompleto.”. Ibidem, p. 242-243. 271 “Depois se se haver desvinculado a fusão convencional de validade e adequação, a exclusão das argumentações de adequação somente poderia ser justificada transferindo-a à responsabilidade do legislador. A convencionalização artificial de normas jurídicas como ‘regras’ positivadas necessita, diante do pano de fundo de um nível pós-convencional de fundamentação e aplicação de normas, de uma justificação adicional. Somente sob esta premissa será possível fundamentar também a partir da perspectiva interna, porque, na aplicação de normas como regras, contextos situacionais podem permanecer desconsiderados. Se uma determinada instituição como a do legislador tiver decidido antecipadamente a respeito da adequação da norma, ela poderá ser aplicada como regra. Desse modo, o Direito positivo corresponde ao nível pós-convencional da fundamentação e aplicação de normas. A positivação de normas jurídicas deve ser institucionalizada em procedimentos que correspondam às regras de discursos práticos, de modo que os interesses individuais possam ser destacados. A aplicação das

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De outro tanto, não há como olvidar que “A complexidade da sociedade

exige com insistência que o direito seja considerado adequadamente, e isso in casu”272.

Dessa forma, cabe ao legislador a decisão antecipada acerca da adequação da norma, ao

passo que a jurisprudência cuidará da aplicação tendo em conta o exame de todos os

sinais característicos da situação tratada. Aplicar-se-á a norma como regra.

Os princípios não podem ser desconsiderados, mas a sua aplicação se

prestará a ensejar que a percepção do direito não se limite à função do Código, mas,

diante das condições sociais de alta complexidade e contingência, possa “abrir-se a si

mesmo para argumentos de adequação”273. Neste ponto, o autor considera que a ideia de

aplicação imparcial, partindo do exame de todos os sinais característicos

normativamente relevantes de uma situação, deve também estar vinculada a uma

ponderação de princípios e procedimentos que possibilitem uma consideração integral e

adequada, criando espaços nos quais a argumentação de adequação possa, apoiando-se

em uma multiplicidade de princípios relevantes, relacionar o maior número possível de

aspectos efetivos e normativos de uma situação274.

normas deve ser institucionalizada em procedimentos que possibilitem a consideração de todos os sinais característicos de uma situação. Só assim será possível resolver os paradoxos aparentes do Direito positivo e compatibilizar a sua potencial alteração aleatória com a exigência de reconhecimento geral de sua validade, além de conciliar a seletividade de normas (como regras) com a ideia de aplicação imparcial.” Ibidem, p. 260. 272 Ibidem, p. 261. 273 No tocante à atividade do legislador e do julgador, Günther elabora dois modelos representativos ideais: o modelo da correia de transmissão e o modelo do bilhar, aquele relacionado à função legislativa e este à jurisdicional. Flávio Pedron assim os explica: “A Teoria do Discurso, então, permite repensar a dinâmica da atividade jurisdicional, sempre pressupondo a dimensão democrática. Torna-se importante distinguir bem dois modelos apresentados por Günther: (1) o modelo da correia de transmissão, segundo o qual o juiz deve aplicar o Direito que é elaborado anteriormente por um legislador democrático. A legitimidade da decisão, então, decorre da observância à legalidade, ou seja, ao Direito pré-fixado nos processos de legislação; e (2) o modelo do bilhar, que afirma que a atividade de aplicação jurídica tem legitimidade por si mesma, independentemente da existência do legislador. Aqui a aplicação do Direito e a legislação, às vezes, correm em sentido paralelo, e até mesmo contrário. Uma vez que o Direito legislado é permeado por indeterminações, ou mesmo incapaz de exprimir o ‘verdadeiro’ direito pelo qual o povo anseia – principalmente em razão de o processo legislativo poder ser regido pelo sabor das forças políticas, os magistrados vêem-se forçados a adaptar o que foi positivado, podendo até mesmo criar novos direitos. Para esse modelo, caso os juízes não estejam representando bem a vontade popular, sempre há espaço para que os legisladores interfiram, produzindo novas leis, mudando o curso de decisões futuras. Todavia, adverte Günther, o círculo vicioso se reinstala, podendo o Judiciário compreender diferentemente a mensagem provinda do Legislativo. A validade jurídica, então, encontra-se fracionada: em parte, deriva dos processos de legislação, mas também decorre das decisões proferidas pelo Judiciário.”. PEDRON, Flávio, op. cit., p. 197. 274 “A percepção funcionalmente adequada da sua função de código, portanto, obriga o Direito, sob condições de alta complexidade e contingência, a abrir-se a si mesmo para argumentações de adequação. (...) Por conseguinte, ela está vinculada à ponderação de princípios e aos procedimentos que possibilitem uma consideração integral e adequada. A aplicação do Direito deve criar espaços, nos quais – in casu – são possíveis argumentações de adequação que possam apoiar-se em uma multiplicidade de princípios relevantes. Para relacionar entre si o maior número possível de aspectos efetivos e normativos de uma situação, deve haver espaços na própria aplicação do Direito, nos quais também possam ser destacados os

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Embora situe a distinção entre princípios e regras na esfera das condições de

ação para o discurso de aplicação, não os desconsidera, parecendo com isso indicar a

introdução de elementos valorativos e inequivocamente axiológicos mesmo no contexto

da aplicação, o que forçosamente se virá a dar pela jurisprudência. Assinala, outrossim,

que devem ser considerados “princípios políticos e morais”, já que “representam o nível

pós-convencional de argumentação moral”275.

Exatamente aonde, no ordenamento jurídico, no entanto, poderiam ser

encontrados estes princípios a que faz referência; e, por outro lado, como compatibilizá-

los com a perspectiva ativista judicial sem deixar ao talante do Julgador a definição

integral do conteúdo principiológico?

A teoria que segue descrita no capítulo seguinte se predispõe a responder ao

indagado, estabelecendo uma série de mandamentos que, de índole constitucional,

podem se prestar a auxiliar na função judicante sem que o controle da atividade

correspondente seja relegada ao desdém.

Também será abordada a imbricação da ciência econômica ao direito, por

meio da escola econômica, como forma de racionalização de parâmetros argumentativos

objetivos a justificar a tarefa preconizada pelo Julgador.

princípios políticos e morais que representam o nível pós-convencional de argumentação moral. Desse modo, a aplicação de normas, por sua vez, é de novo ‘procedimentalizada’ e, com isso, novamente vinculada a argumentações imparciais de adequação.”. GÜNTHER, Klaus, op. cit., p. 262. 275 Idem, p. 262.

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ENTRE JUSTIFICAÇÃO E APLICAÇÃO – PARTE II

1. Breve escorço

No capítulo anterior foram expostas teorias sustentadas por Ronald

Dworkin, Jürgen Habermas, Robert Alexy e Klaus Günher. Em primeiro lugar, foram

expostas as correntes tidas como substancialista e procedimentalista. O objetivo nesta

etapa fora analisar se a Constituição poderia fornecer o enquadramento jurídico

necessário à resolução das questões e se o juiz participaria ou não do processo de

elaboração das normas que doravante viria a aplicar.

Ao tempo em que Dworkin procura justificar a atuação do Poder Judiciário

com base na própria Constituição, Habermas reestrutura toda a base para a função

judicante, inserindo o juiz no contexto da própria elaboração das regras que virá a

aplicar. Quanto ao pensamento de Habermas, procurou-se destacar sua compreensão do

mundo da vida, sistema, atuação dialógica, teoria da ação comunicativa e do discurso e,

principalmente, as categorias insaturadas de direito, base para, mesmo no âmbito do

procedimentalismo, extrair o núcleo da atividade judicante e a forma jurídica de

argumentação.

Delimitadas, em princípio, a atuação da Constituição e o papel do juiz,

passou-se a investigar quais critérios jurídicos devem, então, os magistrados observar

para o desempenho de sua função observando as premissas já fixadas (Constituição e

atuação dialógica do juiz). Neste ponto, a teoria da argumentação cunhada por Robert

Alexy ofereceu critérios científicos para a argumentação. Expôs-se, portanto, a teoria na

forma como concebida pelo autor, correlacionando-a com as premissas já fixadas

anteriormente.

Em prosseguimento, procurou-se demonstrar que mesmo diante da

Constituição, atuação do juiz e critérios científicos bem definidos, o caso concreto não

pode ser desconsiderado ou minimizado, nomeadamente quanto às características

situacionais que oferece, necessárias a se levar em conta para a definição da correta

regra de aplicação. Neste momento, a teoria da argumentação na forma como analisada

por Klaus Günther também ofereceu subsídios ao que se pretende investigar, eis que

tratando da justificação e aplicação das normas, estabelece a correspondência ao caso

concreto e a forma de levá-lo em consideração por oportunidade da definição da regra

correta ao caso em debate.

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Mas, tendo-se como necessária a justificação e atenção ao caso concreto,

indicaria a Constituição algum parâmetro eventualmente neutro a funcionar como norte

da decisão? A esta pergunta Herbert Wechsler e Alexander Bickel procuram responder

trazendo à tona teoria que pretende encontrar e especificar princípios que, no interior da

Constituição, funcionem como marcos valorativos inquestionáveis, de sorte que a sua

aplicação não constitua óbice em decorrência da tese contramajoritária.

Observemos como se desenvolve a teoria.

2. Propostas teóricas - continuação

2.1. Teoria dos princípios constitucionais neutros

Trazendo a discussão da fixação racional de parâmetros ao judicial review,

Herbert Wechsler defende o controle de constitucionalidade legitimado apenas se e

enquanto fundamentado em princípios constitucionais neutros.

Observa, a propósito, que a exigência de neutralidade significa que um valor

e a sua medida sejam determinados por uma análise geral que não dá nenhuma

importância a erros de aplicações ou eventuais interesses oriundos de grupos ou

pessoas276. A ideia é a de que os princípios constitucionais neutros funcionariam como

uma espécie de marco jurídico alheio a interesses e critérios de conveniência, de sorte a

que a sua correspondente utilização para a resolução de casos postos à cura judicial não

representaria qualquer violação à moldura normativa já delineada pelo sistema, ou, por

outro lado, viés antidemocrático assumido pelo poder judiciário.

Se, por um lado, a tese dworkiana se desenvolve com lastro na leitura

principiológica que o julgador faz da Constituição, o ideário apregoado por Herbert

Wechsler difere justamente em relação aos standards constitucionais, concebendo-os

276 “The demand of neutrality is that a value and its measure be determined by a general analysis that gives no weight to accidents of application, finding a scope that is acceptable whatever interest, group, or person may assert the claim. So, too, when there is conflict among values having constitutional protection, calling for their ordering or their accommodation, I argue that the principle of resolution must be neutral in a comparable sense (both in the definition of the individual competing values and in the approach that it entails to value competition)”. Tradução livre: “A exigência de neutralidade significa que um valor e a sua medida sejam determinados por uma análise geral que não dá nenhuma importância a erros de aplicações, encontrando um espaço aceitável não importa qual seja o interesse, grupo ou pessoa que possa reivindicar. Então, também quando há conflitos entre os valores que têm proteção constitucional, pedindo por sua ordem ou acomodação, eu discuto que o princípio da resolução deve ser neutro em uma forma comparável (ambos na definição de valores individuais que estão a competir e na aproximação que implica tornar válida a competição).” WECHSLER, Herbert. Principles, Politics and Fundamental Law. Apud BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz, op. cit., p. 56-57.

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como mandamentos de índole genérica e abstrata que não apresentam qualquer

correlação com o caso analisado ou, ainda, coloração partidária277.

Para Wechsler, os juízes devem se abster de julgar considerando a agenda

política ou a política partidária em pauta; atuar livres da pressão oriundas do próprio ego

e, principalmente, tendo em linha de conta que os valores preconizados pela Corte não

se esgotam com a testilha examinada, revelando-se de conteúdo mais amplo278.

Caminhando por trilha símile, andou Alexander Bickel, também

concordando com a necessidade da existência de princípios neutros aptos a evitar

julgamentos lastreados em argumentos transitórios e individuais elaborados pelo

judiciário. Concebendo o princípio neutro como uma proposição intelectual racional,

coerente e capaz de produzir efeitos iguais em casos idênticos, diferencia-se da teoria

preconizada por Herbert Wechsler apenas pelo fato de afastar a conveniência e

oportunidade como critério para o judicial review279.

277 “I put it to you that main constituent of the judicial process is precisely that it must be genuinely principled, resting with respect to every step that is involved in reaching judgment on analysis and reasons quite transcending the immediate result that is achieved”. Tradução livre: “Eu afirmo a vocês que o principal elemento constitutivo do processo judicial é precisamente que ele deve ser genuinamente baseado em princípios, fundando cada passo do processo de julgamento em análises e razões que transcendam o resultado imediato que é atingido.”. Idem, p. 57. 278 “Mr. Wechsler´s point of departure is something like the general justification of judicial review that I tried to formulate in the previous chapter. This is, by and large, the commonly accepted view among students of the subject. From it Mr. Wechsler goes forward to tell us something more of the process. He insists that it must be disinterested. That is, first and more obviously, the judges must stand aside from the party politics of the day. Secondly, they must be free from the deflecting pressures of the ego. Thirdly, and most importantly, the values the Court vindicates must have a content greater than any single concern of the moment. The function of judicial review arises in the limiting context of cases, to be sure; but while the Court should not surmount the limitation, it must rise above the case.” Tradução livre: “O ponto de partida do Sr. Wechsler é algo como o controle de constitucionalidade que tentei formular no capítulo anterior. Isto é, em geral, a visão comumente aceita entre os estudantes do assunto. A partir dele, o Sr. Wechsler vai além para nos dizer algo mais sobre o processo. Ele insiste que deve ser desinteressado. Isto é, primeiro e mais óbvio, os juízes devem ficar fora da política partidária do dia. Em segundo lugar, eles devem estar livres das pressões do ego. Em terceiro e o mais importante, os valores que o Tribunal reivindica devem ter um conteúdo maior do que qualquer preocupação única com o momento. A função do controle de constitucionalidade surge no contexto limitante dos casos; mas enquanto o Tribunal não deve superar a limitação, deve se situar acima dos casos.”. BICKEL, Alexander M. The Least Dangerous Branch: The Supreme Court at the bar of politics. 2nd ed. New Haven: Yale University Press, 1986, p. 50. 279 “A neutral principle, by contrast, is an intellectually coherent statement of the reason for a result which in like cases will produce a like result, whether or not is immediately agreeable or expedient. Now the demand for neutral principles is carried further. It is that the Court rest judgment only on principles that will capable of application across the board and without compromise, in all relevant cases in the foreseeable future: absolute application of absolute – even if sometimes flexible – principles. The flexibility, if any, must be built into the principle itself, in equally principled fashion. Thus a neutral principle is a role of action that will be authoritatively enforced without adjustment or concession and without let-up. If it sometimes hurt, nothing is better proof of its validity. If it must sometimes fail of application, it won´t do. Given the nature of a free society and the ultimate consensual basis of all its effective law, there can be but very few such principles.” Tradução livre: “Um princípio neutro, ao contrário, é uma afirmação intelectualmente coerente da razão para um resultado que em casos semelhantes produzirão resultados parecidos, sendo ou não imediatamente concordáveis ou convenientes

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Segundo Bickel, os juízes devem atuar de maneira a abstrair as instituições

políticas ou as várias ordens de magnitude que delas emanem. Jamais devem impor uma

resposta à sociedade apenas porque lhes parece prudente ou sábia, ou, ainda, porque

pessoalmente acreditam que “uma solução – sempre provisória – a que chegam as

instituições políticas é tola.” A obrigação do Tribunal, segundo concebe, é a de agir

cautelosamente, esforçando-se por atingir decisões de pequeno alcance, mais hesitante

em negar princípios sustentados por segmentos da sociedade do que pronto a afirmar

princípios gerais para todos. Deve, ainda, a Corte se preocupar com o papel dominante

das instituições políticas e sempre ansioso por chegar a concessões e acomodações,

antes de declarar princípios firmes e sem ambiguidades280.

Acaso o Tribunal se veja na condição de formular princípios, o que espera

Bickel é que tais sejam compreendidos mais como advertências do que propriamente

como regras. O Tribunal deve “argumentar, não sentir, explicar e justificar os princípios

que formula da maneira mais racional e exaustiva possível.”. De outro viés, não pode

“em si mesmo, criar valores, mas deve buscar relacioná-los – pelo menos

analogicamente – com os julgamentos da História e da filosofia moral.”281.

Para ilustrar a forma equivocada de agir, o autor menciona o julgamento

levado a cabo pela Suprema Corte norte-americana em 22 de janeiro de 1972, em que,

vencidos os juízes Byron White e Willian Rehnquist, deliberou-se acerca do aborto. Na

ocasião, decidiu-se que durante os três primeiros meses de gestação uma mulher e seu

médico podem decidir sobre o aborto, livres de qualquer interferência estatal, exceto

pelo fato de se exigir que o médico seja devidamente licenciado; nos três meses

seguintes, o Estado pode impor regulamentações de saúde, mas não proibir o aborto; e

apenas nos três últimos meses de gestação o Estado poderia, por intermédio de leis

estaduais e se assim desejar, tanto proibir como regulamentar o aborto. Bickel indaga

com base em qual critério o Tribunal assim deliberou, observando que a própria Corte

(adequados). Agora, a exigência de princípios neutros é levada ainda mais longe. É que o julgamento se apoia somente em princípios que serão capazes de serem aplicados para todos e sem compromisso, em todos os casos relevantes num futuro previsível: aplicações absolutas de – até mesmo quando flexíveis – princípios absolutos. A flexibilidade, se alguma, deve ser construída no seu próprio princípio, de uma forma igualmente dentro do princípio. Portanto, um princípio neutro é uma regra de ação que será autoritariamente imposta sem ajustes ou concessões e sem trégua. Se às vezes machuca, nada é melhor prova de sua validade. Se às vezes deve falhar na aplicação, não irá fazê-lo. Dada a natureza de uma sociedade livre e a base fundamental de consenso de todas suas leis efetivas, poderá haver nada mais do que poucos desses princípios.” WECHSLER, Herbert, op. cit., p. 58. 280 BICKEL, Alexander M. A ética do consentimento. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1978, p. 35. 281 BICKEL, Alexander M., op. cit., p. 35.

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jamais o explicou, simplesmente anunciando o resultado do julgamento que havia

chegado282.

Esse tipo de julgamento denota a diferenciação que se há de compreender,

segundo Bickel, entre a Constituição “em aberto” e a Constituição “manifesta”, sendo

compreendida a primeira como aquela em que se baseiam os Tribunais para análise de

eventual contraste de violação frontal, direta e inequívoca ou mesmo velada, indireta ou

escamoteada ao texto Magno por meio de atos que lhe são hierarquicamente inferiores.

Esta, a “Constituição manifesta”, por sua vez, é a Constituição da mecânica das

“disposições institucionais e do processo político, da distribuição de poder e da divisão

de poderes, e o núcleo historicamente definido de determinações processuais,

encontrado principalmente na Carta de Direitos.”283.

282 “Aos 22 de janeiro de 1973 o Supremo Tribunal, num tributo formal ao voto vencido de Holmes em 1905, mas violando-lhe o espírito, procurou solucionar a questão do aborto. Em lugar das várias leis estaduais sobre o problema, controversas e em fluxo, o Supremo Tribunal prescreveu uma lei praticamente uniforme, dele mesmo. Decidiu que durante os três primeiros meses de gravidez uma mulher e seu médico podem decidir sobre o aborto, livres de qualquer interferência do Estado, exceto pelo fato de exigir este que o médico seja devidamente licenciado. Nos três meses seguintes, o Estado pode impor regulamentações de saúde, mas não proibir o aborto; nos últimos três meses, o Estado pode, se assim o desejar, tanto proibir quanto regulamentar o aborto. (...) Mas se as decisões modelares do Tribunal são em geral inteligentes, qual a justificação para a sua imposição? Por que determinada lei, e não outra sobre as razões justas para o divórcio ou sobre a adoção de crianças? As provas médicas, diz-nos agora o Tribunal, mostram não haver grande risco nos abortos nos três primeiros meses da gravidez. Muito bem. Também é claro que o feto não é um ser existente, nas primeiras fases da gravidez, não tendo por isso direito à proteção constitucional, e a Constituição não pode ser interpretada como uma proibição ao aborto. Ainda aqui, muito bem. Mas o feto é uma vida em potencial, e o Tribunal reconhece que a sociedade tem interesse legítimo nela. Também o tem o indivíduo – a mãe, e seria de supor que também o pai; esse interesse poderia ser caracterizado como uma exigência de vida privada, que em certos contextos a constituição assegura. O interesse do indivíduo, no caso, sobrepõe-se ao interesse da sociedade, nos três primeiros meses, e sofre limitações apenas pelas considerações de saúde, nos três meses seguintes. No terceiro trimestre, porém, predomina a sociedade. Cabe-nos perguntar por quê. O Tribunal jamais o explicou. Rejeitou a disciplina a que sua função está devidamente submetida. Anunciou simplesmente o resultado a que havia chegado. (...) A decisão do Tribunal foi um ‘exercício extravagante’ de poder judiciário, disse o Juiz White; foi uma decisão mais legislativa do que jurídica, sugeriu o Juiz Rehnquist. Assim o foi, e se o prognóstico do Tribunal sobre a provável e desejável direção do progresso estiver errado, ainda assim esse prognóstico terá sido imposto a todos os Estados. A legislação normal, aprovada pelos legisladores e não pelos juízes, e felizmente menos rígida e menos presunçosa de universalidade e permanência. A pretensão à universalidade e permanência é ilusória, de qualquer modo, pois o contínuo progresso político que se segue à declaração da lei é outra disciplina a que o Tribunal está sujeito. Mas o Tribunal não tem justificativas para transgredir todos os limites, ao rejeitar sua própria disciplina anterior, pois em seu processo inicial de formação da lei, o Tribunal não está sob a disciplina do processo político. Nem o Tribunal, nem os seus princípios se originam diretamente dali. A disciplina é subjacente.” Idem, p. 36-37. 283 “É essa a função do Tribunal sob a Constituição em aberto, como é bem chamada. Há outra Constituição, a que darei o nome de Constituição manifesta: é a Constituição da estrutura e processo, não do devido processo legal ou igual proteção, e certamente não a dos privilégios e imunidades metafísicos. Temos de injetar-lhe mais teoria do que dela podemos extrair; é a Constituição da mecânica das disposições institucionais e do processo político, da distribuição de poder e da divisão de poderes, e o núcleo historicamente definido de determinações processuais, encontrado principalmente na Carta de Direitos. (...) Ao estabelecer o poder de revisão judicial em 1803, no processo Marbury v. Madison, investindo o Supremo Tribunal da atribuição de definir valores em nome da Constituição, John Marshall falou da Constituição como Lei e argumentou que, quando devidamente invocada perante eles num

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O autor compreende como a “Constituição manifesta” o núcleo do comando

Constitucional, impondo na definição da estrutura institucional um dever moral que se

deve observar (“há um dever absoluto de obedecer”), sendo a desobediência a negação

da própria ideia de constitucionalismo e, em último grau, também a de Direito284.

Os juízes em geral invocam seu poder tendo como parâmetro a

“Constituição aberta”, mas é a “Constituição manifesta” que, para Bickel, garante-lhes a

prerrogativa de compelir que os cidadãos observem o conteúdo das regras por eles

ditadas, de modo viabilizar o desenho institucional (“torna todo o resto possível”)285.

A conjugação dos princípios constitucionais neutros e da “Constituição

manifesta” se presta, ao que parece, a definir a linha de pensamento do autor, extraindo

do corpo das normas constitucionais um núcleo que, por sua vez, revela a existência de

um “dever moral”, ou um “dever absoluto” que justifica todos os demais, inclusive – e

principalmente – a observância da própria Constituição.

Embora os Tribunais não se utilizem da “Constituição manifesta” para

resolver os litígios a eles submetidos, a garantia da observância de seus “decretos” será

evidenciada pela “Constituição manifesta”, cuja formatação institucional permite a

decisão final sem qualquer malogro à divisão de poderes ou à distribuição, em si, dos

poderes.

Nessa linha, não parece adequado falar em óbice ao judicial review, já que

caminhar por semelhante trilha poderá eventualmente conduzir à negação do

constitucionalismo e do próprio Direito, o que não se pode admitir no âmago da

sociedade.

A remissão à tarefa institucional de julgar apoiado na “Constituição

manifesta”, contudo, não exime o Tribunal de externar suas razões de maneira processo, os juízes têm de fazê-la cumprir. Falou como se esse aspecto da Constituição fosse manifesto, e mais tarde sugeriu que onde ela é aberta, pouco, ou nenhum, poder atribui aos juízes. Mas as coisas caminharam no sentido oposto. Os juízes pouco têm a ver com a Constituição manifesta: eles exercem o poder principalmente invocando a aberta. Mas Marshall tinha razão em sua opinião de que a Constituição manifesta é lei e uma forma especial de lei, impondo um dever de obedecer que não existe de forma definida, exceto amplamente, no conjunto, em outras leis gerais de nosso sistema, e impondo-o mais particularmente a todos os funcionários do Governo, federal e estadual, que pelo artigo VI prestam juramento de apoiar a Constituição.” Ibidem, p. 38. 284 “Há um dever moral, que se justifica, de que as pessoas às quais isso se aplica – na maioria, funcionários do Governo – obedeçam à Constituição manifesta, a menos e até que seja alterada pelo processo de emendas que ela própria prevê; é um dever análogo ao de obedecer aos decretos judiciais finais. Nenhum presidente pode decidir permanecer no cargo seis anos, em lugar de quatro, ou, desde a Vigésima Segunda Emenda, candidatar-se a um terceiro mandato. Há um dever absoluto de obedecer; a desobediência é a negação da idéia de constitucionalismo, a lei especial que estabelece uma séria de regras pré-existentes dentro das quais a sociedade elabora todas as outras regras, de tempos em tempos. Negar essa idéia é, no sentido mais fundamental, negar a idéia do próprio Direito.”. Ibidem, p. 38-39. 285 Ibidem, p. 39.

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adequada, racional e satisfatória a evidenciar a separação entre a opinião legal acerca do

assunto discutido e as opiniões meramente individuais, religiosas e sentimentais286.

Assim agindo, não haverá qualquer empeço à atuação do Tribunal enquanto poder que,

conquanto eventualmente de viés contramajoritário, venha a salvaguardar a própria

Constituição287.

Bem por isso, o Chief-Justice Harlan F. Stone argumentava que a

Constituição norte-americana encerrava princípios de observância compulsória até

mesmo ao Congresso, já que tais se traduziam em defesa do cidadão. Assim, entre os

princípios insertos na Carta, estariam, segundo Stone, a proteção dos direitos civis de

vida, liberdade e propriedade, os princípios do governo representativo e o princípio de

que as leis constitucionais não devem ser derrubadas pela desobediência planificada288.

A observância destes princípios, segundo o Juiz Warren, garantiria a

consagração da própria cidadania. Afirmava, pois, que a cidadania “é a situação que é a

única capaz de assegurar o pleno gozo dos preciosos direitos conferidos pela nossa

Constituição.”289.

286 Curioso exemplo de caso em que as opiniões e valores pessoais predominaram pode ser verificado quando do julgamento Bradwell v. The State, 83 U.S. (16 Wallace) 130 (1872), em que se discutia a impossibilidade de acesso da Sra. Myra Bradwell, conhecida advogada de Chicago, às sessões do Supremo Tribunal do Estado de Illinois, por ser mulher. Afirmava a postulante que a proibição violava seus privilégios e imunidades como cidadã dos Estados Unidos, tendo o Tribunal deliberado, por unanimidade, em sentido negativo à pretensão inaugural. O Juiz Joseph Bradley, em excerto de seu voto que corroborava, por sua vez, o voto do Juiz Miller, observou, acerca do ponto, que “A principal missão e destino das mulheres é realizar a nobre e benigna tarefa de esposa e mãe. É essa a lei do Criador. E as leis da sociedade civil devem ser adaptadas à constituição geral das coisas, não podendo basear-se em casos excepcionais.”. Bickel critica, com acerto, a decisão, observando que “Foi uma bela previsão do que significaria ter o Supremo Tribunal como o último censor da legislação social e econômica dos Estados – uma superlegislatura que recorria, se necessário, à lei do Criador.”. Felizmente, pouco tempo depois, a legislatura de Illinois modificou sua lei e a Sra. Bradwell foi admitida ao Supremo Tribunal do Estado. Em nível federal, o Congresso admitiu, em 1789, a primeira mulher perante a Suprema Corte norte-americana. Ibidem, p. 53-54. 287 “Quando os objetivos do movimento democrático, tal como Rousseau os concebia, entraram em conflito com o majoritarismo e o Estado democrático, ele – ou pelo menos seus seguidores – recorreu ao autoritarismo e ao Estado antidemocrático. Em nosso sistema, os contratualistas liberais encontram seu recurso na Constituição, que, falando através do Supremo Tribunal, limita o governo da maioria.”. Ibidem, p. 18. 288 Ibidem, p. 58. 289 Lembra o Autor, todavia, que o conceito de cidadania não pode ser tomado apenas por si só para a definição acerca da melhor vertente a ser escolhida em sede decisória ou política. Observa: “A cidadania é uma abstração jurídica, uma teoria. Qualquer que seja a sua proteção, ela é na melhor das hipóteses algo que é dado, e dado a alguns e não a outros, e pode ser tomada. (...) A ênfase na cidadania como o laço que prende o indivíduo ao governo e como a fonte de seus direitos, leva ao pensamento metafísico sobre a política e o Direito, e mais particularmente ao pensamento simétrico, a uma busca de reciprocidade e simetria e claridade dos direitos e obrigações incondicionais, racionalmente colocados um depois do outro. Tal pensamento é negativo para a permanência de instituições livres, flexíveis, sensíveis e estáveis, e para o equilíbrio entre a ordem e a liberdade. É por um pensamento assim, como no Contrato Social de Rousseau, que as pretensões de liberdade se podem transformar facilmente nos postulados da opressão.” Ibidem, p. 61-62.

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Tendo em foco que a Constituição traça, segundo o autor, parâmetros

neutros e seguros acerca das condutas a serem levadas a cabo pela sociedade,

considerados em sede legislativa e capazes de figurar na argumentação jurídica lançada

pelas decisões judiciais, é preciso estar atento à interpretação que se realiza a propósito

desses princípios, a fim de que situações efêmeras, ainda que agudas como uma

guerra290 ou problemática econômica291, não venham a desvirtuar sua aplicação no

cotidiano da vida em sociedade. Por igual, afastar a norma em prol de valores tidos pelo

Tribunal como positivos e achegados ao desenvolvimento não parece a melhor

solução292.

Se, por um lado, deter-se tanto em situações episódicas, positivas ou

negativas, ao ponto de minimizar princípios jurídicos não pode ser aceito; e, em outro

flanco, não há como aplicar princípios neutros sem alguma margem de valoração

pessoal (note-se: há valoração pessoal mesmo para conceber os princípios como

neutros), agirá o juiz de que maneira?

Alexander Bickel observa que os juízes têm a tarefa de ao menos tentar o

afastamento às predileções pessoais, interesses de classe ou filiação política, já que se

“as próprias instituições ‘credenciadoras’ se tornarem politicamente engajadas, seu

credenciamento perde valor e a sociedade ficará mais pobre. O julgamento

desinteressado terá perdido grande parte de sua autoridade moral.”293.

290 Em relação às situações de guerra, o autor lembra que a propósito da cidadania e valores nacionais, pode se dar o que denomina “doutrina do perigo-claro-e-presente”, que, pautando-se em sedicioso discurso, pode esconder por trás de critérios de discricionariedade e prudência inúmeras lesões a direitos. Ibidem, p. 76. 291 Nesse âmbito, também importante ter atenção para que princípios jurídicos não venham a ceder à “teoria da vontade do mercado”, de influxos liberais e direcionada apenas ao progresso econômico, ainda que à custa de direitos já consolidados na sociedade. Ibidem, p. 83. 292 “O ataque à ordem legal pelos imperativos morais não foi apenas, e talvez nem mesmo efetivamente, um ataque vindo de fora. Como já se disse, veio também de dentro, no Supremo Tribunal presidido durante quinze anos por Earl Warren. Quando um advogado argumentava, perante ele, em favor de seu constituinte, à base de alguma doutrina jurídica, ou num ponto de processualística, ou afirmando que a Constituição atribuía, em relação a determinada questão, competência a outro ramo do governo que não o Supremo Tribunal, ou aos Estados e não ao governo federal, o presidente o interrompia dizendo: ‘Sim, sim, mas é isso (qualquer que fosse o caso exemplificado, sobre o Direito ou sobre a sociedade), é isso certo? É isso bom?’. Mais de uma vez, e em algumas de suas decisões mais importantes, o Tribunal de Warren solucionou dificuldades doutrinárias ou questões sobre a competência entre várias instituições, com uma pergunta prática que lhe parecia decisiva: se o Tribunal não tomar uma posição que seria certa e boa, seria ela tomada por outras instituições, tendo em vista a realidade política? O Tribunal de Warren orgulhava-se muito de passar por cima de tecnicalidades legais, de deixar de lado a forma para preocupar-se com a substância. Mas as tecnicalidades legais são o estofo de que é feita a lei, e deixar de lado a substância para chegar às formas adequadas a muitas substâncias é, de fato, a tarefa da lei, com muita frequência.”. Ibidem, p. 125. 293 “É como se os juízes tivessem de decidir à base de predileções pessoais, interesses de classe ou filiação política. É claro que ninguém pode afastar-se totalmente de si mesmo, mas há uma categoria de homens, inclusive juízes, aos quais atribuímos a função de tentarem esse afastamento.”. Ibidem, p. 138.

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Haveria alguma maneira, teoria ou formatação de pensamento, oriundo da

civil law ou common law, que auxiliasse a árdua tarefa do juiz de decidir tentando

valorar minimamente a normatização que, à conta de um determinado caso, não

apresenta de pronto alguma resolução? Seria possível cogitar da racionalização do que,

em primeiro lanço, não se revela objetivo?

A teoria que segue, porquanto pautada em critérios objetivos, pode vir a

representar uma resposta à questão. Vejamos como se desenvolve.

2.2. Escola Econômica do Direito

A importância da análise econômica do direito para o presente estudo

perpassa pela atuação do Poder Judiciário considerando parâmetros diversos das bases

estabelecidas pelo tradicional sistema romano-germânico do qual se origina boa parte

dos ordenamentos jurídicos que atualmente compõem a família da civil law e, em

alguma medida, também a common law.

Trata-se não apenas de introduzir elementos econômicos na aferição de

questões jurídicas, mas sim de compreender o direito à luz de instrumentos analíticos

originários de ciência diversa, correlacionada mais com os efeitos práticos, pragmáticos

e utilitários de determinada decisão do que, propriamente, com a filosofia desvelada

pelo exame da questão de fundo controvertida294.

A convergência entre a ciência econômica e o direito – com o auxílio dos

instrumentos econômico-financeiros disponibilizados e das premissas que compõem a

escola econômica – no âmbito da análise de casos jurídicos é oportuna e deve ser levada

em consideração, notadamente pelo fato de que a análise econômica pode ser aplicada 294 Guillermo Cabanellas esclarece acerca do ponto: “El concepto de análisis económico del Derecho viene dado por la propria denominación de esta disciplina: es la aplicación de los instrumentos analíticos de la ciencia económica a los fenómenos jurídicos. La ciencia económica estudia los fenómenos de producción, distribución y consumo de bienes y servicios obtenidos en base a recursos escasos. Su objeto de estúdio consiste, basicamente, en conductas humanas, lo cual incide en la metodología y limites de esta ciencia. Los fenómenos jurídicos pueden ser estudiados desde la perspectiva de la ciencia económica. Por una parte, constituyen elementos necesarios para la organización de todo sistema económico minimamente evolucionado, o sea, que tienen su sentido y existencia en cuanto instrumentos de organización económica; por outra, los fenómenos jurídicos tienen efectos perceptibles sobre la actividad económica, incidiendo en ella tanto cuantitativa como cualitativamente. Los fenómenos jurídicos, a los fines de su estúdio por la ciencia económica, pueden ser concebidos desde el mismo ángulo que la ciencia jurídica, o sea como um conjunto de normas. Pero también puede ser concebidos como hechos humanos, y analizados económicamente como tales. Así, por ejemplo, es posible analizar cuál es el efecto en un cambio en las normas sobre carga de uso de las invenciones patenteadas, tomando como premisa del análisis una norma hipotética o del derecho positivo; y es posible también analizar cuáles son las consecuencias económicas de la aplicación concreta de las mencionadas normas sobre carga de uso.” CABANELLAS, Guillermo. El análisis económico del derecho. Evolución histórica. Metas e instrumentos. In: KLUGER, Viviana. Análisis económico del derecho. Buenos Aires: Helistas, 2006, p. 21-22.

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aos mais diversos ramos do direito295. Isso porque embora dificilmente o juiz se

comprometa, pela própria característica em geral intersubjetiva do conflito, a uma visão

gerencial que se espera, por exemplo, do administrador público, tampouco pode

desconsiderar os efeitos econômicos e de consequência social da atividade que

empreende, máxime quanto se tem em foco discussões correlacionadas às políticas

públicas desenvolvidas pelos demais segmentos de poder estatal.

Entrementes, o denominado ativismo judicial não pode dar ensejo ao

desequilíbrio no exercício da função típica dos demais Poderes. Por vezes, em

decorrência do desconhecimento das especificidades econômicas ou com o intuito de

garantir a efetividade da ordem emanada no bojo de determinado processo, o juiz ultima

por dificultar ou mesmo obstar a atividade desenvolvida pelos demais Poderes,

notadamente quanto à distribuição de recursos públicos296.

Dessa maneira, para além de solucionar contendas, o juiz as estará criando,

porquanto estimulará a propositura de novas demandas visando à obtenção de direito

cuja materialização se revelou impossível justamente à conta de provimento

jurisdicional proferido em outro feito.

O conhecimento dos instrumentos econômicos e premissas que compõem a

escola econômica do direito facilitarão a que o julgador tenha uma visão mais alargada

do conflito posto à sua cura e, para a proposta deste trabalho, servirá também como

295 Richard Posner noticia que “a ‘nova’ análise econômica do direito abrange campos jurídicos não mercadológicos, ou quase não mercadológicos, como a responsabilidade civil, o direito de família, o direito penal, a liberdade de expressão, o direito processual, a legislação, o direito público internacional, os direitos de propriedade intelectual, as normas que regem o processo em primeira e segunda instâncias, o direito ambiental, o processo administrativo, a regulamentação da saúde e da segurança, as leis que proíbem a discriminação no ambiente de trabalho e as normas sociais vistas como fonte, obstáculo e substituto do direito formal.” Evidentemente, contudo, a análise econômica do direito tem maior impacto nas áreas explicitamente econômicas, como menciona o Autor: “A análise econômica do direito teve maior impacto nas áreas de regulamentação explicitamente econômicas, como o direito antitruste e a regulamentação dos órgãos executivos que prestam serviços públicos. (...) Cada vez mais, porém, sua marca é igualmente percebida em outras áreas jurídicas, como no direito ambiental, em que os direitos de emissão comerciáveis são um símbolo da abordagem econômica do meio ambiente; nas normas que regem o direito de desapropriação, um campo no qual a crescente preocupação dos juízes com os ganhos ‘regulatórios’ traz a marca dos analistas econômicos do direito; e no direito de família, área na qual as ideias feministas e econômicas se juntaram para enfatizar a dimensão econômica da produção familiar.” POSNER, Richard. Fronteiras da teoria do Direito. Tradução de Evandro Ferreira e Silva, Jefferson Luiz Camargo, Paulo Salles e Pedro Sette-Câmara. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. XII e XIII. 296 Rogério Gesta Leal, analisando especificamente o tema do impacto econômico e das decisões judiciais, observou, a propósito, que “No campo do Direito à saúde, por exemplo, já tive oportunidade de demonstrar que, por ser este um bem jurídico social, o esgotamento de recursos financeiros, bloqueados por decisões judiciais para o atendimento de algumas demandas que acorrem ao Poder judiciário, pode tanto inviabilizar políticas públicas preventivas e curativas do Poder Executivo e Legislativo na área da saúde, como pode também esvaziar os cofres públicos para outras políticas igualmente importantes à Sociedades (segurança, educação, transporte, etc)” LEAL, Rogério Gesta. Impactos econômicos e sociais das decisões judiciais: aspectos introdutórios. Brasília: ENFAM, 2010. p. 67.

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mais uma opção jurídica para a resolução de conflitos, nomeadamente quanto às

discussões que se situam no limiar entre a atividade política estrita e a judicante297.

Em breve escorço, tem-se que diversamente do que se verifica em algum

setor dogmático, a análise econômica do direito surgiu não com a denominada ‘Escola

de Chicago’ e a partir de um texto elaborado por Ronald Coase intitulado “The nature of

the firm”, cujas ideias deram ensejo posteriormente ao “Teorema de Coase” exposto no

trabalho “The problem of social cost”. Em que pese nos referidos trabalhos se

desenvolvesse a ideia de que os custos de transação na economia apresentam

importância candente na determinação de resultados econômicos e jurídicos298, em

Hume, Ferguson e, bem assim, Adam Smith, já se verificava a necessidade de se aferir

as consequências econômicas de institutos jurídicos como, verbi gratia, o direito de

propriedade, além da administração da Justiça, direito constitucional e diversas

hipóteses de aplicação do direito processual.

David Ricardo, em obra denominada “Princípios de Economía Política y de

Tributación”, publicada em 1817, já se dedicava a analisar as consequências

econômicas dos instrumentos jurídicos, notadamente em casos tributários e alusivos ao

comércio nacional.

Em Bentham, cujo pensamento perpassava pela reforma da legislação e do

sistema jurídico conforme critérios econômicos correlacionados à utilidade e visando a

felicidade de um maior número de pessoas, já se verificavam incipientes as premissas

que mais tarde, na década de 30 e, posteriormente, 60, ambas do século 20, seriam

sistematizadas por Ronald Coase, explicitadas por Guido Calabresi e desenvolvidas por

Oliver Williamson e Richard Posner, entre vários outros autores que tratam do tema299.

Assim, as consequências econômicas nas questões e institutos jurídicos já

são percebidas há algum tempo, sendo certo que a sistematização das premissas veio

somente mais tarde, com o artigo de Coase publicado em 1937 (“The nature of the

297 Há Autores, a exemplo de Richard Posner e Ronald Coase, que acreditam em uma unificação entre a análise econômica e a teoria do direito. Tal viria em favor da resolução de casos e ainda viabilizaria a atuação do mercado de maneira regulamentada e em estrita consonância a parâmetros jurídico-econômicos previamente definidos. Confira-se excerto de seu pensamento acerca do tema; “O aspecto teórico mais ambicioso da abordagem econômica do direito é a proposta de uma teoria econômica unificada do direito, no âmbito da qual se considera que a função deste é a de facilitar a operação do livre-mercado e, nas áreas em que os custos das transações mercadológicas são proibitivos, a de ‘mimetizar o mercado’ por meio da determinação, mediante decisão judicial, do desfecho que seria mais provável caso as transações de mercado fossem viáveis.” POSNER, Richard, op. cit., p. XIII-XIV. 298 A ideia será melhor explicada na sequência do texto. 299 CABANELLAS, Guillermo, op. cit., p. 23.

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firm”) que constituiu a base para a organização dos paradigmas atualmente verificados

no âmbito da teoria ora em estudo300.

Em “The Nature of the firm”, Ronald Coase expõe que os mercados e as

empresas (firmas) funcionam com custos positivos, de modo que a escolha do modo de

organização depende da comparação entre alternativas de menor custo. Neste trabalho,

o autor sustenta que a organização dos fatores de produção pode “tener lugar mediante

contratos de cambio, basados en el pago de precios como contraprestación por bienes o

servicios concretos”, ou mediante contratos que os considerem como controlados por

uma estrutura que permita a transmissão de ordens de operação diretamente a tais

fatores301.

Posteriormente – e aqui interessa ao estudo em foco – a concepção cunhada

por Ronald Coase veio a ser criticada por Oliver Williamson, que, por sua vez, elaborou

o que denominou teoria dos custos de transação, considerando que “existem problemas

futuros potenciais nos contratos, problemas esses que são antecipados pelos agentes que

desenham os arranjos institucionais no presente.”. Ocorre ser pragmaticamente

impossível, dada a complexidade das situações fáticas e jurídicas contidas em uma

relação jurídica, o desenho de um contrato completo, de modo que os agentes imbuídos

por oportunismo se sentirão estimulados a romper o avençado, a menos que os custos do

rompimento sejam maiores do que os benefícios em fazê-lo302.

300 “A proposta daquilo que poderíamos pomposamente chamar de ‘a teoria econômica do direito por excelência’ tem por base um artigo pioneiro de Ronald Coase.”. POSNER, Richard, op. cit., p. XIV. Cabanellas destaca, ainda: “A partir de 1930, se desarrolla en la Universidad de Chicago el movimento que conduciría a la enorme expansión experimentada por el análisis económico del Derecho en la actualidad. Inicialmente, tal desarrollo tuvo algo de casual, con la entrada de Henry Simons, un economista, en la Facultad de Derecho de esa Universidad. Pero esta casualidade dio lugar a un enorme impulso por varios motivos coincidentes. Uno fue la influencia de Aaron Director, que aunque no cuenta con una bibliografia extensa, tuvo una enorme influencia respecto de la evolución de esa Facultad, siendo el primer director del hoy ampliamente conocido Journal of Law and Economics. Outro fue la presencia, en la misma Universidad, pero en el ámbito de los estúdios económicos, de dos figuras de gran significación en el plano ideológico y metodológico, como eran Milton Friedman y Geroge Stigler. Esta coincidencia de personalidades llevaba a que la Facultad de Derecho absorbiera y utilizara los permanentes impulsos provenientes del área económica de la misma Universidad. Tal contexto condujo a la que hasta hoy siguen siendo las caracteristicas de la escuela de Chicago en materia de análisis económico del Derecho: confianza básica em las instituciones jurídicas del capitalismo, fuerte carga de estudios empíricos y escepticismo respecto de la intervención estatal en el funcionamiento de los mecanismos de mercado.” Idem, p. 24-25. 301 Idem, p. 25. 302 Décio Zylbersztajn e Rachel Sztajn esclarecem acerca do ponto: “O conceito básico da ECT [Economia dos Custos da Transação] é que existem problemas futuros potenciais nos contratos, problemas esses que são antecipados pelos agentes que desenham os arranjos institucionais no presente. Os agentes podem descumprir promessas, motivados pelo oportunismo e pela possibilidade de apropriação de valor dos investimentos de ativos específicos. Na impossibilidade de desenhar contratos completos (decorrência da racionalidade limitada), as lacunas são inevitáveis. Os agentes, potencialmente oportunistas, sentir-se-ão estimulados a romper ou adimplir os contratos, sendo justificável a existência de

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Trazendo o ensinamento ao campo que mais interessa ao foco do presente

estudo, tem-se que o pressuposto da teoria dos custos da transação pode ser, em grande

medida, também verificado no que tange ao arranjo institucional por meio da

normatização existente em abstrato ou, mesmo, das políticas públicas idealizadas e

levadas a cabo no dia-a-dia da sociedade. Quanto confrontado com alguma questão que

se traduza em um hard case ou demande decisão acerca da compatibilidade de políticas

públicas com a normatização que lhe é superior; ou, em vertente similar, de determinada

lei com seu parâmetro de referência, deverá o Poder Judiciário, munido dos critérios

dogmáticos anteriormente analisados, decidir a questão, sem, contudo, desconsiderar o

custo social residual ou o que será gerado pela própria decisão303.

Este parâmetro, também de ordem objetiva, deverá ser tomado em

consideração, ainda que para tanto o Julgador deva se valer dos ensinamentos e dados

objetivos hauridos de outra ciência. Não se trata apenas de possível óptica

consequencialista ou utilitária304, mas sim da consideração de mais um dado que não

pode ser relegado ao desdém pelo Julgador que se confronte com questões em princípio

de índole políticas.

Richard Posner, discorrendo acerca dos casos Adams vs. Estados Unidos

(250 U.S. 616, 630 – 1919) e Schenck vs. Estados Unidos (249 U.S. 47 – 1919) em que

se discutia o alcance da liberdade de expressão prevista, mas não definida, na Primeira

Emenda à Constituição Norte-Americana, observa que o voto do Justice Holmes se

baseou na análise da probabilidade de dano que decorreria do discurso se ele fosse

permitido. Aplicou-se, segundo o autor, a “análise dos custos do discurso” como

parâmetro a viabilizar a decisão do caso, abordando-se a liberdade de expressão sob o um corpo legal, formal, de normas, que se soma às regras informais, para disciplinar o preenchimento das lacunas. Aqui encontramos uma primeira aproximação com a Análise Econômica do Direito. Os agentes abster-se-ão de quebrar os contratos se os custos do rompimento forem maiores do que os benefícios de fazê-lo, de acordo com a tese sugerida por Benjamin Klein, que discute a existência de um intervalo de autocontrole, self enforcing range, dentro do qual os contratos são automaticamente honrados.” ZYLBERSZTAJN, Décio; SZTAJN, Rachel. Direito & Economia – Análise econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elvesier, 2005, p. 08-09. 303 Luciano Benetti Timm e Manoel Gustavo Neubarth Trindade observam, a propósito, que “A Análise econômica do Direito consiste em utilizar métodos próprios da economia para a solução de problemas jurídicos. Segundo essa perspectiva de análise, as pessoas são racionais e agem tendo em vista seus interesses (cálculo custo-benefício). As regras funcionam como ‘preços’, aos quais os agentes respondem dentro do cálculo antes referido. É um método pragmático e consequencialista, pois leva em conta os efeitos das decisões e das políticas públicas sobre o comportamento das pessoas. (...) Naturalmente, por preço entende-se algo além do mero custo monetário. Existem custos que podem ser medidos, e.g., em prestígio, honra, lealdade e reputação.” TIMM, Luciano Benetti; TRINDADE, Manoel Gustavo Neubarth. As recentes alterações legislativas sobre os recursos aos Tribunais Superiores: a repercussão geral e os processos repetitivos sob a ótica da law and economics. In: REVISTA DE PROCESSO – REPRO. São Paulo, v. 178, ano 34, p. 153-179, dezembro 2009, p. 157. 304 Já mencionada e criticada alhures, neste trabalho.

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viés econômico305. Verifica-se aplicação da teoria dos custos em hipótese diversa à

meramente contratual, prestando-se a servir como parâmetro objetivo de referência a

uma decisão judicial. Mas, tomando-se os custos da transação efetivamente como um critério

racional, seria possível traduzi-lo de alguma maneira? Isto é, haveria alguma forma de

objetivar a opinião final acerca da possibilidade de se suportar um prejuízo ou o

detrimento a algum direito constitucionalmente garantido (se confrontado com situação

em que o risco possa sobrepujar as garantias definidas pela Lei Fundamental), de sorte a

que a consideração final não fique exclusivamente entregue à discricionariedade ou

visão pessoal do Julgador acerca do tema?

Richard Posner, enfrentando o tema e tentando definir em abstrato a

aplicação da teoria dos custos da transação, compreende que a tematização pertinente à

aplicação dos riscos e custo deve observar as seguintes equações: (1) B n + U

– A, em que ‘B’ significa os benefícios do discurso que se quer proibir; ‘D’ o dano e

‘U’ o ultraje advindos, ambos, dos custos (incêndio, deserção, tumulto, rebelião etc) que

poderão advir se a veiculação do discurso for permitida; ‘p’ a probabilidade de que o

custo realmente se materialize; ‘d’ (que, como ‘p’, deve ser um número entre 0 e 1) o

fator de multiplicação que desconta do presente os custos e benefícios futuros; ‘n’ o

número de anos (ou qualquer outra unidade de tempo) que provavelmente transcorrerão

entre a veiculação do discurso (acaso permitido) e a materialização do dano decorrente;

e por ‘A’ o custo administrativo de uma regulamentação que proíba o discurso.

Assim, o discurso deve ser permitido se os benefícios advindos igualarem

ou excederem os custos, descontando-se a probabilidade de materialização desses custos

e o tempo que provavelmente transcorrerão até que essa materialização ocorra e

subtraindo-se, além disso, os custos administrativos de uma proibição306.

Note-se que o elemento discurso pode ser substituído por outra variante

acaso a situação de fundo venha a ser alterada. Poderá ser aplicada a equação como uma

305 “(...) Agitadores de extrema esquerda organizavam ações de protesto contra a participação dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial. (...) No caso Schenck, os réus tentavam efetivamente obstruir o recrutamento enviando panfletos aos recrutas. No caso Adams, os panfletos foram distribuídos à população em geral. (...) Os dois votos de Holmes contêm o embrião da abordagem econômica da liberdade de expressão. Mas apenas o embrião. A análise dos custos do discurso realizada no caso Schenck é incompleta porque Holmes concentrou-se apenas na probabilidade de dano que decorreria do discurso se este fosse permitido, e não na magnitude que esse dano teria caso viesse a ocorrer. Ele estava examinando apenas um dos fatores que determinaram a expectativa de custo da liberdade de expressão. (...) A preocupação, naquela ocasião, não era se os réus estavam mentindo, mas se punham em risco um importante projeto nacional (...).” POSNER, Richard, op. cit., p. 49-53. 306 Idem, p. 54.

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forma de investigar a viabilidade em abstrato da teoria dos custos da transação,

ajustando-se, apenas, as premissas fáticas à questão jurídica analisada e

correlacionando-as com as variantes e os elementos mencionados na equação307.

Baseando-se na mesma problemática, o autor elabora outra maneira

igualmente objetiva de se resolver a situação, agora não sob a perspectiva da

autorização do discurso, mas da possibilidade de sua proibição. Desse modo, partindo-

se dos mesmos referenciais acima descritos, pode ser testada a seguinte equação: (2)

pD/(1+ d)n + N

somatória dos benefícios do discurso e dos custos administrativos de sua eventual

proibição, deve-se proibi-lo.

Tendo em linha de conta o grau de rigor com o qual se regulamenta o

discurso potencialmente prejudicial ou perigoso, apresenta a seguinte equação: (3) C(x)

= A(x) + B(x) – (pD/(1+ d)n + U) (x). Esta fórmula objetiva tratar do custo social

efetivo da supressão de determinadas categorias de discurso, ponderando, então, que os

custos líquidos da supressão (C) serão tanto maiores quanto maiores forem os custos e

os benefícios administrativos do discurso suprimido; e menores, quanto mais prejudicial

ou ultrajante for o discurso.

Finalmente, a fim de se alcançar o que denomina rigor ideal, em que os

custos efetivos são minimizados se o resultado (C) for igual a zero, apresenta a seguinte

fórmula: (4) Ax + Bx = - (pD/(1 + d)n + U)x.308

Há, portanto, alguns critérios referentes à teoria dos custos da transação que,

embora relacionados ao caso adstrito à liberdade de expressão, podem ser aplicados a

outros conflitos: a) o direito somente pode ser admitido e realizado quando os

benefícios advindos igualarem ou excederem os custos, descontando-se a probabilidade

de materialização dos custos, o tempo direcionado à materialização e, ainda, os custos

administrativos de uma proibição; b) deve-se vedar a realização do direito perquirido se

a expectativa do custo do direito vindicado exceder a somatória dos benefícios do

direito e dos custos administrativos de sua eventual proibição; c) o direito deve ser

admitido se o custo efetivo da supressão for maior do que o de sua realização.

307 O próprio Autor parece indicar essa vertente, ao mencionar que “A pressuposição implícita de que administrar uma proteção à liberdade de expressão não implica custos é, sem dúvida, pouco realista. Porém, o fator mais importante para essa análise é que o custo administrativo da proibição deve exceder o custo administrativo da proteção.” Ibidem, p. 55. 308 Ibidem, p. 56-57.

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Estas premissas partem das equações mencionadas e, conquanto decerto

heurísticas, podem auxiliar uma possível solução para alguns casos – sobretudo os hard

cases – atualmente verificados no âmbito jurídico. A questão a ser deslindada, todavia,

atrela-se a definição dos custos e a consideração pessoal da relevância entre estes e o

direito perquirido. Tome-se, por exemplo, uma questão envolvendo o fornecimento ou

não de medicamento de alto custo que demanda da Administração Pública uma alocação

orçamentária vultosa em prol de uma criança cuja saúde revele-se soçobrada por doença

crônica não fatal sem cura ainda definida pela ciência médica.

A premissa contida em ‘a’ não poderia solucionar, a suficiência e por si só,

a situação acaso não se partisse de uma perspectiva pessoal acerca dos benefícios

decorrentes do fornecimento do medicamento. Apenas quantificando – o que é

dificultoso e não pode escapar de critérios axiológicos internos – o benefício perquirido

com a realização do direito, será possível confrontá-lo quantitativamente com os custos

administrativos do fornecimento do medicamento por acentuado lapso temporal.

Por igual, aplicando-se a premissa contida em ‘b’, tampouco se poderia

olvidar da definição dos benefícios, de sorte a que se possa confrontar com o custo da

proibição. Finalmente, também na premissa ‘c’ a supressão do direito não pode ser

sequer cogitada se evidenciado algum aspecto constitucional nele inserto, o que, na

situação, revela-se pelo fato da aplicação do princípio da salvaguarda do interesse das

crianças e, de forma mais genérica, da dignidade da pessoa humana.

Ademais, as fórmulas, como bem lembrado pelo autor, não fazem menção

explícita aos motivos obrados pelo Estado para suprimir determinadas formas de

discurso (ou, como in casu se trata de perspectiva mais ampla, de realização de

direito)309. Esse dado, contudo, além de apresentar quantificação próxima à

impossibilidade, não pode ser desconsiderado se o conflito se insere em âmbito quase-

político, em que o poder judiciário trabalha menos em viés jurídico-adjudicatório e mais

em vertente política.

Por outro lado, aprisionar em fórmulas os direitos conquistados à custa de

luta e sacrifício individual e social não parece diverso de obstar o seu exercício à conta

da força bruta ou de convincentes discursos.

De qualquer sorte, os parâmetros existem e podem ser aplicados senão como

forma única de solução para determinado caso, conjugando-os talvez com critérios de

ponderação, de aplicação ou estritamente constitucionais. Não se vislumbra, todavia, 309 Ibidem, p. 58.

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como divorciar-se a aplicação da teoria dos custos da transação em casos de interface

entre a política e o jurídico sem considerar parâmetros outros, de fundo mais

constitucional ou argumentativo.

Sua aplicação, todavia, pode auxiliar a decisão de determinado conflito,

notadamente se correlacionado com outros critérios tratados pela escola econômica do

direito e de inequívoca aplicação no campo jurídico.

Nessa linha, outro dado utilizado comumente pela escola econômica do

direito e que, no âmbito do trabalho ora desenvolvido pode apresentar algumas

características interessantes, é o da escolha racional.

Este critério, advirta-se, não equivale, mutatis mutandis, à racionalidade

propugnada pela teoria da argumentação jurídica anteriormente examinada. Trata-se

menos de se definir parâmetros objetivos para decisão e mais, no contexto da análise

econômica, de estabelecer, sob o apanágio utilitário, como se dará a melhor forma de

aproveitamento do benefício de determinada conduta escolhida por um agente.

Rodrigues, tal como noticiado por Karin Bergit Jakobi em sua dissertação

de mestrado apresentada perante a Pontifícia Universidade Católica do estado do

Paraná, indica a existência de três definições para a escolha racional no âmbito da

temática econômica. A primeira pressupõe que o agente possui preferências estáveis,

completas e predeterminadas decorrentes da posse de informações suficientes acerca do

objeto a ser escolhido. Logrando, assim, empreender comparações entre diversos

objetos, conseguiria escolher racionalmente.

Uma segunda compreensão aponta no sentido da maximização da utilidade,

de tal sorte que partindo do pressuposto de que o agente conhece as utilidades

oferecidas por cada bem, pode escolher tendo em linha de conta o objeto que lhe traga

maior proveito, ou, para repisar e fixar, uma maximização da utilidade.

Uma terceira linha pode ser haurida quase como decorrência da teoria dos

custos da transação, na medida em que o agente empreenderá a escolha baseado na

relação custo-benefício. Sendo este maior, adotará tal alternativa de maneira racional310.

O objetivo da escolha racional é o de produzir o maior grau de satisfação, já

que as necessidades vivenciadas pela sociedade são muitas e diversas, ao passo que os

recursos para satisfazê-las se apresentam escassos311. Adotando-se o parâmetro racional,

310 JAKOBI, Karin Bergit, op. cit., p. 43. 311 Guestrin, bem por isso, menciona, tal como explanado por Karin Bergit Jakobi, que “uma atuação racional implica estabelecer quais são os objetivos, escolher os instrumentos a serem utilizados, avaliar como estes operam sobre aqueles e encaminhá-los até a sua consecução. A atuação racional parte do

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a ideia é a de que se possa procurar adotar medidas que tragam maior grau de satisfação,

maximizando a utilidade da escolha.

O problema reside em mensurar ou quantificar o grau de utilidade, já que a

escolha pretensamente racional não poderá se desapegar de ponderações individuais

acerca do que se apresenta de maior benefício para cada pessoa e, em especial, por

quem se encontra à testa do aparelho público, sendo responsável pelas escolhas

pertinentes aos gastos previamente definidos.

Dessa forma, embora a escolha racional constitua uma das mais importantes

facetas no âmbito do estudo da economia e permita, como lembra Guestrin, “estabelecer

previsões sobre os efeitos de medidas de governos, de política econômica e (...) sobre o

estabelecimento, modificação e derrogação de normas jurídicas”312, trazer a exegese da

utilidade, sob o aspecto da racionalidade, ao âmbito jurídico revela-se, em princípio,

pouco conclusivo.

Ao juiz não é dado agir como se legislador ou administrador fosse, sob pena

de malferimento às normas constitucionais que encampam e traduzem a independência

e harmonia que se deve esperar dos poderes constituídos. Tal não implica afastar,

contudo e desde logo, o parâmetro da escolha racional dos foros jurídico adjudicatórios.

Em situações pontuais será possível cogitar da utilidade como critério auxiliar a decisão

a ser proferida, ainda que rarefeito sob o aspecto da definição semântica.

Bem por isso e a fim de também definir de maneira segura a escolha

racional, a escola econômica do direito trabalha com duas vertentes: cardinalista e

ordinalista. A primeira tem como base a prévia definição de parâmetros objetivos e

arbitrariamente fixados. A segunda, por outro lado, parte das preferências subjetivas de

cada agente, restando assentada na premissa de que nem sempre a informação é

suficientemente completa ao agente econômico313.

A vertente cardinalista não parece ser de aplicação mais exata, na medida

em que cada indivíduo é dotado de suas preferências pessoais, o que dificulta sua

aplicação sob a égide da racionalidade. Assim, como menciona Rodrigues, a utilidade

pressuposto de que os recursos são empregados para obter o máximo possível de satisfação dos fins ou, na sua falta, de ao menos parte deles, com a mínima quantidade de recursos. Define-se o comportamento racional, desse modo, como aquele que seja previsível e estável frente às metas e aos meios conhecidos.” Idem, p. 45. 312 Ibidem, p. 46. 313 Ibidem, p. 46.

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pode ser obtida tanto pelo consumo de um alimento como pela mera observação de uma

obra de arte314.

A vertente ordinalista, no entanto, pode oferecer possiblidade de aplicação

no terreno jurídico se conjugada com a argumentação que se venha a lançar na

motivação do decisum.

O Supremo Tribunal Federal, por oportunidade do julgamento da Arguição

de Descumprimento de Preceito Fundamental n.° 132/RJ, conhecida pelo Plenário da

Corte como Ação Direta de Inconstitucionalidade, em que se discutia a possibilidade de

união homoafetiva à luz dos preceitos da Constituição da República de 1988, utilizou-se

de parâmetros de escolha racional ordinalista para auxiliar o desate do nó górdio posto

sob a apreciação, ainda que na motivação do voto condutor tal parâmetro não tenha sido

assim nominado.

Destacando que o objetivo constitucional de promover o “bem de todos”

pode ser compreendido “enquanto valor objetivamente posto pela Constituição para dar

sentido e propósito ainda mais adensado à vida de cada ser humano em particular, com

reflexos positivos no equilíbrio da sociedade”, o Ministro Carlos Ayres Brito, relator,

conclui que o “bem de todos” se presta a figurar como “situação jurídica a qual se chega

para eliminação do preconceito de sexo”.

Observe-se a utilização do objetivo do “bem de todos” perseguido pela

Constituição da República como forma de definição racional (sob o aspecto econômico)

ordinalista da maximização da utilidade do parâmetro constitucional. Tomou-se uma

expressão constitucional elencada como objetivo pela Carta, incrementando-a ao ponto

de maximizar sua funcionalidade e expressão, agregando-se valores aptos a traduzi-la,

no âmbito do julgamento, como um manto sob o qual se deixará agasalhar a conclusão

adiante exposta pelo Relator.

Em seguida, o Relator menciona que “(...) não se é mais digno ou menos

digno pelo fato de se ter nascido mulher ou homem. Ou nordestino ou sulista. Ou de

pele negra ou mulata, ou morena, ou branca, ou avermelhada.”. Partindo-se desse

prisma, considera que não atenderia à Constituição uma distinção feita sob o pálio

desses critérios.

A utilização da escolha racional é evidente, na medida em que não sendo os

critérios mencionados de distinção compatíveis com a Constituição, tampouco se

poderia cogitar de qualquer diferenciação, a que custo se verificasse, com base neles. 314 Ibidem, p. 46.

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Na mesma linha, atrelando a compreensão do princípio da igualdade à

racionalidade ordinalista, assim observa: “Aqui o reino é da igualdade pura e simples,

pois não se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham.” 315.

Analisando o princípio da igualdade e a cláusula do bem de todos sob o viés

racional ordinalista, isto é, partindo de sua compreensão pessoal acerca dos vetores

axiológicos expostos pela Lei Fundamental, o Ministro relator do voto condutor ultimou

por incutir critérios de maximização da utilidade dos preceitos constitucionais se

confrontados com a situação analisada. Evidentemente, diversos outros argumentos, de

ordem política, jurídica, sociológica e antropológicos foram utilizados na

fundamentação do voto; não se pode, contudo, deixar de considerar que a óptica

racional ordinalista também auxiliou, em alguma medida, a escolha racional acerca da

solução que se entendeu mais consentânea à Carta da República.

Nesse prisma, conquanto a escolha racional – quer sob o aspecto

cardinalista ou ordinalista – apresente divergências acentuadas no terreno econômico,

pode também vir a servir como critério jurídico, ainda que auxiliar, para a prolação de

decisões. Mas, uma vez maximizada a utilidade do parâmetro jurídico que servirá como

base para a construção do pensamento racional lastreado na análise do custo e benefício

da relativização – ou afirmação – de uma premissa valorativa traduzida por princípios,

cláusulas gerais ou regras, existiria uma forma econômica de primar pela melhor

escolha?

A fim de propugnar por uma resposta, forçoso levar a cabo breve estudo

acerca de critério usualmente verificado no âmbito da escola econômica do direito

atrelado às escolhas eficientes.

Tradicionalmente, a ciência econômica distingue vários tipos de eficiência,

figurando entre tais: a eficiência no intercâmbio, quando os bens se intercambiam de tal

forma que uma ou mais pessoas que participam da situação se beneficiam, sem prejuízo

das demais; eficiência na produção, que se obtém quando com a mesma quantidade de

fatores de produção se obtém uma maior produção de certos bens ou serviços sem

reduzir o restante; e há, ainda, a eficiência na combinação de produtos, quando

modificando as combinações postas à disposição aos consumidores se logra obter para

alguns deles uma maior utilidade, sem prejudicar os demais316.

315 A íntegra do voto encontra-se disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277.pdf.> Acesso em 28 setembro 2011. 316 CABANELLAS, Guillermo, op. cit., p. 31.

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Atualmente, postula-se pela obtenção de um critério único de eficiência, que

pode ser trabalhado a partir de dois flancos distintos: a compreensão exposta por Kaldor

e Hicks e a que restou conhecida como ‘ótimo de Pareto’.

A primeira vertente utiliza a premissa de que se uma situação X é preferível

a uma situação Y e se os agentes econômicos beneficiados pela situação X estariam

dispostos a compensar plenamente os agentes econômicos prejudicados pela situação Y,

verifica-se eficiência na escolha obrada317. Rachel Sztajn observa que o critério Kaldor-

Hicks parte de modelo de utilidade tal como preconizado por Bentham, sugerindo que

“as normas devem ser desenhadas de maneira a gerarem o máximo de bem-estar para o

maior número de pessoas”318.

O questionamento, segundo menciona, “está na necessidade de maximizar

duas variáveis e na dificuldade de estabelecer alguma forma de compensação entre

elas”, a demandar um trabalho de refinamento, por meio do qual se poderia chegar a

uma proposta de compensação teórica entre os que se beneficiam e os que são

prejudicados. Todavia, empreendendo a compensação, este, segundo a autora, parece

ser “o melhor critério para as escolhas no que diz respeito à distribuição dos benefícios:

o de dar mais a quem tem maior utilidade marginal.”319.

Cabanellas também critica esta vertente, observando que, em primeiro

lugar, a proposta de Kaldor-Hicks esconde em sua determinação “(...) un sinfin de

supuestos, simplificaciones, relaciones causales cuestionables y datos empíricos

faltantes”, de modo a que se chega a um resultado final “mágico” eficiente ou não

eficiente, “que con infantil maniqueísmo termina por ocultar la complejidad de la vida

jurídica y de la vida a secas”. Ademais, a terminologia utilizada oculta os valores

subjacentes a esta proposta que consiste, efetivamente, no poder de compra como um 317 Idem, p. 32. Em breve escorço acerca dos autores dessa vertente, pode-se dizer, com apoio em Leandro Novais e Silva, que “Nicholas Kaldor, economista húngaro, estudou e lecionou na London School of economics, sempre se envolveu com os problemas práticos da política econômica na Inglaterra. Embora defendesse o sistema de mercado e de empresas privadas, frequentemente aconselhou a intervenção governamental para tornar as economias capitalistas mais produtivas e equilibradas, e concebeu várias políticas e instrumentos com esta finalidade. O maior interesse de Nicholas Kaldor e a principal causa de sua reputação como economista foi a teoria ou a explicação de como as economias funcionam, observação sempre relacionada com a realidade. Daí a criação, no âmbito da economia do bem-estar, da eficiência potencial de Pareto. John Richard Hicks, economista inglês da corrente marginalista contemporânea, recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 1972 (com Kenneth Arrow). John Hicks ampliou alguns conceitos de Pareto, em especial as ‘curvas de indiferença’, modificando os critérios de medição de utilidade, permitindo análises mais consistentes das preferências dos consumidores.”. SILVA, Leandro Novais e. A análise econômica do direito e a vertente welfarista: a teoria, seu uso na regulação econômica, seus limites e deficiências. In: Revista de Direito Público da Economia – RDPE. Belo Horizonte: ano 6, n. 23, p. 109-140, jul./set. 2008, p. 115. 318 ZYLBERSZTAJN, Décio; SZTAJN, Rachel, op. cit., p. 76. 319 Idem, p. 76.

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único parâmetro de decisão. Observa que “esto no es sino un juicio de valor caprichoso,

com el agravante de que viene encubierto en un llenguaje pseudocientífico.”. Assim,

como lembra Posner citado por Cabanellas, se em uma economia hipoteticamente

representada por dois agentes uma medida permite a “A” obter bens e serviços

adicionais desde que a custo de $100 e, por outro lado, priva “B” dos bens e serviços

pelos quais pagaria $50, a medida se considera eficiente, ainda que o motivo do maior

valor ofertado por “A” tenha sido seu poder econômico superior ao disponibilizado por

“B”320.

Ainda dentro da linha da eficiência, verifica-se como alternativa ao critério

Kaldor-Hicks o que fora cunhado pelo economista e sociólogo Vilfredo Pareto,

conhecido como “Ótimo de Pareto”. Tal consiste em viabilizar a transferência de bens

de quem os valoriza menos a quem lhes dá mais valor, sem que aquele reste

prejudicado321.

Como salienta Cabanellas, uma situação pode ser considerada como um

‘ótimo paretiano’ se não for possível identificar outra situação em que um ou mais

agentes econômicos se encontram em melhor posição que a primeira sem que nenhum

agente fique em pior posição. Dito de forma reversa: quando uma situação não se

configura como um ‘ótimo paretiano’, é possível identificar outra situação em que um

ou mais agentes “se hallan en mejor posición, sin que ningún agente quede em peor

posición.”322.

A proposta de Pareto é criticada considerando, principalmente, que na

generalidade dos contextos econômicos verificam-se múltiplas situações em que não é

320 CABANELLAS, Guillermo, op. cit., p. 31-32. 321 Rachel Sztajn assim explica o critério de Pareto: “No que diz respeito à circulação de riqueza, o critério usual é o proposto por Pareto, segundo o qual os bens são transferidos de quem os valoriza menos a quem lhes dá maior valor. O economista considera que a mudança é eficiente, numa sociedade, quando alguém fica melhor do que anteriormente com a mudança de alguma atribuição de bens anterior, sem que ninguém fique pior.” ZYLBERSZTAJN, Décio; SZTAJN, Rachel, op. cit., p. 76. Embora na ótima paretiana pareça transparecer certo conteúdo moral, consistente em melhorar a situação de alguém sem que outro piore, o Autor do pensamento não parece ter se afeiçoado tanto, ao menos quanto à perspectiva ideológica, ao que sustentava. Leandro Novais e Silva assim menciona acerca de Vilfredo Pareto: “Vilfredo Pareto, economista e sociólogo italiano, enfatizou a aplicação da matemática à economia dentro de um quadro teórico marginalista modificado e reviu o método do equilíbrio geral de Walras. Embora o economista Pareto tenha contribuído fortemente para o desenvolvimento da economia do bem-estar, com conceitos de ótimo, ofelimidade, e Lei de Pareto, acentuando que o progresso humano suporia o aumento dos elementos automáticos na regulação dos problemas sociais, e, portanto, contra a interferência estatal na economia, o sociólogo Pareto foi um antiliberal confesso, formulando uma teoria da dominação e circulação das elites, segundo a qual toda a história é uma sucessão de aristocracias formadas por minorias de todas as classes sociais, suscetíveis de se transformarem em dirigentes. Essa teoria influenciou o fascismo de Benito Mussolini, de quem Pareto chegou a ser partidário intelectual.” SILVA, Leandro Novais e, op. cit., p. 115. 322 CABANELLAS, Guillermo, op. cit., p. 33.

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possível beneficiar uma pessoa sem prejudicar a outra. De outro tanto, especificamente

no campo jurídico, tirante a autocomposição dificilmente se poderá, nos meandros da

decisão acerca de conflitos intersubjetivos de interesses, beneficiar alguma pessoa sem

prejudicar outra. Para isso, aliás, existe o direito enquanto técnica a definir (sob o

aspecto decisório) a quem deve ser adjudicado o bem da vida, ainda que essa operação

venha a causar prejuízo à contraparte. Finalmente, aventa-se também que o critério é

estático e não compreende a dinâmica das relações jurídicas, ou, ainda, a possibilidade

de escolha entre contextos ou situações não previamente definidas323.

Posner também critica esta proposta de Pareto, observando que nas relações

de troca é praticamente impossível que inexista prejuízo para alguma das Partes.

Guestrin, percorrendo semelhante trilha, destaca que não existe um padrão objetivo e

livre de juízos de valor para realizar as escolhas, de modo que mesmo o critério de

Pareto deve ser complementado com a equidade324.

Considerando que o ótimo de Pareto, entendido como referência de

eficiência econômica, dificilmente pode ser alcançado, quer por ser demais restritivo,

quer em razão de que tanto nas políticas públicas como nas trocas de mercado de

maneira improvável haverá o aumento de riqueza e ganho sem perda, a vertente Kaldor-

Hicks vem sendo tida como uma eficiência potencial de Pareto, de modo que “a

eficiência potencial se satisfaz se o incremento total de riqueza tiver saldo líquido, ou

seja, se for positivo o bem-estar final.”325.

Assim, as duas propostas sugeridas pela escola econômica do direito a fim

de auxiliar na aplicação do critério da eficiência – a Kaldor-Hicks e o Ótimo de Pareto –

são passíveis de críticas mesmo em seara econômica, tendo sido aventado por

323 As críticas encontram-se expostas com maior amplitude e profundidade no trabalho de Cabanellas. CABANELLAS, Guillermo, op. cit., p. 33-34. 324 JAKOBI, Karin Bergit, op. cit., p. 43-44. 325 “Nesse ponto, exatamente, está o critério de Kaldor-Hicks, a eficiência potencial de Pareto: como é improvável, na maior parte da dinâmica econômica, melhorar a situação de todos sem piorar a de alguém, a eficiência potencial se satisfaz se o incremento total de riqueza tiver saldo líquido, ou seja, se for positivo o bem-estar final. A abordagem econômica do direito emprega quase que exclusivamente a eficiência apontada por Kaldor-Hicks. A mensuração do saldo final e, portanto, do incremento de bem-estar é feita pelo sistema de preços. Assim, se o indivíduo A tem uma garrafa de vinho que valoriza em R$100,00 e o indivíduo B a valoriza em R$150,00, haverá acréscimo de riqueza e de bem-estar (agregado) se A resolver vendê-la a B por R$100,00. O total do acréscimo de bem-estar é feito justamente pela diferença, R$50,00. A garrafa de vinho agora está com quem mais a valoriza, alocando de forma mais eficiente os recursos. Ocorre que, em uma dinâmica econômica mais complexa, a venda do vinho de A para B pode, por exemplo, afetar o indivíduo C, que estaria disposto a pagar R$40,00 pela garrafa, dando origem à idéia de externalidade. É um valor bem inferior, mas C estaria disposto a adquirir a garrafa. Como o preço que ele estaria disposto a pagar é menor, a operação não ocorre, diminuindo o bem-estar de C. De qualquer forma, ainda nessa situação, o saldo líquido é positivo, R$50,00 – R$40,00 = R$10,00, refletindo a eficiência potencial de Pareto.” SILVA, Leandro Novais e, op. cit., p. 116-117.

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Cabanellas que na esfera jurídica a viabilidade de sua observância se revela ainda

menor.

Como, então, pretender aplicar tal critério no contexto da solução de casos

que se situam no limiar entre o político e o jurídico ou que não apresentem de pronto,

pelo mecanismo de subsunção, uma resposta obtida pela mera incidência do regramento

positivado já existente no cerne do ordenamento jurídico?

A exemplo do critério racional, vislumbra-se a aplicação das propostas

Kaldor-Hicks e de Pareto como formas de auxiliar a solução dos casos mencionados e

não, propriamente, como o mote central da fundamentação. Seria algo como um obiter

dictum, mas cuja presença auxilie, em muito, a que se possa lograr obter uma decisão

dotada de parâmetros de observância mais completa e alargada do que apenas a

argumentação jurídica.

Cogite-se, então, do caso exposto na Arguição de Descumprimento de

Preceito Fundamental n.° 54-8/DF, pendente de julgamento quanto ao mérito pelo

Supremo Tribunal Federal, em que se discute a possibilidade de autorizar a interrupção

da gestação em decorrência da anencefalia do feto devidamente diagnosticada pelo

médico que acompanha a gestante.

A postulação liminar, apreciada pelo Ministro Marco Aurélio Mello, teve

como embasamento a percepção de que “a vida é um bem a ser preservado a qualquer

custo, mas, quando a vida se torna inviável, não é justo condenar a mãe a meses de

sofrimento, de angústia, de desespero.”. Observou, ainda, o Ministro relator, que

quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período

que possa ser tido como razoável, de sorte que manter a gestação resulta em impor à

mulher e à respectiva família danos de ordem moral e psicológica, além dos riscos

físicos reconhecidos no âmbito da medicina326.

Não se pretende nesta oportunidade tecer qualquer consideração acerca da

matéria em si controvertida, ou, tampouco, opinar quanto à admissibilidade ou não do

procedimento propugnado na demanda assacada perante a Suprema Corte. Objetiva-se

apenas destacar que a fundamentação externada pelo Relator por ocasião da decisão

acerca do pleito emergencial também se utilizou, ainda que de forma implícita, dos

critérios econômicos ora tratados para chegar a conclusão que apontara.

326 A íntegra do julgamento em caráter liminar pode ser obtido em <http://www.ghente.org/doc_juridicos/liminar_anencefalia.htm>. Acesso em 28 setembro 2011.

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Com efeito, ao tratar da viabilidade da realização do procedimento de

interrupção da gestação em confronto com os danos que adviriam à genitora acaso a

levasse a termo, o Relator se utilizou, por certo, do critério jurídico da ponderação,

sendo possível perceber a adoção, ainda que indireta e tênue, da proposta de Kaldor-

Hicks, sugerindo-se que a interrupção da gestação viria a garantir o máximo de bem-

estar para o maior número de mulheres que se encontrassem na dificultosa situação da

existência gestacional de um feto com a doença que lhe soçobra a saúde e a vida.

Observe-se que não se trata de dizer que a morte do feto pela via do aborto

será mais eficiente à mãe – o que seria a aplicação direta e frontal do critério da

eficiência como base argumentativa para a solução do litígio –, mas sim tratar o critério

da eficiência associado ao da equidade, como sugerido por Guestrin, de modo a auxiliar

na ponderação dos princípios e interesses envolvidos no litígio.

Como se mencionou, trata-se de critério auxiliar, que poderá – e quiçá

deverá – auxiliar na definição dos parâmetros jurídico-argumentativos que lançarão

luzes sob o caso discutido. Assim se verificando, tratará o Julgador de observar uma

faceta a mais do contexto envolvido no caso conflituoso, ponderando de maneira mais

racional, segura e, enfim, jurídica, qual a solução mais adequada para o pleito

formulado.

Por isso, realizada a ponderação (ou tomado critério de equidade, de acordo

com Guestrin) entre o direito das mulheres à interrupção da gestação para ceifar o

sofrimento e o direito à vida de um feto sem condições de viabilidade extrauterina,

tratou o Relator de cunhar a decisão que garantisse a maior eficiência a realização do

direito que entendeu prevalecente no caso, espraiando os efeitos da decisão a todas as

mulheres que se encontrassem em semelhante situação fática.

Não se vislumbra, evidentemente, a possibilidade da aplicação do Ótimo de

Pareto no caso mencionado, embora não seja conveniente afastá-lo desde logo do

prisma das questões jurídicas. Isso porque em determinado caso, conquanto

eventualmente não se possa alcançar uma situação em que a escolha não venha a

prejudicar qualquer das Partes envolvidas no conflito, a proposta de Pareto virá a todo

momento conduzir o pensamento obrado pelo Julgador a se aproximar deste ideal,

propugnando pela aplicação das normas insertas no ordenamento jurídico da forma que

cause menor prejuízo mesmo à Parte cuja alegação se viu proscrita pela argumentação

lançada no provimento sentencial.

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Assim, uma vez ponderados os princípios em discussão, verificada a

aplicação das normas mais consentâneas à situação e delimitados os aspectos do

conflito, deve o Julgador proceder a um passo a mais, observando como poderá lançar

sua decisão prejudicando o mínimo possível mesmo a Parte que se verá perdedora327.

Dessa forma, estará proferindo decisão que prime pela eficiência na adjudicação das

normas, ao tempo que, sob o manto da justiça, confere a cada um o que é seu de direito.

Esta orientação parece ter sido a adotada nos meandros do controle

concentrado de constitucionalidade no Brasil. Isso porque a Lei n.° 9.868 de 10.11.1999

– DOU 11.11.1999 determinou, no artigo 27, que por razões de segurança jurídica ou de

excepcional interesse social, o Supremo Tribunal Federal poderá, por maioria de 2/3

(dois terços), restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou, no que

interessa ao presente caso, determinar que somente tenha eficácia a partir do seu trânsito

em julgado ou de outro momento fixado pela Corte328.

De fora parte qualquer discussão doutrinária acerca do conceito de

segurança jurídica ou dos casos em que se constataria o excepcional interesse social,

parece que a legislação mencionada concebe a ideia de menor prejuízo mesmo nas

situações em que verificada a declaração de inconstitucionalidade de determinada

327 Esta forma de compreender a aplicação da vertente paretiana sob o enfoque analisado atrela-se, de certa maneira, aos ensinamentos de John Rawls acerca da teoria da justiça e, em especial, no tocante ao que denominou princípio da diferença. Nesse sentido, ao mencionar que “O critério de Pareto-ótimo tem, portanto, conteúdo moral: melhorar a situação de alguém sem que outro piore”, relembra Leandro Novais e Silva o princípio mencionado, destacando que “Aqui, a teoria da justiça de John Rawls pode ser muito útil, em especial com o seu princípio da diferença, que, resumidamente, pode ser assim enunciado: as desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo (a) tragam maior benefício possível para os menos favorecidos e (b) sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades. Vicenzo Demétrio Florenzano traz o ilustrativo exemplo para explicar o princípio e seu correlato maxmin (maximum minimorum), que é o ponto em que são maximizadas as expectativas das classes menos favorecidas: ‘Trata-se de uma regra segundo a qual, dentre várias alternativas possíveis, devemos optar pela menos penosa para os que estão em pior posição. Para exemplificar, podemos imaginar o caso de uma competição esportiva em que há um prêmio de R$100,00 reais a ser dividido entre três competidores. Supondo que todos os três participantes devem receber alguma coisa e que o primeiro deve receber mais do que o segundo, que, por sua vez, deve receber mais do que o terceiro colocado, há várias maneiras de repartir o prêmio. Para simplificar, vamos admitir apenas três alternativas que denominaremos A1, A2, A3. Na alternativa A1, o primeiro colocado recebe R$60,00, o segundo R$30,00 e o terceiro R$10,00. Na alternativa A2, o primeiro recebe R$70,00, o segundo R$20,00 e o terceiro R$10,00. Na alternativa A3, o primeiro recebe R$50,00, o segundo R$30,00 e o terceiro R$20,00. A regra maxmin determina que se opte pela alternativa A3, porque é a mais favorável (ou menos penosa) para o terceiro colocado que é o que está pior colocado’.”. SILVA, Leandro Novais e, op. cit., p. 119. 328 BRASIL, Lei n.° 9.868 de 10 de novembro de 1999. Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9868.htm>. Acesso em 18 outubro 2011. “Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”.

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norma. Por igual, a proposta de Pareto indica que a escolha mais eficiente se dará

quando nenhum agente fique em pior posição. No caso, embora decerto ocorram

prejuízos decorrentes da observância de norma que veio a ter sua inconstitucionalidade

reconhecida, a legislação os ameniza em prol da segurança jurídica e do excepcional

interesse social – poderia ter dito equidade, como quer Guestrin –, de sorte a revelar a

ótima paretiana como norte.

Também nos casos de conflitos intersubjetivos se observa esta atitude do

Poder Judiciário, bastando não olvidar de casos em que a boa-fé venha a ser utilizada

como forma de minimizar eventuais efeitos nocivos de declaração de invalidade de atos

jurídicos ou, até mesmo, de atos fraudulentos329. Nessas hipóteses, tem-se, igualmente, a

ótima paretiana como mira, de maneira que a aplicação de critérios jurídicos não relega

ao esquecimento a necessidade de se trazer menores prejuízos à Parte prejudicada com a

incidência de normas válidas.

Não é, certamente, o critério principal a definir se determinado negócio

jurídico fora celebrado sob o pálio da norma vigente, ou, por outro lado, se a conduta

fraudulenta deve ser reconhecida enquanto tal, mas como critério auxiliar pode subsidiar

a construção de uma decisão judicial mais consentânea à realidade social e econômica.

329 Observe-se, exemplli gratia, V. Julgado emanado do Tribunal Regional Federal da Primeira Região em que, embora reconhecida, com fincas no artigo 231, §6° da Constituição da República, a ilicitude da ocupação de terras na hipótese que cogita, autorizou-se, com base na boa-fé e minimizando os prejuízos da incidência tout court da norma, a concessão de indenização pelas benfeitorias empreendidas no local: “TRF1-153818) PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. BENFEITORIAS. DIREITO DE RETENÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. INDENIZAÇÃO. OCUPAÇÃO DE BOA-FÉ. 1. Nos termos do art. 231, § 6º, da Constituição, "são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé". 2. No STF, já se decidiu que "não há direito de retenção nessas ações, porque a Constituição prevê a desocupação imediata. Sendo a terra pública, a sentença que declara a nulidade implica o cancelamento do registro e a desocupação, não havendo como se manter no imóvel o ocupante ilegítimo, mesmo porque não há posse em terra pública, mas, sim, mera ocupação de terra pública, que não dá direito a retenção" (ACO 323/MG). 3. Verifica-se, pois, que o STF, em relação às terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas, rechaçou a possibilidade de retenção, embora não tenha afastado, naquele julgamento, direito a indenização pelo valor das benfeitorias realizadas na ocupação de boa-fé. 4. Agravo de instrumento a que se dá provimento. (Agravo de Instrumento nº 0023373-56.2004.4.01.0000/RR, 5ª Turma do TRF da 1ª Região, Rel. João Batista Moreira. j. 10.02.2010, e-DJF1 12.03.2010, p. 296).”. Em outra hipótese, agora decidida pelo Tribunal Regional Federal da Segunda Região, embora glosado, por ilegal, o percebimento de determinados adminículos de servidor, admitiu-se, com base na boa-fé, a desnecessidade de devolução dos valores à Administração. O V. Julgado foi registrado da seguinte maneira: Agravo em Apelação em Mandado de Segurança nº 2004.51.02.003145-5/RJ, 5ª Turma do TRF da 2ª Região, Rel. Fernando Marques. j. 04.08.2010, unânime, e-DJF2R 16.08.2010. Observa-se, à vista dos V. Julgados mencionados: o que objetivaria a boa-fé senão a busca pela ótima paretiana, pois embora não se possa afastar desde logo os prejuízos decorrentes da violação à norma legal, ao menos foram amenizados em vista de algo significativamente de maior conteúdo axiológico, denominado boa-fé, mas que também poderia ser traduzido por equidade.

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Aliás, a realidade social é dinâmica e, portanto, deve ser acompanhada pelo

direito, que, por sua vez, não pode ficar cristalizado em interpretações vetustas e há

muito dissonantes com a complexa teia sistêmica que se verifica nos comportamentos

dos indivíduos enquanto agentes econômicos ou não330.

Atenta a este aspecto, a escola econômica do direito trabalha com teorização

que pretende explicar como se estabelece a correlação entre comportamentos e

estratégias adotadas pelos agentes econômicos com base nas informações de que

dispõem. Trata-se da denominada teoria dos jogos que, como mencionado, objetiva

auxiliar na compreensão e previsão dos comportamentos das pessoas quando existem

interesses em conflito.

Desenvolvida pelo matemático John Von Neumann no início do século XX,

a teoria dos jogos se preocupa em deslindar a forma como os agentes econômicos e

sociais tomam decisões em vista de possíveis ações e estratégias obradas pelos demais

agentes331.

Pinheiro e Saddi destacam que se verifica um comportamento estratégico

quando dois ou mais indivíduos interagem e suas ações são praticadas conforme aquilo

que esperam ou desejam que os outros façam, de modo que a interação, neste particular,

pode ser tratada como um jogo332.

A teoria em tema apresenta três feições bem definidas: o jogo de soma zero,

de John Von Neumann; o dilema dos prisioneiros, de Albert W. Tucker; e o jogo do

equilíbrio, de John Nash.

O jogo de soma zero é ilustrado por Neumann por meio de um conflito

doméstico envolvendo uma mãe, um bolo e duas crianças. Observa que quando uma

mãe pretende repartir o bolo entre seus dois filhos, um sempre terá a ideia que fora

prejudicado, ainda que a mãe tenha sido imparcial: o menor compreendendo que o

maior fora beneficiado por ser mais velho e o maior pelo fato de o irmão ser caçula e,

portanto, protegido pela mãe. A melhor estratégia a ser trilhada pela mãe, denominada

por Neumann como maxmin, é fazer com que um parta o bolo e o outro escolha o

pedaço, pois assim não haverá reclamação posterior de qualquer deles333.

A feição da teoria dos jogos de acordo com o ‘dilema dos prisioneiros’

surgiu em 1950, com a obra ‘A two person dilema’, de Albert W. Tucker. O autor

330 CAPRA, Frtijof, op. cit., p. 46 e 230. 331 JAKOBI, Karen Bergit, op. cit., p. 62. 332 Idem, p. 63. 333 Ibidem, p. 64.

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considerou a situação em que duas pessoas cometeram conjuntamente um crime, mas a

polícia não tem provas suficientes para acusá-los, necessitando de uma confissão. Dadas

especificidades da situação, acaso não venha a obter uma confissão a polícia somente

terá condições de acusá-los por um crime menor, com pena mais branda. Assim, os

prisioneiros são colocados em salas separadas, sendo-lhes feita proposta no seguinte

sentido: “se confessares e o teu parceiro não o fizer, deixamos-te em paz e só ele é

condenado por um crime grave; se ambos confessarem, são ambos condenados pelo

crime grave, mas conseguimo-vos uma redução de pena.”. É, evidentemente, do

interesse de ambos os prisioneiros que nenhum confesse, hipótese em que os dois serão

acusados e condenados pelo crime menor. A confissão, no entanto, é a estratégia

dominante, porque na perspectiva de um dos meliantes acaso o outro não confesse,

confessa-se e evita-se a condenação; por outro lado, acaso ambos confessem, a redução

de pena advirá aos dois334.

A melhor estratégia ao caso, segundo Tucker, será confessar, na medida em

que não havendo conhecimento de como agirá o outro jogador, o primeiro pensará que

será melhor responder por um crime menor do que pelo crime maior, o que pode obter

com a confissão.

A proposta do equilíbrio foi sugerida por John Nash por ocasião da

elaboração dos artigos Equilibrium points in n-person games e The bargaining problem

em 1950, Non cooperative games, em 1951; e, em 1953, Two person cooperative

games. Nestes trabalhos, considera que as pessoas buscam a maximização dos

benefícios em determinado jogo. Entretanto, por vezes se torna mais interessante que

abandonem um ganho maior para que todos possam obter um ganho proporcional.

Nessa toada, um jogador agirá sempre dessa mesma forma se tiver certeza que o outro

também agirá assim, de modo que ambos poderão lograr proveito com a situação. O

equilíbrio, portanto, será proporcional à quantidade de informações que um jogador

dispuser sobre a conduta a ser tomada pelo outro, sendo o resultado repartido entre

ambos.

Pinheiro e Saddi, citados por Irineu Galeski Júnior, ilustram de maneira

mais clara o pensamento de John Nash:

334 O caso fora citado por V. Rodrigues e encontra-se transcrito no trabalho empreendido por Irineu Galeski Júnior. JÚNIOR, Irineu Galeski. A análise econômica do direito e a repetição do indébito tributário. 2008, 231f. Dissertação apresentada para obtenção do título de mestre em direito no programa de mestrado em Direito Socioambiental – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2008, p. 83-84.

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Os argumentos de Nash podem não ser fáceis de compreender à primeira vista. Foi essa a razão que levou o roteirista Akiva Goldsman, no filme Uma mente brilhante, a desenhar um exemplo para ilustrar didaticamente o que Nash propõe. Para isso, ele escolheu o tema adolescente da paquera entre homem e mulher. Num bar, quatro amigos estão bebendo cerveja quando entram uma loira lindíssima e quatro amigas. Goldsman, por intermédio do personagem de John Nash, vivido por Russel Crowe, observa: se os quatro forem todos atrás da única loira, num processo de competição, eles se ‘bloquearão’ e ela rejeitará os avanços. Ou seja, à medida em que os quatro não cooperarem, buscando separadamente o que julgavam ser melhor para cada um, que era ‘ficar com a loira’, corria-se o risco de ninguém ficar com ela. Se, em um segundo momento, os quatro forem atrás das amigas da loira, elas poderão se sentir indignadas por serem a segunda opção, e também os rejeitarão. Ora, o mais indicado, então, é ninguém ir atrás da loira e buscar outras opções, ou seja, as amigas. Esse exemplo mostra que nem sempre a noção de Smith, de que a ambição individual leva ao bem comum, prevalece. O equilíbrio não cooperativo do jogo ilustrado no filme faz com que os quatro amigos acabem sós. Cooperando, eles são capazes de chegar a uma solução melhor, que é ficarem os quatro com companhia335.

Expostas as vertentes, forçoso convir que de iure conditio constata-se

grande aplicação da teoria dos jogos no âmbito jurídico.

O jogo de soma zero de John Von Neumann pode ser vislumbrado pelas

audiências públicas e orçamentos participativos, em que a sociedade pode ser chamada

a participar ativamente do ‘corte do bolo’ (parafraseando o autor), definindo e

gerenciando eventuais gastos públicos, ademais de deliberar quanto a alocação dos

ativos da maneira que entenderem mais consentânea às necessidades vividas no dia-a-

dia.

O dilema dos prisioneiros pode ser facilmente verificado nas hipóteses

existentes na legislação pátria de delação premiada, em cujo objetivo certamente se

encontra, sob a óptica do Acusado, a obtenção de benefícios oriundos da prestação de

informações úteis às Autoridades responsáveis pela persecução criminal336.

A teoria do equilíbrio, por sua vez, encontra amplo espectro de

aplicabilidade no campo jurídico. Noticia Irineu Galeski Júnior que em matéria de

licitações a teoria indica qual o melhor tratamento que a lei pode dar ao tema, evitando a

atuação de cartéis, a fim de garantir o melhor preço para a Administração Pública337.

335 JÚNIOR, Irineu Galeski, op. cit., p. 85. 336 A título de exemplo, como lembrado por Irineu Galeski Júnior, consultem-se os seguintes regramentos legais: §4° do artigo 159 do Código Penal, com redação dada pelas Leis n.° 8.072/90 e 9.269/96; §2° do artigo 24 da Lei n.° 7.492/86, acrescentado pela Lei n.° 9.080/95; artigo 6° da Lei n.° 9.034/95; e §5° do artigo 1°, da Lei n.° 9.613/98. Idem, p. 84. 337 Gustavo Pamplona, citado por Irineu Galeski Júnior, esclarece que: “O dilema dos cartelizados é: num jogo de sempre ter de reduzir as ofertas superfaturadas, sob pena de perder totalmente a licitação, caso o jogo de redução da oferta se proceda em infinitas licitações, um licitante diminuirá seu preço numa

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Também no âmbito das falências a teoria em foco contribui, nomeadamente servindo de

base para a análise dos credores quanto ao plano de recuperação judicial338.

Contudo, a despeito da aplicação embasada em textos normativos já

positivados, seria possível vislumbrar a aplicação da teoria dos jogos no contexto da

decisão judicial, notadamente como forma de auxiliar a exposição de argumentos

tendentes à solução do litígio?

Ao momento em que determinado litígio adentra à fase decisória, quer se

trate de processo objetivo, quer tenha-se por foco um conflito intersubjetivo, todos os

argumentos já foram anteriormente esposados pelos litigantes por oportunidade da fase

postulatória. Mesmo na fase instrutória não se admitem argumentos novos (salvo

situações supervenientes), tendentes a alterar o quadro fático já apresentado

anteriormente339.

Por outro lado, confrontado com um imbróglio jurídico, não é dado ao

magistrado entregar às Partes a solução (teoria do jogo de soma zero), manipular as licitação e o outro cartelizado, na próxima. Entretanto, nem sempre isso será verificado (...). Se cada licitante sabe que o outro está jogando ‘bate-e-rebate’, então cada empresa teria receio de diminuir o seu preço e iniciar uma guerra de preços. A ameaça implícita do ‘bate-e-rebate’ pode permitir às empresas manterem seus preços altos. Contudo, a realidade não é de infinitas licitações. O Estado possui um número fixo de concorrências, por isso colocam-se em disputa entre os cartelizados os melhores contratos, que representam a mais alta lucratividade, sempre almejada num cenário de preços de mercado. Já no curto prazo, a Administração conta com empresas que estão excluídas do mercado cartelizado, não possuem grandes margens competitivas nem ganhos de escala, mas que têm o interesse de fornecer para o Estado, suponhamos, no caso, a empresa ‘C’. Quando a Comissão de Licitação divulga as propostas de todos os licitantes e abre prazo para apresentação de novas ofertas, possibilita à empresa ‘C’ analisar suas propostas diante da de seus concorrentes e da cotação de mercado, detendo, assim, uma posição privilegiada de informações e a possibilidade de competir isonomicamente com empresas que até então dominavam o mercado. A simples presença de uma empresa não integrada ao cartel já é uma ameaça potencial à hegemonia das empresas dominantes, sobretudo num cenário de divulgação e reapresentação de propostas.”. Ibidem, p. 86. 338 Mário Engler Pinto Júnior ensina, que “A recuperação judicial foi modelada pela nova Lei de Falências como um jogo de barganha sequencial, em que o devedor tem o controle sobre o final do jogo, observado determinado horizonte máximo de tempo (180 dias após o deferimento do pedido em juízo). Todavia, para o que o jogo ocorra, é essencial que exista um valor excedente (surplus) a ser disputado entre os jogadores. (...) Se o devedor não puder oferecer na recuperação um pay off mais elevado do que os credores obteriam na falência, será provável a rejeição do plano. Esse resultado somente poderá ser alterado, e houver outras motivações dos credores para preservar o funcionamento da empresa.” Ibidem, p. 86-87. 339 O artigo 264 do Código de Processo Civil, a esse respeito, traz em seu bojo o princípio da estabilização da lide, criando óbice a que a fase postulatória ultrapasse o seu momento processual próprio e se faça presente por oportunidade do início da instrução da lide. Confira-se a redação do texto legal: “Art. 264. Feita a citação, é defeso ao autor modificar o pedido ou a causa de pedir, sem o consentimento do réu, mantendo-se as mesmas partes, salvo as substituições permitidas por lei. Parágrafo único. A alteração do pedido ou da causa de pedir em nenhuma hipótese será permitida após o saneamento do processo.”. A exceção fica por conta do artigo 462 do mesmo Diploma legal, por meio do qual resta determinado que “Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento da lide, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a sentença.”. BRASIL, Lei n.° 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Dispõe sobre a instituição do Código de Processo Civil. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5869.htm>. Acesso em 18 outubro de 2011.

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Partes, ao seu talante e em manifesta afronta à imparcialidade, objetivando que ambas

saiam prejudicadas ou se prejudiquem reciprocamente (dilema dos prisioneiros) ou

construir uma espécie de ‘acordo decisório’, em que ambas as partes estariam em

equilíbrio sem, necessariamente, sagrarem-se vencedoras ou perdedoras (teoria do

equilíbrio); mas sim decidir tendo como parâmetros os critérios jurídicos postos à

disposição para tanto.

Relembre-se que a teoria dos jogos fora criada objetivando auxiliar na

compreensão e previsão dos comportamentos das pessoas quando existem interesses em

conflito. Nessa perspectiva, nada obsta a que o Julgador vislumbre comportamentos que

possivelmente se verificarão em momento diverso ao conflito que lhe fora posto a

apreciação (e talvez mesmo em situações que se localizam para além dos autos) e tal

critério possa, desde que motivado por parâmetros empíricos devidamente

fundamentados, auxiliar ou servir de dado a construção da decisão, ou de determinado

aspecto da decisão, no contexto do caso analisado.

Dito de outra forma: examinando determinado contexto inerente a discussão

travada nos autos, o julgador percebe que a tomada de posição implicará toda uma sorte

de consequências futuras no comportamento dos agentes envolvidos, de modo que,

verificando empírica e objetivamente tais consequências, tome-as também como

parâmetro a auxiliar a decisão a ser proferida.

Não se trata de exercício de futurologia ou decisão baseada em critérios

individuais e pessoais de cada magistrado, senão a aplicação da teoria dos jogos de sorte

a viabilizar o alcance futuro das consequências da decisão fora do processo e os

comportamentos que dela advirão, tomando-as, objetiva e fundamentadamente, como

critério auxiliar para a decisão.

Como exemplo, conceba-se que determinados litigantes, analisando o

quantum fixado, em média, para indenizações por dano moral sofrido em decorrência da

inclusão indevida do nome do postulante em cadastros restritivos ao crédito, neguem-se

a celebrar acordos judiciais por considerar que os valores judicialmente admitidos para a

concessão da indenização ainda não superam o que poderá obter postergando a solução

final do litígio, ou, também em decorrência da diminuta fixação do valor indenizatório,

deixem de empreender a necessária cautela em sua atuação diária, a fim de que

prejuízos a terceiros não se verifiquem. Neste caso, talvez o aumento dos valores

indenizatórios médios tidos como razoáveis pelo direito pretoriano, se em montante

superior ao custo da demorada tramitação do feito, possa vir a estimular

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comportamentos diversos, facilitando inclusive a celebração de acordos judiciais ou

incrementando a cautela340.

Evidentemente, a fundamentação baseada exclusivamente neste critério não

se afigurará idônea, porquanto meramente consequencialista; mas, se no bojo da decisão

se puder comprovar, por dados empíricos, que a média de acordos celebrados ou a

acuidade comportamental do litigante em demandas em que se discutem situações

correlatas experimentou um aumento após a pontual modificação do entendimento

jurisprudencial no sentido da majoração do valor médio razoavelmente fixado em

demandas símiles, tal poderá, como adendo aos critérios eminentemente jurídicos,

auxiliar na decisão. Ter-se-á, neste caso, a perspectiva de um comportamento futuro que

poderá servir como critério auxiliar na prolação de decisões que os antecedem, desde

que, repise-se, baseado em dados objetivos, pragmáticos e empíricos341.

No campo da saúde, pública ou privada, na especial vertente do

fornecimento de medicamentos, a situação fica ainda mais clara. Em 03 de agosto de

2010 o Conselho Nacional da Justiça (CNJ) instituiu o Fórum Nacional do Judiciário

para o monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde, tendo como

objetivos a elaboração de estudos e a proposição de medidas e normas para o

340 Armando Castelar Pinheiro, em texto destinado a analisar alguns fatores que obstam o desempenho eficiente da função jurisdicional, observa que de acordo com pesquisa realizada com 3.927 magistrados por Sadek e Vianna, a primeira causa de morosidade da Justiça é a exploração da lentidão do Judiciário por meio de casos levados à justiça não para procurar a adjudicação de determinado direito, mas apenas para postergar o cumprimento de uma obrigação. Assim destaca: “Foram analisadas duas causas para a morosidade da Justiça. A primeira diz respeito ao grande número de casos levados aos tribunais por pessoas, empresas e grupos de interesse, não para lutar por um direito, mas para explorar a lentidão do Judiciário, adiar o cumprimento de uma obrigação. (...) Isso sugere que há espaço para desobstruir o judiciário penalizando esse tipo de comportamento, e que medidas que agilizem o andamento de processos, particularmente na área tributária, podem trazer ganhos significativos em termos de reduzir a carga de trabalho dos magistrados, uma vez que desestimulariam o mau uso da Justiça.” PINHEIRO, Armando Castelar. Magistrados, Judiciário e economia no Brasil. In: ZYLBERSZTAJN, Décio; SZTAJN, Rachel. Direito & Economia – Análise econômica do Direito e das Organizações. Rio de Janeiro: Elvesier, 2005, p. 253. 341 Luciano Benetti Timm e Manoel Gustavo Neubarth Trindade relembram, em relação ao comportamento dos litigantes e da forma como, de acordo com a teoria dos jogos, os comportamentos podem influenciar e serem influenciados por decisões judiciais, o seguinte: “Para os autores que trabalham com as premissas da Análise Econômica do Direito (ou Law and Economics), como se verá a seguir, os litigantes são agentes econômicos racionais. Eles moverão ações e interporão recursos à medida que em sua análise probabilística de custos-benefícios indicar ganhos. Vale dizer, ninguém ingressará com uma ação para se colocar em situação pior. E esse cálculo probabilístico leva em conta as probabilidades de êxito da ação, os custos processuais e os riscos da perda.” Mais adiante, especificamente no tocante a atitude judicial que incremente a possibilidade de acordos, observam: “Um sistema processual célere e efetivo (ou seja, eficiente) poderia atuar até mesmo antes do ajuizamento de ações (incentivando acordos, como nos Estados Unidos da América) e anteriormente à interposição dos expedientes recursais, servindo como estímulo para o comportamento processual otimizado, orientando o comportamento dos litigantes e dos próprios julgadores, o que certamente contribuiria para racionalizar o processo judicial e poupar recursos públicos hoje drenados à rediscussão de assuntos já pacificados nas cortes superiores.” TIMM, Luciano Benetti; TRINDADE, Manoel Gustavo Neubarth, op. cit., p. 155-156.

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aperfeiçoamento de procedimentos e a prevenção de novos conflitos judiciais na área da

saúde. Após a audiência pública n.° 04, realizada pelo Supremo Tribunal Federal, o

fórum nacional para a assistência à saúde passou a discutir o aumento das demandas

judiciais na área da saúde, especialmente as relacionadas à obrigatoriedade de

fornecimento de medicamentos, tratamentos e disponibilização de leitos hospitalares,

tanto no setor público quanto no setor privado342.

Nessa trilha, além da Resolução n.° 107/2010 que instituiu o Fórum, o

Conselho Nacional da Justiça editou a Recomendação n.° 31, em 30 de março de 2010,

para que os tribunais adotem medidas para subsidiar os magistrados a fim de assegurar-

lhes mais eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à

saúde.

Em reunião realizada em maio de 2011, deliberou-se pela separação por

temas dos processos que envolvem a área da saúde343. Nessa perspectiva, embora ainda

não concretizada a proposta, já se afigura possível cogitar da menção de dado estatístico

seguro correspondente a consolidação da jurisprudência definindo o cabimento de um

sem número de tratamentos, procedimentos ou medicamentos a serem obrigatoriamente

fornecidos ou custeados pelas empresas operadoras de planos de saúde, ou, mesmo, pelo

aparelho público.

Existindo, pois, um parâmetro já institucionalmente definido quanto a gama

de medicamentos, procedimentos ou tratamentos cuja aceitação já fora consolidada no

terreno judicial, poderá o Julgador tê-lo como dado auxiliar a analisar, em diversas fases

processuais, a seriedade argumentativa da linha esposada pela Parte que denegou o

direito vindicado na inicial.

Não se trata, como anteriormente já mencionado e ora repisado, do(s)

critério(s) jurídico(s) que será(ão) utilizado para a decisão da causa, seja em sede de

urgência, seja quanto ao mérito; mas sim um dado auxiliar que considera o

comportamento das empresas/aparelho estatal frente às situações vividas pela sociedade

e a possibilidade de modificá-los, direcionando-os ao ordenamento jurídico, por meio da

decisão judicial.

342 Todas as informações acerca do Fórum Nacional para assistência à Saúde encontram-se disponíveis em <http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/saude-e-meio-ambiente/forum-da-saude>. Acesso em 29 setembro 2011. 343 As informações acerca da reunião encontram-se disponíveis em <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/14597-processos-da-area-de-saude-serao-separados-por-tema>. Acesso em 29 setembro 2011.

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A utilização da teoria dos jogos como critério auxiliar a prolação da decisão

apresenta a vantagem de não dissociar o juiz da realidade vivida no âmbito social,

decidindo tendo em conta as agruras materializadas por indicadores seguros e fixos que,

por sua vez, levam em conta os conflitos judiciais. Trata-se de uma situação circular, em

que o juiz tem a realidade como critério auxiliar da decisão e, por outro lado, a decisão

alimenta a realidade com dados que serão oportunamente considerados para a prolação

de outra decisão344.

Por outro lado, quando o ente público figura no polo passivo à conta de

comportamento comissivo ou omissivo perpetrado pelos administradores, a teoria em

foco pode suprir a carência informacional do juiz frente à administração gerencial e a

alocação de recursos públicos. Utilizando-se de indexadores que previamente já

antecipam o comportamento que vem sendo adotado pela Administração em face de

decisões judiciais (indexadores estes alimentados diariamente por novas decisões),

poderá o juiz verificar se a prolação da decisão no caso posto à sua apreciação

implementará o direito ou inviabilizará a ação estatal em áreas diversas ou mesmo nas

idênticas às tratadas pelo conflito.

Apenas esclarecendo: observando as informações já disponibilizadas e as

utilizando como critério auxiliar na prolação da decisão, poderá o juiz verificar se a sua

decisão, em determinado caso concreto, coercitivamente determinando o fornecimento

de algum remédio inviabilizará toda uma sorte de políticas públicas já previamente

definidas e aguardando alocação de recursos públicos para implementação.

Neste ponto, inclusive, diferencia-se o parâmetro adotado da mera consulta

à jurisprudência já sedimentada quanto a determinado tema. Nesta, ter-se-á apenas a

vertente adotada em sede pretoriana, com a rejeição de argumentos impertinentes ou

descabidos e o acolhimento de linha argumentativa mais consentânea à situação.

Naquela, trata-se de analisar a decisão a ser proferida com base nos meandros do

sistema, avaliando-o sob o prisma do comportamento do ente, público ou privado, e

344 Ainda Luciano Benetti Timm e Manoel Gustavo Neubarth Trindade, citando Rafael Machado e Ely Mattos apresentam exemplos que podem ser aproveitados ao pensamento ora exposto: “Em artigo recente, Rafael, Machado e Ely Mattos (2008) demonstraram que a partir da obtenção da estabilidade monetária e a consequente redução dos juros no Brasil, os juros de mora (associados à correção monetária) fixados pelas cortes de justiça, passaram a ser desincentivadores de proposituras de ações descabidas. De outra parte, v.g., a concessão pouco criteriosa do benefício da gratuidade de justiça permite que o litigante transfira à sociedade o pagamento dos custos (amplamente compreendidos) da demanda. Isso significa, no jargão econômico, externalizar à sociedade o custo do processo, diminuindo o ‘preço’ do litígio, o que incentiva a litigiosidade.” TIMM, Luciano Benetti; TRINDADE, Manoel Gustavo Neubarth, op. cit., p. 160-161.

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verificando a real possibilidade de cumprimento e eficácia da decisão a ser proferida,

informação esta que auxiliará na tomada de decisão.

Haverá, nesse sentido, uma comunicação institucional entre o poder

judiciário e o aparato público, de modo a que o juiz possa mensurar a forma de decidir

mais consentânea aos objetivos que se espera do Estado como um todo e, na mesma

linha, não descure da adjudicação a cada um do direito que lhe apetece de acordo com o

ordenamento. Quanto aos entes privados, poderá o juiz dinamizar a relação jurídica com

os consumidores, aumentando o fluxo informacional (alimentado diariamente por meio

de novas decisões sobre o tema) que poderá ser definitivo ao momento da contratação;

e, ainda, incrementando a efetividade dos comandos contratuais.

A decisão judicial, atuando dessa forma e considerando tais elementos,

poderá gerar efeitos que ultimarão por se espraiar para além dos autos, atingindo os

demais agentes envolvidos na complexa teia institucional do Estado ou nos meandros da

relação privada. Quanto ao processo, será o provimento que define a lide, adjudicando a

cada um o que lhe é permitido pelo ordenamento; para além dos autos, contudo, será

externalidade, apta a influenciar o comportamento de cada agente econômico, público

ou privado, envolvido com a temática objeto da decisão.

Externalidades são concebidas pela análise econômica do direito como os

efeitos de certa atividade ou relação econômica que incidem sobre aqueles que não são

parte naquela atividade ou relação345. Costumam ser classificadas em positivas ou

negativas, aquelas verificadas quando aumentam o bem-estar de terceiros e estas quando

o diminuem346.

A decisão judicial que, adotando parâmetros jurídico-argumentativos e não

se olvidando das contribuições da escola econômica do direito como dados auxiliares

345 Cabanellas assim explica as externalidades: “En un sentido amplio, éstas consisten en los effectos de cierta actividad o relación económica, que inciden sobre quienes no son parte de tal actividad o relación. Algunas externalidades se manifiestan a través del sistema de precios, y tienden a no alterar el funcionamento correcto de uma economia de mercado. Así, por ejemplo, si una empresa A y una empresa B, que compiten entre sí, desarrollan nuevas tecnologias, ello beneficiará a los compradores de los produtos de estas empresas y a muchos otros agentes económicos – consumidores, proveedores de insumos a A y B, etc. - , pero esos benefícios serán reflejados por el sistema de precios, y permitirán que los agentes económicos ajusten su conducta a los efectos consiguientes. Otras externalidades escapan al sistema de precios y sus efectos no pueden así ser experimentados por la persona que los causa. Así, quien contamina la atmosfera causa un perjuicio a terceros pero no experimenta costo alguno en consecuencia.” CABANELLAS, Guillermo, op. cit., p. 36. 346 “Las externalidades pueden ser positivas o negativas. Son positivas si el efecto sobre terceiros aumenta su bienestar; son negativas si lo disminuyen. Las externalidades implican un comportamento defectuoso de los mecanismos de mercado y de precios, pues éstos no reflejan los costos efecticamente causados para la obtención de los bienes y servicios comercializados.” Idem, p. 36.

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para resolver determinada testilha, atingirá a sociedade não apenas pelos efeitos que

decorram do caso, mas como dado que auxilie o próprio desenvolvimento da sociedade.

Luciano Benetti Timm e Manoel Gustavo Neubarth Trindade compreendem,

nessa linha, que a decisão judicial cujos efeitos acabem por atingir outros indivíduos

afora os que se situam na relação jurídico-processual que gerou a lide, deve ser

entrevista como um bem público. Observam, a esse propósito, que os bens públicos

guardam características de não-rivalidade e não-excluibilidade, de modo que pode ser

consumido por diversas pessoas ao mesmo tempo, não sendo possível excluir, impedir

ou restringir o seu consumo pelos indivíduos. As decisões judiciais, nesse contexto,

atingem não somente aqueles diretamente integrantes das demandas individualmente

consideradas, mas também “os que estejam em situações análogas ou que

potencialmente possam vir a assim se encontrar”347. Assim, tendo-a como bem público,

será possível trazer benefícios para toda a sociedade, tornando-a, de outro viés, mais

eficiente.

A partir da aplicação da teoria dos jogos nos meandros decisórios ter-se-á,

de forma prospectiva, uma maior estabilidade no ambiente jurídico, com decisões

balizando o sistema e sendo alimentadas pelas consequências de sua aplicabilidade

prática. A decisão judicial será, portanto, alçada a outro patamar, de bem público, ou

seja, de contribuição direta ao estabelecimento de diretrizes que contribuirão à

segurança jurídica e efetividade do comando jurisdicional, ademais do próprio

desenvolvimento da sociedade.

A escola econômica do direito, portanto, pode contribuir ao estabelecimento

de diretrizes jurídicas ao exame dos casos postos à cura do Judiciário, ainda que 347 “Nessa senda, compreende-se que os bens públicos são responsáveis por irradiar externalidades, vez que principalmente a oferta dos mesmos por parte do Estado é responsável por atingir a sociedade de modo geral. No caso, em razão de suas características, os bens públicos oferecem externalidades positivas, pois envolvem distribuição involuntária dos seus benefícios. Nesse contexto, podemos compreender as decisões judiciais, sobremaneira oriundas dos Tribunais Superiores, como bens públicos, vez que podem atingir não só aqueles diretamente integrantes das demandas individualmente consideradas, mas também aqueles que estejam em situações análogas ou que potencialmente possam vir a assim se encontrar, e é exatamente aí que encontramos a racionalidade econômica motivando a eficiência, no caso, aplicada ao processo judicial. Outrossim, o caráter de bem público das decisões dos Tribunais Superiores permite igualmente a criação de sistemas de incentivos que prevejam mecanismos inibidores do comportamento processual inadequado e prejudicial ao bem comum (ineficiente como diriam os economistas), como são os casos das interposições de recursos meramente protelatórios, irrelevantes ou de hipóteses já apreciadas pelos tribunais destinatários, que resultam no desperdício de recursos públicos, isto é, em termos econômicos, a não otimização da atividade jurisdicional. (...) Portanto, as decisões dos Tribunais Superiores, além de servirem de orientação para órgãos judicantes de instâncias inferiores, também servem de paradigma para o comportamento processual dos litigantes e até mesmo para a sociedade de modo geral, influindo consistentemente nos custos de transação e na assimetria de informação e, assim, na eficiência social e econômica.” TIMM, Luciano Benetti; TRINDADE, Manoel Gustaco Neubarth, op. cit., p. 166-167.

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contribuindo acessoriamente com perspectiva mais pragmática que, além de princípios,

cláusulas gerais ou regras em sentido amplo, também considere a visão e funcionamento

do mercado, seus instrumentos e formas de lidar com a própria decisão348. Afinal, como

relembram Julie Allard e Antoine Garapon, os juízes desempenham papel de

interligação entre o sistema jurídico e contexto político-econômico no seio da

mundialização349.

348 Não se pode deixar de fazer referência, sob pena de imperdoável omissão e lacuna dogmática na proposta exposta no corpo do texto, da vertente welfarista, que, segundo parte da dogmática pátria e, sobretudo, da escola norte-americana, considera a escola econômica do direito apenas como um de seus ramos. Com efeito, a vertente welfarista tem como objetivo o bem-estar dos indivíduos/comunidades submetidos à ação estatal, como aponta Leandro Novais e Silva. O Autor, apoiado em Daniel Goldberg, ainda menciona que o caminho trilhado pela vertente welfarista no sentido do alcance do bem-estar se utiliza das eficiências e critérios de maximização da riqueza adotados pela escola econômica do direito, diferenciando-se ambas, principalmente, pelo fato de que naquela se adota a eficiência sob o critério distributivista, ao passo que esta a concebe sob o apanágio alocativo. Aponta, ainda, outras diferenças, entre tais figurando: a) a vertente welfarista adota não apenas a maximização da riqueza como critério para escolhas públicas, propugnando também pelo bem-estar global (agregado), que deve envolver todos os participantes de determinado mercado, consumidores, produtores e agentes do Estado; b) trabalha-se com um ambiente de eficiência dinâmica e não meramente estática; c) defende a análise do bem-estar agregado baseado nos efeitos de determinada medida, isto é, definido a aplicação de determinada política pública considerando, ex ante, suas consequências no resultado final. Quanto a este último ponto de diferenciação, o Autor, com razão, observa que a consequência importa – e deve mesmo importar – por ocasião do julgamento, sob pena de se ter em foco uma lógica deontológica que, diferentemente da consequencialista, relegue ao desdém a preocupação com as consequências das medidas (julgamentos – decisões) que se virá a adotar, bem aos moldes do ‘véu da ignorância’ descrito por John Rawls. Nesse sentido, em especial considerando a lógica consequencialista e levando em conta ex ante as consequências de determinada conduta (decisão) para o caso em apreciação, desenvolveu-se a aplicação da teoria dos jogos no contexto decisório, como se verificou no corpo do texto. SILVA, Leandro Novais e, op. cit., p. 109-115. 349 “No quadro do seu papel tradicional, o juiz estabelece, na sua decisão, uma relação entre o geral e o particular – pelo menos é desta forma que se entende tradicionalmente a sentença. Normalmente, o geral é associado a uma lei ou a uma norma que é aplicada pelo juiz a um caso particular. Em qualquer destas situações, não se trata verdadeiramente de um ‘universal’ no sentido estrito, uma vez que a lei ou a norma gerais são específicas de um sistema político e jurídico particular. Num contexto globalizado, em contrapartida, verificam-se lacunas ao nível do geral: este é cada vez menos associável à lei ou uma norma claramente definida. Aquilo que, numa primeira abordagem, poderá parecer uma perda para a instituição judicial (como julgar sem regras ou normas gerais?) abre, simultaneamente, a decisão a um universal que se espera transcender as culturas e os sistemas normativos nacionais. E este universal, que não poderia ser, em virtude da pluralidade das nossas democracias, uma norma substancial ou lei transcendente, reveste um caráter essencialmente processual, isto é, relacionado com o próprio funcionamento dos tribunais e com a tarefa específica dos juízes.”. Adiante, questionando o que se entende por mundialização do direito, definem que: “Mais que uma arquitetura mundial rigorosamente ordenada, trata-se de uma espécie de bricolagem normativa a que estamos a assistir. Ao decidirmos observar esta mundialização através do trabalho dos juízes, quisemos fugir ao arrebatamento de uma abordagem demasiado abrangente. O terreno de observação adequado não é tanto a esfera desterritorializada dos intercâmbios, mas sim os próprios homens, as suas preocupações, o seu comércio e as suas novas funções. Não será, aliás, motivo de surpresa ver juízes entregarem-se a tais montagens, pois que estão constitutivamente divididos entre o pacto político, de que são guardiães, e as exigências de justiça, que é seu dever encarnar, entre as ‘forças imaginadoras do direito’ e os Estados. Simultaneamente funcionários públicos e juristas independentes, executores de um direito estatal e participantes na discussão de um direito global, transformadores dos pedidos privados e defensores dos interesses políticos, os juízes desempenham um papel de interligação no seio da mundialização.” ALLARD, Julie; GARAPON, Antoine. Os juízes na mundialização – a nova revolução do direito. Lisboa: instituto Piaget, 2006, p. 107 e 113.

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APLICAÇÃO

1. Justificação e Aplicação

Ao decorrer do presente trabalho, foram expostas algumas teorias que, sem

prejuízo de outras tantas, podem embasar a exposição de argumentos decisórios pelo

poder judiciário quando confrontado, sobretudo, com questões em que a controvérsia se

situe para além da subsunção do fato à norma350. A esta altura, já ficou clara a

insuficiência do método dedutivo (por subsunção351) como forma de resolução de

conflitos notadamente em querelas cujo pano de fundo se revele mais político do que

propriamente jurídico.

350 Neil MacCormick assim explica o que se pode entender por argumentação (ou justificação) por dedução: “Uma argumentação dedutiva é uma argumentação que se propõe a demostrar que uma proposição, a conclusão da argumentação, está implícita em alguma outra proposição ou proposições, as ‘premissas’ da argumentação. Uma argumentação dedutiva será válida se, não importa qual seja o teor das premissas e da conclusão, sua forma for tal que suas premissas de fato impliquem (ou acarretem) a conclusão. Com isso, o que se quer dizer é que seria uma contradição que alguém afirmasse as premissas e ao mesmo tempo negasse a conclusão.” Mais adiante, na sua obra direcionada ao estudo da argumentação jurídica e teoria do direito, demonstra a insuficiência da argumentação por dedução, sugerindo a complementação por diversos outros argumentos, tais como: argumentação por coerência, consequencialista combinado com avaliatório, utilitária, de interesse público, coesão, analogia, autenticidade do desacordo, entre outros. Confira-se o seguinte excerto: “Na situação mais simples, em que todas as partes estão de acordo quanto à nítida aplicabilidade de uma norma clara, o único problema diz respeito a prova dos fatos; e uma vez que se chegue a uma conclusão sob esse aspecto, a decisão é justificada por uma simples argumentação dedutiva. No entanto, a alegada clareza de uma norma é instrinsecamente questionável e podem ser levantados problemas de interpretação ou classificação; e ainda podem ser apresentadas reivindicações em circunstâncias nas quais nenhuma norma preestabelecida pareça determinar a questão – o ‘problema de pertinência’. A justificação de decisões quando esse tipo de problema é levantado deverá ultrapassar ‘normas’ conforme definidas pela tese da validade para princípios do direito. Os princípios do direito decerto autorizam decisões: se não houver nenhum princípio ou analogia pertinente para amparar uma decisão, essa decisão carecerá de justificação jurídica; e, se houver um princípio ou analogia pertinente, a decisão amparada desse modo será uma decisão justificável – mas a adução do princípio ou analogia, embora necessária, não é suficiente para uma completa justificação da decisão. A deliberação que rege diretamente o caso deve ser testada pela argumentação consequencialista bem como pela argumentação a partir da ‘coerência’ envolvida no recurso ao princípio e à analogia. E exatamente da mesma forma pela qual a ausência de qualquer princípio ou analogia de sustentação torna uma decisão impermissível, deve ser aplicado o teste para verificar a coesão. É preciso demonstrar que a deliberação em questão não contradiz nenhuma norma estabelecida do direito, dada uma interpretação ou explicação ‘correta’ de uma norma dessas à luz de princípios e políticas de interesse público.” MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Tradução de Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 26 e 326. 351 O método de subsunção a que se refere o texto é aquele em que se verifica a hipótese fática e o enquadramento à moldura normativa já posta no ordenamento jurídico. Não se descura da existência do método de subsunção genérica, que ademais de regras, açambarca também princípios. Ocorre que a distinção entre regras, normas e princípios é algo deveras controvertido no cenário jurídico e sua análise com acentuada profundidade ultimaria por desviar o foco da argumentação em si e, consequentemente, do objeto do presente trabalho. Opta-se, portanto, por fazer referência à insuficiência da subsunção quando em foco apenas regras objetivas, de antecedente fechado e indefectíveis. Para esclarecimento acerca do método de subsunção genérico, características entre regras e princípios, sua densidade, antecedente aberto e fechado, natureza defectível e conexos, confira-se texto elaborado por Riccardo Guastini, denominado “Os princípios constitucionais como fonte de perplexidade”. In: GUASTINI, Riccardo. Os princípios constitucionais como fonte de perplexidade. In: TEIXEIRA, Anderson Vichinkeksi; OLIVEIRA, Elton Somensi de. Correntes Contemporâneas do pensamento jurídico. São Paulo: Manole, 2010, p. 42-60.

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O presente capítulo se destina a examinar alguns V. Julgados emanados

principalmente das Cortes Superiores – em especial o Superior Tribunal de Justiça e o

Supremo Tribunal Federal – a fim de verificar a natureza da argumentação lançada, se

consentânea ou em paralelo às teorias destacadas anteriormente. A exceção fica por

conta da teoria alusiva à escola econômica do direito, em cuja exposição já foram

analisadas algumas decisões.

Para viabilizar o intento perseguido, algumas temáticas jurídicas serão

pontualmente escolhidas, sendo evidente, contudo, que mesmo no bojo dos segmentos

escolhidos não se poderá abarcar todos os V. Julgados. A pretensão, dessa forma, não é

a de exaurir a análise jurisprudencial dos temas escolhidos, senão apenas contrastar

excerto de determinados votos com o apanágio teórico anteriormente exposto.

2. Argumentação aplicada

2.1. Substancialismo e procedimentalismo352

Consoante anteriormente esposado, o substancialismo reflete corrente

teórica em que prepondera a argumentação fundamentada principalmente no eixo

principiológico e valorativo, justificando-se eventual posicionamento contramajoritário

com base na real intenção do ordenamento por meio de normas de interpretação aberta,

cujo sentido e alcance serão revelados por oportunidade da exegese que se levará a cabo

por oportunidade do julgamento da testilha examinada pelo Julgador.

No procedimentalismo, de outro viés, ressalta-se o direito posto,

esquadrinhado já por meio de uma norma idealizada, concebida e produzida

legitimamente pelos representantes do povo. Ao Judiciário caberia, nesse quadrante,

verificar o acerto formal do processo de produção de normas sem questionar o

conteúdo, porquanto despido de legitimidade democrática para tanto. Há variações e

diversas nuances na teoria353, decerto, mas, por ora, importa apenas rememorar seu mote

352 Não se olvide, a propósito dos termos substancialismo e procedimentalismo, advertências lançada em nota de rodapé em capítulo anterior, no sentido de que: a) a adjetivação das correntes teóricas mencionadas não fora produto dos Autores elencados como seus principais idealizadores; e b) por outro lado, hodiernamente também se afigura questionável o antagonismo supostamente verificado entre ambas as correntes, preferindo-se tratá-las de forma complementar. De qualquer modo, a despeito destas considerações, optou-se pela utilização dos termos tais como lançados no texto, a fim de pontuar bem a diferença argumentativa mencionada nos V. Julgados retratados no capítulo. 353 Habermas, ao tratar das categorias insaturadas do direito, parece introduzir elementos substancialistas mesmo no bojo da teoria procedimentalista. Herbert L.A. Hart, por outro lado, também tratou em seu pós-escrito do livro “O conceito de direito”, em resposta à Dworkin, do positivismo brando, aceitando expressamente que “(...) a norma de reconhecimento pode incorporar, como critérios de validade jurídica,

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principal de sorte a que possa ser verificado e analisado no julgamento dos casos que

abaixo serão expostos.

O primeiro tema a ser tratado tendo como pano de fundo o substancialismo

e procedimentalismo é a liberdade de reunião e manifestação do pensamento, ambos

direitos fundamentais insculpidos no artigo 5° da Carta da República, este no inciso IV

e aquele no inciso XVI354.

Neste tópico, tratar-se-á de dois julgamentos levados a cabo pelo Supremo

Tribunal Federal, o primeiro com V. Aresto proferido em 05 de abril de 1919 e o

segundo mais recentemente, no ano de 2011. Em ambos a vexata quaestio tratada dizia

respeito ao direito de liberdade de manifestação do pensamento e reunião tratados,

respectivamente, pela Constituição de 1891 e 1988.

No primeiro caso, em Habeas Corpus preventivo impetrado por Arthur

Pinto da Rocha em favor de Rui Barbosa e outros, autuado sob o n.º 4.781 e relatado

pelo juiz Edmundo Lins, estando a Corte sob a presidência de H. do Espírito Santo,

buscava-se garantir o direito de livre expressão do então candidato à presidência da

República Rui Barbosa, por meio da reunião, no Estado da Bahia e principalmente na

cidade de São Salvador, sua capital, em comícios, nas praças públicas, ruas, teatros e

quaisquer outros recintos, “ameaçados como se acham todos, de sofrer violências e

impedidos e coagidos como estão, por abusos de autoridade dos poderes públicos do

Estado, representados por sua polícia”355.

a obediência a princípios morais ou valores substantivos (...)” e, ainda, que “(...) nada há em meu livro que sugira que os critérios factuais oferecidos pela norma de reconhecimento devam se restringir às questões de pedigree; podem, ao contrário, constituir restrições substantivas ao conteúdo da legislação, como a Décima Sexta ou a Décima Nona Emendas à Constituição norte-americana, sobre o estabelecimento de religiões ou o direito de voto.” HART, Herbert. L. A.. O conceito de direito. Tradução de Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 325-326. Enfim, apenas para citar dois dos Autores mencionados em capítulo anterior, bem se pode perceber que a afirmação objetiva no sentido de que a corrente procedimentalista desconsidera critérios jurídicos de valoração substantiva não se revela de todo correto. De qualquer sorte, a assertiva fora nestes termos lançada para, como supramencionado em relação ao substancialismo, bem denotar a diferença a ser exposta nas decisões sequencialmente comentadas. 354 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de outubro de 1988. Artigo 5°: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: omissis; IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; (...)XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;”. Todo o conteúdo da constituição encontra-se disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em 12 janeiro 2012. 355 Todo o texto disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico/anexo/HC4781.pdf.> Acesso em 18 julho 2011.

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Aventava-se, em síntese, que:

1.º como é notório, a polícia, por soldados à paisana e desordeiros da pior espécie, dispersou, a tiros de revólver, um comício que, a 25 de março findo, os drs. Miguel Calmon e Pedro Lago e outros pretendiam realizar, na praça Rio Branco, a favor da candidatura do impetrante ao cargo de Presidente da República, sendo certo que essa malta fora aliciada e posta às ordens do chefe de Polícia dr. Alvaro Cóva, do deputado federal Alvaro Villas Boas e de Carlos Seabra, filho do senador J. J. Seabra; 2.º depois dos lutuosos acontecimentos desse dia, todos os telegramas da Bahia, quer particulares, quer dirigidos à imprensa desta capital, traduzem, claramente, a situação de verdadeiro terror pânico em que se acha a população da cidade de S. Salvador, prevendo, para cada momento, as mais graves e trágicas perturbações da ordem, à vista das ameaças que são publicamente feitas aos adversários oposicionistas. Entre esses telegramas, merece especial menção aquele que anuncia o propósito firme em que se acham o senador Seabra e seus adeptos de comparecer às reuniões convocadas pelos amigos do impetrante, afim de apartearem aos oradores e, principalmente, ao próprio candidato da Nação, quando este se referir ao Governo do Estado; 3.º como se vê de um telegrama do dia 26, publicado no Jornal do Comércio desta Capital, o chefe de Polícia, de certo com ciência e aquiescência do governador do Estado, suprimiu as liberdades de reunião e de pensamento, garantidas pelos parágrafos oitavo e duodécimo do art. 72 da Constituição Federal. Eis, de fato, os termos do referido despacho telegráfico: “Em vista da lamentável ocorrência de ontem, o chefe de Polícia, dr. Alvaro Cóva, resolveu proibir o meeting, anunciado para hoje, em que queria falar o dr. Guilherme de Andrade, em favor do senador Epitácio Pessoa, também quaisquer outros que foremanunciados”.

A Corte, deliberando acerca do mérito, considerou que em qualquer assunto

“é livre a manifestação de pensamento pela imprensa ou pela tribuna, sem dependência

de censura, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e pela forma que

a lei determina.”, concedendo, por unanimidade, a ordem pleiteada para o fim de que o

paciente pudesse exercer o direito de reunião, e mais, publicamente, da palavra nas praças,

ruas, teatros e quaisquer recintos, sem obstáculos de natureza alguma, e com segurança de

suas vidas e pessoas, realizando os comícios que “entenderem necessários e convenientes à

propaganda da candidatura do impetrante à sucessão do Presidente da República, sem

censura e sem impedimento de qualquer autoridade local ou da União”.

Note-se que no V. Aresto nenhuma consideração acerca do conteúdo do

comício ou do propósito da reunião foram realizadas. Apenas se aplicou a norma

constitucional que garantia a livre manifestação do pensamento, independentemente de

qualquer colorido político, partidário ou ideológico.

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Apartando-se quase cem anos, o Supremo Tribunal Federal, em 2011, por

oportunidade do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental

autuada sob o n.º 187/DF, em que figurou como relator o Ministro Celso de Mello,

decidiu acerca da constitucionalidade das manifestações públicas favoráveis à

descriminalização da maconha.

O contexto que envolvia o caso era o seguinte: a Procuradoria-Geral da

República noticiou que nos últimos tempos iterativas decisões judiciais, baseando-se na

norma insculpida no artigo 287 do Código Penal e art. 33, §2º da Lei n.º 11.343/06,

vinham proibindo a realização de atos públicos em favor da legalização das drogas. A

título de exemplo, mencionou que a chamada “marcha da maconha” fora vedada, no ano

de 2008, nas cidades de Curitiba (PR), São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Belo

Horizonte (MG), Brasília (DF), Cuiabá (MT), Salvador (BA), João Pessoa (PB) e

Fortaleza (CE). Já no ano de 2009, o evento fora proibido nas cidades de Curitiba (PR),

São Paulo (SP), Juiz de Fora (MG), Goiânia (GO), Salvador (BA), Fortaleza (CE) e

João Pessoa (PB).

A argumentação judicial para tanto perpassava pela premissa de que como a

comercialização e utilização da maconha consubstanciam ilícitos penais, defender

publicamente sua descriminalização equivaleria a fazer apologia da droga, estimulando

o seu consumo356.

Entendeu, todavia, o Ministério Público Federal com assento no Excelso

Pretório que a interpretação oriunda do artigo 287 do Código Penal revela-se em

confronto expresso e patente com a liberdade de expressão e reunião hauridos da Carta

da República, podendo ser extraídos dos artigos 5º, inciso IV, IX e XVI e 220.

A petição inicial cita Dworkin, que, no texto “Why Speech must be free”

lembra que “O Estado insulta os seus cidadãos e nega a eles responsabilidade moral,

quando decreta que não se pode confiar neles para ouvir opiniões que possam persuadi-

los a adotar posições perigosas ou ofensivas.”.

Observa que a liberdade de expressão não pode se prestar a proteger apenas

as ideias aceitas pela maioria, senão também a salvaguardar as opiniões da minoria.

Trata-se, como aventa, de um instituto contramajoritário que garante o direito daqueles

356 A íntegra da petição inicial está disponível em < http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=400195&tipo=TP&descricao=ADPF%2F187>. Acesso em 19 julho 2011.

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que defendem posições minoritárias, que desagradam o governo ou contrariam valores

hegemônicos da sociedade.

Ao final, postulava-se que o Supremo Tribunal Federal, julgando procedente

o pleito encartado na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, efetivasse

interpretação conforme à Constituição da norma inserta no artigo 287 do Código Penal,

de sorte a excluir toda e qualquer exegese que possa ensejar a criminalização da defesa

da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica, inclusive

através de manifestações e eventos públicos.

Note-se, pois, que a questão de fundo discutida na Ação de

Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 187/DF fora idêntica à versada no bojo

do Habeas Corpus n.º 4.781 acima mencionado, em ambos se objetivando a garantia da

liberdade de expressão e reunião para realização de eventos públicos em que seriam

expostas opiniões pessoais dos participantes ativos; no primeiro caso se tratando de

comício em que ideias voltadas à candidatura ao cargo de Presidente da República

seriam aventadas e no segundo expostas publicamente opiniões favoráveis à

descriminalização de drogas.

O Supremo Tribunal Federal, mantendo-se coerente ao posicionamento que

expôs quase um século anteriormente, julgou procedente o pedido contido na Ação de

Descumprimento de Preceito Fundamental, assentando interpretação conforme à

Constituição ao disposto no artigo 284 do Código Penal, para o fim de excluir exegese

contrária à liberdade de expressão e reunião, tal como requerido pela Procuradoria-

Geral da República.

No voto condutor, o Ministro Celso de Mello observou, quanto ao mérito,

algumas premissas dignas de nota. Em primeiro lugar, colocou a lide aos seus estritos e

firmes parâmetros jurídicos, destacando que o feito deflagrado perante a Suprema Corte

não tem por objetivo discutir eventuais propriedades terapêuticas, supostas virtudes

medicinais ou, ainda, possíveis efeitos benéficos resultantes da utilização de drogas ou

de qualquer substância entorpecente específica, mas apenas proteção à liberdade de

reunião e à livre manifestação do pensamento, em cujo núcleo acham-se compreendidos

os direitos de petição, crítica, protesto, discordância e de livre circulação de ideias357.

357 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação de Descumprimento de Preceito fundamental N.° 187/DF. Requerente: Procurador Geral da República. Relator Ministro Celso de Mello. Inteiro teor do voto condutor encontra-se disponível em http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=187&classe=ADPF&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M. Acesso em 19 julho 2011.

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Quanto à liberdade de reunião, assim destacou o Ministro relator:

A liberdade de reunião traduz meio vocacionado ao exercício do direito à livre expressão das idéias, configurando, por isso mesmo, um precioso instrumento de concretização da liberdade de manifestação do pensamento, nela incluído o insuprimível direito de protestar. Impõe-se, desse modo, ao Estado, em uma sociedade estruturada sob a égide de um regime democrático, o dever de respeitar a liberdade de reunião (de que são manifestações expressivas o comício, o desfile, a procissão e a passeata), que constitui prerrogativa essencial dos cidadãos, normalmente temida pelos regimes despóticos ou ditatoriais que não hesitam em golpeá-la, para asfixiar, desde logo, o direito de protesto, de crítica e de discordância daqueles que se opõem à prática autoritária do poder.358

Invocando idêntica prerrogativa doutrinária já outrora aventada por

oportunidade do julgamento do Habeas Corpus acima salientado, observou o Supremo

que quaisquer manifestações públicas, observados os limites de forma preconizados

pela Constituição da República, devem ser salvaguardadas pelo Estado, na medida em

que lícitas e conformes ao exercício da liberdade de reunião.

Em verdade, como salientou, o direito de reunião figura como direito-meio,

atuando na condição de instrumento viabilizador do exercício da liberdade de expressão,

qualificando-se como elemento apto a propiciar a ativa participação da sociedade civil,

mediante exposição de ideias, opiniões, propostas, críticas e reivindicações, no processo

de tomada de decisões em curso nas instâncias de Governo.

Entendendo que a liberdade de reunião e manifestação do pensamento

forma um núcleo complexo e indissociável de liberdades e prerrogativas público-

jurídicas, destaca que:

A praça pública, desse modo, desde que respeitado o direito de reunião, passa a ser o espaço, por excelência, do debate, da persuasão racional, do discurso argumentativo, da transmissão de idéias, da veiculação de opiniões, enfim, a praça ocupada pelo povo converte-se naquele espaço mágico em que as liberdades fluem sem indevidas restrições governamentais.359

Em tópico específico no voto em que analisa a função contramajoritária da

jurisdição constitucional, o Ministro Relator pontuou que as minorias também são

titulares do direito de reunião, assim caracterizando o papel do Supremo Tribunal

Federal na garantia dos correspondentes direitos:

358 Idem, p. 20. 359 Ibidem, p. 22

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O Supremo Tribunal Federal, no desempenho da jurisdição constitucional, tem proferido, muitas vezes, decisões de caráter nitidamente contramajoritário, em clara demonstração de que os julgamentos desta Corte Suprema, quando assim proferidos, objetivam preservar, em gesto de fiel execução dos mandamentos constitucionais, a intangibilidade de direitos, interesses e valores que identificam os grupos minoritários expostos a situações de vulnerabilidade jurídica, social, econômica ou política e que, por efeito de tal condição, tornam-se objeto de intolerância, de perseguição, de discriminação, de injusta exclusão, de repressão e de abuso contra os seus direitos360.

Note-se a atuação substantiva e não meramente formalista ou procedimental

da Corte Suprema quando em foco conflito, ao menos o correlato à liberdade de reunião

e manifestação do pensamento, que tenha como pano de fundo a exegese de direitos

fundamentais exercidos também pelas minorias. A politização de questões jurídicas

embasadas por direitos fundamentais exercidos por qualquer cidadão que se encontre

sob o abrigo da Constituição merece igual proteção.

A vertente adotada pelo Supremo Tribunal Federal se alinha a que vem

sendo observada também em outros países pelas respectivas Cortes Supremas, sempre

sendo ressaltada a função contramajoritária e o caráter substancialista do Poder

Judiciário na defesa dos direitos das minorias.

A título de exemplo se pode relembrar o caso Brandenbug V. Ohio, julgado

pela Suprema Corte norte-americana, em que ficou decidido que a mera manifestação

abstrata do pensamento, sem correlação direta à ameaça iminente dos direitos dos

possíveis ofendidos, não caracteriza crime, na medida em que deve prevalecer o direito

de expressão. Também em Hess v. Indiana, Texas v. Johnson e Snyder v. Phelps a Corte

decidiu que a liberdade de expressão é ampla, abrangendo atos, além da palavra falada

ou escrita361.

Dessa maneira, ao se posicionar no sentido de que a proteção à minoria e

aos grupos vulneráveis qualifica-se como fundamento imprescindível à plena

legitimação material do Estado democrático de Direito, o Supremo Tribunal Federal,

reiterando entendimento externado há quase um século firma convicção acerca da

consagração da liberdade de manifestação do pensamento, seja pela reunião em locais

públicos, seja pelo conteúdo do pensamento em si.

360 Ibidem, p. 23. 361 Todos os casos citados estão esmiuçados no texto “O julgamento político e a liberdade de expressão”, de autoria de Adriana Freisleben de Zanetti, disponível em http://calepino.com.br/~iabnac/IMG/pdf/doc-5121.pdf. Acesso em 19 julho 2011.

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Aliás, observou-se, bem a propósito deste ponto, que:

Nenhuma autoridade pode prescrever o que será ortodoxo em política, ou em outras questões que envolvam temas de natureza filosófica, jurídica, social, ideológica ou confessional, nem estabelecer padrões de conduta cuja observância implique restrição à própria manifestação do pensamento. Isso, porque “o direito de pensar, falar e escrever livremente, sem censura, sem restrições ou sem interferência governamental” representa, conforme adverte HUGO LAFAYETTE BLACK, que integrou a Suprema Corte dos Estados Unidos da América (1937-1971), “o mais precioso privilégio dos

cidadãos...” (“Crença na Constituição”, p. 63, 1970, Forense)362.

Ao final, concluiu-se, como já mencionado anteriormente, no sentido da

procedência do pedido formulado na Arguição de Descumprimento de Preceito

Fundamental, para conferir interpretação conforme à Constituição ao artigo 287 do

Código Penal, na forma supramencionada.

Verifica-se, pois, que o Supremo Tribunal Federal, ao reiterar postura já

ressaltada há quase cem anos, adota posicionamento nitidamente substancialista quando

em tema conflito referente à liberdade de expressão e de reunião, permeado pela

discussão de direitos das minorias e sua correlação aos direitos fundamentais.

Em algumas situações pontuais – tal como o julgamento do Habeas Corpus

n.º 82.424 em que o Supremo Tribunal Federal manteve a condenação de Siegfried

Ellwangler por crime de racismo em decorrência da publicação de livro que expunha

ideias e posicionamentos tidos pelo Tribunal como racistas363 – se poderia cogitar da

adoção, contraditória frente ao posicionamento da Corte, de feição procedimentalista,

dando-se mais relevo ao texto emanado do Parlamento em detrimento dos direitos

fundamentais apregoados e enlevados pela Carta da República.

Todavia, o próprio Ministro Celso de Mello cuidou de afastar tal possível

argumentação, observando no voto condutor que:

É certo que o direito à livre expressão do pensamento não se reveste de caráter absoluto, pois sofre limitações de natureza ética e de caráter jurídico. É por tal razão que a incitação ao ódio público contra qualquer pessoa, povo ou grupo social não está protegida pela cláusula constitucional que assegura a liberdade de expressão. Cabe relembrar, neste ponto, a própria Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), cujo Art. 13, § 5º, exclui, do âmbito de proteção da liberdade de manifestação do pensamento,

362 Ibidem, p. 40. 363 Ibidem, p. 47.

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“toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência”.364

Assim, ao que parece, ao menos no tocante à liberdade de reunião e

manifestação do pensamento, não parece haver dúvida quanto à atuação de índole

substantiva do Supremo Tribunal Federal.

Definida uma política pública pelo Estado – como, no caso, a criminalização

irrestrita de toda substância entorpecente – e materializada concretamente por meio de

dispositivo legal, ainda assim se viabiliza a atuação judicial se o escopo da política

definida vier a afrontar parâmetros constitucionais. Decerto conclusão diversa se teria

de achegar acaso a Corte Suprema tivesse como seu norte o viés procedimental, o que

não parece ser o caso.

2.2. Teoria da argumentação jurídica – enfoque dado por Robert Alexy

Centrando-se no estudo da argumentação jurídica sob o enfoque racional e

partindo da premissa segundo a qual o discurso jurídico é um caso especial do discurso

prático geral, Robert Alexy, como exposto em capítulo anterior, elaborou teoria que

viabiliza a justificação sob os aspectos internos e externos para fins de exposição

objetiva da fundamentação pelo Julgador365.

A ideia é a da definição de critérios aptos a delimitar o rumo percorrido pelo

magistrado para decidir racionalmente alguma questão que lhe seja posta à apreciação.

O núcleo central de sua tese, aliás, como mencionado anteriormente e ora repisado

apenas para rememorar, é a de constatar que a pretensão de correção também se sustenta

no discurso jurídico, assim como no discurso prático geral, de modo que as decisões

possam ser fundamentadas racionalmente no âmbito do ordenamento jurídico vigente.

Dito de outra forma, a teoria do discurso que elabora não ultima por ensejar

conclusão no sentido da correção de qualquer resultado de comunicação linguística, mas

apenas ao resultado do discurso racional, podendo ser justificado interna e

externamente366. A teoria viabiliza, se observados os quadrantes expostos pelo autor,

que mesmo no campo especificamente valorativo a decisão utilize argumentação

racional segura367.

364 Ibidem, p. 49. 365 ALEXY, Robert, op. cit., p. 30-31. 366 Idem, p. 296. 367 Ibidem, p. 297.

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Em realidade, pretende Robert Alexy trazer à tona um novo modelo

discursivo da argumentação jurídica, compreendendo que os atualmente existentes,

conquanto partam de postulados seguros, não viabilizam a efetivação de argumentação

racional.

O modelo deducionista, utilizando parâmetros silogísticos, não satisfaz ao

autor, vez que não elimina os problemas de imprecisão de linguagem, conflitos ou

colisões entre normas, inexistência de normas para resolver determinado caso e a

prolação de decisão contrária à norma em si368.

Como alternativa, o modelo decisionista tampouco resolve a problemática,

de acordo com Alexy. Caracterizado, apesar de iterativas variações, como aquele em

que o juiz decide fundado em boas razões (estas compreendidas como leis e

precedentes) e tomando por base padrões extrajurídicos, compreende que a livre

apreciação do Julgador pode levar a argumentação ao âmbito do ato pessoal de

vontade369.

O modelo hermenêutico talvez seja o que mais se aproxime da

argumentação racional. Isso porque, adotando o conceito-chave do círculo

hermenêutico370, verbera os postulados da reflexividade371, coerência372 e completude373

368 “O verdadeiro modelo deducionista diz que a decisão de qualquer caso jurídico decorre logicamente de normas válidas, juntamente com definições de conceitos jurídicos, os quais eram pressupostos como certos, e de sentenças empíricas. Muitas declarações, a partir dos áureos tempos da jurisprudência conceitual, estão bastante próximas desse modelo. Pode-se duvidar, porém, se isso foi, em qualquer momento, mais do que um programa ou um ideal. É muito fácil provar que essa hipótese está errada. Para tanto, são suficientes as referências à imprecisão da linguagem das normas, à possibilidade de conflitos ou colisões entre normas, ao fato de que possa não haver uma norma para a decisão de um determinado caso e à possibilidade de um desenvolvimento do Direito contrário à formulação literal de uma norma (hipótese que não pode ser totalmente excluída na maioria dos sistemas jurídicos). Por essa razão, o modelo deducionista já não é mais proposto como um modelo global de aplicação do Direito por qualquer pessoa.” ALEXY, Robert. A argumentação jurídica como discurso racional. In: TEIXEIRA, Anderson Vichinkeksi; OLIVEIRA, Elton Somensi de. Correntes Contemporâneas do pensamento jurídico. São Paulo: Manole, 2010, p. 02. 369 “O modelo decisionista é uma reação ao colapso do modelo deducionista. Existe uma vasta gama de diferentes reações. Varia de freirechtlichen (direito livre) até concepções mais realistas ou analíticas. Todas elas compartilham a tese de que o juiz, se estiver fundado em boas razões, como leis e precedentes, deve decidir de acordo com os padrões extrajurídicos. Isso foi muito claramente formulado por Kelsen, o qual afirmava que, em casos difíceis, o juiz, como um legislador, deverá resolver um problema de política jurídica. Ao fazê-lo, ele estará decidindo de acordo com sua livre apreciação. Com isso, sua decisão foi baseada em um ato de vontade. Tudo isso é contrariado pela autocompreensão e pelo ponto de vista interno de formação da decisão judicial. Os juízes tentam, mesmo em casos difíceis, decidir com base em motivos jurídicos e legais suficientes a dar explicações racionais – ou, pelo menos, deveriam fazer isso. Eles suscitam a alegação de que sua decisão, embora possa não ser a única resposta correta, estará, ainda assim, correta.” ALEXY, Robert, op. cit, p. 02-03. 370 Círculo hermenêutico pode ser compreendido, no sentido exposto pelo Autor e embasado em Wolfgang Stegmüller, como estrutura de interpretação e compreensão. Idem, p. 03. 371 Tratando do primeiro postulado, assim menciona: “O primeiro concerne à relação entre o chamado preconceito e o texto. O preconceito é uma hipótese da qual parte o intérprete quando entra em contato com um texto. Essa hipótese expressa a suposição do intérprete ou sua expectativa quanto à solução

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como critérios fundamentais de racionalidade. Ocorre, no entanto, que ainda não

satisfaz completamente, na medida em que “a justeza de uma interpretação só pode ser

provada quando forem determinadas as razões em seu favor e rejeitados os motivos que

a ela se opõem”374, o que não é levado a cabo pelo modelo em foco.

Finalmente, há o modelo coerencial, centrado na ideia de unidade ou

coerência sistêmica. A premissa é a mesma sustentada por Ronald Dworkin por

oportunidade da teoria da integridade e Savigny por ocasião da teoria do conjunto

orgânico, isto é, que “todas as premissas já estão incluídas, ou escondidas, no sistema

jurídico e só precisam ser descobertas.”375. Contra tal ideia, argumenta Robert Alexy no

sentido de que “é possível dizer que o que foi institucionalizado como sistema jurídico

será, necessariamente, sempre incompleto”376.

Tendo, portanto, a argumentação jurídica como o procedimento apto a

viabilizar a prolação de decisões racionais, terá sido alcançado pelo julgador o discurso

correto e necessário a conduzir à imparcialidade, segurança jurídica e democracia. correta para o problema jurídico a ser decidido. Seu conteúdo é determinado pela concepção geral de sociedade que o intérprete possui e por suas experiências profissionais. A imagem do círculo se destina a salientar a interação entre o texto da norma e a hipótese de interpretação. Por um lado, sem uma hipótese de interpretação, o texto da norma não pode sequer ser tido como problemático ou não problemático. Por outro lado, a hipótese de interpretação deve ser analisada com base no texto da norma e com a ajuda das regras da metodologia jurídica. (...) Isso já demonstra que a teoria do círculo hermenêutico não pode substituir uma teoria da argumentação jurídica. (...) Ela direciona a forma de se compreender o problema da contribuição produtiva que o intérprete faz em relação à interpretação, tornando, assim, possível e auxiliando a criação de uma atitude crítica. Portanto, pode-se dizer que o círculo de preconceito corresponde ao postulado da reflexividade, o qual é de grande importância para a teoria da argumentação jurídica.” Ibidem, p. 03-04. 372 “A segunda proposta se refere à relação entre a parte e o todo. Por um lado, para compreender uma norma, é necessário compreender o sistema de normas ao qual ela pertence; de outra sorte, não é possível compreender um sistema de normas sem compreender as normas específicas pelas quais o sistema é constituído. Novamente, encontramos aqui apenas a formulação de um problema, mas nenhum critério é oferecido para sua solução. O problema reside na criação de unidade ou de coerência. Essa é a tarefa da argumentação sistêmica.” Ibidem, p. 04. 373 “A terceira espécie de círculo hermenêutico diz respeito à relação entre a norma e a realidade dos fatos. Normas são abstrato-universais (abstrakt-universell); os fatos aos quais elas estão destinadas a se aplicar são concreto-individuais (konkret-individuell). Enquanto normas contêm poucos elementos, os fatos possuem um número potencialmente ilimitado. Fatos, por um lado, são descritos pelas características presentes no próprio mandamento da norma; por outro lado, as características dos fatos reais podem provocar não o originariamente pretendido, mas demandar que outra norma seja aplicada, uma característica do mandamento de outra norma a ser tomada como mais precisa ou, simplesmente, para ser rejeitada, ou, ainda, uma característica para ser adicionada à descrição dos fatos. (...) Tal como os outros, também este círculo ilustra apenas um problema sem oferecer critérios para sua solução. Pelo menos é claro que o problema só pode ser resolvido se todas as características dos fatos, bem como das normas eventualmente aplicáveis, forem consideradas. O postulado por trás do terceiro círculo, portanto, pode ser chamado de postulado da completude. Ele exige que todos os aspectos relevantes sejam considerados, indicando, assim, um critério fundamental de racionalidade.” Ibidem, p. 04-05. 374 Ibidem, p. 05. 375 Ibidem, p. 06. 376 “Assim como as regras não podem ser aplicadas a si mesmas, não pode um sistema criar completude e coerência por si mesmo. Para fazer isso, pessoas e procedimentos são necessários. O procedimento necessário é aquele da argumentação jurídica.” Ibidem, p. 06.

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Vejamos, pois, se no exemplo mencionado abaixo se pode constatar a

efetivação de algum(ns) do(s) modelo(s) tidos pelo Autor como refratários à

argumentação jurídica racional; e, bem assim, como poderia eventualmente ser

ajustados aos moldes da teoria preconizada por Alexy.

Em decorrência do advento da Lei n.° 8.899 de 29 de junho de 1994, que no

artigo 1° deliberou no sentido de conceder passe livre às pessoas portadoras de

deficiência, comprovadamente carentes, no sistema de transporte coletivo interestadual,

a Associação Brasileira das Empresas de Transporte Intermunicipal, Interestadual e

Internacional de passageiros deflagrou ação direta de inconstitucionalidade aventando a

inconstitucionalidade do regramento positivo em relação ao artigo 195, §5° da

Constituição, na medida em que o benefício teria a natureza de norma de assistência

social (artigo 203) e, como tal, deveria indicar a fonte de custeio, o que não

empreendeu; aos artigos 5°, XXII e 170, eis que lesaria a propriedade privada e

ensejaria uma investida confiscatória. Argumentou, ainda, que o princípio da isonomia

foi atacado por sobrecarregar apenas a categoria econômica das empresas de transporte

com o ônus de custear um benefício assistencial que, pela sua natureza, imporia a

participação de toda a sociedade377.

A demanda foi autuada sob o número 2.649-6 e distribuída à Ministra

Carmen Lúcia que, após o trâmite legal, apresentou o relatório aos demais Ministros e

encaminhou o feito ao Plenário, tendo o julgamento ocorrido em 08/05/2008, restando

assentada a improcedência da postulação inaugural.

Em seu voto condutor, ponderou a Relatora, quanto ao merecimento da

contenda, que não vislumbrava qualquer eiva constitucional no ente normativo. Iniciou

sua exposição considerando o contexto constitucional que permeia os valores sociais da

solidariedade e do bem-estar e o valor supremo da sociedade fraterna e sem

preconceitos. Nesta etapa, observou que devem ser postos em relevo os valores que

norteiam a Constituição e que devem servir de orientação para a correta interpretação e

aplicação das normas constitucionais e entes infraconstitucionais.

377 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.° 2.649-6/DF. Requerente: ABRATI – Associação brasileira de empresas de transporte interestadual, intermunicipal e internacional de passageiros. Requeridos: Presidente da República e o Congresso Nacional. Relatora Ministra Carmen Lúcia, julgada pelo Plenário em 08.05.2008, vencido o Ministro Marco Aurélio Mello. A íntegra do V. Aresto, com todos os votos, debates e extrato da ata de julgamento pode ser encontrada em http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%282649%2ENUME%2E+OU+2649%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos. Acesso em 10 janeiro 2012.

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Note-se que de pronto a Relatora apresentou o critério de justificação

externa (lei constitucional) que utilizaria para assentar e fundamentar as razões que

adiante viria a expor. Valeu-se, para tanto, do preâmbulo da Constituição da República

para extrair os postulados do bem-estar, igualdade e justiça de uma sociedade fraterna,

pluralista e sem preconceitos.

Na sequência de sua exposição, já apresentado o critério de justificação

externa que embasaria sua compreensão acerca do tema conflituoso, destacou que o

Estado haverá de ser convocado, dada a sua formatação constitucional, para conceber e

implementar políticas públicas que atendam aos postulados supramencionados.

Observe-se que a valoração neste momento fora lançada enquanto a compreensão da

Julgadora acerca da função do Estado e como o direito deve se imbricar nesse meandro.

Alexy, em obra que versa especificamente acerca do conceito do direito,

destaca que sob a perspectiva do Julgador enquanto participante do processo de

formação do direito, argumentos de correção, injustiça e princípios devem ser

observados.

Caracterizar-se-á o argumento de correção precisamente quando se tiver por

base que “os sistemas jurídicos como um todo formulam necessariamente a pretensão à

correção”378. Ora, ao que parece, a Ministra Relatora definiu já em momento

propedêutico de seu voto qual critério se utilizaria a título de justificação externa e,

ainda, qual a argumentação (de correção) se valeria como pressuposto da função que

deveria ser exercida pelo Estado, fiscalizada e, se fosse o caso, coercitivamente imposta

pelo direito.

Tomando o argumento em sentido reverso, tal como o fez o Ministro Carlos

Alberto Menezes Direito ao mencionar que seria uma contradictio in adjecto

compreender o conflito sob o parâmetro da isonomia e justamente negá-la sob o

pretexto da desigualdade379, tem-se que a negativa à adoção da justificação externa

378 “O argumento da correção constitui a base dos outros dois argumentos, ou seja, o da injustiça e o dos princípios. Ele afirma que tanto as normas e decisões jurídicas individuais quanto os sistemas jurídicos como um todo formulam necessariamente a pretensão à correção. Sistemas normativos que não formulam explícita ou implicitamente essa pretensão não são sistemas jurídicos.”. Os demais argumentos, da injustiça e de princípios, por ora, não se aplicam a este momento do V. Julgado descrito, mas podem ser consultados na mesma obra e resumidamente classificados como alusivos ao grau insustentável da injustiça, tal como definida na fórmula de Radbruch descrita pelo Autor (argumentos de injustiça); e argumento voltado ao exame do âmbito de abertura do direito positivo. ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo: Martins fontes, 2011, p. 42-84. 379 “(...) Quanto ao princípio da isonomia, evidentemente não existe [violação à Constituição], porque seria até mesmo uma contradictio in adjecto se decretássemos a inconstitucionalidade pelo princípio da isonomia quando se está agasalhando exatamente a desigualdade para proceder à igualdade.”. Idem, p. 31.

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mencionada ultimaria por malsinar a compreensão da função do Estado enquanto

incentivador e promotor de políticas públicas com base na formatação previamente

determinada pelo texto constitucional; e do direito como veículo a garantir a correção

do sistema.

Deste trecho do V. Julgado bem se pode entrever que a aplicação da

estrutura sugerida por Alexy foi efetivada. A decisão contém argumento que lhe

sustenta como base para o raciocínio que desenvolve em relação ao Estado e ao direito

(argumento de correção) e especificou com os valores constitucionais que propôs como

diretivos à função do Estado a justificação externa que viria a constituir sustentáculo da

justificação interna que adiante se pôde observar.

Da justificação interna cuidou a Relatora na sequência. Rememore-se, pois,

que Alexy define a justificação interna como o momento em que se verifica se “a

decisão se segue logicamente das premissas que se expõem como fundamentação.”380.

Este é o momento em que raciocínios silogísticos, simples ou de maior complexidade,

são autorizados381.

Retornando-se às razões de decidir contidas no voto condutor, possível

verificar que após a exposição do critério de justificação externa que utilizaria e do

embasamento fincado no argumento de correção, a Relatora passou a demonstrar o

enquadramento da norma contida no ente questionado à Constituição382 e, mesmo, à

Convenção relativa à Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes383.

380 ALEXY, Robert, op. cit., p. 219. 381 O próprio Autor observa que “Os problemas ligados à justificação interna têm sido amplamente discutidos sob o nome de ‘silogismo jurídico’. Atualmente há uma série de publicações em que se trata dos problemas relativos ao tema, aplicando-se os métodos da lógica moderna.”. Idem, p. 219. 382 Nessa linha, afastou as linhas argumentativas direcionadas à violação da isonomia, livre iniciativa, entre outros fundamentos acessórios e correlatos, como o da ausência de fonte de custeio acaso se verificasse natureza jurídica assistencialista na isenção e o confisco. 383 “Nos termos da Resolução aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU – em 9.12.1975, que proclamou a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes, considera-se assim toda pessoa incapaz se assegurar por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais. As desvantagens física, mental, intelectual ou sensorial limitam as capacidades de seus portadores para a interação e execução das atividades cotidianas, donde a sua dificuldade de efetiva participação na vida da sociedade. (...) em 30.3.2007, o Brasil assinou, na sede da ONU, em Nova York, a Convenção sobre os Direitos das pessoas com Deficiência, bem como seu protocolo facultativo. Os Países signatários dessa Convenção e que vieram a ratificar o Tratado antes mencionado teriam, necessariamente, de implementar medidas para dar efetividade ao que foi ajustado. (...) Foi exatamente com vistas à tutela dessas pessoas que o legislador brasileiro elaborou a Lei n. 8.899/94, antecipando, de alguma forma, o quanto posto naquele Tratado ainda não ratificado pelo Brasil. O exame da matéria revela não haver contrariedade entre o que constitucionalmente estabelecido e as normas legais questionadas.” Idem, p. 12.

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Há, talvez, apenas um pequeno momento na fundamentação em que a

Relatora parece se valer do método decisionista criticado por Robert Alexy. Tal se dá

por oportunidade do exame da constitucionalidade da Lei em tela frente ao princípio da

isonomia. Valendo-se de escrito doutrinário anteriormente produzido, esclareceu a

Relatora que “o princípio jurídico da igualdade é o que a sociedade quer que ele seja.

Não é obra de Deuses nem de formas heterônomas nem de forças exógenas que se

impõem a uma sociedade com explicações místicas.”384. Neste ponto, ao trazer a

compreensão da sociedade à formalização do princípio jurídico da igualdade, poderia

ser cogitada a utilização de padrões extrajurídicos bem afinados ao método

decisionista385.

Seria, então, de se indagar se neste ponto a Relatora teria divorciado sua

exposição da argumentação racional na forma como delineada por Robert Alexy,

utilizando-se não mais de critérios que possam ser racionalmente justificados, mas sim

de valores divorciados do direito.

Analisando-se, todavia, de maneira mais detida a teoria cunhada por Alexy,

pode-se verificar que no âmbito da justificação externa há espaço tanto para argumentos

obtidos de maneira interdisciplinar ao direito (em ciências diversas, como a Economia,

Sociologia, Psicologia, Medicina, Linguística etc), como também para utilização de

fatos singulares ao caso em análise, ações concretas adotadas pelo Estado, motivos dos

agentes, acontecimentos ou estados de coisas. Trata-se da empiria, que, inserida no

contexto da justificação externa, presta-se a trazer a realidade, prática ou científica, ao

exame da refrega386.

384 O excerto integral do voto a que se faz referência, neste ponto, fora lançado da seguinte maneira: “o princípio jurídico da igualdade é o que a sociedade quer que ele seja. Não é obra de Deuses nem de formas heterônomas nem de forças exógenas que se impõem a uma sociedade com explicações místicas. ... A igualdade no direito é arte do homem. Por isso, o princípio jurídico da igualdade é tanto mais legítimo quanto mais próximo estiver o seu conteúdo da idéia de justiça em que a sociedade acredita na pauta da história e do tempo. ... no sistema constitucional fundamentado no princípio da igualdade materialmente cogitado, o serviço público é prestado de forma a assegurar que a prestação daquela atividade considere a condição subjetiva e mesmo a sócio-econômica do usuário, a fim de que não se chegue a uma situação de injustiça em que os mais favorecidos, materialmente, recebam os melhores serviços públicos, enquanto exatamente os menos aquinhoados sejam despojados de seus direitos fundamentais por não poderem contar com o mínimo de estrutura de serviços para o seu bem-estar.” Ibidem, p. 20 385 Não se olvide que no modelo decisionista além das boas razões trazidas pela lei e precedentes, o Julgador ultima por considerar padrões extrajurídicos para emitir seu pronunciamento. Neste ponto, inclusive, é que reside a crítica ao modelo, vez que todas as questões levadas ao Judiciário se tornariam problemas de política jurídica. 386 Esclarece o Autor, a propósito da argumentação empírica, que “(...) algumas formas de argumentação pressupõem enunciados sobre fatos singulares, sobre ações concretas, motivos dos agentes, acontecimentos ou estado de coisas. Em outros se requerem enunciados sobre regularidades das ciências naturais ou das ciências sociais. Também se pode distinguir entre enunciados sobre ações, acontecimentos

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Assim, caracteriza-se, neste ponto do voto, a utilização da empiria para

auxiliar na definição do princípio da igualdade e comunicar a conceituação encontrada

com o caso concreto. Há, em verdade, obtenção de dados empíricos, sociais, para a

definição do princípio que virá a ser considerado paradigma de análise da norma

controvertida.

Ao que se pode depreender ao voto condutor, as razões de decidir

encontram-se justificadas se confrontadas com a teoria da argumentação na forma como

sugerida por Robert Alexy. Não se vislumbrou em qualquer momento da

fundamentação a utilização dos modelos tidos pelo Autor como afrontosos ao

procedimento da argumentação racional.

A decisão, contudo, não foi unânime, tendo o Ministro Marco Aurélio Mello

apresentado voto divergente – ao final voto vencido – nos seguintes termos:

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO: (...) Presidente, o que ocorre? Uma lei, um ato normativo abstrato, que, editada, apanhou situações devidamente formalizadas, situações em curso. Esse ato encerra – e ninguém coloca em dúvida a valia do objetivo buscado – a gratuidade no transporte público. Diz-se que é concedido automaticamente, independentemente dos parâmetros das concessões, o passo livre às pessoas portadoras de deficiência, comprovadamente carentes, no sistema de transporte coletivo interestadual.

Surge situação concreta em que, se o serviço fosse prestado diretamente pela União, não haveria problemas maiores. Mas o serviço é prestado, via concessão, pela iniciativa privada. Penso que não se poderia, considerado até mesmo o que se contém na seção própria, Assistência Social – e a norma encerra espécie de Assistência Social – chegar a tal normatização. Tenho me defrontado com situações idênticas e sempre digo que não cabe ao Estado cumprimentar com chapéu alheio.

Dir-se-á que, ocorrendo desequilíbrio, considerada a relação jurídica mantida, é possível o ajuizamento da ação. Esse argumento não afasta a premissa de meu voto, segundo a qual, no campo da assistência social, há de dar-se atuação direta do Estado que, para tanto, dispõe, como versado no artigo 204 da Constituição Federal, do Orçamento da Seguridade Social. Não está prevista, porque seria mesmo inviável, como é inviável até a comprovação da deficiência e da carência que respaldam o passe livre, a utilização desse mesmo orçamento.

Penso que lei como a presente não se coaduna, com a data vênia daqueles que entendem de forma diversa – e não deixaria de potencializar o objetivo da norma que, como afirmei, é dos mais louváveis –, com a Constituição Federal, motivando até mesmo o surgimento de inúmeros conflitos de interesses.

ou estado de coisas passados, presentes e futuros. Estes enunciados podem corresponder de novo a diversas áreas da ciência, como a Economia, a Sociologia, a Psicologia, a Medicina, a Linguística etc. Isso evidencia que uma teoria que leve em conta a argumentação empírica necessária nas fundamentações jurídicas tem de se ocupar de quase todos os problemas do conhecimento empírico, cuja inclusão na argumentação jurídica só se pode resolver mediante uma cooperação interdisciplinar.” ALEXY, Robert, op. cit., p. 230.

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Peço vênia à Relatora – disse que seria breve em meu voto – para votar julgando procedente o pedido formulado na inicial desta ação direta de inconstitucionalidade.387

Dois argumentos centrais foram utilizados pelo Ministro que apresentou

voto divergente: a) a norma encerra espécie de assistência social e, como tal, não pode

ser imposta, via concessão, à iniciativa privada; b) a assistência social deve se verificar

mediante a atuação direta do Estado, que, para tanto, dispõe até mesmo de orçamento

próprio.

Quanto ao primeiro argumento, apesar de mencionar que a norma “encerra

espécie de Assistência Social”, o Ministro não justificou as razões de seu entendimento.

Não há a exposição de qualquer argumento apto a respaldar a tese que verbera. Apenas

partindo do pressuposto de que a norma apresenta natureza jurídica assistencialista,

concluiu que ao Estado não cabe “cumprimentar com o chapéu alheio”.

Este tipo de formatação argumentativa é típica do modelo decisionista. O

julgador considera o que lhe parece a melhor forma de interpretar determinado conceito

ou definição, sem qualquer justificativa a embasar o entendimento que apresenta; e,

partir do posicionamento que assume tendo como mais consentâneo ao direito, obtém

consequência que virá a resolver a situação conflituosa. Tal se assemelha ao raciocínio

dedutivo, não fosse pelo fato de que uma das premissas – a maior – não espelha

justificadamente o que o ordenamento jurídico pretende, mas o que o Julgador concebe,

sem fundamentação, que ele compreenda.

Podem também ser encontrados traços do modelo hermenêutico ainda na

primeira parte do voto divergente. Ao deixar de mencionar como exatamente pretende

evitar o cumprimento com o chapéu alheio pelo Estado, o Ministro apresenta sua

expectativa quanto à solução correta para o problema jurídico, sugerindo-a, mas não a

fundamentando.

A norma problematiza a situação e é por ela problematizada, sem que

solução alguma seja adotada, senão apenas a expectativa da atuação direta do Estado

para fins de prestação de assistência social. Identifica-se, quanto ao ponto, o postulado

da reflexividade, que até pode servir para a exposição racional, mas se devidamente

conectado com a técnica argumentativa, o que não parece ter se verificado no caso do

voto divergente, que se limitou a expor compreensão predefinida e não justificada.

387 Ibidem, p. 40-41.

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Quanto à segunda parte do voto divergente – em que o Ministro argumenta

que o Estado dispõe de orçamento próprio para a Assistência Social, devendo utilizá-lo

para fins de atuação direta, a fim de que conflitos de interesses decorrentes da aplicação

da norma questionada não se verifiquem –, pode ser identificado o modelo coerencial,

com traços de argumentação consequencialista.

O modelo coerencial, como anteriormente destacado, demanda

interdependência interna entre os conceitos jurídicos, de sorte a que se verifique, com

sua aplicação, a ideia de unidade ou coerência sistêmica388. Geralmente correlacionado

com a argumentação sistemática, a utilização do modelo coerencial revela-se dificultosa

precisamente se associada a argumento consequencialista, tal como o desenvolvido no

voto.

Isso porque a argumentação consequencialista em geral não pode ser

dissociada da argumentação avaliatória389 e, dessa forma, acaso não esteja calcada em

dados fático-probatórios ou parâmetros jurídicos bem consolidados, pode representar

apenas a avaliação individual do Julgador quanto à consequência da aplicação da

norma. Seus valores pessoais, preconceitos, compreensões de mundo e conexos

assumiriam relevância maior do que o próprio sistema, em que pese a argumentação

pareça deixar claro que a sua pretensão de resposta ao questionamento representa a

própria correção do ordenamento em si.

Ao que parece, ao compreender que a aplicação da norma poderia ensejar

inúmeros outros conflitos sem explicitar o motivo de seu raciocínio, o Ministro que

apresentou a divergência adotou postura consequencialista-avaliatória pautada em uma

suposta coerência do sistema, que demandaria, para manter a unidade, o

defenestramento da norma questionada.

Note-se que óbice algum existe na utilização de argumentos

consequencialistas (associados aos avaliatórios), desde que acompanhados por

justificação que demonstre o motivo da preocupação do julgador com a aplicação futura

do preceito. Sem justificação, o rebuço eventualmente apresentado não ultrapassará a 388 ALEXY, Robert, op. cit., 05. 389 Neil MacCormick, em seu livro “Argumentação jurídica e teoria do direito”, trabalha com profundidade a argumentação consequencialista e sua necessária correlação com o viés avaliatório. Observe-se o seguinte excerto: “O que revela a discussão anterior nesta seção deste capítulo é que essas razões de sustentação são de fato expressas em termos de argumentos baseados nas consequências de possíveis deliberações opostas acerca da validade ou obrigatoriedade em determinados contextos genéricos; sendo que a avaliação de consequências pertinentes depende de critérios de ‘justiça’ e de ‘senso comum’; e, acima de tudo, da referência a princípios constitucionais básicos que por sua vez recorrem a pressupostos fundamentais sobre filosofia política e a correta distribuição da autoridade entre os órgãos superiores do Estado”. MACCORMICK, Neil, op. cit., p. 178.

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fronteira da mera opinião pessoal, despida de critérios racionais-científicos que o

sustente.

No common law, a argumentação consequencialista-avaliatória vem

geralmente acompanhada pela compreensão do Julgador acerca do senso comum,

sentido de justiça, interpretação de princípios jurídicos e da política do interesse

público390. Tal é plenamente justificável quando em foco sistema em que o material

legislativo positivo não se afigura vasto, dependendo a definição do direito mais dos

precedentes – que resultam das opiniões dos Julgadores acerca de precedentes

anteriores, seu enquadramento, compulsória observância, argumentos lançados a título

de ratio decidendi ou obter dictum – do que propriamente de textos emanados do poder

legislativo.

No sistema da civil law, no entanto, noções como senso comum, sentimento

de justiça ou a política do interesse público ressoam mais autoritárias (porquanto

oriundas de argumentos de autoridade) do que esclarecedoras se utilizadas como

fundamentação, só por si e desapegadas a quaisquer outros elementos de justificação,

nas decisões judiciais de qualquer instância.

Este parece ter sido o viés adotado por oportunidade do voto divergente,

maculando-o enquanto formalização de argumentação racional apta a justificar as razões

pelas quais chegou à conclusão que expôs.

Durante os debates, entrementes, também o mesmo vício se pôde entrever.

Expondo seu voto, o Ministro Gilmar Mendes observou, debatendo com o Ministro

Cezar Peluso, que a Lei fora editada em 1994, tendo a ação sido proposta apenas em

2002, sendo certo que até o julgamento, que se deu em 08/05/2008, não constava que

empresa alguma tivesse falido. O Ministro Peluso chega a afirmar que “nenhuma foi à

falência e nem irá por esse motivo.” Esse seria, portanto, mais um motivo a consagrar a

constitucionalidade da norma391.

Novamente, a utilização do modelo decisionista é evidente. Sem qualquer

menção a dados empíricos, factuais, jurídicos, econômicos ou sociais, compreendeu o

Ministro votante e o seu par que nenhuma empresa foi à falência ou viria a falir pela

aplicação da lei. A argumentação é nitidamente baseada em senso comum e voltada à

390 Idem, p. 192. 391 O excerto final do voto do Ministro Gilmar Mendes e o debate com o Ministro Peluso podem igualmente ser verificados em http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%282649%2ENUME%2E+OU+2649%2EACMS%2E%29&base. Acesso em 10 janeiro 2012.

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compreensão do interesse público – sob o aspecto assistencial – pelos Ministros. A

argumentação consequencialista, porquanto divorciada de quaisquer elementos

concretos que a embasem, neste caso serviu apenas como uma constatação individual

quanto à inexistência de falência de empresas pela aplicação da lei; e no exercício de

livre futurologia quanto à impossibilidade futura de falência de empresas pelo mesmo

motivo.

Não houve argumentação, senão apenas a colocação do senso individual do

julgador acerca do ponto. O confronto entre a lei e o paradigma constitucional se

deslocou indevidamente da Constituição para a avaliação consequencialista lastreada no

senso de justiça, interesse público e melhor razão externada. Tal não atende,

evidentemente, a teoria da argumentação jurídica.

Em conclusão, tem-se que o voto condutor observou parâmetros

argumentativos caros à teoria preconizada por Robert Alexy, não tendo o mesmo sido

verificado no tocante ao voto divergente (ao final vencido) e durante os debates, por

oportunidade da prolação do voto do Ministro Gilmar Mendes.

Esta, todavia, fora a abordagem que se levou a cabo em relação ao

julgamento mencionado, o que não quer dizer que revele tendência do Supremo

Tribunal Federal quanto à utilização (ou não) da teoria da argumentação jurídica sob o

enfoque dado por Robert Alexy, ou, ainda, que este ou aquele Ministro tenda a julgar de

forma a observá-la ou não. O recorte foi pontual e a análise específica ao caso aludido.

2.3. Teoria da argumentação jurídica no direito e na moral – enfoque

dado por Klaus Günther

Apenas para contextualizar a teoria sustentada por Klaus Günther e, na

sequência, correlacioná-la ao caso analisado, impõe-se rememorar que pretende

empreender diferenciação entre os discursos de justificação e aplicação das normas.

Aquela procura constatar a validade do enunciado, obtido, principalmente, através do

princípio da universalidade em caráter fraco. Esta, de outro giro, circunscreve-se às

situações que emanam do caso concreto e, portanto, vincula-se ao princípio da

universalidade em caráter forte, de moldes a viabilizar a imparcialidade e coerência que

se espera do ordenamento.392

392 Günther, Klaus, op. cit., p. 268. As noções de universalidade em caráter fraco e forte já foram anteriormente explicadas, de modo que na presente oportunidade apenas a elas se faz menção.

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O autor não tem como mote a diferenciação entre regras e princípios

(embora não a afaste), preferindo investigar, para fins de atender à racionalidade exigida

pela teoria da argumentação, qual será a norma definitiva a ser aplicada no caso

concreto, objeto da controvérsia, ainda que se verifiquem normas prima facie válidas e

legítimas aplicáveis ao contexto.

O discurso de justificação encontra-se atrelado ao princípio da

universalidade em caráter fraco e, bem por isso, satisfaz-se com a previsibilidade da

aceitação das consequências e efeitos colaterais decorrentes da observância geral da

norma: “A validade se refere apenas à questão se, como regra, a norma está dentro dos

nossos interesses comuns.”393

A aplicação, por outro lado, objetiva a consagração do melhor argumento,

sendo nesta oportunidade que se tem em consideração os efeitos colaterais não

antecipados ou momentaneamente desconsiderados por ocasião do discurso de

justificação. Discute-se a situação individual controvertida com todas as suas

características e singularidades, a fim de que se possam determinar todos os possíveis

efeitos da norma.

A ideia é verificar qual a norma aplicável ao caso concreto diante das

especificidades que se apresentam na espécie conflituosa, refutando-se todas as demais

que, prima facie, revelaram-se aparentemente aplicáveis394. O princípio universalista em

caráter forte, garantidor da universalidade e imparcialidade em caráter semântico,

assegurará a ponderação entre as normas prima facie aplicáveis e a definitiva que virá a

ser revelada para determinado caso. Eventual conflito não partirá do caso concreto para

encontrar a norma adequada; mas, ao revés da verificação de adequabilidade da norma

de maneira prévia, de modo que após a sua definição, caberá à situação.

Exemplifiquemos a dinâmica da teoria sustentada por Klaus Günther por

meio de um exemplo concreto. Trata-se de agravo regimental interposto com o fito de

atacar decisão proferida no âmbito de um agravo de instrumento interposto junto ao

Supremo Tribunal Federal em decorrência da negativa de admissibilidade, em segundo

grau de jurisdição, de um recurso extraordinário395. O recurso de agravo de instrumento

393 Idem, p. 31. 394 Ibidem, p. 197. A diferenciação existente entre normas prima facie e definitivas também já fora exposta, de modo que se evitará retornar à temática. 395 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com agravo de instrumento n.° 639.337/SP. Agravante: Município de São Paulo. Agravado: Ministério Público do Estado de São Paulo. Relator Ministro Celso de Mello, julgamento, perante a Segunda Turma, em 23

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foi distribuído ao Ministro Celso de Mello que conheceu do agravo para,

monocraticamente, negar seguimento ao recurso extraordinário, gerando, em

consequência, a decisão que restou atacada pelo agravo regimental apreciado pela

Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal em 23 de agosto de 2011, presidida, na

ocasião, pelo Ministro Celso de Mello, tendo como pares, votantes, os Ministros Gilmar

Mendes e Ricardo Lewandowski.

Discutia-se o acerto de V. Julgado oriundo do Tribunal de Justiça do Estado

de São Paulo que confirmou sentença de primeiro grau proferida em ação civil pública

proposta com o objetivo de compelir o Município de São Paulo a matricular crianças em

unidades de ensino infantil próximas de sua residência ou do endereço do trabalho de

seus responsáveis legais.

O V. Acórdão lavrado pelo Tribunal de origem fora assim ementado:

APELAÇÃO – Reexame necessário – Ação Civil Pública – Sentença que obriga o Município de São Paulo a matricular crianças em unidades de ensino infantil próximas de sua residência – Cabimento – Direito Fundamental, líquido e certo – Aplicação dos artigos 208 da Constituição da República e 54 do Estatuto da Criança e do Adolescente – Inocorrência de violação aos princípios constitucionais da Separação e Independência dos Poderes da República – Necessidade de harmonia com o princípio da legalidade e da inafastabilidade do controle judicial (arts. 5°, XXXV e 37 da Constituição Federal) – Princípio da Isonomia que impõe o respeito ao direito de todas as crianças – Normas constitucionais de eficácia plena – Direito universal a ser assegurado a qualquer criança que dele necessite – Obrigação do Município reconhecida no artigo 211 da Constituição Federal – Prova suficiente a autorizar o acolhimento do pedido – Multa cabível e proporcional – Não provimento do recurso e do reexame necessário.396

O Supremo Tribunal Federal, por meio do voto condutor elaborado pelo

Ministro Celso de Mello, confirmou a decisão proferida pelo Tribunal de origem,

definindo a validade da sentença enquanto norma a reger o caso analisado – visto que

não se cogitava da existência de norma positiva que impusesse ao Município a

obrigação que ao final o poder judiciário veio a empreender – e, na sequência,

deliberando quanto à aplicação da norma já definida como válida em detrimento de

diversas outras, também válidas, que poderiam ter influência decisiva no contexto do

caso examinado.

Vejamos, por parte, como o raciocínio do Ministro Relator denota harmonia

da decisão proferida à teoria preconizada por Klaus Günther.

de agosto de 2011. A íntegra do voto pode ser livremente consultada em http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp. Acesso em 14 janeiro 2012. 396 Idem, p. 4.

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Como anteriormente já mencionado, em primeira etapa no processo de

argumentação racional deve o Julgador, considerando a teoria em foco, aplicar o

princípio da universalidade em caráter fraco, isto é, examinar a validade de uma norma

independentemente das situações da sua aplicação. Nesse meandro, o princípio U

funcionará como um “princípio-ponte”, capaz de “estabelecer uma ponte entre a norma

e os interesses de todos os implicados, de modo que a validade da norma pode ser

condicionada à concordância de todos os implicados”397.

No exemplo que se trouxe à análise, inexistia lei Municipal que dispusesse

acerca da obrigatoriedade de o Município de São Paulo garantir a matrícula de crianças

em unidades de ensino infantil próximas de sua residência ou do endereço de trabalho

de seus responsáveis legais. Tampouco a Constituição Estadual ou Federal cogitavam

especificamente acerca do ponto.

Bem por isso foi proposta a ação civil pública, que ao final recebeu sentença

criando, ainda que na ausência de direito posto, a obrigatoriedade mencionada e

cominando multa diária ao ente Público para o caso de descumprimento ao ordenado.

Dessa forma, a sentença fora tida, no contexto do julgamento, como o

elemento a ser questionado no tocante ao paradigma constitucional. A apreciação do

Supremo Tribunal Federal ultimou por verificar a legalidade (rectius:

constitucionalidade) do comando exsurgente da sentença com base nos ditames e

parâmetros constitucionais. Esta primeira parte da análise levada a cabo no voto

condutor é bem clara e se aparta de modo bem evidente da segunda parte, atinente não

mais à justificação legal do comando questionado, mas sim a definição da hipótese de

aplicação.

Independentemente da situação de aplicação, portanto, considerou o

Ministro que o V. Julgado se sustenta quanto à validade constitucional por estar

embasado no direito à educação, constitucionalmente assegurado e qualificado como

direito de segunda geração ou dimensão, capaz de justificar a imposição ao Poder

Público de um dever positivo, consistente em se desincumbir a contento da obrigação

traçada pela Constituição da República398.

397 GÜNTHER, Klaus, op. cit., p. 23. 398 “É preciso assinalar, neste ponto, por relevante, que o direito à educação – que representa prerrogativa constitucional deferida a todos (CF, art. 205), notadamente às crianças (CF, arts. 208, IV, e 227, ‘caput’) – qualifica-se como um dos direitos sociais mais expressivos, subsumindo-se à noção e categoria dos direitos de segunda geração ou dimensão (RTJ 164/158-161), cujo adimplemento impõe, ao Poder Público, a satisfação de um dever de prestação positiva, consistente num ‘facere’, pois o Estado dele só se desincumbirá criando condições objetivas que propiciem, aos titulares desse mesmo

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Observou que o significado do valor constitucional do direito à educação

infantil torna possível determinar sua correspondente efetivação prática ao Poder

Público, não se admitindo omissões legislativas ou administrativas, que viriam em

desfavor do comando haurido da Lei Maior399. Tampouco se pode cogitar em atrelar a

execução dos direitos fundamentais às políticas de conveniência e oportunidade próprias

da Administração Pública, devendo o Poder Judiciário atuar de maneira positiva a

salvaguardar a concretização da Constituição400.

Expondo tais fundamentos, o Relator conclui que o V. Julgado questionado

não apresenta qualquer óbice diante do paradigma constitucional. Não lhe é refratário,

direito, o acesso pleno ao sistema educacional, inclusive ao atendimento, em creche e pré-escola ‘às crianças até 5 (cinco) anos de idade (CF, art. 208, IV, na redação dada pela EC n.° 53/2006”. Idem, p. 05-06, com grifos no original. Note-se que inexiste menção a caso concreto ou a correta aplicação, mas apenas ao contraste constitucional do comando judicial questionado com o parâmetro de referência, isto é, a Constituição da República. 399 “O alto significado social e o irrecusável valor constitucional de que se reveste o direito à educação infantil – ainda mais se considerado em face do dever que incumbe, ao Poder Público, de torná-lo real, mediante concreta efetivação da garantia de atendimento, em creche e pré-escola, às crianças de até cinco anos de idade (CF, art. 208, IV) – não podem ser menosprezados pelo Estado, “obrigado a proporcionar a concretização da educação infantil em sua área de competência (...), sob pena de grave e injusta frustração de um inafastável compromisso institucional, que tem, no aparelho estatal, o seu precípuo destinatário”. Mais adiante, observa que “O objetivo perseguido pelo legislador constituinte, em tema de educação infantil, especialmente se reconhecido que a Lei Fundamental da República delineou, nessa matéria, um nítido programa a ser implementado mediante adoção de políticas públicas consequentes e responsáveis – notadamente aquelas que visem a fazer cessar, em favor da infância carente, a injusta situação de exclusão social e de desigual acesso às oportunidades de atendimento em creche e pré-escola –, traduz meta cuja não realização qualificar-se-á como censurável situação de inconstitucionalidade por omissão imputável ao Poder Público.”. Ainda quanto ao ponto, destacou que “(...) o Supremo Tribunal Federal, considerada a dimensão política da jurisdição constitucional outorgada a esta Corte, não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais, que se identificam – enquanto direitos de segunda geração ou dimensão (como o direito à educação, p. ex.) – com as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161, Rel. Min. CELSO DE MELLO). É que, se assim não for, restarão comprometidas a integridade e a eficácia da própria Constituição, por efeito de violação negativa do estatuto constitucional motivada por inaceitável inércia governamental no adimplemento de prestações positivas impostas ao Poder Público, consoante já advertiu, em tema de inconstitucionalidade por omissão, por mais de uma vez (RTJ 175/1212-1213, Rel. Min. CELSO DE MELLO), o Supremo Tribunal Federal:” Ibidem, p. 08-10. 400 Em tema de direitos fundamentais não se pode cogitar da aplicação da doutrina das questões políticas, como bem salientou o Relator, ao destacar que “É certo – tal como observei no exame da ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO (Informativo/STF n.° 345/2004) – que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário – e nas desta Suprema Corte, em especial – a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (...), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes legislativo e Executivo.” Ibidem, p. 11. Danielle Anne Pamplona, em tópico de seu livro “O Supremo Tribunal Federal e a decisão de questões políticas – a postura do juiz” em que analisa especificamente a doutrina das questões políticas observa: “(...) há que se reconhecer que a atuação do Poder Judiciário no Brasil está bastante alargada, em especial, porque o texto constitucional dita a inafastabilidade do Judiciário quando estiver sendo ameaçado ou lesionado direito, e ainda porque vários são os princípios que devem atender aos poderes Legislativo e Executivo em seu atuar precípuo.”. Adiante, conclui que “(...) no Brasil, mesmo com a importação da doutrina, sempre que houver um direito fundamental envolvido, o Poder Judiciário tem o poder-dever de se manifestar.” PAMPLONA, Danielle Anne. O Supremo Tribunal Federal e a decisão de questões políticas – A postura do juiz. Curitiba: Juruá editora, 2011, p. 140-145.

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paralelo ou afrontoso, encontrando, bem ao revés, embasamento que lhe sustente

enquanto constitucionalmente válido e apto a embasar a atuação positiva do poder

judiciário quando em pauta eventual omissão administrativa ou legislativa que possa

frustrar ou de algum modo diminuir a eficácia do direito fundamental que figura como

cerne da controvérsia.

Para alcançar tal fundamentação, não necessitou o Relator investigar as

peculiaridades do caso concreto, ou, tampouco, verificar a necessidade de ponderar

princípios ou utilizar cânones interpretativos, o que, em todos os casos, seria objeto da

segunda etapa, de aplicação da norma. Neste momento, de justificação, assentou-se a

validade da norma – retratada, na espécie, por uma decisão judicial e não texto

legislativo positivo –, embasando-a em argumentos de índole constitucional que

denotam de maneira evidente a aplicação do princípio da universalidade em caráter

fraco, já que busca levar em conta os interesses de todos os possíveis afetados pela

norma em discussão, isto é, as crianças que seriam beneficiadas com a norma estatuída

no V. Julgado.

O momento da virada argumentativa utilizada pelo Relator no voto condutor

para, definida a validade da norma (a decisão judicial, no caso), empreender análise

acerca da aplicação, fora bem traduzido pela seguinte passagem, em que expressamente

indica a alusão ao caso concreto:

Impende assinalar, contudo, que tal incumbência poderá atribuir-se, embora excepcionalmente, ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídico que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, como sucede na espécie ora em exame.401

A partir deste ponto, o Relator não mais retorna ao exame da questão da

validade constitucional da decisão questionada. Isso já se encontra definido e

suficientemente esclarecido à conta dos argumentos anteriormente expostos. Na

presente etapa, o voto condutor examina, com o condão de definir qual a regra aplicável

ao caso, aspectos referentes às possíveis consequências da atuação positiva do Poder

401 Ibidem, p. 12.

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Judiciário (na teoria do autor tratada como reações colaterais402), ademais de

empreender juízo de ponderação entre as possíveis regras em foco.

Observemos atentamente cada uma destas etapas.

Quanto à reação colateral da aplicação da norma tida por valida, destacou o

Relator que os Municípios (à semelhança das demais entidades políticas) não podem se

eximir do cumprimento do mandato constitucional juridicamente vinculante inserido no

artigo 208 da Constituição da República, que, no tocante à espécie analisada, constitui

fator de limitação da discricionariedade político-administrativa do Poder Público403.

Destacou que inexiste, in hypothesis, intrusão indevida do Poder judiciário, com a

decisão objurgada, no plexo constitucional de atribuição de funções aos demais Poderes

da República.

Se em primeiro momento o exame realizado pelo Relator no tocante à

competência outorgada ao Poder Judiciário nesta etapa parece coincidir com semelhante

análise realizada por oportunidade da definição da validade constitucional da regra

emanada no decisum, tal não merece prosperar. Isso porque inicialmente fez-se verificar

se existia a possibilidade constitucional de o poder judiciário agir como agiu na decisão

vergastada. Assentou-se, pois, que sim, desde configurada omissão inconstitucional por

parte dos demais Poderes. Nenhuma referência foi feita ao caso concreto, ficando esta

análise direcionada a segunda etapa argumentativa, de aplicação, ocasião em que fora

avaliado se, no contexto do caso concreto, a atuação do Poder judiciário poderia ser

considerada como afrontosa à independência e harmonia dos Poderes; ou se, agindo

como procedeu, definiu realmente o órgão investido na função judicante a regra a ser

aplicada ao caso em apreço, com base no melhor argumento que, ao final, prevaleceu.

402 Não se olvide que o discurso de aplicação tem como objetivo a prevalência do melhor argumento, sendo utilizado como maneira de complementar a norma válida levando em consideração os efeitos colaterais não antecipados ou momentaneamente desconsiderados por ocasião do discurso de justificação. No caso, a aplicação da norma tida por válida pode gerar efeito colateral consistente na intromissão do Poder Judiciário no âmbito de atuação dos demais Poderes constituídos, em paralelo à Constituição da República. Esta é a situação analisada nesta etapa, porquanto já definida a validade constitucional da atuação do Poder Judiciário de maneira abstrata quando for identificada omissão inconstitucional por parte dos demais Poderes. Fica bem clara, neste ponto, a diferença entre justificação e aplicação, nos moldes sugeridos por Klaus Günther. 403 “Tenho para mim, desse modo, presente tal contexto, que os Municípios (à semelhança das demais entidades políticas) não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208 da Constituição, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa do Poder Público, cujas opções, tratando-se de proteção à criança e ao adolescente, não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. Entendo, por isso mesmo, que se revela inacolhível a pretensão recursal deduzida pelo Município de São Paulo, notadamente em face da jurisprudência que se formou, no Supremo Tribunal Federal, sobre a matéria ora em análise.” Ibidem, p. 12.

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Assim, conquanto pareçam semelhantes as ponderações do Relator em

relação a atuação do poder judiciário no pouco sólido terreno da independência e

harmonia na atuação dos Poderes constituídos, estão claramente separadas quanto aos

momentos argumentativos, tendo sido preambularmente dado enfoque à justificação e,

na sequência, à aplicação.

Corroborando-se o que ora se expôs, verifique-se a seguinte passagem, em

que no voto fica indene de dúvida que a pretensão do Município de São Paulo não se

coaduna com a regra estabelecida pela decisão objeto de ataque recursal:

Ao contrário do que pretende o Município ora recorrente, as normas programáticas vinculam e obrigam os seus destinatários, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.404

Com intento de definir a regra de aplicação correta ao caso em tema,

afastou-se a pretensão da Municipalidade no sentido de que a omissão no caso concreto

não legitimaria a atuação do Poder judiciário.

Na sequência, o Relator analisou o juízo de ponderação empreendido pela

decisão entre o direito à educação como definido e esquadrinhado no V. Julgado

emanado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e a vinculação orçamentária

do ente público, traduzida pela aplicação da cláusula da reserva do possível.

Rememore-se que a tese sustentada por Klaus Günther não afasta a

possibilidade de ponderação, ainda que entre princípios de estatura constitucional.

Situando a ponderação no âmbito da aplicação, considera que os princípios não podem

ser desconsiderados405. Dessa forma, a análise de todos os sinais característicos

normativamente relevantes de uma situação deve também estar vinculada a uma

ponderação de princípios e procedimentos que possibilitem uma consideração integral e

adequada de todos os aspectos situacionais envolvidos no contexto do caso, de moldes a

que a norma definitiva possa enfim ser elaborada406.

404 Ibidem, p. 19. 405 A análise acerca da possibilidade de ponderação entre princípios e o motivo pelo qual a teoria de Klaus Günther se diferencia, quanto a este ponto, da preconizada por Robert Alexy, está contida no segundo capítulo deste trabalho. Dado que já exposta a temática sob o aspecto teórico, opta-se na presente etapa apenas por fazer referência ao que já fora mencionado, a fim de que as atenções possam ser focadas no V. Julgado exposto, contrastada com a teoria alhures examinada. 406 GÜNTHER, Klaus, op. cit., p. 262.

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Assim obrou o Relator, verificando se a cláusula da reserva do possível

poderia, eventualmente, constituir óbice à formalização da regra aplicada407. O seguinte

excerto demonstra a ideia primada no voto condutor:

Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais, além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará ilícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Informativo/STF n.° 345/2004).408

Sopesando a obrigação imposta à Municipalidade e a cláusula da reserva do

possível, compreendeu prevalecer aquela, garantidora, mesmo no âmbito das escolhas

trágicas, do mínimo existencial do cidadão409.

A conclusão ao raciocínio fora assim exposta:

Cabe ter presente, bem por isso, consideradas as dificuldades que podem derivar da escassez de recursos – com a resultante necessidade de o Poder Público ter de realizar as denominadas “escolhas trágicas” (em virtude das quais alguns direitos, interesses e valores serão priorizados “com sacrifício” de outros) –, o fato de que, embora invocável como parâmetro a ser observado pela decisão judicial, a cláusula da reserva do possível encontrará, sempre, insuperável limitação na exigência constitucional de preservação do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade

407 “Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à ‘reserva do possível’ (...), notadamente quando se tratar de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas.” Idem, p. 29. 408 Ibidem, p. 20-21. 409 “Não se desconhece que a destinação de recursos públicos, sempre tão dramaticamente escassos, fez instaurar situações de conflito, quer com a execução de políticas públicas definidas no texto constitucional, quer, também, com a própria implementação de direitos sociais assegurados pela Constituição da República, daí resultando contextos de antagonismo que impõem, ao Estado, o encargo de superá-los mediante opções por determinados valores, em detrimento de outros igualmente relevantes, compelindo, o Poder Público, em face dessa relação dilemática, causada pela insuficiência de disponibilidade financeira e orçamentária, a proceder a verdadeiras escolhas trágicas (...) em decisão governamental cujo parâmetro, fundado na dignidade da pessoa humana, deverá ter em perspectiva a intangibilidade do mínimo existencial, em ordem a conferir real efetividade às normas programáticas positivadas na própria Lei Fundamental.” Ibidem, p. 22-23.

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da pessoa humana, tal como tem sido reconhecido pela jurisprudência constitucional desta Suprema Corte.410

O mínimo existencial, dessa sorte, deve prevalecer porque em conexão com

a dignidade da pessoa humana, considerada pelo Relator, nos termos da jurisprudência

consolidada da Corte (este também um parâmetro de aplicação compreendido por Klaus

Günther411), como “um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem

republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional

positivo.”412

A ponderação levada a cabo fora realizada tendo por base parâmetros

jurisprudenciais e dogmáticos, ficando situada no ambiente da aplicação das normas.

Finalmente, o Relator analisou o último dos possíveis óbices

constitucionais, segundo sua óptica, à definição da correta norma a ser aplicada ao caso

examinado. O próprio Relator, aliás, observou que “para além de todas as

considerações que venho de fazer, há, ainda, Senhores Ministros, um outro parâmetro

constitucional que merece ser invocado.”413, o que se traduz, sob o âmbito da teoria de

Klaus Günther, como o esgotamento normativo que exige para fins de aplicação da

norma válida414.

410 Ibidem, p. 25. 411 Lembre-se das regras de uso lexical, denominação com a qual concordam Robert Alexy e Klaus Günther e que define a aplicação da norma diante de um sinal característico que a situação apresenta e, ainda, levando em conta cânones de interpretação, pré-julgamentos (jurisprudência) ou argumentos dogmáticos. A expressão foi melhor explicada no contexto da exposição da teoria, consoante segundo capítulo deste trabalho. 412 “Não constitui demasia acentuar, por oportuno, que o princípio da dignidade da pessoa humana representa – considerada a centralidade desse postulado essencial (CF, art. 1°, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo, tal como tem reconhecido a jurisprudência desta Suprema Corte, cujas decisões, no ponto, refletem, com precisão, o próprio magistério da doutrina (...) A noção de mínimo existencial, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1°, III, e art. 3°, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança. (...) Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da reserva do possível – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.” Ibidem, p. 26-28. 413 Ibidem, p. 32. 414 Relembre-se que o esgotamento normativo figura como um dos requisitos de aplicação das normas, exigidos por Klaus Günther para fins de análise da descrição situacional completa, com suas variantes, relevância e sinais característicos. O capítulo segundo expõe a compreensão do Autor acerca do tema,

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Trata-se do princípio da proibição do retrocesso, que, compreendido no voto

como “dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional

(como o direito à educação e à saúde, p. ex.)”, impede que “os níveis de concretização

dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou

suprimidos pelo Estado.”, apontando o Relator como exceção apenas a “hipótese – de

todo inocorrente na espécie – em que políticas compensatórias venham a ser

implementadas pelas instâncias governamentais.”415.

Ao tratar do que compreendeu como sendo o último dos possíveis óbices

constitucionais, elencar a exceção e expressamente mencionar que o caso concreto a ela

não se amolda, o Relator esgotou o âmbito normativo que poderia ensejar dúvida quanto

à aplicação da norma correta à descrição situacional que se verificou.

Enfim, não fora expressamente mencionado no voto com base em qual

teoria fundamentou a argumentação que lançou, mas a análise dos pontos supra-

aduzidos parece conduzir ao entendimento de que na forma como expostas as razões de

decidir, a teoria sustentada por Klaus Günther parece ter sido inequivocamente

observada. Há divisão entre justificação e aplicação da norma compreendida, ao final,

como a mais consentânea ao direito na situação mencionada, análise de parâmetros

doutrinários, jurisprudenciais, ademais das sugestões apresentadas pelo autor quanto à

argumentação racional.

Vejamos, na sequência, se a idêntica conclusão se pode achegar quando em

foco a teoria dos princípios constitucionais neutros e a jurisprudência pátria.

2.4. Teoria dos princípios constitucionais neutros

A ideia de princípios constitucionais que funcionem como uma espécie de

marco jurídico alheio a interesses e critérios de conveniência caracteriza a teoria dos

princípios constitucionais neutros. Postula-se que com a utilização de parâmetros

jurídicos previstos na Constituição livres de coloração partidária, interesses de classes,

econômicos e políticos, a argumentação lançada pelo Poder Judiciário não ensejaria

violação à moldura normativa já delineada pelo sistema, ou, por outro lado, viés

antidemocrático.

sendo neste momento apenas feito alusão ao requisito a fim de não prejudicar a compreensão da ideia preconizada no voto condutor. 415 Ibidem, p. 33.

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Os juízes devem desempenhar a tarefa de julgar livres de pressões externas

– as acima mencionadas – e internas, do próprio ego, evitando impor à sociedade os

efeitos de decisões pautadas, sobretudo, por critérios individuais de justiça, bem-estar,

utilidade, eficiência ou senso de efetividade. Para tanto, devem se utilizar de

proposições intelectuais racionais, coerentes e capazes de produzir efeitos iguais em

casos idênticos, que se materializarão no cerne do sistema jurídico como princípios

insertos na Carta da República416.

Com a análise da teoria, verifica-se dificuldade em definir quais seriam os

princípios constitucionais neutros a que se referem os autores que encampam o presente

ideário. De todo modo, conquanto a ideia de princípios neutros seja de dificultosa

compreensão417, controvertida418 e pareça trazer em si uma contradictio in adjecto,

Alexander Bickel parece traduzi-la a partir da sua compreensão de Constituição

manifesta, indicando que os princípios estariam atrelados às disposições institucionais e

do processo político, distribuição e divisão de poderes e o núcleo historicamente

definido de determinações processuais, encontrado principalmente na Carta de

Direitos.”419

A ideia não é de fácil compreensão. Investiguemos, então, se pode ser

aplicada em seara pretoriana. 416 A exposição da teoria encontra-se no terceiro capítulo deste trabalho, sendo que na presente oportunidade se faz apenas uma alusão sucinta a fim de, tal como nos tópicos anteriores, contextualizar o V. Julgado que se virá a trazer à colação. 417 Princípios consubstanciam mandamentos axiológicos e, bem por isso, não parecem gozar de neutralidade. No mínimo, postulam os valores que trazem em si, em seu bojo, em seu cerne. Assim, com isso não parece haver neutralidade. Referindo-se, inclusive, ao próprio Alexander Bickel e tratando da escola não-interpretacionista, observa John Hart Ely, que “Já que o interpretacionismo – ou pelo menos uma versão do interpretacionismo presa às cláusulas constitucionais – anula-se a si mesmo, devemos examinar novamente, e de modo mais detalhado, o seu adversário tradicional. Segundo a opinião que há algum tempo predomina no meio acadêmico, a Suprema Corte, para dar conteúdo às disposições abertas da Constituição, deve identificar e impor aos poderes políticos os valores que são, de acordo com uma ou outra fórmula, realmente importantes ou fundamentais. Inclusive há quem diga que isso é inevitável”. Assim diz John Hart Ely aludindo a Bickel, a quem cita textualmente e entre aspas na sequência: “É impossível que os tribunais controlem a constitucionalidade da legislação sem fazer escolhas difíceis e reiteradas entre valores substantivos concorrentes, ou mesmo entre conceitos políticos, sociais e morais inevitavelmente complexos.”. ELY, John Hart. Democracia e desconfiança – uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. Tradução de Juliana Lemos. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 57. 418 Para Neil MacCormick, princípios e regras fazem parte de um todo normativo, impregnado de valores: “Existe uma relação entre a ‘norma do reconhecimento’ e princípios de direito, mas é um relacionamento indireto. Os princípios que são princípios do direito são o que são graças à sua função em relação àquelas normas, ou seja, a função a eles atribuída por quem os usa como racionalizações das normas. Pode haver quem diga que isso sugere de modo antipositivista que a lei afinal de contas não é isenta de valores. Na verdade, não se trata tanto de uma insinuação, mas de uma proclamação ensurdecedora. Não há, porém, nada de antipositivista em dizer que a lei não é isenta de valores. Ninguém em pleno uso das faculdades mentais – e há pelo menos alguns positivistas em pleno uso das faculdades mentais – jamais sugeriu ou sugeriria que a própria lei seja isenta de valores. Se os seres humanos não valorizassem a ordem social, não teriam leis de nenhuma espécie.” MACCORMICK, Neil, op. cit., p. 304-305. 419 BICKEL, Alexander M., op. cit., p. 38.

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Em 20 de abril de 2010 a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça

julgou Recurso Especial autuado sob o n.° 1.185.474/SC, tendo como Relator o

Ministro Humberto Martins. Discutia-se a obrigatoriedade judicialmente assentada de o

ente Municipal construir creches para atendimento às crianças na faixa etária de zero a

seis anos de idade420.

O Superior Tribunal de Justiça confirmou V. Julgado emanado do Tribunal

de Justiça do Estado de Santa Catarina que determinou a construção de creche ao

Município de Criciúma, restando a ementa lavrada da seguinte maneira, transcrita no

que é essencial a compreensão do presente tópico:

ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL – ACESSO À CRECHE AOS MENORES DE ZERO A SEIS ANOS – DIREITO SUBJETIVO – RESERVA DO POSSÍVEL – TEORIZAÇÃO E CABIMENTO – IMPOSSIBILIDADE DE ARGUIÇÃO COMO TESE ABSTRATA DE DEFESA – ESCASSEZ DE RECURSOS COMO O RESULTADO DE UMA DECISÃO POLÍTICA – PRIORIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS – CONTEÚDO DO MÍNIMO EXISTENCIAL – ESSENCIALIDADE DO DIREITO À EDUCAÇÃO – PRECEDENTES DO STF E STJ. 1. A tese da reserva do possível assenta-se em ideia que, desde os romanos, está incorporada na tradição ocidental, no sentido de que a obrigação impossível não pode ser exigida (Impossibilium nulla obligatio est – Celso, D. 50, 17, 185). Por tal motivo, a insuficiência de recursos orçamentários não pode ser considerada uma mera falácia. 2. Todavia, observa-se que a dimensão fática da reserva do possível é questão intrinsecamente vinculada ao problema da escassez. Esta pode ser compreendida como “sinônimo” de desigualdade. Bens escassos são bens que não podem ser usufruídos por todos e, justamente por isso, devem ser distribuídos segundo regras que pressupõe o direito igual ao bem e a impossibilidade do uso igual e simultâneo. 3. Esse estado de escassez, muitas vezes, é resultado de um processo de escolha, de uma decisão. Quando não há recursos suficientes para prover todas as necessidades, a decisão do administrador de investir em determinada área implica escassez de recursos para outra que não foi contemplada. A título de exemplo, o gasto com festividades ou propagandas governamentais pode ser traduzido na ausência de dinheiro para a prestação de uma educação de qualidade. 4. É por esse motivo que, em um primeiro momento, a reserva do possível não pode ser oposta à efetivação dos Direitos Fundamentais, já que, quanto a estes, não cabe ao administrador público preteri-los em suas escolhas. Nem mesmo a vontade da maioria pode tratar tais direitos como secundários. Isso, porque a democracia não se restringe na vontade da maioria. O princípio do majoritário é apenas um instrumento no processo democrático, mas este não se resume àquele. Democracia é, além da vontade da maioria, a realização dos direitos fundamentais. Só haverá democracia real onde houver liberdade

420 BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Segunda Turma. Recurso especial n.° 1.185.474/SC. Recorrente Município de Criciúma. Recorrido: Ministério Público do Estado de Santa Catarina. Relator Ministro Humberto Martins. Acórdão publicado em 29/04/2010. A íntegra do Acórdão pode ser obtida emhttps://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sSeq=964063&sReg=201000486284&sData=20100429&formato=HTML. Acesso 15 janeiro 2012.

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de expressão, pluralismo político, acesso à informação, à educação, à inviolabilidade da intimidade, o respeito às minorias e às idéias minoritárias etc. Tais valores não podem ser malferidos, ainda que seja a vontade da maioria. Caso contrário, se estará usando da “democracia” para extinguir a Democracia. 5. Com isso, observa-se que a realização dos Direitos Fundamentais não é opção do governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode ser encarada como tema que depende unicamente da vontade política. Aqueles direitos que estão intimamente ligados à dignidade humana não podem ser limitados em razão da escassez quando esta é fruto das escolhas do administrador. Não é por outra razão que se afirma que a reserva do possível não é oponível à realização do mínimo existencial. (...) Recurso especial improvido.421

Ao que se pode depreender do voto condutor, a argumentação lançada pelo

Município de Criciúma para tentar obstar o cumprimento da ordem judicial proferida no

sentido da construção das creches e disponibilização às crianças na faixa etária de zero a

seis anos perpassou pela cláusula da reserva do possível, sustentando óbices

orçamentários fulcrados na aplicação da Lei n.° 9.394/96.

O Relator, apreciando a cláusula da reserva do possível, destacou sua

origem no direito romano, que já trazia a previsão da nulidade de obrigações

impossíveis. Mencionou que o problema, em realidade, situa-se em conciliar a cláusula

da reserva do possível com as medidas positivas prestacionais que a Constituição ultima

por impor ao Poder Público, as quais, por curial, demandam “alocação significativa de

recursos materiais e humanos para sua proteção e efetivação de uma maneira geral”422.

Assim, a título de conceituação e abrangência da cláusula da reserva do possível,

utiliza-se da tríplice dimensão sustentada pelo Tribunal Constitucional Federal

421 Idem, p. 11. 422 “De início, é de se deixar claro que a insuficiência de recursos orçamentários não pode ser considerada uma mera falácia. Tanto é assim que a doutrina e jurisprudência germânica, conscientes da existência de limitações financeiras, elaboraram a teoria da ‘reserva do possível’ (Der Vorbehalt des Möglichen), segundo a qual os direitos sociais a prestações materiais dependem da real disponibilidade de recursos financeiros por parte do Estado. Na verdade, a tese da reserva do possível assenta-se em ideia que, desde os romanos, está incorporada na tradição ocidental, no sentido de que a obrigação impossível não pode ser exigida (Impossibilium nulla obligatio est – Celso, D. 50, 17, 185). Não se pode exigir da ação humana a feitura de algo impossível. O problema central é que as limitações orçamentárias vão de encontro à necessidade de efetivação dos direitos fundamentais, principalmente aqueles que, em regra, realizam-se com a implementação de prestações positivas pelo Estado. É justamente nesse ponto, da efetividade, que surge o principal desafio em matéria de direitos sociais, pois, sendo eminentemente prestacionais, demandam um conjunto de medidas positivas por parte do Poder Público, e que sempre abrangem a alocação significativa de recursos materiais e humanos para sua proteção e efetivação de uma maneira geral. Assim, é necessário buscar uma conciliação entre a existência de limitações fáticas e a imperiosidade da efetivação dos direitos fundamentais.” Ibidem, p. 11.

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Alemão423 para, na sequência, mencionar que existem valores constitucionais que, em

princípio, não podem se sujeitar à reserva do possível.

A pergunta que se deve fazer neste momento é: o administrador público possui, em todos os casos, carta branca para escolher as prioridades, ou seja, para decidir quais valores serão contemplados e, consequentemente, quais serão postergados em face da escassez dos recursos públicos? Tal pergunta deve ser respondida com cautela. A regra é que, por atribuição constitucional, cabe ao Poder Executivo definir os programas de governo que serão tratados com prioridade; boa parte deles, referendados pela vontade manifestada nas urnas. Todavia, há um núcleo de direitos que não pode, em hipótese alguma, ser preterido, pois constitui o objetivo e fundamento primeiro do Estado democrático de Direito.

O Relator menciona a existência de direitos que, de envergadura

constitucional, não podem ser objeto de frustração ou relativização à conta de

discricionariedade administrativa ou interesses diversos. Ao que parece, seriam

despidos de valores afora os que já lhe são inerentes enquanto mandamentos

constitucionais, não podendo, por isso, ser objeto de barganha administrativa quando

em confronto com outros valores.

(...) nem mesmo a vontade da maioria pode tratar tais direitos como secundários. Isso, porque a democracia não se restringe na vontade da maioria. O princípio do majoritário é apenas um instrumento no processo democrático, mas este não se resume àquele. Democracia é, além da vontade da maioria, a realização dos direitos fundamentais. Explica-se. Só haverá democracia real onde houver liberdade de expressão, pluralismo político, acesso à informação, à educação, inviolabilidade da intimidade, o respeito às minorias e às ideias minoritárias etc. Tais valores não podem ser malferidos, ainda que seja a vontade da maioria. Caso contrário, se estará usando da “democracia” para extinguir a Democracia. Com isso, observa-se que a realização dos Direitos Fundamentais não é opção do governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode ser encarada como tema que depende unicamente da vontade política.424

Os direitos fundamentais se situam, portanto, em patamar constitucional que

não permite tergiversação quanto à efetivação com base na reserva do possível,

interesses partidários, políticos, econômicos ou factuais. Entendimento reverso, isto é,

423 “(...) é necessário analisar o que seja a reserva do possível, seu alcance e em que condições a tese pode ser alegada. Nesta tarefa, recorro-me ao direito germânico para constatar que o Tribunal Constitucional Federal Alemão, ao buscar desenvolver a noção da ‘reserva do possível’, firmou entendimento de que esta apresenta, pelo menos, uma dimensão tríplice: a) uma dimensão fática, que diz respeito à efetiva disponibilidade dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) uma dimensão jurídica, que guarda conexão com a distribuição das receitas e competências tributárias; e c) por fim, na perspectiva de um eventual titular de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade e razoabilidade da prestação, ou seja, aquilo que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade.”. Ibidem, p. 11-12. 424 Ibidem, p. 13.

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“a não priorização de direitos essenciais implica o destrato da vida humana como um

fim em si mesmo, ofende, às claras, o sobreprincípio da dignidade da pessoa

humana”425.

A explicação para tanto pode ser haurida do contraponto à reserva do

possível, o mínimo existencial, que por ser compreendido como o rol mínimo de

direitos a que o indivíduo deve ter acesso para uma vida digna426. O mínimo existencial

não se confunde com o mínimo vital, ou seja, o essencial para viver; abrangendo, no

entanto, “as condições socioculturais que, para além da questão da mera sobrevivência,

asseguram ao indivíduo um mínimo de inserção na vida social.”427.

Admite-se, segundo o Relator, apenas uma exceção à observância

compulsória dos direitos fundamentais inscritos como mínimo existencial na Carta da

República: a da falta absoluta de recursos estatais mesmo para fazer frente à realização

dos direitos fundamentais. Nesse caso, caberia ao Administrador empreender escolhas –

decerto também “trágicas”, aos moldes daquelas levadas ao Judiciário – para tentar

lograr atender ao mínimo possível dos direitos fundamentais, ainda que em prejuízo

deles próprio ou de outros direitos igualmente inseridos no contexto constitucional.

Neste caso, não se poderia exigir o atendimento a todos os direitos fundamentais, já que,

retornando ao início do voto, tampouco se pode postular o cumprimento de obrigações

impossíveis.

Ocorre que mesmo na hipótese aventada de ausência absoluta de recursos

para atender aos direitos fundamentais, não se estará introduzindo critério

eminentemente correlacionado aos interesses econômicos, políticos ou partidários. Na

realidade, em tal hipótese, de admissibilidade na relativização dos direitos

425 Ibidem, p. 13. 426 “A argumentação até aqui apresentada expõe a existência de duas questões que precisam ser conciliadas. De um lado, tem-se o real problema da ausência de recursos orçamentários; do outro, a necessidade de realização dos Direitos Fundamentais. Entrincheirado nesse imbróglio, o Tribunal Constitucional Federal Alemão desenvolveu a tese do ‘mínimo existencial’, segundo o qual, a impossibilidade de concretização de todos os direitos sociais não impede que as pessoas possam pleitear, no mínimo, o acesso a condições mínimas para uma vida digna. A tese não deixa de ser uma decorrência do reconhecimento da reserva do possível. Por não haver recursos para tudo, é que se deve garantir, ao menos, o suficiente para que se possa viver com dignidade. Esse mínimo existencial não pode ser postergado e deve ser a prioridade do Poder Público. Somente depois de atendido é que se abre a possibilidade para a efetivação de outros gastos, não entendidos, num juízo de razoabilidade, como essenciais. Por esse motivo, pelo menos a priori, a teoria da reserva do possível não pode ser oposta ao mínimo existencial.” Ibidem, p. 13-14. 427 Ibidem, p. 16.

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fundamentais, estará o Administrador cuidando de dar cumprimento ao que o

pontualmente o orçamento permite428.

O Relator menciona que o Supremo Tribunal Federal também já se

posicionou no mesmo sentido do voto que externa, em caso semelhante: “no julgamento

do RE 436.996/SP, o Rel. Min. Celso de Mello assegurou que a educação infantil não se

expõe a avaliações meramente discricionárias da administração pública.”429.

Consoante a fundamentação externada no voto condutor, parece

consentâneo observar que para os fins da teoria em voga os direitos fundamentais

poderiam se prestar a figurar como princípios constitucionais neutros a autorizar e

embasar que o Poder judiciário aferisse, de maneira legítima, consentânea à Carta da

República e salvaguardado da argumentação contramajoritária, a compatibilidade de

atos ou omissões legislativas ou administrativas.

Em tal caso, ao menos para a teoria ora analisada, não se poderia aventar

que o juiz estivesse primando por seus valores pessoais, sentimento interno de justiça,

bem comum ou interesse geral, mas apenas cumprindo a tarefa de adequar seus

provimentos típicos ao preceituado pela Constituição da República, garantindo, ainda,

que os demais Poderes constituídos assim também estejam agindo.

Calha mencionar, no entanto, que a teoria, em si, é controvertida quanto à

neutralidade dos princípios e, ainda que admitida tal zona constitucional indene às

pressões e influxos do sistema (entendido no sentido habermasiano, em contraponto ao

mundo da vida), não parece apresentar, senão genericamente, quais de fato seriam, sob a

óptica dos autores, os princípios neutros que embasariam os provimentos jurisdicionais

que atendessem a teorização proposta.

A alusão ao V. Julgado que tratou os direitos fundamentais com o sentido da

neutralidade exigida por Alexander Bickel e Herbert Wechsler é apenas uma proposta,

ao que parece endossada em sede jurisprudencial, acerca da existência de princípios

neutros, não tendo sido expressamente mencionada pelos autores na forma como

aludida no voto condutor. 428 “(...) É possível que, mesmo com a alocação dos recursos no atendimento do mínimo existencial, persista a carência orçamentária para atender a todas as demandas. Nesse caso, a escassez não seria fruto da escolha de atividades não prioritárias, mas sim da real insuficiência de recursos. Em situações limítrofes como essa, não há como o Poder Judiciário imiscuir-se nos planos governamentais, pois estes, dentro do que é possível, estão de acordo com a Constituição, não havendo omissão injustificável. Todavia, não se pode olvidar que a real insuficiência de recursos, mesmo quando estes estão alocados em atividades essenciais, deve ser demonstrada pelo Poder Público, não sendo admitido que a tese seja utilizada como uma desculpa genérica para a omissão estatal no campo da efetivação dos direitos fundamentais, principalmente os de cunho social.”. Ibidem, p. 19-20. 429 Ibidem, p. 17.

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Conclusão

Durante o exercício da judicatura, por iterativas vezes os juízes se deparam

com demandas retratando imbróglios que não se resolvem à conta apenas da subsunção

individual do fato à norma. Em realidade, tais ações trazem em seu bojo testilhas que,

em regra, não resultam tão somente de comportamentos afrontosos a determinada norma

jurídica já posta e objetivada no âmbito do ordenamento materializado pelo direito

vigente; mas, ao contrário, se acuradamente observados, denotam nuances que

autorizam sua classificação como problemáticas em que o jurídico e o político se

imbricam, interpenetram, dialogam e, rispidamente, disputam espaço na agenda social.

Em casos dessa natureza, decidir com base estritamente no direito posto não

parece uma opção que se coadune com o comportamento esperado do Judiciário, quer

porque o direito objetivo não traz de pronto uma resposta adequada ao questionamento

proposto, quer porque mesmo que o traga, muitas vezes se verifica embate com outros

parâmetros de referência, constitucionais ou não. Diante de tal contexto, o Julgador

deve argumentar; e, independentemente do resultado, demonstrar o motivo pelo qual

aceita como correta determinada tese.

Esta é, todavia, uma grande dificuldade nos dias atuais, não somente pela

complexidade dos conflitos, mas também em razão de que não existe um consenso

quanto a melhor forma de argumentação. Há diferentes teorias que ora se contrapõem,

ora se complementam. O que, contudo, parece pacífico é a necessidade de o juiz

apresentar boas razões para expor seu convencimento acerca do caso analisado.

As boas razões não são apenas exigidas como sustentáculo da validade da

sentença emanada. Na verdade, traduzem necessidade de viés mais amplo, pois ao

demonstrar a forma pela qual obteve o resultado que fora pronunciado por ocasião do

julgamento da causa, o juiz estará informando aos participantes do processo

democrático que não atuou de maneira arbitrária, autoritária, seduzido por

considerações econômicas ou políticas. Estará restituindo o cidadão ao cenário de

legitimidade constitucional, de todo caro ao desenvolvimento e manutenção do Estado

Democrático de Direito.

Ao decorrer do presente trabalho, foram analisadas ideias pertinentes à

relativização da soberania frente aos ditames do sistema econômico vigente e como tal

fenômeno veio a causar dificuldade na aplicação do princípio da divisão de poderes.

Esta menção foi feita, como esclarecido no texto que ora se conclui, para investigar se o

Poder Judiciário teria sofrido alguma alteração, formal ou não, no âmbito de sua

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competência constitucionalmente definida em razão da formatação econômica e política

que se observou durante toda a evolução do Estado.

Assim é que se fez alusão às diversas feições assumidas pelo Estado em

momento pós-iluminismo, sempre correlacionando a preponderância das ideias –

liberais, sociais e neoliberais – à função exercida pelo Poder Judiciário.

Demonstrado, a partir das vertentes apresentadas no capítulo primeiro, que

atualmente não mais se pode esperar uma atuação judicial de mera subsunção e despida

de valores – eis que assim agindo se estaria retornando aos parâmetros liberais já

abandonados, ou, ainda, cedendo passo aos ditames do capitalismo que aplainou o

princípio da soberania e dificultou sobremaneira a identificação da divisão de funções

estatais – restava verificar como – e se – o Poder Judiciário poderia se enquadrar neste

novo momento de definição de institutos, teorias e postulados inerentes à própria

formação do Estado.

Nesse ponto, observou-se que existe a possibilidade de o Poder Judiciário

atuar de maneira constitucionalmente legítima e preservar a sua autoridade sem

desconsiderar o ordenamento jurídico posto, a sociedade e, até mesmo, influxos

políticos e econômicos. Essa opção – que parece ser a única frente às dificuldades

enfrentadas em decorrência de fenômenos como a globalização, surgimento de novos

conflitos e complexidade social – perpassa pela argumentação, que, se levada a cabo de

maneira a proscrever tendências individuais autoritárias ou exclusivamente sistêmicas

(no sentido habermasiano), poderá auxiliar o Judiciário a percorrer a trilha da

formatação constitucional de que ora se cogita, cujos basilares princípios vêm sofrendo

com entraves econômicos e óbices políticos.

Há, todavia, dificuldade acentuada em definir como se daria esse processo

argumentativo direcionado aos fins propostos neste trabalho. Isso porque muitas teorias

tratam desse específico ponto, cuidando de revelar as propostas que, de acordo com os

parâmetros que traçam, poderiam melhor traduzir a forma de fundamentação de

decisões judiciais. Verificam-se, apenas para citar algumas, teorias que dão relevância

ao direito posto, emoções, racionalidade, jus-filosofia, todas com o objetivo de delinear

a argumentação mais consentânea ao direito.

Por outro lado, tratar de argumentação sem examinar a teoria do direito

também não cabe enquanto forma única de definir a competência do Poder Judiciário.

Dessa maneira, conceituações de regras, normas, princípios e valores assumem

relevância no âmbito das teorias da argumentação, já que cada instituto jurídico poderá

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representar importante marco para a definição da clareza semântica contida nas

decisões; e, no âmbito do sistema (agora não no sentido habermasiano, mas apenas de

ordenamento), como elemento essencial à definição da função do direito – e do Estado –

no cerne de conflitos de viés político e jurídico.

Não se pretende, com estas considerações, impulsionar ao féretro o método

de subsunção individual que, baseado em mecanismo dedutivo, adjudique ao cidadão o

direito que persegue em discussões jurídicas individuais. Ocorre que não apenas esses

conflitos se observam atualmente na pauta de julgamentos tanto de Cortes Superiores,

como do juiz a quo, de primeira instância.

Complexas, interdisciplinares e sem resposta apriorísticas as testilhas

examinadas cada vez com maior frequência pelo Poder Judiciário não prescindem de

argumentação que as encarte ao âmbito do direito e do Estado Democrático que também

se postula de direito. Argumentar não é opção, senão necessidade para garantir o

funcionamento das instituições Públicas e incutir ao cidadão confiança na Constituição

e instâncias democráticas.

Como fazê-lo, todavia, se as teorias que existem disputam espaço quanto à

melhor forma de definição de direito e dos argumentos que devem ser expostos?

O presente trabalho fez brevíssima resenha às teorias expostas por Jürgen

Habermas, Ronald Dworkin, Robert Alexy, Klaus Günther, Alexander Bickel, Herbert

Wechsler, ademais da escola econômica do direito. Objetivou-se, em primeiro lugar,

demonstrar que existe a possibilidade de lançar argumentação que seja dotada de uma

metodologia própria e possa ser embasada na compreensão de institutos jurídicos e

argumentos previamente delineados, sem descurar de valorações individuais, mas

apenas as situando. E, em momento posterior, que há a possibilidade de as teorias

trabalharem em conjunto, não disputando espaço, mas apresentando informações

complementares umas às outras, de sorte a que, em último grau, também o Poder

Judiciário possa se comunicar institucionalmente com os demais Poderes e a sociedade,

com o fito de que todos persigam a melhor resposta que o caso demanda.

Dessa maneira, optou-se por escolher, entre tantos possíveis, um

encadeamento teórico cuja ideia preponderante, a cada teoria desvelada, revelasse um

ponto de contato entre as formatações teóricas preconizadas.

Dessa forma, iniciou-se destacando o pensamento direcionado à leitura

moral da Constituição e do princípio da integridade sustentado por Ronald Dworkin. O

objetivo foi a demonstração da leitura constitucional que perpassa às normas que nela se

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encontram inseridas. Há que se ver além, não devendo o Julgador substituir o Código

pela Constituição como regra de subsunção individual a fundamentar o raciocínio

meramente dedutivo e despido de critérios axiológicos. Contudo, sob outro prisma, não

há que se conferir tamanha envergadura à valoração que, hic et nunc, desconsidere o

direito posto. Neste ponto foi bastante útil a diferenciação empreendida por Dworkin

acerca dos argumentos de princípio e política.

Em seguida, considerou-se que para argumentar o juiz não pode ser um

mero expectador da vida social que em seu bojo traz o processo de elaboração

normativa. Ao contrário, deve dela participar, de maneira a que possa se sentir tão

responsável pela norma que virá a aplicar como aquele que, por meio de processos

democráticos de representação, cuidou de criá-la. A atividade do julgador deve ser

dialógica e não meramente performativa, atuando no sentido de reverberar em seus

pronunciamentos o que a sociedade primou por traduzir no direito posto.

Entrementes, não pode descurar dos parâmetros valorativos que regem,

principalmente, a formação do Estado, traduzidos no âmbito Constitucional, cuja leitura

há se de dar de maneira moral. Imbricam-se, pois, as teorias de Dworkin e Habermas: o

juiz, responsável pela criação das normas que virá a aplicar, não pode descurar dos

valores nela insertos, nomeadamente os traduzidos pela leitura moral que fará da

Constituição.

Mas como o julgador traduziria concreta e cientificamente este pensamento

por oportunidade da elaboração das suas razões de decidir no contexto de um caso

analisado? Neste momento o encadeamento teórico proposto se vale das teorias de

Robert Alexy e Klaus Günther para, respectivamente, dar consistência semântica aos

argumentos e retomar a relevância que o caso concreto, com todas as suas descrições

situacionais, oferece para fins de resposta à indagação materializada por meio da

demanda judicial.

Com efeito, a alusão à Alexy e Günther foi, no trabalho, proposital após a

exposição do apanágio teórico entabulado por Dworkin e Habermas. Isso porque se

parte da compreensão conjugada entre ambas as teorias para, a partir de tal ponto,

introduzir elementos objetivos e correlacionados ao caso concreto, tais como aduzidos

pelos doutrinadores alemãs prelecionados.

Na sequência, retorna-se à Constituição para, na linha da exposição teórica

sugerida por Alexander Bickel e Herbert Wechsler, observar se existem – e, acaso

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positivo, quais seriam – mandamentos neutros em valor, aptos, só por si, a viabilizar a

resolução dos casos controvertidos analisados.

Finalmente, ainda no contexto do encadeamento proposto, põe-se em

destaque a análise econômica do direito que, por meio de critérios como eficiência,

escolhas racionais, teoria dos jogos e teoria dos custos da transação, pode trazer

informações oriundas não apenas de outras ciências ao caso, mas também a carga

informacional oriunda da realidade que alimentará a argumentação e será por ela

alimentada.

O encadeamento se resume, pois, com a leitura da Constituição, papel do

juiz e realidade informacional oriunda de outras ciências e caso concreto.

A proposta considera não apenas uma teoria, senão todas as mencionadas,

conjugadas e correlacionadas com o propósito de construir a argumentação que será

lançada concretamente em cada caso, atendendo, pois, a função exercida pelo Poder

Judiciário no atual contexto globalizado e de tênue fronteira principiológica.

Antes, porém, de consolidar a forma de aplicação do encadeamento

proposto, impunha-se examinar se a jurisprudência hodierna considera, em alguma

medida, alguma(a) da(s) teoria(s) exposta(s) para fins decisórios. Essa foi a função do

último capítulo, que examinou pontualmente alguns V. Julgados oriundos do Superior

Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal para verificar a eventual observância

ao apanágio teórico mencionado nos dois capítulos anteriores.

A sequência natural do trabalho seria, após a verificação de compatibilidade

entre a jurisprudência e as teorias, elaborar modelo haurido do encadeamento teórico

proposto e testá-lo também à luz da jurisprudência. Os limites objetivos e propósitos

deste trabalho, no entanto, não comportam a consecução desta parte final, que, quiçá,

poderá ser desenvolvida em oportunidade futura.

Por ora, suficiente a constatação da realização de funções de maior

envergadura pelo Poder Judiciário, de moldes a inseri-lo, a partir da argumentação, no

plexo de competência que lhe demanda a realidade globalizada; e que, a partir de teorias

argumentativas devidamente encadeadas poderia, eventualmente, atingir tal intento.

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ANEXOS

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DECISÃO LIMINAR - ANENCEFALIA MED. CAUT. EM ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 54-8 DISTRITO FEDERAL RELATOR : MIN. MARCO AURÉLIO ARGUENTE(S) : CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA SAÚDE - CNTS ADVOGADO(A/S) : LUÍS ROBERTO BARROSO E OUTRO(A/S) DECISÃO-LIMINAR

ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - LIMINAR - ATUAÇÃO INDIVIDUAL - ARTIGOS 21, INCISOS IV E V, DO REGIMENTO INTERNO E 5º, § 1º, DA LEI Nº 9.882/99. LIBERDADE - AUTONOMIA DA VONTADE - DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - SAÚDE - GRAVIDEZ - INTERRUPÇÃO - FETO ANENCEFÁLICO.

1. Com a inicial de folha 2 a 25, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS formalizou esta argüição de descumprimento de preceito fundamental considerada a anencefalia, a inviabilidade do feto e a antecipação terapêutica do parto. Em nota prévia, afirma serem distintas as figuras da antecipação referida e o aborto, no que este pressupõe a potencialidade de vida extra-uterina do feto. Consigna, mais, a própria legitimidade ativa a partir da norma do artigo 2º, inciso I, da Lei nº 9.882/99, segundo a qual são partes legítimas para a argüição aqueles que estão no rol do artigo 103 da Carta Política da República, alusivo à ação direta de inconstitucionalidade. No tocante à pertinência temática, mais uma vez à luz da Constituição Federal e da jurisprudência desta Corte, assevera que a si compete a defesa judicial e administrativa dos interesses individuais e coletivos dos que integram a categoria profissional dos trabalhadores na saúde, juntando à inicial o estatuto revelador dessa representatividade. Argumenta que, interpretado o arcabouço normativo com base em visão positivista pura, tem-se a possibilidade de os profissionais da saúde virem a sofrer as agruras decorrentes do enquadramento no Código Penal.

Articula com o envolvimento, no caso, de preceitos fundamentais, concernentes aos princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade, em seu conceito maior, da liberdade e autonomia da vontade bem como os relacionados com a saúde. Citando a literatura médica aponta que a má-formação por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, não apresentando o feto os hemisférios cerebrais e o córtex, leva-o ou à morte intra-uterina, alcançando 65% dos casos, ou à sobrevida de, no máximo, algumas horas após o parto. A permanência de feto anômalo no útero da mãe mostrar-se-ia potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde e à vida da gestante. Consoante o sustentado, impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causa à gestante dor, angústia e frustração, resultando em violência às vertentes da dignidade humana - a física, a moral e a psicológica - e em cerceio à liberdade e autonomia da vontade, além de colocar em risco a saúde, tal como proclamada pela Organização Mundial da Saúde - o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença. Já os profissionais da medicina ficam sujeitos às normas do Código Penal - artigos 124, 126, cabeça, e 128, incisos I e II -, notando-se que, principalmente quanto às famílias de baixa renda, atua a rede pública.

Sobre a inexistência de outro meio eficaz para viabilizar a antecipação terapêutica do parto, sem incompreensões, evoca a Confederação recente acontecimento retratado no Habeas Corpus nº 84.025-6/RJ, declarado prejudicado pelo Plenário, ante o parto e a morte do feto anencefálico sete minutos após. Diz da admissibilidade da ANIS - Instituto de Biotécnica, Direitos Humanos e Gênero como amicus curiae, por aplicação analógica do artigo 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99.

Então, requer, sob o ângulo acautelador, a suspensão do andamento de processos ou dos efeitos de decisões judiciais que tenham como alvo a aplicação dos dispositivos do Código Penal, nas hipóteses de antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos, assentando-se o direito constitucional da gestante de se submeter a procedimento que leve à interrupção da gravidez e do profissional de saúde de realizá-lo, desde que atestada, por médico habilitado, a ocorrência da anomalia.

O pedido final visa à declaração da inconstitucionalidade, com eficácia abrangente e efeito vinculante, da interpretação dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal - Decreto-Lei nº 2.848/40 - como impeditiva da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico, diagnosticados por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante de assim agir sem a necessidade

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de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado. Sucessivamente, pleiteia a argüente, uma vez rechaçada a pertinência desta medida, seja a petição inicial recebida como reveladora de ação direta de inconstitucionalidade. Esclarece que, sob esse prisma, busca a interpretação conforme a Constituição Federal dos citados artigos do Código Penal, sem redução de texto, aduzindo não serem adequados à espécie precedentes segundo os quais não cabe o controle concentrado de constitucionalidade de norma anterior à Carta vigente.

A argüente protesta pela juntada, ao processo, de pareceres técnicos e, se conveniente, pela tomada de declarações de pessoas com experiência e autoridade na matéria. À peça, subscrita pelo advogado Luís Roberto Barroso, credenciado conforme instrumento de mandato - procuração - de folha 26, anexaram-se os documentos de folha 27 a 148.

O processo veio-me concluso para exame em 17 de junho de 2004 (folha 150). Nele lancei visto, declarando-me habilitado a votar, ante o pedido de concessão de medida acauteladora, em 21 de junho de 2004, expedida a papeleta ao Plenário em 24 imediato.

No mesmo dia, prolatei a seguinte decisão:

AÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - INTERVENÇÃO DE TERCEIRO - REQUERIMENTO - IMPROPRIEDADE. 1. Eis as informações prestadas pela Assessoria:

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB - requer a intervenção no processo em referência, como amicus curiae, conforme preconiza o § 1º do artigo 6º da Lei 9.882/1999, e a juntada de procuração. Pede vista pelo prazo de cinco dias.

2. O pedido não se enquadra no texto legal evocado pela requerente. Seria dado versar sobre a aplicação, por analogia, da Lei nº 9.868/99, que disciplina também processo objetivo - ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade. Todavia, a admissão de terceiros não implica o reconhecimento de direito subjetivo a tanto. Fica a critério do relator, caso entenda oportuno. Eis a inteligência do artigo 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99, sob pena de tumulto processual. Tanto é assim que o ato do relator, situado no campo da prática de ofício, não é suscetível de impugnação na via recursal.

3. Indefiro o pedido.

4. Publique-se.

A impossibilidade de exame pelo Plenário deságua na incidência dos artigos 21, incisos IV e V, do Regimento Interno e artigo 5º, § 1º, da Lei nº 9.882/99, diante do perigo de grave lesão.

2. Tenho a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS como parte legítima para a formalização do pedido, já que se enquadra na previsão do inciso I do artigo 2º da Lei nº 9.882, de 3 de novembro de 1999. Incumbe-lhe defender os membros da categoria profissional que se dedicam à área da saúde e que estariam sujeitos a constrangimentos de toda a ordem, inclusive de natureza penal.

Quanto à observação do disposto no artigo 4º, § 1º, da Lei nº 9.882/99, ou seja, a regra de que não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade, é emblemático o que ocorreu no Habeas Corpus nº 84.025-6/RJ, sob a relatoria do ministro Joaquim Barbosa. A situação pode ser assim resumida: em Juízo, gestante não logrou a autorização para abreviar o parto. A via-crúcis prosseguiu e, então, no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a relatora, desembargadora Giselda Leitão Teixeira, concedeu liminar, viabilizando a interrupção da gestação. Na oportunidade, salientou:

A vida é um bem a ser preservado a qualquer custo, mas, quando a vida se torna inviável, não é justo condenar a mãe a meses de sofrimento, de angústia, de desespero.

O Presidente da Câmara Criminal a que afeto o processo, desembargador José Murta Ribeiro, afastou do cenário jurídico tal pronunciamento. No julgamento de fundo, o Colegiado sufragou o entendimento da

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relatora, restabelecendo a autorização. Ajuizado habeas corpus, o Superior Tribunal de Justiça, mediante decisão da ministra Laurita Vaz, concedeu a liminar, suspendendo a autorização. O Colegiado a que integrado a relatora confirmou a óptica, assentando:

HABEAS CORPUS. PENAL. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA A PRÁTICA DE ABORTO. NASCITURO ACOMETIDO DE ANENCEFALIA. INDEFERIMENTO. APELAÇÃO. DECISÃO LIMINAR DA RELATORA RATIFICADA PELO COLEGIADO DEFERINDO O PEDIDO. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. IDONEIDADE DO WRIT PARA A DEFESA DO NASCITURO.

1. A eventual ocorrência de abortamento fora das hipóteses previstas no Código Penal acarreta a aplicação de pena corpórea máxima, irreparável, razão pela qual não há se falar em impropriedade da via eleita, já que, como é cediço, o writ se presta justamente a defender o direito de ir e vir, o que, evidentemente, inclui o direito à preservação da vida do nascituro.

2. Mesmo tendo a instância de origem se manifestado, formalmente, apenas acerca da decisão liminar, na realidade, tendo em conta o caráter inteiramente satisfativo da decisão, sem qualquer possibilidade de retrocessão de seus efeitos, o que se tem é um exaurimento definitivo do mérito. Afinal, a sentença de morte ao nascituro, caso fosse levada a cabo, não deixaria nada mais a ser analisado por aquele ou este Tribunal.

3. A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido e consabido, tutelam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses em que se admite atentar contra ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva, tampouco analogia in malam partem. Há de prevalecer, nesse casos, o princípio da reserva legal.

4. O Legislador eximiu-se de incluir no rol das hipóteses autorizativas do aborto, previstas no art. 128 do Código Penal, o caso descrito nos presentes autos. O máximo que podem fazer os defensores da conduta proposta é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da Lei, que se lhe acrescente mais uma hipótese que fora excluída de forma propositada pelo Legislador.

5. Ordem concedida para reformar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, desautorizando o aborto; outrossim, pelas peculiaridades do caso, para considerar prejudicada a apelação interposta, porquanto houve, efetivamente, manifestação exaustiva e definitiva da Corte Estadual acerca do mérito por ocasião do julgamento do agravo regimental.

Daí o habeas impetrado no Supremo Tribunal Federal. Entretanto, na assentada de julgamento, em 4 de março último, confirmou-se a notícia do parto e, mais do que isso, de que a sobrevivência não ultrapassara o período de sete minutos.

Constata-se, no cenário nacional, o desencontro de entendimentos, a desinteligência de julgados, sendo que a tramitação do processo, pouco importando a data do surgimento, implica, até que se tenha decisão final - proclamação desta Corte -, espaço de tempo bem superior a nove meses, período de gestação. Assim, enquadra-se o caso na cláusula final do § 1º em análise. Qualquer outro meio para sanar a lesividade não se mostra eficaz. Tudo recomenda que, em jogo tema da maior relevância, em face da Carta da República e dos princípios evocados na inicial, haja imediato crivo do Supremo Tribunal Federal, evitando-se decisões discrepantes que somente causam perplexidade, no que, a partir de idênticos fatos e normas, veiculam enfoques diversificados. A unidade do Direito, sem mecanismo próprio à uniformização interpretativa, afigura-se simplesmente formal, gerando insegurança, o descrédito do Judiciário e, o que é pior, com angústia e sofrimento ímpares vivenciados por aqueles que esperam a prestação jurisdicional. Atendendo a petição inicial os requisitos que lhe são inerentes - artigo 3º da Lei nº 9.882/99 -, é de se dar seqüência ao processo.

Em questão está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade de se coisificar uma pessoa, usando-a como objeto. Conforme ressaltado na inicial, os valores em discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana. O determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de uma nova vida, sobressaindo o

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sentimento maternal. São nove meses de acompanhamento, minuto a minuto, de avanços, predominando o amor. A alteração física, estética, é suplantada pela alegria de ter em seu interior a sublime gestação. As percepções se aguçam, elevando a sensibilidade. Este o quadro de uma gestação normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança. Pois bem, a natureza, entrementes, reserva surpresas, às vezes desagradáveis. Diante de uma deformação irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente, para fazê-los cessar. No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no período intra-uterino em mais de 50% dos casos.

Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-se, na sobrevida, os efeitos da deficiência. Então, manter-se a gestação resulta em impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina. Como registrado na inicial, a gestante convive diuturnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um ser vivo. Se assim é - e ninguém ousa contestar -, trata-se de situação concreta que foge à glosa própria ao aborto - que conflita com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia de vontade. A saúde, no sentido admitido pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, envolvidos os aspectos físico, mental e social. Daí cumprir o afastamento do quadro, aguardando-se o desfecho, o julgamento de fundo da própria argüição de descumprimento de preceito fundamental, no que idas e vindas do processo acabam por projetar no tempo esdrúxula situação.

Preceitua a lei de regência que a liminar pode conduzir à suspensão de processos em curso, à suspensão da eficácia de decisões judiciais que não hajam sido cobertas pela preclusão maior, considerada a recorribilidade. O poder de cautela é ínsito à jurisdição, no que esta é colocada ao alcance de todos, para afastar lesão a direito ou ameaça de lesão, o que, ante a organicidade do Direito, a demora no desfecho final dos processos, pressupõe atuação imediata. Há, sim, de formalizar-se medida acauteladora e esta não pode ficar limitada a mera suspensão de todo e qualquer procedimento judicial hoje existente. Há de viabilizar, embora de modo precário e efêmero, a concretude maior da Carta da República, presentes os valores em foco.

Daí o acolhimento do pleito formulado para, diante da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o ambiente de desencontros em pronunciamentos judiciais até aqui notados, ter-se não só o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, como também o reconhecimento do direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto. É como decido na espécie.

3. Ao Plenário para o crivo pertinente.

4. Publique-se.

Brasília, 1º de julho de 2004, às 13 horas.

Ministro MARCO AURÉLIO Relator

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VOTO – UNIÃO HOMOAFETIVA 1 V O T O O Senhor Ministro Ayres Britto (Relator): Começo este voto pelo exame do primeiro pedido do autor da ADPF nº 132-RJ, consistente na aplicação da técnica da “interpretação conforme à Constituição” aos incisos II e V do art. 19, mais o art. 33, todos do Decreto-Lei nº 220/1975 (Estatuto dos Servidores Públicos Civis do Estado do Rio de Janeiro). Técnica da “interpretação conforme” para viabilizar o descarte de qualquer intelecção desfavorecedora da convivência estável de servidores homoafetivos, em comparação com a tutela juridicamente conferida à união igualmente estável de servidores heterossexuais. O que, em princípio, seria viável, pois entendo que os dispositivos em foco tanto se prestam para a perpetração da denunciada discriminação odiosa quanto para a pretendida equiparação de direitos subjetivos. E o fato é que tal plurissignificatividade ou polissemia desse ou daquele texto normativo é pressuposto do emprego dessa técnica especial de controle de constitucionalidade que atende pelo nome, justamente, de “interpretação conforme à Constituição”, quando uma das vertentes hermenêuticas se põe em rota de colisão com o Texto Magno Federal. 2. Devo reconhecer, porém, que a legislação fluminense, desde 2007 (art. 1º 2 da Lei nº 5.034/2007), equipara “à condição de companheira ou companheiro (...) os parceiros homoafetivos que mantenham

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relacionamento civil permanente, desde que devidamente comprovado, aplicando-se, para configuração deste, no que couber, os preceitos legais incidentes sobre a união estável de parceiros de sexos diferentes”1. Sendo que tal equiparação fica limitada ao gozo de benefícios previdenciários, conforme se vê do art. 2º da mesma lei, assim redigido: “aos servidores públicos estaduais, titulares de cargo efetivo, (...) o direito de averbação, junto à autoridade competente, para fins previdenciários, da condição de parceiros homoafetivos”. O que implica, ainda que somente quanto a direitos previdenciários, a perda de objeto dessa presente ação. Perda de objeto que de logo assento quanto a esse específico ponto. Isso porque a lei em causa já confere aos companheiros homoafetivos o pretendido reconhecimento jurídico da sua união. 3. Já de pertinência ao segundo pedido do autor da mesma ADPF 132, consistente no reconhecimento da incompatibilidade material entre os citados preceitos fundamentais da nossa Constituição e as decisões administrativas e judiciais que espocam em diversos Estados sobre o tema aqui versado, imperioso é dizer que tal incompatibilidade em si não constitui novidade. É que ninguém ignora o dissenso que se abre em todo tempo 1 Art. 1º da Lei Estadual nº 5.034/2007, que acrescentou ao art. 29 da Lei nº 285, de 03 de dezembro de 1979 (Lei que dispõe sobre o regime previdenciário dos servidores públicos do Estado do Rio de Janeiro), o seguinte parágrafo: §7º - “Equiparam-se à condição de companheira ou companheiro de que trata o inciso I deste artigo, os parceiros homoafetivos, que mantenham relacionamento civil permanente, aplicando-se para configuração deste, no que couber, os preceitos legais incidentes sobre a união estável entre parceiros de sexos diferentes”. 3 e lugar sobre a liberdade da inclinação sexual das pessoas, por modo quase sempre temerário (o dissenso) para a estabilidade da vida coletiva. Dissenso a que não escapam

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magistrados singulares e membros de Tribunais Judiciários, com o sério risco da indevida mescla entre a dimensão exacerbadamente subjetiva de uns e de outros e a dimensão objetiva do Direito que lhes cabe aplicar. 4. Seja como for, o fato é que me foi redistribuída a ADI 4.277, versando o mesmo tema central da ADPF nº 132. Dando-se, por efeito mesmo dessa distribuição, uma convergência de objetos que me leva a subsumir ao mais amplo regime jurídico da ADI os pedidos insertos na ADPF, até porque nela mesma, ADPF, se contém o pleito subsidiário do seu recebimento como ADI. Por igual, entendo francamente encampados pela ADI nº 4.277 os fundamentos da ADPF em tela (a de nº 132-DF). Fundamentos de que se fez uso tanto para a pretendida “interpretação conforme” dos incisos II e V do art. 19 e do art. 33 do Decreto-Lei nº 220/1975 (Estatuto dos Servidores Públicos Civis do Estado do Rio de Janeiro) quanto para o art. 1.723 do Código Civil brasileiro, assim vernacularmente posto: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. É o que me basta para converter a ADPF em ADI e, nessa condição, recebê-la em par com a ADI nº 4.277, a mim distribuída por prevenção. Com o que este Plenário terá bem 4 mais abrangentes possibilidades de, pela primeira vez no curso de sua longa história, apreciar o mérito dessa tão recorrente quanto intrinsecamente relevante

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controvérsia em torno da união estável entre pessoas do mesmo sexo, com todos os seus consectários jurídicos. Em suma, estamos a lidar com um tipo de dissenso judicial que reflete o fato histórico de que nada incomoda mais as pessoas do que a preferência sexual alheia, quando tal preferência já não corresponde ao padrão social da heterossexualidade. É a perene postura de reação conservadora aos que, nos insondáveis domínios do afeto, soltam por inteiro as amarras desse navio chamado coração. 5. Em outras palavras, conheço da ADPF nº 132-RJ como ação direta de inconstitucionalidade. Ação cujo centrado objeto consiste em submeter o art. 1.723 do Código Civil brasileiro à técnica da “interpretação conforme à Constituição”. O que vem reprisado na ADI nº 4.277-DF, proposta, conforme dito, pela Exma. Sra. Vice-Procuradora Geral da República, Débora Duprat, no exercício do cargo de Procurador Geral, e a mim redistribuída por prevenção. E assim procedo com base nos seguintes precedentes deste nosso Tribunal: ADPF-QO 72 e ADPF 178), dos quais seleciono as seguintes passagens: “(...)Assim sendo, demonstrada a impossibilidade de se conhecer da presente ação como ADPF, pela 5 existência de outro meio eficaz, sendo evidente o perfeito encaixe de seus elementos ao molde de pressupostos da ação direta de inconstitucionalidade e, ainda, demonstrando-se patente a

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relevância e a seriedade da situação trazida aos autos, referente a conflito surgido entre dois Estados da federação, resolvo a presente questão de ordem propondo o aproveitamento do feito como ação direta de inconstitucionalidade, a ela aplicando, desde logo, o rito do art. 12 da Lei nº 9.868/99” (ADPFQO 72, Min. Relatora Ellen Gracie)”. “Porém, em pedido subsidiário, a Procuradoria-Geral da República requer o conhecimento da presente ADPF como ação direita de inconstitucionalidade, com pedido de interpretação conforme do art. 1.723 do Código Civil. Assim sendo, e com base na jurisprudência desta Corte (ADPF-QO n° 72, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 2.12.2005), conheço da ação como ação direta de inconstitucionalidade, cujo objeto é o art. 1.723 do Código Civil.” (ADPF 178, Min. Gilmar Mendes, no exercício da Presidência.” 6 6. Indicados tais fundamentos, devo acrescentar, ainda como preliminar de mérito, que tenho por satisfeito o requisito da pertinência temática para a propositura da primeira ação de controle concentrado de constitucionalidade. Requisito que se constitui em “verdadeira projeção do interesse de agir no processo objetivo, que se traduz na necessidade de que exista uma

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estreita relação entre o objeto do controle e os direitos da classe representada pela entidade requerente” (ADI-MC 4.356/CE, Relator Ministro Dias Toffoli). É que, no caso da ação proposta pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, tal unidade federada só pode reconhecer e efetivar os direitos de seus servidores se vier a trabalhar com elementos conceituais que já se encontram positivados na Constituição e no Código Civil, nessa ordem. É como dizer: a correta aplicação das normas estaduais inerentes à união duradoura entre pessoas do mesmo sexo reclama, para a sua concretização, a incidência de institutos de Direito Constitucional e de Direito Civil, como, verbi gratia, os institutos da família, do casamento, da entidade familiar, da união estável e da adoção. Entendimento que se coaduna com a “posição mais abrangente” da legitimação para a propositura da ADI e da ADPF, conforme tese pioneiramente esgrimida pelo Min. Sepúlveda Pertence e versada com pena de mestre pela Ministra Ellen Gracie no julgamento da ADIMC 2396. Já no plano da habilitação processual ativa do Procurador-Geral da República em tema de ADI, a reconhecida finalidade institucional do Ministério 7 Público em defesa de toda a ordem jurídica (caput do art. 127 da Constituição Federal) o torna imune a qualquer exigência de adequação temática entre o que postula em sede de controle abstrato de constitucionalidade e o que se põe como finalidade da instituição por ele presentada (é o que se tem chamado de habilitação

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universal, porquanto adrede chancelada pela Constituição). Conheço também da ADI nº 4.277-DF, por conseqüência. 7. Pronto! Não havendo outra questão preliminar remanescente, passo ao voto que me cabe proferir quanto ao mérito da causa. E, desde logo, verbalizo que merecem guarida os pedidos formulados pelos requerentes de ambas as ações. Pedido de “interpretação conforme à Constituição” do dispositivo legal impugnado (art. 1.723 do Código Civil), porquanto nela mesma, Constituição, é que se encontram as decisivas respostas para o tratamento jurídico a ser conferido às uniões homoafetivas que se caracterizem por sua durabilidade, conhecimento do público (não-clandestinidade, portanto) e continuidade, além do propósito ou verdadeiro anseio de constituição de uma família. 8. Ainda nesse ponto de partida da análise meritória da questão, calha anotar que o termo “homoafetividade”, aqui utilizado para identificar o vínculo de afeto e solidariedade entre os pares ou 8 parceiros do mesmo sexo, não constava dos dicionários da língua portuguesa. O vocábulo foi cunhado pela vez primeira na obra “União Homossexual, o Preconceito e a Justiça”, da autoria da desembargadora aposentada e jurista Maria Berenice Dias, consoante a seguinte passagem: “Há palavras que carregam o estigma do preconceito. Assim, o afeto a pessoa do mesmo sexo chamava-se 'homossexualismo'. Reconhecida a inconveniência do sufixo 'ismo', que está ligado a doença, passou-se a falar em

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'homossexualidade', que sinaliza um determinado jeito de ser. Tal mudança, no entanto, não foi suficiente para pôr fim ao repúdio social ao amor entre iguais” (Homoafetividade: um novo substantivo)”. 9. Sucede que não foi somente a comunidade dos juristas, defensora dos direitos subjetivos de natureza homoafetiva, que popularizou o novo substantivo, porque sua utilização corriqueira já deita raízes nos dicionários da língua portuguesa, a exemplo do “Dicionário Aurélio”2. Verbete de que me valho no presente voto para dar conta, ora do enlace por amor, por afeto, por intenso carinho entre pessoas do mesmo sexo, ora da união erótica ou por atração física entre esses mesmos pares de seres humanos. União, aclare-se, com perdurabilidade o bastante para a constituição de um novo núcleo doméstico, 2 “Homoafetividade 1.Qualidade ou caráter de homoafetivo. 2. Relação afetiva e sexual entre pessoas do mesmo sexo. Homoafetivo 1. Que diz respeito à afetividade e a sexualidade entre pessoas do mesmo sexo. 2. Realizado entre as pessoas do mesmo sexo: casamento homoafetivo.3. Relativo ou pertencente a, ou próprio de duas pessoas que mantém relação conjugal, ou que pretendem fazê-lo: direito homoafetivo.” (Dicionário Aurélio, 5ª Edição, fl. 1105). 9 tão socialmente ostensivo na sua existência quanto vocacionado para a expansão de suas fronteiras temporais. Logo, vínculo de caráter privado, mas sem o viés do propósito empresarial, econômico, ou, por qualquer forma, patrimonial, pois não se trata de u’a mera sociedade de fato ou interesseira parceria mercantil. Trata-se, isto sim, de um voluntário navegar por um rio sem margens fixas e sem outra embocadura que não seja a experimentação de um novo a dois que se alonga tanto que se faz universal. E não compreender isso talvez comprometa por modo irremediável a própria capacidade de

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interpretar os institutos jurídicos há pouco invocados, pois ão quem o diz -, “quem não começa pelo amor nunca saberá o que é filosofia”. É a categoria do afeto como pré-condição do pensamento, o que levou Max Scheler a também ajuizar que “O ser humano, antes de um ser pensante ou volitivo, é um ser amante”3. 10. Com esta elucidativa menção à terminologia em debate, que bem me anima a cunhar, por conta própria, o antônimo da heteroafetividade, passo ao enfoque propriamente constitucional do mérito das ações. Isto para ajuizar, de pronto, que a primeira oportunidade em que a nossa Constituição Federal emprega o vocábulo “sexo” é no inciso IV do seu art. 3º4. O artigo, versante sobre os “objetivos 3 Textos recolhidos de ensaio escrito por Sérgio da Silva Mendes e a ser publicado no XX Compedi, com o nome de “Unidos pelo afeto, separados por um parágrafo”, a propósito, justamente, da questão homoafetiva perante o §3º do art. 226 da CF) , 4 “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) IV os, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. 10 fundamentais” da nossa República Federativa; o inciso, a incorporar a palavra “sexo” para emprestar a ela o nítido significado de conformação anátomo-fisiológica descoincidente entre o homem e a mulher. Exatamente como se verifica nas três outras vezes em que o mesmo termo é constitucionalmente usado (inciso XLVIII do art. 5º, inciso XXX do art. 7º e inciso II do § 7º do art. 201). 11. Trata-se, portanto, de um laborar normativo no sítio da mais natural diferenciação entre as duas tipologias da espécie humana, ou, numa linguagem menos antropológica e mais de lógica formal,

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trata-se de um laborar normativo no sítio da mais elementar diferenciação entre as duas espécies do gênero humano: a masculina e a feminina. Dicotomia culturalmente mais elaborada que a do macho e da fêmea, embora ambas as modalidades digam respeito ao mesmo reino animal, por oposição aos reinos vegetal e mineral. 12. Prossigo para ajuizar que esse primeiro trato normativo da matéria já antecipa que o sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. É como dizer: o que se tem no dispositivo constitucional aqui reproduzido em nota de rodapé (inciso IV do art 3º) é a explícita vedação de tratamento discriminatório ou preconceituoso em razão 11 do sexo dos seres humanos. Tratamento discriminatório ou desigualitário sem causa que, se intentado pelo comum das pessoas ou pelo próprio Estado, passa a colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos” (este o explícito objetivo que se lê no inciso em foco). 13. “Bem de todos”, portanto, constitucionalmente versado como uma situação jurídica ativa a que se chega pela eliminação do preconceito de sexo. Se se prefere, “bem de todos” enquanto valor objetivamente posto pela Constituição para dar sentido e propósito ainda mais adensados à vida de cada ser humano em particular, com reflexos positivos no equilíbrio da sociedade. O que já nos remete para o preâmbulo da nossa Lei Fundamental,

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consagrador do “Constitucionalismo fraternal” sobre que discorro no capítulo de nº VI da obra “Teoria da Constituição”, Editora Saraiva, 2003. Tipo de constitucionalismo, esse, o fraternal, que se volta para a integração comunitária das pessoas (não exatamente para a “inclusão social”), a se viabilizar pela imperiosa adoção de políticas públicas afirmativas da fundamental igualdade civil-moral (mais do que simplesmente econômico-social) dos estratos sociais historicamente desfavorecidos e até vilipendiados. Estratos ou segmentos sociais como, por ilustração, o dos negros, o dos índios, o das mulheres, o dos portadores de deficiência física e/ou mental e o daqueles que, mais recentemente, 12 deixaram de ser referidos como “homossexuais” para ser identificados pelo nome de “homoafetivos”. Isto de parelha com leis e políticas públicas de cerrado combate ao preconceito, a significar, em última análise, a plena aceitação e subseqüente experimentação do pluralismo sócio-políticocultural. Que é um dos explícitos valores do mesmo preâmbulo da nossa Constituição e um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (inciso V do art. 1º). Mais ainda, pluralismo que serve de elemento conceitual da própria democracia material ou de substância, desde que se inclua no conceito da democracia dita substancialista a respeitosa convivência dos contrários. Respeitosa convivência dos contrários que John Rawls interpreta como a superação de relações historicamente servis ou de

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verticalidade sem causa. Daí conceber um “princípio de diferença”, também estudado por Francesco Viola sob o conceito de “similitude” (ver ensaio de Antonio Maria Baggio, sob o título de “A redescoberta da fraternidade na época do ‘terceiro’ 1789”, pp. 7/24 da coletânea “O PRINCÍPIO ESQUECIDO”, CIDADE NOVA, São Paulo, 2008). 14. Mas é preciso lembrar que o substantivo “preconceito” foi grafado pela nossa Constituição com o sentido prosaico ou dicionarizado que ele porta; ou seja, preconceito é um conceito prévio. Uma formulação conceitual antecipada ou engendrada pela mente humana fechada em si mesma e por isso carente de apoio na realidade. Logo, juízo de valor não 13 autorizado pela realidade, mas imposto a ela. E imposto a ela, realidade, a ferro e fogo de u’a mente voluntarista, ou sectária, ou supersticiosa, ou obscurantista, ou industriada, quando não voluntarista, sectária, supersticiosa, obscurantista e industriada ao mesmo tempo. Espécie de trave no olho da razão e até do sentimento, mas coletivizada o bastante para se fazer de traço cultural de toda uma gente ou população geograficamente situada. O que a torna ainda mais perigosa para a harmonia social e a verdade objetiva das coisas. Donde René Descartes emitir a célebre e corajosa proposição de que “Não me impressiona o argumento de autoridade, mas, sim, a autoridade do argumento”, numa época tão marcada pelo dogma da infalibilidade papal e da fórmula absolutista de que “O rei não pode errar” (The king can do no wrong”).

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Reverência ao valor da verdade que também se lê nestes conhecidos versos de Fernando Pessoa, três séculos depois da proclamação cartesiana: “O universo não é uma idéia minha./A idéia que eu tenho do universo é que é uma idéia minha”. 15. Há mais o que dizer desse emblemático inciso IV do art. 3º da Lei Fundamental brasileira. É que, na sua categórica vedação ao preconceito, ele nivela o sexo à origem social e geográfica da pessoas, à idade, à raça e à cor da pele de cada qual; isto é, o sexo a se constituir num dado empírico que nada tem a ver com o merecimento ou o desmerecimento inato das pessoas, pois não se é mais digno ou menos digno pelo fato de 14 se ter nascido mulher, ou homem. Ou nordestino, ou sulista. Ou de pele negra, ou mulata, ou morena, ou branca, ou avermelhada. Cuida-se, isto sim, de algo já alocado nas tramas do acaso ou das coisas que só dependem da química da própria Natureza, ao menos no presente estágio da Ciência e da Tecnologia humanas. 16. Ora, como essa diferente conformação anatomo-fisiológica entre o homem e a mulher se revela, usualmente, a partir dos respectivos órgãos genitais (o critério biológico tem sido esse), cada qual desses órgãos de elementar diferenciação entre partes passou a também se chamar, coloquialmente, de “sexo”. O órgão a tomar o nome do ser em que anatomicamente incrustado. Mas “sexo” ou “aparelho sexual” como signo lingüístico de um sistema de órgãos cumpridores das elementares funções de estimulação erótica, conjunção carnal e

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reprodução biológica. Três funções congênitas, como sabido, e que, por isso mesmo, prescindentes de livros, escola, cultura ou até mesmo treinamento para o seu concreto desempenho. Donde sua imediata definição, não propriamente como categoria mental ou exclusiva revelação de sentimento, mas como realidade também situada nos domínios do instinto e não raro com a prevalência dele no ponto de partida das relações afetivas. “Instinto sexual ou libido”, como prosaicamente falado, a retratar o fato da indissociabilidade ou unidade incindível entre o aparelho genital da pessoa humana e essa pessoa mesma. 15 Ficando de fora da expressão, claro, as funções meramente mecânicas de atendimento às necessidades ditas “fisiológicas” de todo indivíduo. 17. Nada obstante, sendo o Direito uma técnica de controle social (a mais engenhosa de todas), busca submeter, nos limites da razoabilidade e da proporcionalidade, as relações deflagradas a partir dos sentimentos e dos próprios instintos humanos às normas que lhe servem de repertório e essência. Ora por efeito de uma “norma geral positiva” (Hans Kelsen), ora por efeito de uma “norma geral negativa” (ainda segundo Kelsen, para cunhar as regras de clausura ou fechamento do Sistema Jurídico, doutrinariamente concebido como realidade normativa que se dota dos atributos da plenitude, unidade e coerência). Precisamente como, em parte, faz a nossa Constituição acerca das funções sexuais das pessoas. Explico.

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18. Realmente, em tema do concreto uso do sexo nas três citadas funções de estimulação erótica, conjunção carnal e reprodução biológica, a Constituição brasileira opera por um intencional silêncio. Que já é um modo de atuar mediante o saque da kelseniana norma geral negativa, segundo a qual “tudo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido” (regra de clausura ou fechamento hermético do Direito, que a nossa Constituição houve 16 por bem positivar no inciso II do seu art. 5º, debaixo da altissonante fórmula verbal de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, e que me parece consagradora do que se poderia chamar de direito de não ter dever). É falar: a Constituição Federal não dispõe, por modo expresso, acerca das três clássicas modalidades do concreto emprego do aparelho sexual humano. Não se refere explicitamente à subjetividade das pessoas para optar pelo não-uso puro e simples do seu aparelho genital (absenteísmo sexual ou voto de castidade), para usá-lo solitariamente (onanismo), ou, por fim, para utilizá-lo por modo emparceirado. Logo, a Constituição entrega o empírico desempenho de tais funções sexuais ao livre arbítrio de cada pessoa, pois o silêncio normativo, aqui, atua como absoluto respeito a algo que, nos animais em geral e nos seres humanos em particular, se define como instintivo ou da própria natureza das coisas. Embutida nesse modo instintivo de ser a “preferência” ou “orientação” de cada qual das pessoas

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naturais. Evidente! Como se dá, já de forma até mesmo literal, com ordenamentos jurídicos da Comunidade Européia5. O que 5 Resolução do Parlamento Europeu, de 08 de fevereiro de 1994: “A comunidade européia tem o dever, em todas as normas jurídicas já adotadas e nas que serão adotadas no futuro, de dar realização ao princípio de igualdade de tratamento das pessoas, independentemente de suas tendências sexuais”. Resolução sobre o respeito pelos Direitos do Homem na União Européia, de 16 de março de 2000: “Os Estados-membros são incitados a adotar “políticas de equiparação entre uniões heterossexuais e homossexuais designadamente, a garantirem às famílias monoparentais, aos casais não unidos pelo matrimónio e aos do mesmo sexo, a igualdade de direitos relativamente aos casais e famílias tradicionais, principalmente, no que se refere a obrigações fiscais, regimes patrimoniais e direitos sociais, e conclama todos os Estados nos quais não exista ainda esse reconhecimento jurídico a alterarem a sua legislação no sentido do reconhecimento jurídico das uniões sem laços matrimoniais independentemente do sexo dos intervenientes, entendendo ser

17 também se lê em Constituições como a do Estado de Sergipe6 e do Mato Grosso7, aqui mesmo em nosso País, que também por modo textual vedam o preconceito contra a “orientação” sexual alheia. Que não tem nada a ver -se à exaustão - com a maior ou menor dignidade dos seres humanos. 19. Noutra maneira de falar sobre o mesmo tema, tanto nos mencionados países quanto aqui na Terra Brasilis pós-Constituição de 1988, o sexo das pessoas é um todo próindiviso, por alcançar o ser e o respectivo aparelho genital. Sem a menor possibilidade de dissociação entre o órgão e a pessoa natural em que sediado. Pelo que proibir a discriminação em razão do sexo (como faz o inciso III do art. 1º da nossa Constituição Republicana) é proteger o homem e a mulher como um todo psicossomático e espiritual necessário conseguir rapidamente progressos quanto ao reconhecimento mútuo na União Europeia destas diversas formas legais de uniões de fato e de matrimônios entre pessoas do mesmo sexo.” 6 ‘Art. 3º O Estado assegura por suas leis e pelos atos dos seus agentes, além dos direitos e garantias individuais previstos na Constituição Federal e decorrentes do regime e dos princípios que ela adota, ainda os seguintes: (...) II – proteção contra discriminação por motivo de raça, cor, sexo,

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idade, classe social, orientação sexual, deficiência física, mental ou sensorial, convicção político ideológica, crença em manifestação religiosa, sendo os infratores passíveis de punição por lei.” 7 “Art. 10 – O Estado do Mato Grosso e seus Municípios assegurarão, pela lei e pelos atos dos agentes de seus Poderes, a imediata e plena efetividade e todos os direitos e garantias individuais e coletivas, além dos correspondentes deveres, (...), nos termos seguintes: (...) III – a implantação de meios assecuratórios de que ninguém será prejudicado ou privilegiado em razão de nascimento, raça, cor, sexo, estado civil, natureza de seu trabalho, idade, religião, orientação sexual, convicções políticas ou filosóficas, deficiência física ou mental e qualquer particularidade ou condição” 18 que abarca a dimensão sexual de cada qual deles. Por conseguinte, cuida-se de proteção constitucional que faz da livre disposição da sexualidade do indivíduo um autonomizado instituto jurídico. Um tipo de liberdade que é, em si e por si, um autêntico bem de personalidade. Um dado elementar da criatura humana em sua intrínseca dignidade de universo à parte. Algo já transposto ou catapultado para a inviolável esfera da autonomia de vontade do indivíduo, na medida em que sentido e praticado como elemento da compostura anímica e psicofísica (volta-se a dizer) do ser humano em busca de sua plenitude existencial. Que termina sendo uma busca de si mesmo, na luminosa trilha do “Torna-te quem és”, tão bem teoricamente explorada por Friedrich Nietzsche. Uma busca da irrepetível identidade individual que, transposta para o plano da aventura humana como um todo, levou Hegel a sentenciar que a evolução do espírito do tempo se define como um caminhar na direção do aperfeiçoamento de si mesmo (cito de memória). Afinal, a sexualidade, no seu notório transitar do prazer puramente físico para os colmos olímpicos da extasia amorosa, se põe como um plus ou superávit de vida. Não enquanto um minus ou déficit existencial. Corresponde a um ganho, um bônus, um regalo da natureza, e não a uma subtração, um ônus, um peso ou

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estorvo, menos ainda a uma reprimenda dos deuses em estado de fúria ou de alucinada retaliação perante o gênero humano. No particular, o derramamento de bílis que tanto prejudica a produção dos neurônios é coisa dos homens; não dos deuses do Olimpo, menos ainda da natureza. O que, por certo, 19 inspirou Jung (Carl Gustav) a enunciar que “A homossexualidade, porém, é entendida não como anomalia patológica, mas como identidade psíquica e, portanto, como equilíbrio específico que o sujeito encontra no seu processo de individuação”. Como que antecipando um dos conteúdos do preâmbulo da nossa Constituição, precisamente aquele que insere “a liberdade” e “a igualdade” na lista dos “valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...)”. 20. Nesse fluxo de interpretação constitucional das coisas, vê-se que estamos a lidar com normas que não distinguem a espécie feminina da espécie masculina, como não excluem qualquer das modalidades do concreto uso da sexualidade de cada pessoa natural. É ajuizar: seja qual for a preferência sexual das pessoas, a qualificação dessa preferência como conduta juridicamente lícita se dá por antecipação. Até porque, reconheçamos, nesse movediço terreno da sexualidade humana é impossível negar que a presença da natureza se faz particularmente forte. Ostensiva. Tendendo mesmo a um tipo de mescla entre instinto e sentimento que parece começar pelo primeiro, embora sem o ortodoxo sentido de pulsão. O que já põe o Direito em estado de alerta,

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para não incorrer na temeridade de regulamentar o factual e axiologicamente irregulamentável. A não ser quando a sexualidade de uma pessoa é manejada para negar a sexualidade da outra, como sucede, por exemplo, com essa ignominiosa violência a que o Direito apõe o rótulo de estupro. Ou 20 com o desvario ético-social da pedofilia e do incesto. Ou quando resvalar para a zona legalmente proibida do concubinato. 21. Óbvio que, nessa altaneira posição de direito fundamental e bem de personalidade, a preferência sexual se põe como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana” (inciso III do art. 1º da CF), e, assim, poderoso fator de afirmação e elevação pessoal. De auto-estima no mais elevado ponto da consciência. Auto-estima, de sua parte, a aplainar o mais abrangente caminho da felicidade, tal como positivamente normada desde a primeira declaração norte-americana de direitos humanos (Declaração de Direitos do Estado da Virgínia, de 16 de junho de 17768) e até hoje perpassante das declarações constitucionais do gênero. Afinal, se as pessoas de preferência heterossexual só podem se realizar ou ser felizes heterossexualmente, as de preferência homossexual seguem na mesma toada: só podem se realizar ou ser felizes homossexualmente. Ou “homoafetivamente”, como hoje em dia mais e mais se fala, talvez para retratar o relevante fato de que o século XXI já se marca pela preponderância da afetividade sobre a biologicidade. Do afeto sobre o

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biológico, este último como realidade tãosomente mecânica ou automática, porque independente da vontade daquele que é posto 8 “Art. 1º - Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança” 21 no mundo como conseqüência da fecundação de um individualizado óvulo por um também individualizado espermatozóide. 22. Muito bem. Consignado que a nossa Constituição vedou às expressas o preconceito em razão do sexo e intencionalmente nem obrigou nem proibiu o concreto uso da sexualidade humana, o que se tem como resultado dessa conjugada técnica de normação é o reconhecimento de que tal uso faz parte da autonomia de vontade das pessoas naturais, constituindo-se em direito subjetivo ou situação jurídica ativa. Direito potestativo que se perfila ao lado das clássicas liberdades individuais que se impõem ao respeito do Estado e da sociedade (liberdade de pensamento, de locomoção, de informação, de trabalho, de expressão artística, intelectual, científica e de comunicação, etc). Mais ainda, liberdade que se concretiza: I - sob a forma de direito à intimidade, se visualizada pelo prisma da abstenção, ou, então, do solitário desfrute (onanismo); II – sob a forma de direito à privacidade, se a visualização já ocorrer pelo ângulo do intercurso ou emparceirado desfrute (plano da intersubjetividade, por conseguinte).

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22 23. Não pode ser diferente, porque nada mais íntimo e mais privado para os indivíduos do que a prática da sua própria sexualidade. Implicando o silêncio normativo da nossa Lei Maior, quanto a essa prática, um lógico encaixe do livre uso da sexualidade humana nos escaninhos jurídicofundamentais da intimidade e da privacidade das pessoas naturais. Tal como sobre essas duas figuras de direito dispõe a parte inicial do art. 10 da Constituição, verbis: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”. Com o aporte da regra da auto-aplicabilidade possível das normas consubstanciadoras dos direitos e garantias fundamentais, a teor do §1º do art. 5º da nossa Lei Maior, assim redigido: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata”. 24. Daqui se deduz que a liberdade sexual do ser humano somente deixaria de se inscrever no âmbito de incidência desses últimos dispositivos constitucionais (inciso X e §1º do art. 5º), se houvesse enunciação igualmente constitucional em sentido diverso. Coisa que não existe. Sendo certo que o direito à intimidade diz respeito ao indivíduo consigo mesmo (pensese na lavratura de um diário), tanto quanto a privacidade se circunscreve ao âmbito do indivíduo em face dos seus parentes e pessoas mais chegadas (como se dá na troca de e-mails, por exemplo). 23 25. Faço uma primeira síntese, a título de fundamentação de mérito do presente voto.

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Ei-la: I - a Constituição do Brasil proíbe, por modo expresso, o preconceito em razão do sexo ou da natural diferença entre a mulher e o homem. Uma proibição que nivela o fato de ser homem ou de ser mulher às contingências da origem social e geográfica das pessoas, assim como da idade, da cor da pele e da raça, na acepção de que nenhum desses fatores acidentais ou fortuitos se põe como causa de merecimento ou de desmerecimento intrínseco de quem quer que seja; II - Não se prestando como fator de merecimento inato ou de intrínseco desmerecimento do ser humano, o pertencer ao sexo masculino ou então ao sexo feminino é apenas um fato ou acontecimento que se inscreve nas tramas do imponderável. Do incognoscível. Da química da própria natureza. Quem sabe, algo que se passa nas secretíssimas confabulações do óvulo feminino e do espermatozóide masculino que o fecunda, pois o tema se expõe, em sua faticidade mesma, a todo tipo de especulação metajurídica. Mas é preciso aduzir, já agora no espaço da cognição jurídica propriamente dita, que a 24 vedação de preconceito em razão da compostura masculina ou então feminina das pessoas também incide quanto à possibilidade do concreto

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uso da sexualidade de que eles são necessários portadores. Logo, é tão proibido discriminar as pessoas em razão da sua espécie masculina ou feminina quanto em função da respectiva preferência sexual. Numa frase: há um direito constitucional líquido e certo à isonomia entre homem e mulher: a)de não sofrer discriminação pelo fato em si da contraposta conformação anátomofisiológica; b) de fazer ou deixar de fazer uso da respectiva sexualidade; c) de, nas situações de uso emparceirado da sexualidade, fazê-lo com pessoas adultas do mesmo sexo, ou não; quer dizer, assim como não assiste ao espécime masculino o direito de não ser juridicamente equiparado ao espécime feminino diferenças biológicas não assiste às pessoas heteroafetivas o direito de se contrapor à sua equivalência jurídica perante sujeitos homoafetivos. O que existe é precisamente o contrário: o direito da mulher a tratamento igualitário com os homens, assim como o direito dos homoafetivos a tratamento isonômico com os heteroafetivos; 25 III – cuida-se, em rigor, de um salto normativo da proibição de preconceito para a proclamação do próprio direito a uma concreta liberdade do mais largo espectro,

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decorrendo tal liberdade de um intencional mutismo da Constituição em tema de empírico emprego da sexualidade humana. É que a total ausência de previsão normativoconstitucional sobre esse concreto desfrute da preferência sexual das pessoas faz entrar em ignição, primeiramente, a regra universalmente válida de que “tudo aquilo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido” (esse o conteúdo do inciso II do art. 5º da nossa Constituição); em segundo lugar, porque nada é de maior intimidade ou de mais entranhada privacidade do que o factual emprego da sexualidade humana. E o certo é que intimidade e vida privada são direitos individuais de primeira grandeza constitucional, por dizerem respeito à personalidade ou ao modo único de ser das pessoas naturais. Por isso mesmo que de sua rasa e crua desproteção jurídica, na matéria de que nos ocupamos, resultaria brutal intromissão do Estado no direito subjetivo a uma troca de afetos e satisfação de desejos tão in natura que o poetacantor Caetano Velloso bem traduziu 26 na metafórica locução “bruta flor do querer”. E em terceiro lugar, a âncora normativa do §1º do mesmo art. 5º da Constituição;

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IV – essa liberdade para dispor da própria sexualidade insere-se no rol dos direitos fundamentais do indivíduo, expressão que é de autonomia de vontade, direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana e até mesmo “cláusula pétrea”, nos termos do inciso IV do §4º do art. 60 da CF (cláusula que abrange “os direitos e garantias individuais” de berço diretamente constitucional); V – esse mesmo e fundamental direito de explorar os potenciais da própria sexualidade tanto é exercitável no plano da intimidade (absenteísmo sexual e onanismo) quanto da privacidade (intercurso sexual ou coisa que o valha). Pouco importando, nesta última suposição, que o parceiro adulto seja do mesmo sexo, ou não, pois a situação jurídica em foco é de natureza potestativa (disponível, portanto) e de espectro funcional que só pode correr parelha com a livre imaginação ou personalíssima alegria amorosa, que outra coisa não é senão a entrega do ser humano às suas próprias fantasias ou expectativas erótico-afetivas. A sós, ou em parceria, renove-se o juízo. É como dizer: se o corpo se 27 divide em partes, tanto quanto a alma se divide em princípios, o Direito só tem uma coisa a fazer: tutelar a voluntária mescla de tais

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partes e princípios numa amorosa unidade. Que termina sendo a própria simbiose do corpo e da alma de pessoas que apenas desejam conciliar pelo modo mais solto e orgânico possível sua dualidade personativa em um sólido conjunto, experimentando aquela nirvânica aritmética amorosa que Jean-Paul Sartre sintetizou na fórmula de que: na matemática do amor, um mais um... é igual a um; VI – enfim, assim como não se pode separar as pessoas naturais do sistema de órgãos que lhes timbra a anatomia e funcionalidade sexuais, também não se pode excluir do direito à intimidade e à vida privada dos indivíduos a dimensão sexual do seu telúrico existir. Dimensão que, de tão natural e até mesmo instintiva, só pode vir a lume assim por modo predominantemente natural e instintivo mesmo, respeitada a mencionada liberdade do concreto uso da sexualidade alheia. Salvo se a nossa Constituição lavrasse no campo da explícita proibição (o que seria tão obscurantista quanto factualmente inútil), ou do levantamento de diques para o fluir da sexuada imaginação das pessoas 28 (o que também seria tão empiricamente ineficaz quanto ingênuo até, pra não dizer ridículo). Despautério a que não se

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permitiu a nossa Lei das Leis. Por conseqüência, homens e mulheres: a) não podem ser discriminados em função do sexo com que nasceram; b) também não podem ser alvo de discriminação pelo empírico uso que vierem a fazer da própria sexualidade; c) mais que isso, todo espécime feminino ou masculino goza da fundamental liberdade de dispor sobre o respectivo potencial de sexualidade, fazendo-o como expressão do direito à intimidade, ou então à privacidade (nunca é demais repetir). O que significa o óbvio reconhecimento de que todos são iguais em razão da espécie humana de que façam parte e das tendências ou preferências sexuais que lhes ditar, com exclusividade, a própria natureza, qualificada pela nossa Constituição como autonomia de vontade. Iguais para suportar deveres, ônus e obrigações de caráter jurídico-positivo, iguais para titularizar direitos, bônus e interesses também juridicamente positivados. 26. Se é assim, e tratando-se de direitos clausulados como pétreos (inciso IV do §4º do artigo constitucional de nº 60), cabe 29 perguntar se a Constituição Federal sonega aos parceiros homoafetivos, em estado de prolongada ou estabilizada união, o mesmo regime jurídico-protetivo que dela se desprende para favorecer os casais

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heteroafetivos em situação de voluntário enlace igualmente caracterizado pela estabilidade. Que, no fundo, é o móvel da propositura das duas ações constitucionais sub judice. 27. Bem, para responder a essa decisiva pergunta, impossível deixar de começar pela análise do capítulo constitucional que tem como seu englobado conteúdo, justamente, as figuras jurídicas da família, do casamento civil, da união estável, do planejamento familiar e da adoção. É o capítulo de nº VII, integrativo do título constitucional versante sobre a “Ordem Social” (Título VIII). Capítulo nitidamente protetivo dos cinco mencionados institutos, porém com ênfase para a família, de logo aquinhoada com a cláusula expressa da especial proteção do Estado, verbis: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (caput do ar. 226). Em seqüência é que a nossa Lei Maior aporta consigo os dispositivos que mais de perto interessam ao equacionamento das questões de que tratam as duas ações sob julgamento, que são os seguintes: a) “O casamento é civil e gratuita a sua celebração” (§1º); b) ”O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei” (§2º); c) “Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como 30 entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento” (§3º); d) “Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (§4º); e) “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são

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exercidos igualmente pelo homem e pela mulher” (§5º); f) “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio” (§6º); g) “Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas” (§7º); h) “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações” (§8º); i)”A adoção será assistida pelo poder público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros” (§5º do art. 227); j) “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação” (§6º do art. 227). 28. De toda essa estrutura de linguagem prescritiva (“textos normativos”, diria Friedrich Müller), salta à evidência que a parte mais importante é a própria cabeça do art. 226, alusiva à instituição da família, pois somente ela -se na observação 31 - é que foi contemplada com a referida cláusula da especial proteção estatal. Mas família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heterossexuais ou por pessoas assumidamente

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homoafetivas. Logo, família como fato cultural e espiritual ao mesmo tempo (não necessariamente como fato biológico). Tanto assim que referida como parâmetro de fixação do salário mínimo de âmbito nacional (inciso IV do art. 7º) e como específica parcela da remuneração habitual do trabalhador (“salário-família”, mais precisamente, consoante o inciso XII do mesmo art. 5º), sem que o Magno Texto Federal a subordinasse a outro requisito de formação que não a faticidade em si da sua realidade como autonomizado conjunto doméstico. O mesmo acontecendo com outros dispositivos constitucionais, de que servem de amostra os incisos XXVI, LXII e LXIII do art. 5º; art.191; inciso IV e §12 do art. 201; art. 203; art. 205 e inciso IV do art. 221, nos quais permanece a invariável diretriz do não-atrelamento da formação da família a casais heteroafetivos nem a qualquer formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa; vale dizer, em todos esses preceitos a Constituição limita o seu discurso ao reconhecimento da família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Sem embargo de, num solitário parágrafo §1º do art. 183, referir-se à dicotomia básica do homem e da 32 mulher, mas, ainda assim: a)como forma especial de equiparação da importância jurídica do respectivo labor masculino e feminino; b) como resposta normativa ao fato de que, não raro, o marido ou companheiro abandona o lar e com mais facilidade se

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predispõe a negociar seu título de domínio ou de concessão de uso daquele bem imóvel até então ocupado pelo casal. Base de inspiração ou vetores que já obedecem a um outro tipo de serviência a valores que não se hierarquizam em função da heteroafetividade ou da homoafetividade das pessoas. 29. Deveras, mais que um singelo instituto de Direito em sentido objetivo, a família é uma complexa instituição social em sentido subjetivo. Logo, um aparelho, uma entidade, um organismo, uma estrutura das mais permanentes relações intersubjetivas, um aparato de poder, enfim. Poder doméstico, por evidente, mas no sentido de centro subjetivado da mais próxima, íntima, natural, imediata, carinhosa, confiável e prolongada forma de agregação humana. Tão insimilar a qualquer outra forma de agrupamento humano quanto a pessoa natural perante outra, na sua elementar função de primeiro e insubstituível elo entre o indivíduo e a sociedade. Ambiente primaz, acresça-se, de uma convivência empiricamente instaurada por iniciativa de pessoas que se vêem tomadas da mais qualificada das empatias, porque envolta numa atmosfera de afetividade, aconchego habitacional, concreta admiração ético-espiritual e propósito de felicidade tão 33 emparceiradamente experimentada quanto distendida no tempo e à vista de todos. Tudo isso permeado da franca possibilidade de extensão desse estado personalizado de coisas a outros membros desse mesmo núcleo doméstico, de que servem de amostra os

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filhos (consangüíneos ou não), avós, netos, sobrinhos e irmãos. Até porque esse núcleo familiar é o principal lócus de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º), além de, já numa dimensão de moradia, se constituir no asilo “inviolável do indivíduo”, consoante dicção do inciso XI desse mesmo artigo constitucional. O que responde pela transformação de anônimas casas em personalizados lares, sem o que não se tem um igualmente personalizado pedaço de chão no mundo. E sendo assim a mais natural das coletividades humanas ou o apogeu da integração comunitária, a família teria mesmo que receber a mais dilatada conceituação jurídica e a mais extensa rede de proteção constitucional. Em rigor, uma palavra-gênero, insuscetível de antecipado fechamento conceitual das espécies em que pode culturalmente se desdobrar. 30. Daqui se desata a nítida compreensão de que a família é, por natureza ou no plano dos fatos, vocacionalmente amorosa, parental e protetora dos respectivos membros, constituindo-se, no espaço ideal das mais duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas relações humanas de índole privada. O que a credencia como base da 34 sociedade, pois também a sociedade se deseja assim estável, afetiva, solidária e espiritualmente estruturada (não sendo por outra razão que Rui Barbosa definia a família como “a Pátria amplificada”). Que termina sendo o alcance de uma forma superior de vida coletiva, porque

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especialmente inclinada para o crescimento espiritual dos respectivos integrantes. Integrantes humanos em concreto estado de comunhão de interesses, valores e consciência da partilha de um mesmo destino histórico. Vida em comunidade, portanto, sabido que comunidade vem de “comum unidade”. E como toda comunidade, tanto a família como a sociedade civil são usinas de comportamentos assecuratórios da sobrevivência, equilíbrio e evolução do Todo e de cada uma de suas partes. Espécie de locomotiva social ou cadinho em que se tempera o próprio caráter dos seus individualizados membros e se chega à serena compreensão de que ali é verdadeiramente o espaço do mais entranhado afeto e desatada cooperação. Afinal, é no regaço da família que desabrocham com muito mais viço as virtudes subjetivas da tolerância, sacrifício e renúncia, adensadas por um tipo de compreensão que certamente esteve presente na proposição spnozista de que, “Nas coisas ditas humanas, não há o que crucificar, ou ridicularizar. Há só o que compreender”. 31. Ora bem, é desse anímico e cultural conceito de família que se orna a cabeça do art. 226 da Constituição. Donde a sua 35 literal categorização com “base da sociedade”. E assim normada como figura central ou verdadeiro continente para tudo o mais, ela, família, é que deve servir de norte para a interpretação dos dispositivos em que o capítulo VII se desdobra, conforme transcrição acima feita. Não o inverso. Artigos que têm por objeto os institutos do

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casamento civil, da união estável, do planejamento familiar, da adoção, etc., todos eles somente apreendidos na inteireza da respectiva compostura e funcionalidade na medida em que imersos no continente (reitere-se o uso da metáfora) em que a instituição da família consiste. 32. E se insistimos na metáfora do “continente” é porque o núcleo doméstico em que a família se constitui ainda cumpre explícitas funções jurídicas do mais alto relevo individual e coletivo, amplamente justificadoras da especial proteção estatal que lhe assegura o citado art. 226. Refirome a preceitos que de logo tenho como fundamentais pela sua mais entranhada serventia para a concreção dos princípios da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho, que são, respectivamente, os incisos II, III e IV do art. 1º da CF. Logo, preceitos fundamentais por reverberação, arrastamento ou reforçada complementaridade, a saber: I – “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao 36 pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”; II – “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à

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convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”; III – “Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindolhes o direito à vida” (sem os caracteres negritados, no original). 33. E assim é que, mais uma vez, a Constituição Federal não faz a menor diferenciação entre a família formalmente constituída e aquela existente ao rés dos fatos. Como também não distingue entre a família que se forma por sujeitos heteroafetivos e a que se constitui por pessoas de inclinação homoafetiva. Por isso que, sem nenhuma ginástica mental ou alquimia interpretativa, dá para compreender que a nossa Magna Carta não emprestou ao substantivo “família” nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. 37 Recolheu-o com o sentido coloquial praticamente aberto que sempre portou como realidade do mundo do ser. Assim como dá para inferir que, quanto maior o número dos espaços doméstica e autonomamente estruturados, maior a possibilidade de efetiva colaboração entre esses núcleos familiares, o Estado e a sociedade, na perspectiva do cumprimento de conjugados deveres que são funções essenciais à plenificação da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho. Isso numa projeção exógena ou

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extra-muros domésticos, porque, endogenamente ou interna corporis, os beneficiários imediatos dessa multiplicação de unidades familiares são os seus originários formadores, parentes e agregados. Incluído nestas duas últimas categorias dos parentes e agregados o contingente das crianças, dos adolescentes e dos idosos. Também eles, crianças, adolescentes e idosos, tanto mais protegidos quanto partícipes dessa vida em comunhão que é, por natureza, a família. Sabido que lugar de crianças e adolescentes não é propriamente o orfanato, menos ainda a rua, a sarjeta, ou os guetos da prostituição infantil e do consumo de entorpecentes e drogas afins. Tanto quanto o espaço de vida ideal para os idosos não são os albergues ou asilos públicos, muito menos o relento ou os bancos de jardim em que levas e levas de seres humanos despejam suas últimas sobras de gente. mas o comunitário ambiente da própria família. Tudo conforme os expressos dizeres dos artigos 227 e 229 da Constituição, este último alusivo às pessoas 38 idosas, e, aquele, pertinente às crianças e aos adolescentes. 34. Assim interpretando por forma nãoreducionista o conceito de família, penso que este STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo da coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico. Quando o certo ênia de

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opinião divergente - é extrair do sistema de comandos da Constituição os encadeados juízos que precedentemente verbalizamos, agora arrematados com a proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Entendida esta, no âmbito das duas tipologias de sujeitos jurídicos, como um núcleo doméstico independente de qualquer outro e constituído, em regra, com as mesmas notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade. Pena de se consagrar uma liberdade homoafetiva pela metade ou condenada a encontros tão ocasionais quanto clandestinos ou subterrâneos. Uma canhestra liberdade “mais ou menos”, para lembrar um poema alegadamente psicografado pelo tão prestigiado médium brasileiro Chico Xavier, hoje falecido, que, iniciando pelos versos de que “A gente pode morar numa casa mais ou menos,/Numa rua mais ou menos,/ Numa cidade mais ou menos”/ E até ter um governo mais ou menos”, assim conclui a sua lúcida mensagem: 39 “O que a gente não pode mesmo,/ Nunca, de jeito nenhum,/ É amar mais ou menos,/ É sonhar mais ou menos,/ É ser amigo mais ou menos,/ (...) Senão a gente corre o risco de se tornar uma pessoa mais ou menos”. 35. Passemos, então, a partir desse contexto normativo da família como base da sociedade e entidade credora da especial tutela do Estado, à interpretação de cada qual dos institutos em que se desdobra esse emblemático art. 226 da Constituição. Institutos que principiam pelo casamento

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civil, a saber: I – “O casamento é civil e gratuita a celebração”. Dando-se que “O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei” (§§1º e 2º). Com o que essa figura do casamento perante o Juiz, ou religiosamente celebrado com efeito civil, comparece como uma das modalidades de constituição da família. Não a única forma, como, agora sim, acontecia na Constituição de 1967, literis: “A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos” (caput do art. 175, já considerada a Emenda Constitucional nº1, de 1969). É deduzir: se, na Carta Política vencida, toda a ênfase protetiva era para o casamento, visto que ele açambarcava a família como entidade, agora, na Constituição vencedora, a ênfase tutelar se desloca para a instituição da família 40 mesma. Família que pode prosseguir, se houver descendentes ou então agregados, com a eventual dissolução do casamento (vai-se o casamento, fica a família). Um liame já não umbilical como o que prevalecia na velha ordem constitucional, sobre a qual foi jogada, em hora mais que ansiada, a última pá de cal. Sem embargo do reconhecimento de que essa primeira referência ao casamento de papel passado traduza uma homenagem da nossa Lei Fundamental de 1988 à tradição. Melhor dizendo, homenagem a uma tradição ocidental de maior prestígio sociocultural- religioso a um modelo de matrimônio que ocorre à vista de todos,

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com pompa e circunstância e revelador de um pacto afetivo que se deseja tão publicamente conhecido que celebrado ante o juiz, ou o sacerdote juridicamente habilitado, e sob o testemunho igualmente formal de pessoas da sociedade. Logo, um pacto formalmente predisposto à perdurabilidade e deflagrador de tão conhecidos quanto inquestionáveis efeitos jurídicos de monta, como, por exemplo, a definição do regime de bens do casal, sua submissão a determinadas regras de direito sucessório, pressuposição de paternidade na fluência do matrimônio9 e 9 “Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casa (...)”

41 mudança do estado civil dos contraentes, que de solteiros ou viúvos passam automaticamente à condição de casados. A justificar, portanto, essas primeiras referências que a ele, casamento civil, faz a nossa Constituição nos dois parágrafos em causa (§§1º e 2º do art. 226); ou seja, nada mais natural que prestigiar por primeiro uma forma de constituição da família que se apresenta com as vestes da mais ampla notoriedade e promessa igualmente pública de todo empenho pela continuidade do enlace afetivo, pois, ao fim e ao cabo, esse tipo de prestígio constitucional redunda em benefício da estabilidade da própria família. O continente que não se exaure em nenhum dos seus conteúdos, inclusive esse do casamento civil; II – com efeito, após falar do casamento

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civil como uma das formas de constituição da família, a nossa Lei Maior adiciona ao seu art. 226 um §3º para cuidar de uma nova modalidade de formação de um autonomizado núcleo doméstico, por ela batizado de “entidade familiar”. É o núcleo doméstico que se constitui pela “união estável entre o homem e a mulher, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Donde a necessidade de se aclarar: II.1. - que essa referência à dualidade básica homem/mulher tem uma lógica inicial: dar imediata seqüência àquela vertente 42 constitucional de incentivo ao casamento como forma de reverência à tradição sócio-cultural-religiosa do mundo ocidental de que o Brasil faz parte (§1º do art. 226 da CF), sabido que o casamento civil brasileiro tem sido protagonizado por pessoas de sexos diferentes, até hoje. Casamento civil, aliás, regrado pela Constituição Federal sem a menor referência aos substantivos “homem” e “mulher”; II.2. que a normação desse novo tipo de união, agora expressamente referida à dualidade do homem e da mulher, também se deve ao propósito constitucional de não perder a menor oportunidade de estabelecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia entre as duas tipologias do gênero humano, sabido que a mulher que se une ao homem em regime

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de companheirismo ou sem papel passado ainda é vítima de comentários desairosos de sua honra objetiva, tal a renitência desse ranço do patriarcalismo entre nós (não se pode esquecer que até 1962, a mulher era juridicamente categorizada como relativamente incapaz, para os atos da vida civil, nos termos da redação original do art. 6º do Código Civil de 1916); tanto é assim que o §4º desse mesmo art. 226 (antecipo o comentário) reza que “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são 43 exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. Preceito, este último, que relança o discurso do inciso I do art. 5º da Constituição (“homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”) para atuar como estratégia de reforço normativo a um mais eficiente combate àquela renitência patriarcal dos nossos costumes. Só e só, pois esse combate mais eficaz ao preconceito que teimosamente persiste para inferiorizar a mulher perante o homem é uma espécie de briga particular ou bandeira de luta que a nossa Constituição desfralda numa outra esfera de arejamento mental da vida brasileira, nada tendo a ver com a dicotomia da heteroafetividade e da homoafetividade. Logo, que não se faça uso da letra da Constituição para matar o seu espírito, no fluxo

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de uma postura interpretativa que faz ressuscitar o mencionado caput do art. 175 da Constituição de 1967/69. Ou como diz Sérgio da Silva Mendes, que não se separe por um parágrafo (esse de nº 3) o que a vida uniu pelo afeto. Numa nova metáfora, não se pode fazer rolar a cabeça do artigo 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro; II.3. que a terminologia “entidade familiar” não significa algo diferente de “família”, pois não há hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas 44 formas de constituição de um novo núcleo doméstico. Estou a dizer: a expressão “entidade familiar” não foi usada para designar um tipo inferior de unidade doméstica, porque apenas a meio caminho da família que se forma pelo casamento civil. Não foi e não é isso, pois inexiste essa figura da sub-família, família de segunda classe ou família “mais ou menos” (relembrando o poema de Chico Xavier). O fraseado apenas foi usado como sinônimo perfeito de família, que é um organismo, um aparelho, uma entidade, embora sem personalidade jurídica. Logo, diferentemente do casamento ou da própria união estável, a família não se define como simples instituto ou figura de direito em sentido meramente objetivo. Essas duas objetivas figuras de direito que são

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o casamento civil e a união estável é que se distinguem mutuamente, mas o resultado a que chegam é idêntico: uma nova família, ou, se se prefere, Uma nova “entidade familiar”, seja a constituída por pares homoafetivos, seja a formada por casais heteroafetivos. Afinal, se a família, como entidade que é, não se inclui no rol das “entidades associativas” (inciso XXI do art. 5º da CF), nem se constitui em “entidade de classe” (alínea b do inciso XXI do mesmo art. 5º), “entidades governamentais” (ainda esse art. 5º, alínea A do inciso 45 LXXII), “entidades sindicais” (alínea c do inciso III do art. 150), “entidades beneficentes de assistência social” (§7º do art. 195), “entidades filantrópicas” (§1º do art. 199), ou em nenhuma outra tipologia de entidades a que abundantemente se reporta a nossa Constituição, ela, família, só pode ser uma “entidade ... familiar”. Que outra entidade lhe restaria para ser? Em rigor, trata-se da mesma técnica redacional que a nossa Lei das Leis usou, por exemplo, para chamar de “entidades autárquicas” (inciso I do §1º do art. 144) as suas “autarquias” (§3º do art. 202). Assim como chamou de “entidade federativa” §11 do art. 100) cada personalizada unidade política da nossa “Federação” (inciso II do art.

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34). E nunca apareceu ninguém, nem certamente vai aparecer, para sustentar a tese de que “entidade autárquica” não é “autarquia”, nem “entidade federativa” é algo diferente de “Federação”. Por que entidade familiar não é família? E família por inteiro (não pela metade)? II.4. que as diferenças nodulares entre “união estável” e “casamento civil” já são antecipadas pela própria Constituição, como, por ilustração, a submissão da união estável à prova dessa estabilidade (que só pode ser um requisito de 46 natureza temporal), exigência que não é feita para o casamento. Ou quando a Constituição cuida da forma de dissolução do casamento civil (divórcio), deixando de fazê-lo quanto à união estável (§6º do art. 226). Mas tanto numa quanto noutra modalidade de legítima constituição da família, nenhuma referência é feita à interdição, ou à possibilidade,de protagonização por pessoas do mesmo sexo. Desde que preenchidas, também por evidente, as condições legalmente impostas aos casais heteroafetivos. Inteligência que se robustece com a proposição de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um interesse de outrem. E já vimos que a contraparte específica ou o focado contraponto

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jurídico dos sujeitos homoafetivos só podem ser os indivíduos heteroafetivos, e o fato é que a tais indivíduos não assiste o direito à não-equiparação jurídica com os primeiros. Visto que sua heteroafetividade em si não os torna superiores em nada. Não os beneficia com a titularidade exclusiva do direito à constituição de uma família. Aqui, o reino é da igualdade pura e simples, pois não se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham. E quanto à sociedade como um todo, sua estruturação é de se dar, já o dissemos, com fincas na 47 fraternidade, no pluralismo e na proibição do preconceito, conforme os expressos dizeres do preâmbulo da nossa Constituição. III – salto para o §4º do art. 226, apenas para dar conta de que a família também se forma por uma terceira e expressa modalidade, traduzida na concreta existência de uma “comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. É o que a doutrina entende por “família monoparental”, sem que se possa fazer em seu desfavor, pontuo, qualquer inferiorizada comparação com o casamento civil ou união estável. Basta pensar no absurdo que seria uma mulher casada enviuvar e manter consigo um ou mais filhos do antigo casal, passando a ter que suportar o rebaixamento da sua família à

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condição de “entidade familiar”; ou seja, além de perder o marido, essa mulher perderia o status de membro de uma consolidada família. Sua nova e rebaixada posição seria de membro de uma simplória “entidade familiar”, porque sua antiga família morreria com seu antigo marido. Baixaria ao túmulo com ele. De todo modo, também aqui a Constituição é apenas enunciativa no seu comando, nunca taxativa, pois não se pode recusar a condição de família monoparental àquela constituída, por exemplo, por qualquer dos avós e um ou mais netos, ou até mesmo por tios e sobrinhos. Como não se pode pré-excluir 48 da adoção ativa pessoas de qualquer preferência sexual, sozinhas ou em regime de emparceiramento. 36. Por último, anoto que a Constituição Federal remete à lei a incumbência de dispor sobre a assistência do Poder Público à adoção, inclusive pelo estabelecimento de casos e condições da sua (dela, adoção) efetivação por parte de estrangeiros (§5º do art. 227); E também nessa parte do seu estoque normativo não abre distinção entre adotante “homo” ou “heteroafetivo”. E como possibilita a adoção por uma só pessoa adulta, também sem distinguir entre o adotante solteiro e o adotante casado, ou então em regime de união estável, penso aplicar-se ao tema o mesmo raciocínio de proibição do preconceito e da regra do inciso II do art. 5º da CF, combinadamente com o

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inciso IV do art. 3º e o §1º do art. 5º da Constituição. Mas é óbvio que o mencionado regime legal há de observar, entre outras medidas de defesa e proteção do adotando, todo o conteúdo do art. 227, cabeça, da nossa Lei Fundamental. 37. Dando por suficiente a presente análise da Constituição, julgo, em caráter preliminar, parcialmente prejudicada a ADPF nº 132-RJ, e, na parte remanescente, dela conheço como ação direta de inconstitucionalidade. No mérito, julgo procedentes as duas ações em causa. Pelo que dou ao art. 1.723 do 49 Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família”. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas conseqüências da união estável heteroafetiva.

É como voto.

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HABEAS CORPUS N. 4.781/1919 Vistos, relatados e discutidos estes autos, deles consta que o senador Ruy Barbosa, por seu procurador dr. Arthur Pinto da Rocha, requereu o presente habeas corpus

preventivo, para si e para os srs. dr. Miguel Calmon, dr. Pedro Lago, dr. Simões Filho, dr. Medeiros Netto, dr. Vital Soares, dr. Lemos Britto, dr. Pires de Carvalho, Altamirando Requião, Octaviano Saback, Américo Barreto, dr. Alberto Porto Rodrigues da Silveira, Agenor Chaves, Madureira de Pinho, Mario Leal, Homero Pires, dr. João Mangabeira, Archimedes Pires, dr. Alfredo Ruy Barbosa e dr. Caio Monteiro de Barros, individualmente, e extensiva a todos os seus correligionários políticos e amigos, para que possam, no Estado da Bahia e principalmente na cidade de São Salvador, sua capital, reunir-se todos, em comícios, nas praças públicas, ruas, teatros e quaisquer outros recintos, onde manifestem, livremente, seus pensamentos e opiniões, ameaçados como se acham todos, de sofrer violências e impedidos e coagidos como estão, por abusos de autoridade dos poderes públicos do Estado, representados por sua polícia. O impetrante justifica o perigo iminente de coação com os seguintes fatos: 1.º como é notório, a polícia, por soldados à paisana e desordeiros da pior espécie, dispersou, a tiros de revólver, um comício que, a 25 de março findo, os drs. Miguel Calmon e Pedro Lago e outros pretendiam realizar, na praça Rio Branco, a favor da candidatura do impetrante ao cargo de Presidente da República, sendo certo que essa malta fora aliciada e posta às ordens do chefe de Polícia dr. Alvaro Cóva, do deputado federal Alvaro Villas Boas e de Carlos Seabra, filho do senador J. J. Seabra; 2.º depois dos lutuosos acontecimentos desse dia, todos os telegramas da Bahia, quer particulares, quer dirigidos à imprensa desta capital, traduzem, claramente, a situação de verdadeiro terror pânico em que se acha a população da cidade de S. Salvador, prevendo, para cada momento, as mais graves e trágicas perturbações da ordem, à vista das ameaças que são publicamente feitas aos adversários oposicionistas. Entre esses telegramas, merece especial menção aquele que anuncia o propósito firme em que se acham o senador Seabra e seus adeptos de comparecer às reuniões convocadas pelos amigos do impetrante, afim de apartearem aos oradores e, principalmente, ao próprio candidato da Nação, quando este se referir ao Governo do Estado; 3.º como se vê de um telegrama do dia 26, publicado no Jornal do Comércio

desta Capital, o chefe de Polícia, de certo com ciência e aquiescência do governador do Estado, suprimiu as liberdades de reunião e de pensamento, garantidas pelos parágrafos oitavo e duodécimo do art. 72 da Constituição Federal. Eis, de fato, os termos do referido despacho telegráfico: “Em vista da lamentável ocorrência de ontem, o chefe de Polícia, dr. Alvaro Cóva, resolveu proibir o meeting, anunciado para hoje, em que queria falar o dr. Guilherme de Andrade, em favor do senador Epitácio Pessoa, também quaisquer outros que forem

anunciados”. Tendo sido convertido o julgamento em diligência para se requisitarem informações do governador da Bahia, este as prestou, ut telegrama de fls. Isto posto, cumpre resolver as seguintes questões: 1.ª, se a espécie é da competência originária do Tribunal; 2.ª, se, para ela, tem cabimento o habeas corpus; e, 3.ª, se se acham provados os respectivos requisitos. A resposta à primeira questão não pode deixar de ser afirmativa, por se tratar, exatamente, da hipótese prevista na última alínea do art. 23 da lei n. 221, de 20 de novembro de 1892, alínea que, de acordo com a jurisprudência assente desta Corte, é

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perfeitamente constitucional, pelo que tem sido e deve continuar a ser cumprida pelo Poder Judiciário. Ora, segundo tal dispositivo, este Tribunal é competente para conceder, originariamente, a ordem de habeas corpus no caso de iminente perigo de consumar-se a violência, antes de outro tribunal ou juiz poder tomar conhecimento da espécie em primeira instância. É o que, na hipótese vertente, fatalmente se daria, se ao Juízo Federal da seção da Bahia fosse impetrado este habeas corpus e ele o denegasse, pois o recurso de sua decisão só poderia ser decidido por este Tribunal no prazo mínimo de quinze a vinte dias, ao passo que faltam apenas oito para a eleição de Presidente da República: claríssimo, pois, que se consumaria, plenamente, a violência de que se arreceia o impetrante. Afirmativa, igualmente, é a resposta à segunda questão. Com efeito, para a maioria do Tribunal, é princípio corrente que o habeas

corpus é competente para proteger o exercício de qualquer direito, desde que este seja certo, líquido e incontestável. E, atentos os parágrafos oitavo e duodécimo do art. 72 da Constituição Federal, é certo, líquido e incontestável o direito que têm todos os indivíduos de se associarem e de se reunirem, livremente e sem armas, para manifestarem seu pensamento pela tribuna, sem dependência de censura, não podendo a polícia intervir senão para manter a ordem pública. Não diverge a solução e a resposta para os juízes que, como o relator deste feito, se acham em minoria no Tribunal, para os quais o habeas corpus só é competente para proteger o direito de liberdade corpórea ou a simples faculdade de livre locomoção. A razão é que essa faculdade, conforme a definição clássica, é o - jus

manendi, eundi, veniendi ultro citroque.

Compõe-se, portanto, o respectivo conteúdo de três direitos: 1.º) o de permanecer o indivíduo em qualquer lugar, à sua escolha, desde que seja franqueado ao público; 2.º) o de ir de qualquer parte, para esse lugar; e, 3.º) o de vir, para ele, também, de qualquer outro ponto. Ora, desde que, como na espécie, a polícia proíba comícios, intuitivamente nenhum desses direitos poderá ser exercido, como o não poderá, se ela os localizar em lugares diferentes. Mas se, acaso, se obstinar o indivíduo em exercê-los, a sanção natural e óbvia da proibição será, na melhor das hipóteses, a pena de prisão, ou, o que é mais comum, a dissolução do meeting a espaldeiradas ou à pata de cavalo, quer dizer, a privação de direito de livre locomoção, e, simultaneamente, do da integridade corpórea e até do da própria vida. É, pois, indubitavelmente, um caso típico da competência do habeas corpus, como é este instituto admitido nos povos cultos que o consagraram e como foi sempre aplicado em nosso direito. Afirmativa ainda é, do mesmo modo, a resposta à terceira questão supra. Antes de o mostrar, porém, convém observar: 1.º) que este habeas corpus não foi requerido para a punição dos fatos delituosos do dia 25 de março, supra expostos; e nem 2.º) para se proibir que o Senador J. J. Seabra ou qualquer outra pessoa aparteie ao impetrante ou a quem quer que seja que, a favor de sua candidatura, fale em público, pois é um percalço de quem fala em comícios públicos sujeitar-se a apartes de quem se achar em desacordo com suas idéias, acrescendo que o habeas corpus só se destina a proteger o indivíduo contra violências de autoridades públicas e não de simples particulares. Feitas essas observações, mostremos como procede o pedido do impetrante,

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nos termos em que foi feito e que constam do início deste Acórdão, salvo na parte concernente a indivíduos não indicados nominalmente. A esses não se pode estender a ordem impetrada, porque podem não ser brasileiros e nem estrangeiros residentes, aos quais a Constituição Federal assegura a inviolabilidade dos direitos enumerados no art. 72. Deve, porém, estender-se a todos os outros que foram mencionados, pelos respectivos nomes; porque a polícia não pode, de modo algum, proibir comícios e nem tão pouco localizá-los, pois isto importaria na respectiva supressão. Efetivamente, depois de assegurar a todos os indivíduos o direito de se reunirem livremente e sem armas, o legislador constituinte definiu muito bem, a respeito, a função preventiva da polícia, verbis “não podendo intervir a polícia senão para manter a ordem pública” (art. 72, § 8º). Ora, desde que a polícia proíbe um meeting ou comício, não intervém no mesmo; pois intervir quer dizer meter-se de permeio, ver ou estar presente, assistir, como se vê em qualquer léxicon. É intuitivo que se não mete de permeio em uma reunião, não está à mesma presente, não assiste a ela quem a proíbe ou suprime. Não pode também a polícia localizar os meetings ou determinar que só em certos lugares é que eles se podem efetuar, se forem convocados para fins lícitos, como na espécie: 1.º) porque isto importaria, afinal, em suprimi-los, pois bastaria que ela designasse lugares, ou sem a capacidade necessária à maior aglomeração de pessoas, ou habitualmente freqüentados, apenas, por indivíduos de baixa classe, azevieiros ou frascários; 2.º) porque ninguém pode ser obrigado a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (Const. Fed., art. 72, § 1º.); ora, não há lei alguma que prescreva que só se efetuem comícios em lugares previamente fixados pela polícia; e, ao contrário, o que a lei vigente preceitua é que “não se considera sedição, ou ajuntamento ilícito, a reunião do povo desarmado, em ordem, para o fim de representar contra as injustiças, vexações e mal procedimento dos empregados públicos; nem a reunião pacífica e sem armas de povo nas

praças públicas, teatros e quaisquer outros edifícios ou lugares convenientes para exercer o direito de discutir e representar sobre os negócios públicos. Para o uso dessa faculdade, não é necessária prévia licença da autoridade policial que só poderá proibir a reunião

anunciada no caso de suspensão das garantias constitucionais, limitada em tal caso, na

ação de dissolver a reunião, guardadas as formalidades da lei e sob as penas nela

cominadas” (Cod. Penal, art. 123 e parágrafo único). Ora, não nos achamos com as garantias constitucionais suspensas. E, entretanto o sr. Governador da Bahia expediu ao sr. Presidente da República um telegrama, em que lhe participa, com a mais cândida ingenuidade e como a coisa mais natural deste mundo e mais legal, que “o seu chefe de Polícia, dr. Alvaro Cóva, resolveu proibir o meeting anunciado para hoje, em que devia falar o dr. Guilherme de Andrade, a favor do Senador Epitácio Pessôa, e também quaisquer outros que fossem

anunciados” (Jornal do Comércio, de 27 de março de 1919, a fls.). Até agora a veracidade desse telegrama não foi contestada e nem poderá sêlo; pois o fato consta do Diário Oficial da Bahia, ut fl. verbis: “O dr. secretário da Polícia e Segurança Pública, a bem da ordem, deliberou não consentir na realização do meeting na Praça Rio Branco, que para hoje anunciou o sr. dr. Guilherme de Andrade, bem como qualquer que for convocado, não só para aquele

local como para qualquer outro ponto, que embarace o trânsito e perturbe a tranqüilidade

pública” (fl.). E ainda, em resposta às informações ora pedidas por este Tribunal, o dr. Governador da Bahia, depois de se referir aos sucessos do dia 25 de março, na praça Rio

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Branco, acrescenta que: “Secretário Segurança Pública resolveu não consentir realização comício na referida praça e em outras em idênticas circunstâncias” (fl.): é a prova provada do abuso do poder, da flagrante ilegalidade do procedimento do chefe de Polícia da Bahia e, pois, da violência iminente, temida pelo impetrante, assim, pois; Considerando que a Constituição Federal expressamente preceitua que “a todos é lícito associarem-se e reunirem-se livremente e sem armas, não podendo intervir a polícia senão para manter a ordem pública.” (Art. 72, § 8º); Considerando que em qualquer assunto é livre a manifestação de pensamento pela imprensa ou pela tribuna, sem dependência de censura, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e pela forma que a lei determina.” (Art. supra citado, § 12). Considerando que “não se considera sedição ou ajuntamento ilícito a reunião pacífica e sem armas do povo nas praças públicas, teatros e quaisquer outros edifícios ou

lugares convenientes para exercer o direito de discutir e representar sobre os negócios

públicos.” (Cod. Penal, art. 123), exatamente o fim para que é impetrado o presente habeas corpus;

Considerando, finalmente, que à polícia não assiste, de modo algum, o direito de localizar meetings ou comícios; porque, “para o uso dessa faculdade (a supra transcrita) não é necessária prévia licença da autoridade policial, que só poderá proibir a

reunião anunciada, no caso de suspensão das garantias constitucionais, (o que se não verifica na espécie) e ainda em tal caso, “limitada a sua ação a dissolver a reunião,

guardadas as formalidades da lei e sob as penas nela cominadas”. (Cod. Penal, parágrafo único do art. 123, supra transcrito). Acordam em Supremo Tribunal Federal, nos termos supra, conceder a presente ordem de habeas corpus ao sr. senador Ruy Barbosa e a todos os indivíduos mencionados nominalmente na petição de fls. 2 e no princípio deste Acórdão, para que possam exercer, na capital do Estado da Bahia e em qualquer parte dele, o direito de reunião, e mais, publicamente, da palavra nas praças, ruas, teatros e quaisquer recintos, sem obstáculos de natureza alguma, e com segurança de suas vidas e pessoas, realizando os comícios que entenderem necessários e convenientes à propaganda da candidatura do impetrante à sucessão do Presidente da República, sem censura e sem impedimento de qualquer autoridade local ou da União. Supremo Tribunal Federal, 5 de abril de 1919. - H. do Espirito Santo, presidente. - E. Lins, relator. - J. Coelho e Campos. - Canuto Saraiva, pela conclusão com restrição quanto a alguns fundamentos. - João Mendes. - A. Pires e Albuquerque, pela conclusão. - Sebastião de Lacerda. - Viveiros de Castro, concedi a ordem de habeas

corpus com a seguinte restrição - reconheci o direito da polícia da Bahia de localizar os meetings, uma vez que os lugares designados fossem no perímetro da cidade, bastante vastos para conter uma numerosa assistência, e de fácil e cômodo acesso. Assim coarctado o arbítrio da polícia, ficariam garantidos os direitos de todos, e o Tribunal tiraria qualquer possibilidade de ser convertida a ordem de habeas corpus em uma arma agressiva, nem incitamento às violências e desordens. Quanto às outras providências preventivas que, no cumprimento de seu dever de manter a ordem pública, a polícia entender necessário decretar, reporto-me ao acórdão n. 4.313, deste Tribunal, 11 de julho de 1917, do qual fui relator, e cujos considerandos são juridicamente inatacáveis. - Leoni Ramos, de acordo com o voto do sr. ministro Viveiros de Castro. - G. Natal. - Godofredo Cunha. Não conheci do pedido, por ser originário, e de

meritis votei pela conclusão do acórdão. Não conheci do pedido do paciente Dr. Alfredo Ruy Barbosa, por ter justo impedimento. - Sebastião de Lacerda.

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ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 187 DISTRITO FEDERAL V O T O (s/ mérito) O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO - (Relator): Superados os aspectos preliminares que venho de mencionar, passo a analisar a pretensão deduzida na presente argüição de descumprimento de preceito fundamental. Antes de fazê-lo, contudo, desejo enfatizar que este processo de controle de constitucionalidade não tem por objetivo discutir eventuais propriedades terapêuticas ou supostas virtudes medicinais ou, ainda, possíveis efeitos benéficos resultantes da utilização de drogas ou de qualquer substância entorpecente específica, mas, ao contrário, busca-se, na presente causa, proteção a duas liberdades individuais, de caráter fundamental: de um lado, a liberdade de reunião e, de outro, o direito à livre manifestação do pensamento, em cujo núcleo acham-se compreendidos os direitos de ADPF 187 / DF 2 petição, de crítica, de protesto, de discordância e de livre circulação de idéias. I. O direito de reunião e a liberdade de manifestação do pensamento: dois importantes precedentes do Supremo Tribunal Federal Postula-se, nesta argüição de descumprimento de preceito fundamental, seja dado, ao art. 287 do Código Penal, interpretação conforme à Constituição, “de forma a excluir qualquer exegese que possa ensejar a criminalização da defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica, inclusive através de manifestações e eventos públicos” (fls. 14 – grifei). Tenho para mim, Senhor Presidente, que o Supremo Tribunal Federal defronta-se, no caso, com um tema de magnitude inquestionável,

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que concerne ao exercício de duas das mais importantes liberdades públicas – a liberdade de expressão e a liberdade de reunião – que as declarações constitucionais de direitos e as convenções internacionais – como a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana (Artigos XIX e XX), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Arts. 13 e 15) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Artigos 19 e 21) – têm consagrado no curso de um longo processo de desenvolvimento e de afirmação histórica dos direitos fundamentais titularizados pela pessoa humana. ADPF 187 / DF 3 É importante enfatizar, Senhor Presidente, tal como tive o ensejo de assinalar em estudo sobre “O Direito Constitucional de Reunião” (RJTJSP, vol. 54/19-23, 1978, Lex Editora), que a liberdade de reunião traduz meio vocacionado ao exercício do direito à livre expressão das idéias, configurando, por isso mesmo, um precioso instrumento de concretização da liberdade de manifestação do pensamento, nela incluído o insuprimível direito de protestar. Impõe-se, desse modo, ao Estado, em uma sociedade estruturada sob a égide de um regime democrático, o dever de respeitar a liberdade de reunião (de que são manifestações expressivas o comício, o desfile, a procissão e a passeata), que constitui prerrogativa essencial dos cidadãos, normalmente temida pelos regimes despóticos ou ditatoriais que não hesitam em golpeá-la, para asfixiar, desde logo, o direito de protesto, de crítica e de discordância daqueles que se opõem à prática autoritária do poder. Guardam impressionante atualidade, Senhor Presidente, as palavras que RUY BARBOSA, amparado por decisão desta Corte, proferiu, em 12 de abril de 1919, no Teatro Politeama, em Salvador,

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durante campanha presidencial por ele disputada, em conferência cuja realização só se tornou possível em virtude de “habeas corpus” que o Supremo Tribunal Federal lhe concedera, tanto em seu favor quanto em ADPF 187 / DF 4 benefício de seus correligionários, assegurando-lhes o pleno exercício da liberdade de reunião e do direito à livre manifestação do pensamento, indevidamente cerceados por autoridades estaduais que buscavam impedir que o grande político, jurisconsulto e Advogado brasileiro divulgasse a sua mensagem e transmitisse as suas idéias ao povo daquele Estado, com o objetivo de conquistar seguidores e de conseguir adesões em prol de sua causa, valendo reproduzir, no ponto, a seguinte passagem daquele pronunciamento: “Venho, senhores, de Minas, venho de S. Paulo (...). De S. Paulo e Minas, onde pude exercer desassombradamente os direitos constitucionais, as liberdades necessárias de reunião e palavra, franquias elementares da civilização em tôda a cristandade. De Minas e S. Paulo, cujos governos, contrários ambos à minha candidatura, nenhum obstáculo suscitaram ao uso dessas faculdades essenciais a tôdas as democracias, a tôdos os regimens de moralidade e responsabilidade: antes abriram, em volta dos comícios populares, em tôrno da tribuna pública, um círculo de segurança e respeito, em que as nossas convicções se sentiam confiadas nos seus direitos e os nossos corações orgulhosos do seu país. De S. Paulo e Minas, em suma, onde o respeito da autoridade ao povo, e a consideração do povo para com a autoridade, apresentavam o espetáculo da dignidade de uma nação obediente às suas leis e governada pela soberania. ................................................... Venho dêsses dois grandes Estados, para uma visita a êste outro não menor do que êles na sua história, nas virtudes cívicas dos seus habitantes, nos costumes da sua vida social, venho, também, a convite da sua população; e, com que diversidade, com que contraste, com que antítese me encontro! Aqui venho dar com o direito constitucional de reunião suspenso. Por quem? Por uma autoridade policial. Com que direito? Com o ADPF 187 / DF

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5 direito da fôrça. Sob que pretexto? Sob o pretexto de que a oposição está em revolta, isto é, de que, contra o govêrno, o elemento armado e o Tesouro juntos estão em rebeldia os inermes, as massas desorganizadas e as classes conservadoras. Banido venho encontrar, pois, o direito de reunião, ditatorialmente banido. Mas, ao mesmo tempo, venho encontrar ameaçada, também soberanamente, de proscrição a palavra, o órgão do pensamento, o instrumento de comunicação do indivíduo com o povo, do cidadão com a pátria, do candidato com o eleitorado. Ameaçada, como? Com a resolução, de que estamos intimados pelo situacionismo da terra, com a resolução, que, em tom de guerra aberta, nos comunicaram os nossos adversários, de intervir em tôdas as nossas reuniões de propaganda eleitoral, opondo-se à nossa linguagem (...). ................................................... Mas, senhores, os comícios populares, os ‘meetings’, as assembléias livres dos cidadãos, nas praças, nos teatros, nos grandes recintos, não são invento brasileiro, muito menos desta época (...). São usos tradicionais das nações anglo-saxônicas, e das outras nações livres. Tiveram, modernamente, a sua origem nas Ilhas Britânicas, e nos Estados Unidos. Dessa procedência é que os recebemos. Recebemo-los tais quais eram. Com êles cursamos a nossa prática do direito de reunião. Com êles, debaixo do regímen passado, associamos a colaboração pública à reforma eleitoral, apostolamos e conseguimos a extinção do cativeiro. Com eles, neste regímen, não pouco temos alcançado para cultura cívica do povo. (...). ................................................... (...) O direito de reunião não se pronuncia senão congregando acêrca de cada opinião o público dos seus adeptos. A liberdade da palavra não se patenteia, senão juntando em tôrno de cada tribuna os que bebem as suas convicções na mesma fonte, associam os seus serviços no mesmo campo, ou alistam a sua dedicação na mesma bandeira. A igualdade no direito está, para as facções, para as idéias, para os indivíduos, no arbítrio, deixado a todos sem restrição, de congregar cada qual os seus correligionários, de juntar cada qual os seus comícios, de levantar cada qual o seu apêlo, no lugar da sua conveniência, na ocasião da sua escolha, nas ADPF 187 / DF 6 condições do seu agrado, mas separadamente, mas distintamente, mas desafrontadamente, cada um, a seu talante, na cidade, na rua, no recinto, que eleger, sem

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se encontrarem, sem se tocarem; porque o contacto, o encontro, a mistura, acabariam, necessàriamente, em atrito, em invasão, em caos.” (grifei) O alto significado que o direito de reunião, assume nas sociedades democráticas foi acentuado, em tempos mais recentes, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 1.969/DF, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, quando esta Corte, em sessão de 28/06/2007, declarou a inconstitucionalidade do Decreto nº 20.089/99, editado pelo Governador do Distrito Federal, que vedava “a realização de manifestações públicas, com a utilização de carros, aparelhos e objetos sonoros”, em determinados locais públicos, como a Praça dos Três Poderes e a Esplanada dos Ministérios, em decisão que restou consubstanciada em acórdão assim ementado: “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DECRETO 20.098/99, DO DISTRITO FEDERAL. LIBERDADE DE REUNIÃO E DE MANIFESTAÇÃO PÚBLICA. LIMITAÇÕES. OFENSA AO ART. 5º, XVI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. I. A liberdade de reunião e de associação para fins lícitos constitui uma das mais importantes conquistas da civilização, enquanto fundamento das modernas democracias políticas. II. A restrição ao direito de reunião estabelecida pelo Decreto distrital 20.098/99, a toda evidência, mostra-se inadequada, desnecessária e desproporcional quando confrontada com a vontade da Constituição (Wille zur Verfassung). ADPF 187 / DF 7 III. Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do Decreto distrital 20.098/99.” (grifei) Cabe rememorar, neste ponto, Senhor Presidente, a importantíssima decisão, por mim anteriormente mencionada, que esta Suprema Corte proferiu há 92 (noventa e dois) anos, em 1919, nos autos do HC 4.781/BA, Rel. Min. EDMUNDO LINS, em cujo âmbito se buscava garantir, em favor de diversos pacientes, inclusive de Ruy Barbosa, o exercício do direito de reunião (e, também, porque a este intimamente vinculado, o de livre manifestação de crítica ao Governo

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e ao sistema político, bem assim o direito de livremente externar posições, inclusive de não conformismo, sobre qualquer assunto), em comícios ou em encontros realizados em prol da candidatura oposicionista de RUY, que se insurgia, uma vez mais, contra as oligarquias políticas que dominaram a vida institucional do Estado brasileiro ao longo da Primeira República. Nesse julgamento, o Plenário do Supremo Tribunal Federal concedeu ordem de “habeas corpus” em favor de RUY BARBOSA e de diversos outros pacientes, proferindo, então, decisão que assim foi resumida pela eminente Dra. LÊDA BOECHAT RODRIGUES (“História do ADPF 187 / DF 8 Supremo Tribunal Federal”, vol. III/204-205, 1991, Civilização Brasileira): “A Constituição Federal expressamente preceitua que a todos é lícito associarem-se e reunirem-se livremente e sem armas, não podendo intervir a polícia senão para manter a ordem pública. Em qualquer assunto, é livre a manifestação do pensamento, por qualquer meio, sem dependência de censura, respondendo cada um, na forma legal, pelos danos que cometer. Não se considera sedição ou ajuntamento ilícito a reunião (pacífica e sem armas) do povo para exercitar o direito de discutir e representar sobre os negócios públicos. À Polícia não assiste, de modo algum, o direito de localizar ‘meetings’ e comícios. Não se concede ‘habeas-corpus’ a indivíduo não indicado nominalmente no pedido.” (grifei) A inquestionável relevância desse julgado, essencial à compreensão da posição desta Suprema Corte em torno dos direitos fundamentais de reunião e de livre manifestação do pensamento, revelada sob a égide de nossa primeira Constituição republicana, impõe que se relembrem, por expressivas, algumas de suas passagens mais notáveis: “Efetivamente, depois de assegurar a todos os indivíduos o direito de se reunirem livremente e sem armas, o legislador constituinte definiu muito bem, a respeito, a função preventiva da polícia, verbis ‘não podendo intervir a polícia senão para manter a ordem

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pública’ (art. 72, § 8º). ................................................... Não pode também a polícia localizar os meetings ou determinar que só em certos lugares é que eles se podem efetuar, se forem convocados para fins lícitos, como na espécie: 1.º) porque isto importaria, afinal, em suprimi-los, pois bastaria que ela designasse ADPF 187 / DF 9 lugares, ou sem a capacidade necessária à maior aglomeração de pessoas, ou habitualmente freqüentados, apenas, por indivíduos de baixa classe, azevieiros ou frascários; 2.º) porque ninguém pode ser obrigado a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (Const. Fed., art. 72, § 1º.); ora, não há lei alguma que prescreva que só se efetuem comícios em lugares previamente fixados pela polícia; e, ao contrário, o que a lei vigente preceitua é que ‘não se considera sedição, ou ajuntamento ilícito, a reunião do povo desarmado, em ordem, para o fim de representar contra as injustiças, vexações e mal procedimento dos empregados públicos; nem a reunião pacífica e sem armas de povo nas praças públicas, teatros e quaisquer outros edifícios ou lugares convenientes para exercer o direito de discutir e representar sobre os negócios públicos. Para o uso dessa faculdade, não é necessária prévia licença da autoridade policial que só poderá proibir a reunião anunciada no caso de suspensão das garantias constitucionais, limitada em tal caso, na ação de dissolver a reunião, guardadas as formalidades da lei e sob as penas nela cominadas’ (Cod. Penal, art. 123 e parágrafo único). Ora, não nos achamos com as garantias constitucionais suspensas. E, entretanto o sr. Governador da Bahia expediu ao sr. Presidente da República um telegrama, em que lhe participa, com a mais cândida ingenuidade e como a coisa mais natural deste mundo e mais legal, que ‘o seu chefe de Polícia, dr. Alvaro Cóva, resolveu proibir o meeting anunciado para hoje, em que devia falar o dr. Guilherme de Andrade, a favor do Senador Epitácio Pessôa, e também quaisquer outros que fossem anunciados’ (Jornal do Comércio, de 27 de março de 1919, a fls.). ................................................... ‘O dr. secretário da Polícia e Segurança Pública, a bem da ordem, deliberou não consentir na realização do meeting na Praça Rio Branco, que para hoje anunciou o sr. dr. Guilherme de Andrade, bem como

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qualquer que for convocado, não só para aquele local como para qualquer outro ponto, que embarace o trânsito e perturbe a tranqüilidade pública’ (fl.). ADPF 187 / DF 10 E ainda, em resposta às informações ora pedidas por este Tribunal, o dr. Governador da Bahia, depois de se referir aos sucessos do dia 25 de março, na praça Rio Branco, acrescenta que: ‘Secretário Segurança Pública resolveu não consentir realização comício na referida praça e em outras em idênticas circunstâncias’ (fl.): é a prova provada do abuso do poder, da flagrante ilegalidade do procedimento do chefe de Polícia da Bahia e, pois, da violência iminente, temida pelo impetrante, assim, pois; Considerando que a Constituição Federal expressamente preceitua que ‘a todos é lícito associarem-se e reunirem-se livremente e sem armas, não podendo intervir a polícia senão para manter a ordem pública.’ (Art. 72, § 8º); Considerando que, em qualquer assunto, é livre a manifestação de pensamento pela imprensa ou pela tribuna, sem dependência de censura, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e pela forma que a lei determina. (Art. supra citado, § 12). Considerando que ‘não se considera sedição ou ajuntamento ilícito a reunião pacífica e sem armas do povo nas praças públicas, teatros e quaisquer outros edifícios ou lugares convenientes para exercer o direito de discutir e representar sobre os negócios públicos.’ (Cod. Penal, art. 123), exatamente o fim para que é impetrado o presente ‘habeas corpus’; Considerando, finalmente, que à polícia não assiste, de modo algum, o direito de localizar meetings ou comícios; porque, para o uso dessa faculdade (a supra transcrita) não é necessária prévia licença da autoridade policial, que só poderá proibir a reunião anunciada, no caso de suspensão das garantias constitucionais, (o que se não verifica na espécie) e ainda em tal caso, ‘limitada a sua ação a dissolver a reunião, guardadas as formalidades da lei e sob as penas nela cominadas’. (Cod. Penal, parágrafo único do art. 123, supra transcrito). Acordam, em Supremo Tribunal Federal, nos termos supra, conceder a presente ordem de ‘habeas corpus’ ao sr. senador Ruy Barbosa e a todos os indivíduos mencionados nominalmente na petição de fls. 2 e no princípio deste Acórdão, para que possam exercer, na ADPF 187 / DF

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11 capital do Estado da Bahia e em qualquer parte dele, o direito de reunião, e mais, publicamente, da palavra nas praças, ruas, teatros e quaisquer recintos, sem obstáculos de natureza alguma, e com segurança de suas vidas e pessoas, realizando os comícios que entenderem necessários e convenientes à propaganda da candidatura do impetrante à sucessão do Presidente da República, sem censura e sem impedimento de qualquer autoridade local ou da União.” (grifei) É importante registrar, Senhor Presidente, nas palavras do saudoso e eminente Ministro ALIOMAR BALEEIRO (“O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido”), o caráter de significativa relevância que assumiu o julgamento que venho de mencionar, quando da concessão, por esta Suprema Corte, da ordem de “habeas corpus” que garantiu, aos cidadãos da República, no contexto histórico das já referidas eleições de 1919, o pleno exercício das liberdades fundamentais de reunião e de manifestação do pensamento: “Dos longes do passado remoto, ligo o Supremo Tribunal Federal às reminiscências de meus 13 anos de idade, na Bahia. Minha velha cidade entrara em ebulição com a campanha presidencial de RUI BARBOSA e de EPITÁCIO PESSOA, em 1919. Tombaram gravemente feridos à bala, num comício, MEDEIROS NETTO e SIMÕES FILHO. PEDRO LAGO escapou, mas sofreu violências outras dos sicários. As vítimas eram amigos políticos e pessoais de meu pai e de meu avô. O meu irmão mais velho, ainda estudante de Direito, trabalhava no jornal oposicionista, alvo das ameaças policiais. Tudo isso aqueceu a atmosfera em nossa casa. Aliás, a Bahia tôda ardia em febre partidária. Para os ruistas, tratava-se dum apostolado cívico e não duma querela de facções. Temia-se pela vida do próprio RUI quando viesse a fim de pronunciar a conferência anunciada para breve. Suspeitava-se também do govêrno da República, porque afrontosamente mandara a fôrça federal desagravar a ADPF 187 / DF 12 bandeira do edifício dos Correios, sob pretexto de que recebera ultraje dos partidários do candidato baiano. Nesse clima eletrizado, caiu como um raio a notícia de que o Supremo Tribunal Federal concedera a RUI e seus correligionários ordem de ‘habeas corpus’, para que se pudessem locomover, e reunir em comício. Notou-se logo a mudança de atitude da polícia local,

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que, murcha, abandonou a atitude de provocação. RUI desembarcou dum navio e o povo exigiu que o carro fôsse puxado à mão, ladeiras acima, cêrca de 10 km, até o bairro da Graça, em meio ao maior delírio da massa, que já presenciei. Assisti à saudação que lhe dirigiu, em nome da Bahia, no meio ao trajeto, o velho CARNEIRO RIBEIRO, de barbas brancas ao vento. Não se via um soldado, nem um guarda civil nas ruas. Se um seabrista tentava provocar incidentes, logo alguém intervinha para ‘não perdermos a razão no Supremo Tribunal’. A população prêsa da exaltação partidária mais viva manteve a maior rigorosa ordem, durante dias sem policiamento, a despeito das expansões emocionais. Ouvi, sem perder uma palavra, ao lado de meu pai, no Politeama baiano, a longa conferência do maior dos brasileiros, interrompida, de minuto a minuto, por tempestades de aplausos. Logo, nos primeiros momentos, Rui entoou um hino ao Supremo Tribunal, que possibilitara a todos o exercício do direito de reunião pacífica naquele momento. Rompeu um côro ensurdecedor de vivas à Côrte egrégia. Foi assim que tomei consciência do Supremo Tribunal Federal e de sua missão de sentinela das liberdades públicas, vinculando-o a imagens imperecíveis na minha memória. E também na minha saudade.” (grifei) Tais palavras, Senhor Presidente, mostram a reverência e a veneração que RUY, ALIOMAR BALEEIRO e os defensores da causa da liberdade sempre dedicaram a esta Suprema Corte, nela reconhecendo o caráter de uma instituição essencialmente republicana, fiel depositária do altíssimo mandato constitucional que lhe foi ADPF 187 / DF 13 atribuído pelos Fundadores da República, que confiaram, a este Tribunal, a condição eminente de guardião da autoridade, de protetor da intangibilidade e de garante da supremacia da Lei Fundamental. As decisões que venho de referir, Senhor Presidente – uma, pronunciada sob a égide da Constituição republicana de 1891 (HC 4.781/BA, Rel. Min. EDMUNDO LINS), e outra, proferida sob a vigente Constituição promulgada em 1988 (ADI 1.969/DF, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI) -, bem refletem, ainda que as separe um espaço

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de tempo de quase um século, o mesmo compromisso desta Suprema Corte com a preservação da integridade das liberdades fundamentais que amparam as pessoas contra o arbítrio do Estado. Na realidade, esses julgamentos revelam o caráter eminente da liberdade de reunião, destacando-lhe o sentido de instrumentalidade de que ele se reveste, ao mesmo tempo em que enfatizam a íntima conexão que existe entre essa liberdade jurídica e o direito fundamental à livre manifestação do pensamento. O Supremo Tribunal Federal, em ambos os casos, deixou claramente consignado que o direito de reunião, enquanto direito-meio, atua em sua condição de instrumento viabilizador do exercício da liberdade de expressão, qualificando-se, por isso mesmo, sob tal ADPF 187 / DF 14 perspectiva, como elemento apto a propiciar a ativa participação da sociedade civil, mediante exposição de idéias, opiniões, propostas, críticas e reivindicações, no processo de tomada de decisões em curso nas instâncias de Governo. É por isso que esta Suprema Corte sempre teve a nítida percepção de que há, entre as liberdades clássicas de reunião e de manifestação do pensamento, de um lado, e o direito de participação dos cidadãos na vida política do Estado, de outro, um claro vínculo relacional, de tal modo que passam eles a compor um núcleo complexo e indissociável de liberdades e de prerrogativas político-jurídicas, o que significa que o desrespeito ao direito de reunião, por parte do Estado e de seus agentes, traduz, na concreção desse gesto de arbítrio, inquestionável transgressão às demais liberdades cujo exercício possa supor, para realizar-se, a incolumidade do direito de reunião, tal como sucede quando autoridades públicas impedem que

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os cidadãos manifestem, pacificamente, sem armas, em passeatas, marchas ou encontros realizados em espaços públicos, as suas idéias e a sua pessoal visão de mundo, para, desse modo, propor soluções, expressar o seu pensamento, exercer o direito de petição e, mediante atos de proselitismo, conquistar novos adeptos e seguidores para a causa que defendem. ADPF 187 / DF 15 A praça pública, desse modo, desde que respeitado o direito de reunião, passa a ser o espaço, por excelência, do debate, da persuasão racional, do discurso argumentativo, da transmissão de idéias, da veiculação de opiniões, enfim, a praça ocupada pelo povo converte-se naquele espaço mágico em que as liberdades fluem sem indevidas restrições governamentais. Não foi por outra razão, Senhor Presidente, que o eminente Ministro MARCO AURÉLIO, quando do julgamento do pedido de medida cautelar na ADI 1.969/DF, ao fundamentar a concessão do provimento liminar, pôs em destaque a indestrutível ligação que existe entre as liberdades públicas cuja proteção jurisdicional é requerida, uma vez mais, a esta Suprema Corte: “(...) o direito de reunião previsto no inciso XVI está associado umbilicalmente a outro da maior importância em sociedades que se digam democráticas: o ligado à manifestação do pensamento.” (grifei) Idêntica percepção foi revelada, no julgamento final da ADI 1.969/DF, pelo eminente Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, Relator: “(...) Na verdade, o Decreto distrital 20.098/99 simplesmente inviabiliza a liberdade de reunião e de manifestação, logo na Capital Federal, em especial na emblemática Praça dos Três Poderes, ‘local aberto ao público’, que, na concepção do genial arquiteto que a esboçou, constitui verdadeiro símbolo de liberdade e cidadania do povo brasileiro. ADPF 187 / DF 16 Proibir a utilização ‘de carros, aparelhos e objetos sonoros’, nesse e em outros espaços públicos

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que o Decreto vergastado discrimina, inviabilizaria, por completo, a livre expressão do pensamento nas reuniões levadas a efeito nesses locais, porque as tornaria emudecidas, sem qualquer eficácia para os propósitos pretendidos.” (grifei) II. O direito fundamental de reunião: estrutura constitucional e oponibilidade de seu exercício ao Poder Público, cujos agentes estão sujeitos, em face dessa liberdade de ação coletiva, à estrita observância de limites e deveres de ordem jurídica O direito fundamental de reunião apóia-se, em nosso sistema de direito constitucional positivo, no inciso XVI do art. 5º da Constituição da República, que assim o proclama: “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”. Trata-se de prerrogativa impregnada de caráter instrumental, qualificando-se, enquanto liberdade de ação coletiva, como importante meio de consecução e realização dos objetivos que animam aqueles que se congregam, para um fim específico, em espaços públicos ou privados. ADPF 187 / DF 17 A estrutura constitucional da liberdade de reunião autoriza que nela se identifiquem, pelo menos, 05 (cinco) elementos que lhe compõem o perfil jurídico: “a) elemento pessoal: pluralidade de participantes (possuem legitimação ativa ao exercício do direito de reunião os brasileiros e os estrangeiros aqui residentes); b) elemento temporal: a reunião é necessariamente transitória, sendo, portanto, descontínua e não permanente, podendo efetuar-se de dia ou de noite; c) elemento intencional: a reunião tem um sentido teleológico, finalisticamente orientado. Objetiva um fim, que é comum aos que dela participam; d) elemento espacial: o direito de reunião se projeta sobre uma área territorialmente delimitada. A reunião, conforme o lugar em que se realiza, pode ser pública

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(vias, ruas e logradouros públicos) ou interna (residências particulares, v.g.); e) elemento formal: a reunião pressupõe organização e direção, embora precárias.” (grifei) Qualquer que seja a finalidade que motive o encontro ou agrupamento de pessoas, não importando se poucas ou muitas, mostra-se essencial que a reunião, para merecer a proteção constitucional, seja pacífica, vale dizer, que se realize “sem armas”, sem violência ou incitação ao ódio ou à discriminação, cumprindo ter presente, quanto a tal requisito, a advertência de PONTES DE MIRANDA (“Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969”, tomo V/604, item n. 10, 2ª ed./2ª tir., 1974, RT), para quem “(...) a polícia não pode proibir a reunião, ou fazê-la cessar, pelo fato de um ou alguns dos presentes estarem armados. As medidas policiais são contra os que, por ato seu, perderem o direito a reunirem-se a outros, e não contra ADPF 187 / DF 18 os que se acham sem armas. Contra esses, as medidas policiais são contrárias à Constituição e puníveis segundo as leis” (grifei). A essencialidade dessa liberdade fundamental, que se exterioriza no direito de qualquer pessoa reunir-se com terceiros, pacificamente, sem armas, em locais públicos, independentemente de prévia autorização de órgãos ou agentes do Estado (que não se confunde com a determinação constitucional de “prévio aviso à autoridade competente”), revela-se tão significativa que os modelos político-jurídicos de democracia constitucional sequer admitem que o Poder Público interfira no exercício do direito de reunião. Isso significa que o Estado, para respeitar esse direito fundamental, não pode nem deve inibir o exercício da liberdade de reunião ou frustrar-lhe os objetivos ou inviabilizar,

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com medidas restritivas, a adoção de providências preparatórias e necessárias à sua realização ou omitir-se no dever de proteger os que a exercem contra aqueles que a ela se opõem ou, ainda, pretender impor controle oficial sobre o objeto da própria assembléia, passeata ou marcha. É por tal motivo que a liberdade de reunião encontra veemente repulsa por parte de sistemas autocráticos, que não ADPF 187 / DF 19 conseguem tolerar a participação popular nos processos decisórios de Governo nem admitir críticas, protestos ou reivindicações da sociedade civil. É de ressaltar que, em nosso sistema normativo, o direito de reunião pode sofrer, excepcionalmente, restrições de ordem jurídica em períodos de crise institucional, desde que utilizados, em caráter extraordinário, os mecanismos constitucionais de defesa do Estado, como o estado de defesa (CF, art. 136, § 1º, I, “a”) e o estado de sítio (CF, art. 139, IV), que legitimam a utilização, pelo Presidente da República, dos denominados poderes de crise, dentre os quais se situa a faculdade de suspender a própria liberdade de reunião, ainda que exercida em espaços privados. Em período de normalidade institucional, contudo, essa liberdade fundamental, além de plenamente oponível ao Estado (que nela não pode interferir, sob pena de incriminação de seus agentes e autoridades, consoante prescreve, em norma de tipificação penal, a Lei nº 1.207, de 25/10/1950), também lhe impõe a obrigação de viabilizar a reunião, assim como o dever de respeitar o direito – que assiste aos organizadores e participantes do encontro – à autônoma deliberação sobre o tipo e o conteúdo da manifestação pública.

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ADPF 187 / DF 20 É por isso, Senhor Presidente, que se pode identificar, na cláusula constitucional que ampara a liberdade de reunião (CF, art. 5º, XVI), tanto um direito (titularizado pelos manifestantes) quanto uma obrigação (imposta ao Estado), tal como assinala PAULO GUSTAVO GONET BRANCO (“Curso de Direito Constitucional”, p. 443, item n. 3.1.4, 4ª ed., 2009, Saraiva/IDP, em co-autoria com Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho): “O direito de reunião engendra pretensão de respeito, não somente ao direito de estar com outros numa mesma coletividade organizada, mas também de convocar a manifestação, de prepará-la e de organizá-la. O direito de reunião exige respeito a todo processo prévio ao evento e de execução da manifestação. O Estado não há de interferir nesse exercício - tem-se, aqui, o ângulo de direito a uma abstenção dos Poderes Públicos (direito negativo). O direito de reunião possui, de outra parte, um aspecto de direito a prestação do Estado. O Estado deve proteger os manifestantes, assegurando os meios necessários para que o direito à reunião seja fruído regularmente. Essa proteção deve ser exercida também em face de grupos opositores ao que se reúne, para prevenir que perturbem a manifestação.” (grifei) Vê-se, portanto, que a liberdade de reunião, tal como delineada pela Constituição, impõe, ao Estado, um claro dever de abstenção, que, mais do que impossibilidade de sua interferência na manifestação popular, reclama que os agentes e autoridades governamentais não estabeleçam nem estipulem exigências que debilitem ou que esvaziem o movimento, ou, então, que lhe embaracem o exercício. ADPF 187 / DF 21 O Estado, por seus agentes e autoridades, não pode cercear nem limitar o exercício do direito de reunião, apoiando-se, para tanto, em fundamentos que revelem oposição governamental ao conteúdo político, doutrinário ou ideológico do movimento ou, ainda, invocando, para restringir a manifestação pública, razões fundadas

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em mero juízo de oportunidade, de conveniência ou de utilidade. Disso resulta que a polícia não tem o direito de intervir nas reuniões pacíficas, lícitas, em que não haja lesão ou perturbação da ordem pública. Não pode proibi-las ou limitá-las. Assiste-lhe, apenas, a faculdade de vigiá-las, para, até mesmo, garantir-lhes a sua própria realização. O que exceder a tais atribuições, mais do que ilegal, será inconstitucional. É dever, portanto, dos organismos policiais, longe dos abusos que têm sido perpetrados pelo aparato estatal repressivo, adotar medidas de proteção aos participantes da reunião, resguardando-os das tentativas de desorganizá-la e protegendo-os dos que a ela se opõem. Por outro lado, conforme doutrina PONTES DE MIRANDA (“Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969”, ADPF 187 / DF 22 tomo V/603), “não é dado à polícia analisar ou apreciar a conveniência da reunião – ‘A polícia não pode intervir sem que haja perturbação da ordem. Simples inconvenientes não justificam a sua intervenção; tampouco a probabilidade de produzir o ato ou a reunião conseqüências disturbantes ou criminosas. Demais, o que lhe cabe resguardar é a ordem, e não a defesa de determinados direitos privados, ou de governantes, porque tal missão é apenas da Justiça” (grifei). III. Liberdade de reunião e direito à livre manifestação do pensamento: a proteção das minorias e a função contramajoritária da jurisdição constitucional no Estado Democrático de Direito O sentido de fundamentalidade de que se reveste essa liberdade pública permite afirmar que as minorias também titularizam, sem qualquer exclusão ou limitação, o direito de reunião, cujo exercício mostra-se essencial à propagação de suas idéias, de seus pleitos e de suas reivindicações, sendo completamente irrelevantes, para efeito de sua plena fruição,

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quaisquer resistências, por maiores que sejam, que a coletividade oponha às opiniões manifestadas pelos grupos minoritários, ainda que desagradáveis, atrevidas, insuportáveis, chocantes, audaciosas ou impopulares. Daí a correta observação feita pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, neste processo, em primorosa ADPF 187 / DF 23 sustentação de sua posição a respeito do tema, na qual, ao destacar “a garantia do dissenso como condição essencial à formação de uma opinião pública livre”, enfatizou “o caráter contramajoritário dos direitos fundamentais em causa”: “A reivindicação por mudança, mediante manifestação que veicule uma ideia contrária à política de governo, não elide sua juridicidade. Ao contrário: a contraposição ao discurso majoritário situa-se, historicamente, no germe da liberdade da expressão enquanto comportamento juridicamente garantido. (...). ................................................... Os direitos fundamentais em causa, vocacionados à formação de uma opinião pública livre, socorrem fundamentalmente as minorias políticas, permitindo-lhes a legítima aspiração de tornarem-se, amanhã, maioria; esta é a lógica de um sistema democrático no qual o poder se submete à razão, e não a razão ao poder. Decerto, inexistiria qualquer razão para que os direitos de liberdade de expressão, de reunião e de manifestação fossem alçados a tal condição caso seu âmbito normativo garantisse, exclusivamente, a exteriorização de concepções compartilhadas pela ampla maioria da sociedade ou pela política em vigor. Se para isso servissem, comporiam uma inimaginável categoria de ‘direitos desnecessários’; não seriam, pois, verdadeiros direitos. A proibição do dissenso equivale a impor um ‘mandado de conformidade’, condicionando a sociedade à informação oficial – uma espécie de ‘marketplace of ideas’ (OLIVER WENDELL HOLMES) institucionalmente limitado. Ou, o que é ainda mais profundo: a imposição de um comportamento obsequioso produz, na sociedade, um pernicioso efeito dissuasório (‘chilling effect’), culminando, progressivamente, com a aniquilação do próprio ato individual de reflexão (...). A experiência histórica revela, pois, que o

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discurso antagônico não requer repressão, mas tolerância; se não fosse pela óbvia razão de que, despida de certo grau de tolerância, a convivência se ADPF 187 / DF 24 tornaria socialmente insuportável, justificar-se-ia tal padrão de conduta pela sempre possível hipótese de que a ‘verdade’ não esteja do lado da maioria. ................................................... Perceba-se, nessa linha de perspectiva: um candidato ou partido político que inclua em sua plataforma ou programa de governo a descriminalização de uma conduta delituosa está a fazer ‘apologia ao crime’? No mesmo tom: seria ilegal uma manifestação pública tendente a arregimentar apoio à apresentação de um anteprojeto de lei de iniciativa popular com o objetivo de propor a descriminalização de determinada conduta? E a publicação de uma obra literária, individual ou coletiva, difundindo a mesma opinião? A propósito: a sustentação teórica do reducionismo penal – que, em termos radicais, designa-se ‘abolicionismo’ – é prática criminosa?” (grifei) Essas reflexões do IBCCRIM, feitas em sua legítima condição de “amicus curiae”, põem em evidência a função contramajoritária do Supremo Tribunal Federal no Estado democrático de direito, estimulando a análise da proteção das minorias na perspectiva de uma concepção material de democracia constitucional. Na realidade, Senhor Presidente, esse tema acha-se, intimamente associado ao presente debate constitucional, pois concerne ao relevantíssimo papel que ao Supremo Tribunal Federal incumbe desempenhar no plano da jurisdição das liberdades: o de órgão investido do poder e da responsabilidade institucional de proteger as minorias contra eventuais excessos da maioria ou, até ADPF 187 / DF 25 mesmo, contra abusos perpetrados pelo próprio Poder Público e seus agentes. Tal situação culmina por gerar um quadro de submissão de grupos minoritários à vontade hegemônica da maioria, o que compromete, gravemente, por reduzi-lo, o próprio coeficiente de

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legitimidade democrática das instituições do Estado, pois, ninguém o ignora, o regime democrático não tolera nem admite a opressão da minoria por grupos majoritários. Cabe enfatizar, presentes tais razões, que o Supremo Tribunal Federal, no desempenho da jurisdição constitucional, tem proferido, muitas vezes, decisões de caráter nitidamente contramajoritário, em clara demonstração de que os julgamentos desta Corte Suprema, quando assim proferidos, objetivam preservar, em gesto de fiel execução dos mandamentos constitucionais, a intangibilidade de direitos, interesses e valores que identificam os grupos minoritários expostos a situações de vulnerabilidade jurídica, social, econômica ou política e que, por efeito de tal condição, tornam-se objeto de intolerância, de perseguição, de discriminação, de injusta exclusão, de repressão e de abuso contra os seus direitos. ADPF 187 / DF 26 Na realidade, o tema da preservação e do reconhecimento dos direitos das minorias deve compor, por tratar-se de questão impregnada do mais alto relevo, a agenda desta Corte Suprema, incumbida, por efeito de sua destinação institucional, de velar pela supremacia da Constituição e de zelar pelo respeito aos direitos, inclusive de grupos minoritários, que encontram fundamento legitimador no próprio estatuto constitucional. Com efeito, a necessidade de assegurar-se, em nosso sistema jurídico, proteção às minorias e aos grupos vulneráveis qualifica-se, na verdade, como fundamento imprescindível à plena legitimação material do Estado Democrático de Direito, havendo merecido tutela efetiva, por parte desta Suprema Corte, quando grupos majoritários, por exemplo, atuando no âmbito do Congresso Nacional, ensaiaram medidas arbitrárias destinadas a frustrar o

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exercício, por organizações minoritárias, de direitos assegurados pela ordem constitucional (MS 24.831/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO – MS 24.849/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO – MS 26.441/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.). Lapidar, sob a perspectiva de uma concepção material de democracia constitucional, a lúcida advertência do saudoso e ADPF 187 / DF 27 eminente Professor GERALDO ATALIBA (“Judiciário e Minorias”, “in” Revista de Informação Legislativa, vol. 96/194): “A Constituição verdadeiramente democrática há de garantir todos os direitos das minorias e impedir toda prepotência, todo arbítrio, toda opressão contra elas. Mais que isso – por mecanismos que assegurem representação proporcional -, deve atribuir um relevante papel institucional às correntes minoritárias mais expressivas. ................................................... Na democracia, governa a maioria, mas – em virtude do postulado constitucional fundamental da igualdade de todos os cidadãos – ao fazê-lo, não pode oprimir a minoria. Esta exerce também função política importante, decisiva mesmo: a de oposição institucional, a que cabe relevante papel no funcionamento das instituições republicanas. O principal papel da oposição é o de formular propostas alternativas às idéias e ações do governo da maioria que o sustenta. Correlatamente, critica, fiscaliza, aponta falhas e censura a maioria, propondo-se, à opinião pública, como alternativa. Se a maioria governa, entretanto, não é dona do poder, mas age sob os princípios da relação de administração. ................................................... Daí a necessidade de garantias amplas, no próprio texto constitucional, de existência, sobrevivência, liberdade de ação e influência da minoria, para que se tenha verdadeira república. ................................................... Pela proteção e resguardo das minorias e sua necessária participação no processo político, a república faz da oposição instrumento institucional de governo. ................................................... É imperioso que a Constituição não só garanta a minoria (a oposição), como ainda lhe reconheça direitos e até funções.

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................................................... Se a maioria souber que – por obstáculo constitucional – não pode prevalecer-se da força, nem ADPF 187 / DF 28 ser arbitrária nem prepotente, mas deve respeitar a minoria, então os compromissos passam a ser meios de convivência política. (...).” (grifei) Também o eminente e saudoso Professor PINTO FERREIRA (“Princípios Gerais do Direito Constitucional Moderno”, tomo I/195- -196, item n. 8, 5ª ed., 1971, RT) demonstra igual percepção do tema ao enfatizar - com fundamento em irrepreensíveis considerações de ordem doutrinária - que a essência democrática de qualquer regime de governo apóia-se na existência de uma imprescindível harmonia entre a “Majority rule” e os “Minority rights”: “A verdadeira idéia da democracia corresponde, em geral, a uma síntese dialética dos princípios da liberdade, igualdade e dominação da maioria, com a correlativa proteção às minorias políticas, sem o que não se compreende a verdadeira democracia constitucional. A dominação majoritária em si, como o centro de gravidade da democracia, exige esse respeito às minorias políticas vencidas nas eleições. O princípio majoritário é o pólo positivo da democracia, e encontra a sua antítese no princípio minoritário, que constitui o seu pólo negativo, ambos estritamente indispensáveis na elucidação do conceito da autêntica democracia. O princípio democrático não é, pois, a tirania do número, nem a ditadura da opinião pública, nem tampouco a opressão das minorias, o que seria o mais rude dos despotismos. A maioria do povo pode decidir o seu próprio destino, mas com o devido respeito aos direitos das minorias políticas, acatando nas suas decisões os princípios invioláveis da liberdade e da igualdade, sob pena de se aniquilar a própria democracia. A livre deliberação da maioria não é suficiente para determinar a natureza da democracia. STUART MILL já reconhecia essa impossibilidade, ainda no século ADPF 187 / DF 29 transato: ‘Se toda a humanidade, menos um, fosse de uma opinião, não estaria a humanidade mais justificada em reduzir ao silêncio tal pessoa, do que esta, se tivesse força, em fazer calar o mundo inteiro’. Em termos não menos positivos, esclarece o sábio inglês, nas suas

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‘Considerations on Representative Government’, quando fala da verdadeira e da falsa democracia (‘of true and false Democracy’): ‘A falsa democracia é só representação da maioria, a verdadeira é representação de todos, inclusive das minorias. A sua peculiar e verdadeira essência há de ser, destarte, um compromisso constante entre maioria e minoria.” (grifei) IV. Grupos majoritários não podem submeter, à hegemonia de sua vontade, a eficácia de direitos fundamentais, que se revestem de nítido caráter contramajoritário, especialmente se analisado esse tema na perspectiva de uma concepção material de democracia constitucional O Estado de Direito, concebido e estruturado em bases democráticas, mais do que simples figura conceitual ou mera proposição doutrinária, reflete, em nosso sistema jurídico, uma realidade constitucional densa de significação e plena de potencialidade concretizadora dos direitos e das liberdades públicas. A opção do legislador constituinte pela concepção democrática do Estado de Direito não pode esgotar-se numa simples proclamação retórica. A opção pelo Estado democrático de direito, por isso mesmo, há de ter conseqüências efetivas no plano de nossa organização política, na esfera das relações institucionais entre os poderes da República e no âmbito da formulação de uma teoria das ADPF 187 / DF 30 liberdades públicas e do próprio regime democrático. Em uma palavra: ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, aos princípios superiores consagrados pela Constituição da República, cujo texto confere, aos direitos fundamentais, um nítido caráter contramajoritário. É evidente que o princípio majoritário desempenha importante papel no processo decisório que se desenvolve no âmbito das instâncias governamentais, mas não pode legitimar, na perspectiva de uma concepção material de democracia constitucional, a supressão, a frustração e a aniquilação de direitos fundamentais,

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como o livre exercício do direito de reunião e da liberdade de expressão (e, também, o do direito de petição), sob pena de descaracterização da própria essência que qualifica o Estado democrático de direito. Desse modo, e para que o regime democrático não se reduza a uma categoria político-jurídica meramente conceitual ou simplesmente formal, torna-se necessário assegurar, às minorias, notadamente em sede jurisdicional, quando tal se impuser, a plenitude de meios que lhes permitam exercer, de modo efetivo, os direitos fundamentais que a todos, sem distinção, são assegurados. ADPF 187 / DF 31 Isso significa, portanto, numa perspectiva pluralística, em tudo compatível com os fundamentos estruturantes da própria ordem democrática (CF, art. 1º, V), que se impõe a organização de um sistema de efetiva proteção, especialmente no plano da jurisdição, aos direitos, liberdades e garantias fundamentais em favor das minorias, quaisquer que sejam, para que tais prerrogativas essenciais não se convertam em fórmula destituída de significação, o que subtrairia – consoante adverte a doutrina (SÉRGIO SÉRVULO DA CUNHA, “Fundamentos de Direito Constitucional”, p. 161/162, item n. 602.73, 2004, Saraiva) – o necessário coeficiente de legitimidade jurídico-democrática ao regime político vigente em nosso País. Daí a inteira procedência da observação feita pela eminente Dra. DEBORAH MACEDO DUPRAT DE BRITTO PEREIRA, na petição inicial que subscreveu, com brilhante fundamentação, na condição de Procuradora-Geral da República: “Uma idéia fundamental, subjacente à liberdade de expressão, é a de que o Estado não pode decidir, pelos indivíduos, o que cada um pode ou não pode ouvir. Como ressaltou Ronald Dworkin, ‘o Estado insulta os seus cidadãos e nega a eles responsabilidade moral, quando decreta que não se pode confiar neles para ouvir opiniões que possam persuadi-los a adotar convicções perigosas ou ofensivas’.

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Daí por que o fato de uma idéia ser considerada errada ou mesmo perniciosa pelas autoridades públicas ADPF 187 / DF 32 de plantão não é fundamento bastante para justificar que a sua veiculação seja proibida. A liberdade de expressão não protege apenas as idéias aceitas pela maioria, mas também – e sobretudo – aquelas tidas como absurdas e até perigosas. Trata-se, em suma, de um instituto contramajoritário, que garante o direito daqueles que defendem posições minoritárias, que desagradam ao governo ou contrariam os valores hegemônicos da sociedade, de expressarem suas visões alternativas.” (grifei) V. As plurissignificações do art. 287 do Código Penal: necessidade de interpretar esse preceito legal em harmonia com as liberdades fundamentais de reunião, de expressão e de petição Vê-se, portanto, que o litígio constitucional instaurado na presente causa é motivado por abordagens hermenêuticas diversas em torno do art. 287 do Código Penal, precisamente em face do conteúdo polissêmico desse preceito legal, o que é atestado pela existência de provimentos judiciais conflitantes a propósito da questão, eis que há decisões que reconhecem que o art. 287 do Código Penal impede a realização de qualquer marcha ou passeata que objetive propor a discussão pública sobre a legalização do uso de drogas ou de substâncias correlatas, frustrando-se, assim, o exercício de liberdades públicas fundamentais, cuja prática tem sido duramente atingida e gravemente obstada por notórias medidas repressivas adotadas pelo Estado e seus agentes em função de pronunciamentos do Poder Judiciário que consideram apologia de fato ADPF 187 / DF 33 criminoso as condutas daqueles que organizam, promovem e/ou participam de movimentos como o da “Marcha da Maconha”. De outro lado, registram-se decisões que, proferidas em sentido diametralmente oposto, buscam compatibilizar o art. 287 do

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Código Penal com o texto da Constituição, interpretando-o de forma a não inviabilizar o exercício da liberdade de reunião e a prática dos direitos de petição e de livre manifestação do pensamento. Tudo isso torna necessário debater e examinar o significado e o alcance de determinadas liberdades fundamentais – a liberdade de reunião, a liberdade de manifestação do pensamento e, também, o direito de petição – cujo exercício tem sido inviabilizado, pelo Poder Público, sob a equivocada interpretação de que manifestações públicas (e pacíficas), como a “Marcha da Maconha”, configurariam a prática do ilícito tipificado no art. 287 do Código Penal, que define, como entidade delituosa, a “apologia de fato criminoso”, não obstante destinadas, tais manifestações, a veicular idéias, a transmitir opiniões, a formular protestos e a expor reivindicações (direito de petição), com a finalidade de sensibilizar a comunidade e as autoridades governamentais, notadamente os seus legisladores, para a delicada questão da ADPF 187 / DF 34 descriminalização (“abolitio criminis”) do uso das drogas ou de qualquer substância entorpecente específica. Extremamente precisa, a esse propósito, a referência que o IBCCRIM faz, em sua formal intervenção nesta causa, à delimitação material do objeto da presente demanda constitucional, especialmente no ponto em que assim se manifesta: “O objeto desta ADPF não se confunde com o objeto das reuniões ou manifestações que, sob contínua ameaça de repressão do Poder Público, justificaram a presente medida. (...). A temática jurídica submetida à apreciação desse Supremo Tribunal Federal situa-se em domínios normativos superiores, de feição constitucional; mais precisamente, no âmbito das liberdades individuais: estão em pauta os direitos fundamentais de reunião e de manifestação, enquanto projeções da liberdade de expressão, em cujo núcleo essencial incluem-se as faculdades de protesto e de reivindicação, pressupostos de uma sociedade livre, aberta e pluralista. Nessa perspectiva, as manifestações que, sob

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ilegítima expansão normativa dos limites do art. 287 do Código Penal, vêm sofrendo censura estatal poderiam ter por conteúdo matérias reivindicatórias as mais diversas (‘v.g.’, a descriminalização do aborto, da eutanásia ou de qualquer outra conduta incriminada sobre a qual a sociedade esteja dividida); ainda assim, o objeto da ADPF persistiria o mesmo. É preciso, outrossim, que fique claro: a proteção judicial ora postulada não contempla – e nem poderia fazê-lo – a criação de um espaço público circunstancialmente imune à ação fiscalizatória ordinária do Estado; menos ainda se propugna que, no exercício das liberdades ora reivindicadas, manifestantes possam incorrer em ilicitude de qualquer espécie, como, por exemplo, consumir drogas. O espectro ADPF 187 / DF 35 de liberdade que se objetiva ver assegurado é aquele inerente – portanto, adequado e necessário – aos direitos fundamentais implicados, sem que daí decorra implícita permissão à prática de conduta que se possa traduzir em violação às normas integradoras do Direito em vigor.” (grifei) É por isso que a douta Procuradoria-Geral da República, após enfatizar, com apoio em magistério doutrinário, que a liberdade de reunião acha-se submetida a um limite implícito, que é a sua finalidade lícita, corretamente observa: “(...) é perfeitamente lícita a defesa pública da legalização das drogas, na perspectiva do legítimo exercício da liberdade de expressão. Evidentemente, seja ilícita uma reunião em que as pessoas se encontrassem para consumir drogas ilegais ou para instigar terceiros a usá-las. Não é este o caso de reunião voltada à crítica da legalização penal e de políticas públicas em vigor, em que se defenda a legalização das drogas em geral, ou de alguma substância entorpecente em particular.” (grifei) O direito de reunião, Senhor Presidente, também surge como verdadeira pré-condição necessária à ativa participação dos cidadãos no processo político e no de tomada de decisões, notadamente agora em que o sistema constitucional brasileiro confere legitimidade ativa aos cidadãos para a instauração, por iniciativa popular, do processo legislativo, o que habilita o eleitorado a propor, ao Congresso Nacional, nos termos do art. 14, III, e do

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art. 61, § 2º, da Constituição, projetos de lei objetivando, até ADPF 187 / DF 36 mesmo, a própria “abolitio criminis” referente a qualquer conduta hoje penalmente punível. Legítimos, pois, sob perspectiva estritamente constitucional, a assembléia, a reunião, a passeata, a marcha ou qualquer outro encontro realizados, em espaços públicos, com o objetivo de obter apoio para eventual proposta de legalização do uso de drogas, de criticar o modelo penal de repressão e punição ao uso de substâncias entorpecentes, de propor alterações na legislação penal pertinente, de formular sugestões concernentes ao sistema nacional de políticas públicas sobre drogas, de promover atos de proselitismo em favor das posições sustentadas pelos manifestantes e participantes da reunião, ou, finalmente, de exercer o direito de petição quanto ao próprio objeto motivador da assembléia, passeata ou encontro. VI. Vinculação de caráter instrumental entre a liberdade de reunião e o direito de petição Mostra-se relevante salientar, agora, Senhor Presidente, que igualmente existe uma clara relação de instrumentalidade entre a liberdade de reunião e o direito de petição, que também se qualifica como expressiva prerrogativa de ADPF 187 / DF 37 natureza constitucional e de caráter político-jurídico, inerente ao próprio exercício da cidadania. Como sabemos, a declaração constitucional de direitos, inscrita no texto de nossa Lei Fundamental, assegura, a todos, o direito de petição aos poderes públicos, consagrando, em favor das pessoas em geral, uma faculdade que tem sido reconhecida ao longo do constitucionalismo brasileiro, desde a Carta Política do Império do

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Brasil (art. 179, n. 30), transitando, sem qualquer exceção, por todas as Constituições republicanas, até o vigente ordenamento constitucional (CF/88, art. 5º, inciso XXXIV, “a”), sempre atribuindo, aos cidadãos e à generalidade das pessoas, a prerrogativa de apresentar, aos órgãos competentes do Estado, queixas, reclamações e denúncias de abusos, além de propiciar-lhes a possibilidade de oferecer representação propondo a adoção de medidas que materializem a sua posição e o seu pensamento a propósito de certa matéria ou tema específico, como sucede, p. ex., com os que, congregando-se, pacificamente, em praça pública, propõem ao Poder Legislativo (destinatário precípuo da manifestação popular) a adoção de medidas descriminalizadoras do uso e consumo de drogas em geral e de determinada substância entorpecente em particular. ADPF 187 / DF 38 Vale ter presente, neste ponto, a observação que PONTES DE MIRANDA (“Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1 de 1969”, tomo V/630, item n. 3, 2ª ed./2ª tir., 1974, RT) faz sobre o direito de petição, que surgiu, historicamente, no contexto da Revolução Gloriosa (1688), com a Declaração de Direitos britânica de 1689 (“Bill of Rights”), que assegurava (como ainda assegura), aos súditos, o direito de se dirigir ao monarca reinante (e ao Parlamento), propondo-lhes a adoção de medidas ou de providências indicadas em pleito individual ou coletivo: “(...) é o direito público subjetivo de petição, com as pretensões respectivas, qualquer que seja o interêsse ou direito-base que invoque o peticionário, e independe de qualquer prova de interêsse próprio. Os podêres públicos são apenas adstritos a proferir despacho, ou designar comissão que estude as

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reclamações feitas. Porém, o Poder Legislativo não pode deixar de designar comissão ‘ad hoc’, ou permanente, que dê parecer, sujeito, ou não, a plenário. O arquivamento, sem qualquer resposta, constitui violação do enunciado da Constituição. A praxe é dar parecer a Comissão de Petições e enviá-lo, depois, com a petição, às outras Comissões, a que, pela matéria, interesse. Formou-se a relação jurídica processual, especialíssima, e o Estado tem o dever de prestação, em solução favorável ou não” (grifei). ADPF 187 / DF 39 VII. “A Marcha da Maconha”: expressão concreta do exercício legítimo, porque fundado na Constituição da República, das liberdades fundamentais de reunião, de manifestação do pensamento e de petição É importante destacar, de outro lado, Senhor Presidente, que, ao contrário do que algumas mentalidades repressivas sugerem, a denominada “Marcha da Maconha”, longe de pretender estimular o consumo de drogas ilícitas, busca, na realidade, expor, de maneira organizada e pacífica, apoiada no princípio constitucional do pluralismo político (fundamento estruturante do Estado democrático de direito), as idéias, a visão, as concepções, as críticas e as propostas daqueles que participam, como organizadores ou como manifestantes, desse evento social, amparados pelo exercício concreto dos direitos fundamentais de reunião, de livre manifestação do pensamento e de petição. Nesse contexto, a questionada (e tão reprimida) “Macha da Maconha” é bem a evidência de como se interconexionam as liberdades constitucionais de reunião (direito-meio) e de manifestação do pensamento (direito-fim ou, na expressão de Pedro Lessa, “direito-escopo”), além do direito de petição, todos eles igualmente merecedores do amparo do Estado, cujas autoridades – longe de transgredirem tais prerrogativas fundamentais – deveriam

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protegê-las, revelando tolerância e respeito por aqueles que, ADPF 187 / DF 40 congregando-se em espaços públicos, pacificamente, sem armas, apenas pretendem, Senhor Presidente, valendo-se, legitimamente, do direito à livre expressão de suas idéias e opiniões, transmitir, mediante concreto exercício do direito de petição, mensagem de abolicionismo penal quanto à vigente incriminação do uso de drogas ilícitas. Cabe rememorar, bem por isso, as observações feitas pelo ilustre Advogado e Professor SALO DE CARVALHO (“A Política Criminal de Drogas no Brasil - Estudo Criminológico e Dogmático da Lei 11.343/06”, p. 258/261, item n. 12.10, 5ª ed., 2010, Lumen Juris), que, em precisa exposição, indicou as finalidades legítimas perseguidas pelos que participam, sob o amparo das liberdades fundamentais de reunião e de manifestação do pensamento, dos encontros e eventos promovidos pelos organizadores de referida manifestação pública: “Realizada anualmente a partir de 1999 em várias cidades do planeta, a Marcha da Maconha é caracterizada por série de eventos de apoio às políticas antiproibicionistas e de redução de danos. Em festividades realizadas no primeiro sábado do mês de maio, considerado o Dia Mundial pela Descriminalização da ‘Cannabis’, são organizados encontros, passeatas, fóruns de debates, festas, concertos e festivais. Idealizada e coordenada por organizações civis e públicas não-governamentais, a Marcha objetiva realização de manifestações pacíficas, performances culturais e atos de livre expressão para informação e ADPF 187 / DF 41 discussão de políticas públicas que envolvem a (des)criminalização da ‘cannabis’. Segundo os organizadores, a ideia principal do evento é a promoção de debate sério sobre as políticas públicas que envolvem as drogas, sendo os participantes incentivados a não fazer uso de qualquer tipo de droga, lícita ou ilícita, especialmente o álcool, durante as manifestações. Constitui-se, tanto como movimento

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social espontâneo, reivindicatório e de livre exposição do pensamento. No Brasil, na última década, inúmeros coletivos aderiram à Marcha, seguindo o movimento global de manifestação contrária às políticas proibicionistas. A organização nacional, ao longo dos anos, publicizou amplamente a intenção de debater o tema da criminalização e os efeitos produzidos pela atual política criminal de drogas no Brasil e na América Latina. No ambiente virtual mantido pelos grupos e instituições que representam o Movimento, encontra-se a seguinte exposição de motivos: ‘Os objetivos principais do Coletivo são: Criar espaços onde indivíduos e instituições interessadas em debater a questão possam se articular e dialogar; Estimular reformas nas Leis e Políticas Públicas sobre a maconha e seus diversos usos; Ajudar a criar contextos sociais, políticos e culturais onde todos os cidadãos brasileiros possam se manifestar de forma livre e democrática a respeito das políticas e leis sobre drogas; Exigir formas de elaboração e aplicação dessas políticas e leis que sejam mais transparente, justas, eficazes e pragmáticas, respeitando a cidadania e os Direitos Humanos. O Coletivo Marcha da Maconha Brasil reafirma que suas atividades não têm a intenção de fazer apologia à maconha ou ao seu uso, nem incentivar qualquer tipo de atividade criminosa. As atividades do Coletivo respeitam não só o direito à livre manifestação de ideias e opiniões, mas também os limites legais desse e de outros direitos.’ ADPF 187 / DF 42 Na Carta de Princípios da Marcha da Maconha no Brasil, os integrantes expressam os objetivos da manifestação: ‘A Marcha da Maconha Brasil é um movimento social, cultural e político, cujo objetivo é levantar a proibição hoje vigente em nosso país em relação ao plantio e consumo da ‘cannabis’, tanto para fins medicinais como recreativos. Também é nosso entendimento que o potencial econômico dos produtos feitos de cânhamo deve ser explorado, especialmente quando isto for adequado sob o ponto de vista ambiental. A Marcha da Maconha Brasil não é um movimento de apologia ou incentivo ao uso de qualquer droga, o que inclui a ‘cannabis’. No entanto, partilhamos do entendimento de que a política proibicionista radical hoje vigente no Brasil e na esmagadora

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maioria dos países do mundo é um completo fracasso, que cobra um alto preço em vidas humanas e recursos públicos desperdiçados. A Marcha da Maconha Brasil não tem posição sobre a legalização de qualquer outra substância além da ‘cannabis’, a favor ou contra. O nosso objetivo limita-se a promover o debate sobre a planta em questão e demonstrar para a sociedade brasileira a inadequação de sua proibição. A Marcha da Maconha Brasil tem como objetivo agregar todos aqueles que comunguem dessa visão, usuários da erva ou não, que desejem colaborar de alguma forma para que a proibição seja derrubada. Os que estão presos pelo simples fato de plantar a ‘cannabis’ para uso pessoal são considerados presos políticos, assim como todos aqueles que estão atrás das grades sem ter cometido violência nenhuma contra ninguém, por delitos relacionados a esse vegetal que o conservadorismo obscurantista teima em banir. Para atingir os seus objetivos, a Marcha da Maconha Brasil atuará estritamente dentro da Constituição e das leis. Não abrimos mão da liberdade de expressão, mas também não promovemos a desobediência a nenhuma lei. Entretanto, reconhecemos que se a sociedade tem o dever de cumprir a lei elaborada e aprovada por seus representantes eleitos, ADPF 187 / DF 43 os legisladores devem exercer a sua função em sintonia com a evolução da sociedade. Uma vez por ano, simultaneamente com o movimento internacional ‘Global Marijuana March’, a Marcha da Maconha Brasil organizará e convocará manifestações públicas pela legalização da ‘cannabis’. Além disso, também poderão ser organizadas outras atividades, tais como seminários, conferências e debates, inclusive em colaboração com outros grupos e movimentos, nacionais e estrangeiros.’ Percebe-se, da leitura do material de divulgação, que a finalidade do movimento é problematizar a política criminal proibicionista. Trata-se, portanto, de movimento social espontâneo que reivindica a possibilidade, através da livre manifestação do pensamento, da discussão democrática do modelo proibicionista e dos efeitos que produziu em termos de incremento da violência. Ademais, o evento Marcha da Maconha possui, nitidamente, caráter cultural e artístico, em face da programação de atividades musicais, teatrais e performáticas, além da criação de

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espaço de debate com palestras, seminários e exibições de documentários relacionados às políticas públicas ligadas às drogas, lícitas e ilícitas. Em razão dos dados apresentados, incabível entender as condutas como apologia de fato criminoso, não apenas porque houve a descriminalização do tipo específico existente na revogada Lei 6.368/76, mas porque sequer há possibilidade de subsunção ao art. 287 do Código Penal. Note-se que o bem jurídico tutelado pelo tipo penal do art. 287 do Código Penal é a paz pública. Assim, a conduta, para constituir materialmente delito, deve, necessariamente, gerar, no seio social, perturbação. Segundo a doutrina, ‘fazer apologia significa defender, justificar, elogiar, enaltecer, defender. Trata-se da conduta daquele que, publicamente, enaltece o fato criminoso ou o autor do crime.’ No caso da Marcha da Maconha, do que se pode perceber, não há qualquer espécie de enaltecimento, defesa ou justificativa do porte para consumo ou do tráfico de drogas ilícitas, figuras tipificadas nos art. 28 e 33 da Lei 11.343/06. Ao contrário, resta ADPF 187 / DF 44 evidente a tentativa de pautar importante (e necessário) debate acerca das políticas públicas e dos efeitos do proibicionismo.” (grifei) VIII. A liberdade de manifestação do pensamento: um dos mais preciosos privilégios dos cidadãos Tenho sempre enfatizado, nesta Corte, Senhor Presidente, que nada se revela mais nocivo e mais perigoso do que a pretensão do Estado de reprimir a liberdade de expressão, mesmo que se objetive, com apoio nesse direito fundamental, expor idéias ou formular propostas que a maioria da coletividade repudie, pois, nesse tema, guardo a convicção de que o pensamento há de ser livre, sempre livre, permanentemente livre, essencialmente livre. Torna-se extremamente importante reconhecer, desde logo, que, sob a égide da vigente Constituição da República, intensificou-se, em face de seu inquestionável sentido de fundamentalidade, a liberdade de manifestação do pensamento. Ninguém desconhece que, no contexto de uma sociedade fundada em bases democráticas, mostra-se intolerável a repressão

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estatal ao pensamento. Não custa insistir, neste ponto, na asserção de que a Constituição da República revelou hostilidade extrema a quaisquer ADPF 187 / DF 45 práticas estatais tendentes a restringir ou a reprimir o legítimo exercício da liberdade de expressão e de comunicação de idéias e de pensamento. Essa repulsa constitucional bem traduziu o compromisso da Assembléia Nacional Constituinte de dar expansão às liberdades do pensamento. Estas são expressivas prerrogativas constitucionais cujo integral e efetivo respeito, pelo Estado, qualifica-se como pressuposto essencial e necessário à prática do regime democrático. A livre expressão e manifestação de idéias, pensamentos e convicções não pode e não deve ser impedida pelo Poder Público nem submetida a ilícitas interferências do Estado. Não deixo de reconhecer, Senhor Presidente, que os valores que informam a ordem democrática, dando-lhe o indispensável suporte axiológico, revelam-se conflitantes com toda e qualquer pretensão estatal que vise a nulificar ou a coarctar a hegemonia essencial de que se revestem, em nosso sistema constitucional, as liberdades do pensamento. O regime constitucional vigente no Brasil privilegia, de modo particularmente expressivo, o quadro em que se desenvolvem as liberdades do pensamento. Esta é uma realidade normativa, ADPF 187 / DF 46 política e jurídica que não pode ser desconsiderada pelo Supremo Tribunal Federal. A liberdade de expressão representa, dentro desse contexto, uma projeção significativa do direito, que a todos assiste, de manifestar, sem qualquer possibilidade de intervenção estatal “a priori”, as suas convicções, expondo as suas idéias e

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fazendo veicular as suas mensagens doutrinárias, ainda que impopulares, contrárias ao pensamento dominante ou representativas de concepções peculiares a grupos minoritários. É preciso reconhecer que a vedação dos comportamentos estatais que afetam tão gravemente a livre expressão e comunicação de idéias significou um notável avanço nas relações entre a sociedade civil e o Estado. Nenhum diktat, emanado do Estado, pode ser aceito ou tolerado, na medida em que venha a comprometer o pleno exercício da liberdade de expressão. A Constituição, ao subtrair, da interferência do Poder Público, o processo de comunicação e de livre expressão das idéias, ainda que estas sejam rejeitadas por grupos majoritários, mostrou-se atenta à grave advertência de que o Estado não pode dispor de poder ADPF 187 / DF 47 algum sobre a palavra, sobre as idéias e sobre os modos de sua manifestação. Impende advertir, bem por isso, notadamente quando os agentes do Poder, atuando de forma incompatível com a Constituição, buscam promover a repressão à liberdade de expressão, vedando o exercício do direito de reunião e, assim, frustrando, de modo injusto e arbitrário, a possibilidade de livre exposição de opiniões, que o Estado não dispõe de poder algum sobre a palavra, sobre as idéias, sobre o pensamento e sobre as convicções manifestadas pelos cidadãos. Essa garantia básica da liberdade de expressão do pensamento, como precedentemente assinalado, representa, em seu próprio e essencial significado, um dos fundamentos em que repousa a ordem democrática. Nenhuma autoridade pode prescrever o que será ortodoxo em política, ou em outras questões que envolvam temas de natureza filosófica, jurídica, social, ideológica ou confessional, nem estabelecer padrões de conduta cuja observância implique

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restrição à própria manifestação do pensamento. Isso, porque “o direito de pensar, falar e escrever livremente, sem censura, sem restrições ou sem interferência governamental” representa, conforme adverte HUGO LAFAYETTE BLACK, que integrou a Suprema Corte dos ADPF 187 / DF 48 Estados Unidos da América (1937-1971), “o mais precioso privilégio dos cidadãos...” (“Crença na Constituição”, p. 63, 1970, Forense). É certo que o direito à livre expressão do pensamento não se reveste de caráter absoluto, pois sofre limitações de natureza ética e de caráter jurídico. É por tal razão que a incitação ao ódio público contra qualquer pessoa, povo ou grupo social não está protegida pela cláusula constitucional que assegura a liberdade de expressão. Cabe relembrar, neste ponto, a própria Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), cujo Art. 13, § 5º, exclui, do âmbito de proteção da liberdade de manifestação do pensamento, “toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência”. Tenho por irrecusável, Senhor Presidente, que a liberdade de manifestação do pensamento, impregnada de essencial transitividade, destina-se a proteger qualquer pessoa cujas opiniões possam, até mesmo, conflitar com as concepções ADPF 187 / DF 49 prevalecentes, em determinado momento histórico, no meio social, impedindo que incida, sobre ela, por conta e efeito de suas convicções, qualquer tipo de restrição de índole política ou de natureza jurídica, pois todos hão de ser livres para exprimir idéias, ainda que estas possam insurgir-se ou revelar-se em

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desconformidade frontal com a linha de pensamento dominante no âmbito da coletividade. Vale relembrar, no ponto, o magistério, sempre valioso, de CELSO DELMANTO, ROBERTO DELMANTO, ROBERTO DELMANTO JUNIOR e FABIO M. DE ALMEIDA DELMANTO (“Código Penal Comentado”, p. 820, 8ª ed., 2010, Saraiva), cujos comentários, por extremamente relevantes, reproduzo a seguir, notadamente porque esses eminentes autores corretamente procedem a uma interpretação do art. 287 do Código Penal em conformidade com a Constituição e com o que ela estabelece em tema de liberdades fundamentais: “Liberdades públicas: Pode ocorrer que a conduta do agente esteja amparada por garantias constitucionais, como ocorre com as da liberdade de manifestação do pensamento (CR, art. 5º, IV) e da livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença (inciso IX), havendo um conflito aparente de normas com a proibição prevista no crime deste art. 287. O que o Direito Penal pune, evidentemente, são os ‘abusos’ no exercício dessas liberdades. Dependendo do caso, não haverá antijuridicidade ou ilicitude na conduta daquele ADPF 187 / DF 50 que, por exemplo, propugna pela descriminalização do aborto, do porte de droga para uso próprio e da eutanásia. Isto porque, defender a descriminalização de certas condutas previstas em lei como crime, não é fazer apologia de fato criminoso ou de autor de crime. Igualmente, não configura o crime deste art. 287 a conduta daquele que usa camiseta com a estampa da folha da maconha, por ser inócua a caracterizar o crime e por estar abrangida na garantia constitucional da liberdade de manifestação do pensamento.” (grifei) IX. A proposta de legalização do uso de drogas, inclusive da “Cannabis Sativa Linnaeus”, ainda que defendida fora de ambientes acadêmicos, em espaços públicos ou privados, é amparada pelas liberdades constitucionais de reunião, de manifestação do pensamento e de petição Desejo salientar, neste ponto, Senhor Presidente, já me aproximando do encerramento deste voto, que a mera proposta de

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descriminalização de determinado ilícito penal não se confunde com o ato de incitação à prática do delito, nem com o de apologia de fato criminoso, eis que o debate sobre a abolição penal de determinadas condutas puníveis pode (e deve) ser realizado de forma racional, com respeito entre interlocutores, ainda que a idéia, para a maioria, possa ser eventualmente considerada estranha, extravagante, inaceitável ou, até mesmo, perigosa. É relevante destacar que já se registraram, no ordenamento positivo brasileiro, diversos casos de “abolitio criminis”, cabendo mencionar, dentre eles, em tempos mais recentes, ADPF 187 / DF 51 a descaracterização típica do adultério (CP, art. 240), da sedução (CP, art. 217) e do rapto consensual (CP, art. 220). Impõe-se rememorar, aqui, fato historicamente expressivo, além de impregnado de inequívoco significado jurídico: refiro-me a comportamento que era punido, como delito, pelo Código Penal de 1890, que foi o primeiro estatuto penal da República, cujo art. 402 definia, como ato passível de repressão penal (pena de 2 a 6 meses de prisão celular), a conduta consistente em “Fazer, nas ruas e praças públicas, exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação de capoeiragem (...)”. Se prevalecesse a lógica autoritária, aqui repudiada, que extrai, do art. 287 do vigente Código Penal, em interpretação absolutamente incompatível com o texto da Constituição, a existência do delito de apologia de fato criminoso, nele enquadrando o comportamento dos que sustentam, publicamente, a descriminalização de determinado ato punível, estar-se-ia reconhecendo, em tal contexto, a possibilidade de incriminação dos que pugnaram pela legalização da prática da capoeiragem ou que, nesta, vislumbraram

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manifestação de caráter folclórico ou de índole cultural, como o fez, em 1932, em declaração pública, Gustavo Capanema, então Ministro da Educação e Saúde do Governo Provisório de Getúlio ADPF 187 / DF 52 Vargas, que proclamou, textualmente, que “A capoeira é o esporte nacional brasileiro”, o que permitiu retirar, nos anos subseqüentes, das páginas da repressão criminal, a atividade de capoeira, pois, como se sabe, a capoeira, hoje, acha-se vinculada à Confederação Brasileira de Capoeira, entidade reconhecida pelo próprio Comitê Olímpico Brasileiro, sendo digno de nota, ainda, o fato de que a “Roda de Capoeira” foi qualificada, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 21/10/2008, como prática integrante do Patrimônio Cultural do Brasil. Enfatize-se, Senhor Presidente, que jamais se cogitou, quanto aos autores de tais propostas – não importando se formuladas na esfera da sociedade civil ou no âmbito do Congresso Nacional (e que objetivavam a descriminalização, dentre outros, dos delitos de capoeiragem, de adultério, de sedução e de rapto consensual) -, que tivessem eles cometido o delito tipificado no art. 287 do Código Penal, o que, se ocorrido, constituiria um rematado absurdo... Há que se reconhecer, ainda, no que se refere à pretendida descriminalização do uso de drogas, inclusive da maconha, que essa tese é sustentada, publicamente, por diversas entidades, tais como a Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia, presidida pelo ex-Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, que, em artigo publicado no ADPF 187 / DF 53 “Valor Econômico” (“A Guerra contra as Drogas”, em 18/01/2011), e

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após observar que a guerra contra as drogas “é uma guerra perdida”, impondo-se, por isso mesmo, uma ruptura de paradigma na análise e enfrentamento dessa questão, teceu as seguintes observações: “A guerra contra as drogas é uma guerra perdida e 2011 é o momento para afastar-se da abordagem punitiva e buscar um novo conjunto de políticas baseado na saúde pública, direitos humanos e bom senso. Essas foram as principais conclusões da Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia que organizei, ao lado dos ex-presidentes Ernesto Zedillo, do México, e César Gaviria, da Colômbia. Envolvemos-nos no assunto por um motivo persuasivo: a violência e a corrupção associadas ao tráfico de drogas representam uma grande ameaça à democracia em nossa região. Esse senso de urgência nos levou a avaliar as atuais políticas e a procurar alternativas viáveis. A abordagem proibicionista, baseada na repressão da produção e criminalização do consumo, claramente, fracassou. Após 30 anos de esforços maciços, tudo o que o proibicionismo alcançou foi transferir as áreas de cultivo e os cartéis de drogas de um país a outro (conhecido como efeito balão). A América Latina continua sendo a maior exportadora de cocaína e maconha. Milhares de jovens continuam a perder as vidas em guerras de gangues. Os barões das drogas dominam comunidades inteiras por meio do medo. Concluímos nosso informe com a defesa de uma mudança de paradigma. O comércio ilícito de drogas continuará enquanto houver demanda por drogas. Em vez de aferrar-se a políticas fracassadas que não reduzem a lucratividade do comércio - e, portanto, seu poder - precisamos redirecionar nossos esforços à redução do consumo e contra o dano causado pelas drogas às pessoas e sociedade. ................................................... A abordagem recomendada no informe da comissão, no entanto, não significa complacência. As drogas são prejudiciais à saúde. Minam a capacidade dos usuários ADPF 187 / DF 54 de tomar decisões. O compartilhamento de agulhas dissemina o HIV/Aids e outras doenças. O vício pode levar à ruína financeira e ao abuso doméstico, especialmente de crianças. ................................................... Reduzir o consumo ao máximo possível precisa, portanto, ser o objetivo principal. Isso, contudo, requer

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tratar os usuários de drogas como pacientes que precisam ser cuidados e não como criminosos que devem ser encarcerados. Vários países empenham-se em políticas que enfatizam a prevenção e tratamento, em vez da repressão - e reorientam suas medidas repressivas para combater o verdadeiro inimigo: o crime organizado. A cisão no consenso global em torno à abordagem proibicionista é cada vez maior. Um número crescente de países na Europa e América Latina se afasta do modelo puramente repressivo. Portugal e Suíça são exemplos convincentes do impacto positivo das políticas centradas na prevenção, tratamento e redução de danos. Os dois países descriminalizaram a posse de drogas para uso pessoal. Em vez de registrar-se uma explosão no consumo de drogas como muitos temiam, houve aumento no número de pessoas em busca de tratamento e o uso de drogas em geral caiu. Quando a abordagem política deixa de ser a de repressão criminal para ser questão de saúde pública, os consumidores de drogas ficam mais abertos a buscar tratamento. A descriminalização do consumo também reduz o poder dos traficantes de influenciar e controlar o comportamento dos consumidores. Em nosso informe, recomendamos avaliar do ponto de vista da saúde pública - e com base na mais avançada ciência médica - os méritos de descriminalizar a posse da cannabis para uso pessoal. A maconha é de longe a droga mais usada. Há um número cada vez maior de evidências indicando que seus danos são, na pior hipótese, similares aos provocados pelo álcool ou tabaco. Além disso, a maior parte dos problemas associados ao uso da maconha - desde o encarceramento indiscriminado dos consumidores até a violência e a corrupção associadas ao tráfico de drogas - é resultado das atuais políticas proibicionistas. A descriminalização da cannabis seria, portanto, um importante passo à frente para abordar o uso de drogas ADPF 187 / DF 55 como um problema de saúde e não como uma questão para o sistema de Justiça criminal. ................................................... Nenhum país concebeu uma solução abrangente ao problema das drogas. A solução, no entanto, não exige uma escolha cabal entre a proibição e a legalização. A pior proibição é a proibição de pensar. Agora, enfim, o tabu que impedia o debate foi quebrado. Abordagens alternativas estão sendo testadas e precisam ser cuidadosamente avaliadas. No fim das contas, a capacidade das pessoas de avaliar riscos e fazer escolhas estando informadas será

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tão importante para regular o uso das drogas quanto leis e políticas mais humanas e eficientes. Sim, as drogas corroem a liberdade das pessoas. É hora, no entanto, de reconhecer que políticas repressivas em relação aos usuários de drogas, baseadas, como é o caso, em preconceito, medo e ideologia, são, da mesma forma, uma ameaça à liberdade.” (grifei) Cabe registrar, finalmente, que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, instituição vinculada à Organização dos Estados Americanos, por sua Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão, já manifestou grave preocupação, externada no Informe Anual de 2008, motivada pela existência de decisões judiciais que proibiram, em maio daquele ano, no Brasil, a realização de manifestações públicas que buscavam propor modificações na legislação penal em vigor, assim havendo se pronunciado a respeito, como registra a douta Procuradoria-Geral da República (fls. 05/06): “50. O Escritório do Relator Especial recebeu informação a propósito da adoção de medidas judiciais em maio de 2008 em nove cidades brasileiras diferentes proibindo a realização de demonstrações públicas que ADPF 187 / DF 56 visavam a promover modificações no Direito Penal em vigor. Estas decisões foram justificadas por autoridades judiciais com base no argumento de que elas (as demonstrações públicas) constituiriam supostamente apologia ou instigamento de atividade criminal. O Escritório do Relator Especial recorda que, exceto no caso de formas de expressão que, nos termos do artigo 13 (5) da Convenção Americana, claramente constituam ‘propaganda de guerra’ ou ‘apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à violência ilegal ou a qualquer outra ação similar contra qualquer pessoa ou grupo, por qualquer motivo’, marchas de cidadãos pacíficos em áreas públicas são demonstrações protegidas pelo direito à liberdade de expressão.” (grifei) X. Conclusão: Em suma, Senhor Presidente: a liberdade de expressão, considerada em seu mais abrangente significado, traduz, ela própria, o fundamento que nos permite formular idéias e transmiti-las com o

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intuito de provocar a reflexão em torno de temas que podem revelar-se impregnados de elevado interesse social. As idéias, Senhor Presidente, podem ser fecundas, libertadoras, subversivas ou transformadoras, provocando mudanças, superando imobilismos e rompendo paradigmas até então estabelecidos nas formações sociais. ADPF 187 / DF 57 É por isso que se impõe construir espaços de liberdade, em tudo compatíveis com o sentido democrático que anima nossas instituições políticas, jurídicas e sociais, para que o pensamento não seja reprimido e, o que se mostra fundamental, para que as idéias possam florescer, sem indevidas restrições, em um ambiente de plena tolerância, que, longe de sufocar opiniões divergentes, legitime a instauração do dissenso e viabilize, pelo conteúdo argumentativo do discurso fundado em convicções divergentes, a concretização de um dos valores essenciais à configuração do Estado democrático de direito: o respeito ao pluralismo político. A livre circulação de idéias, portanto, representa um signo inerente às formações democráticas que convivem com a diversidade, vale dizer, com pensamentos antagônicos que se contrapõem, em permanente movimento dialético, a padrões, convicções e opiniões que exprimem, em dado momento histórico-cultural, o “mainstream”, ou seja, a corrente dominante em determinada sociedade. É por isso que a defesa, em espaços públicos, da legalização das drogas, longe de significar um ilícito penal, supostamente caracterizador do delito de apologia de fato criminoso, representa, na realidade, a prática legítima do direito à livre manifestação do pensamento, propiciada pelo exercício do direito de ADPF 187 / DF 58 reunião, sendo irrelevante, para efeito da proteção constitucional de

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tais prerrogativas jurídicas, a maior ou a menor receptividade social da proposta submetida, por seus autores e adeptos, ao exame e consideração da própria coletividade. Sendo assim, tendo em consideração as razões expostas e garantindo a todas as pessoas o exercício dos direitos fundamentais de reunião e de livre manifestação do pensamento, tais como assegurados pela Constituição da República, julgo procedente a presente argüição de descumprimento de preceito fundamental, para dar, ao art. 287 do Código Penal, interpretação conforme à Constituição, “de forma a excluir qualquer exegese que possa ensejar a criminalização da defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica, inclusive através de manifestações e eventos públicos” (fls. 14 - grifei).

É o meu voto.