6
Sustentando sonhos Instituto Lixo e Cidadania Curitiba, Paraná Taís de Oliveira Santos 22anos Diariamente, uma multidão de meio milhão de homens e mulheres, um contingente quase 2,5 vezes maior do que o Exército Brasileiro, formado por 210 mil soldados, marcha silenciosamente pelas ruas de 3,8 mil cidades brasileiras. Eles andam desarmados e maltrapilhos, muitas vezes famintos, e são quase sempre invisíveis para o resto da população. Esta tropa é responsável por mais de 90% da reciclagem de lixo feita no país. Segundo dados do IBGE em 2008, o Brasil produz 140 mil toneladas de resíduos a cada dia – um problema, que, em razão da sua proporção, não terá como ser varrido para debaixo do tapete, como diz o velho ditado. Em duas ocasiões especialmente graves, os catadores ganharam as manchetes de todos os jornais, aqui e lá fora. Primeiro, em 1987, quando alguns deles foram contaminados por Césio 137, em Goiânia. O material radioativo, utilizado em hospitais, havia sido abandonado em um “lixão” da cidade, sem qualquer cuidado. Sete anos depois, em 1994, um novo escândalo: mãe e filho que se sustentavam de coleta, em Olinda (PE), passaram mal após consumirem carne humana, oriunda de lixo hospitalar. Alimentaram-se de uma mama amputada e tiveram intoxicação. Em 1998, a divulgação de uma pesquisa realizada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) tratou os “lixões” como um problema da infância brasileira e os casos das crianças catadoras pararam de ser considerados episódios isolados. Segundo os dados apurados naquela ocasião, 45 mil crianças no país trabalhavam nos “lixões” e 30% delas estavam fora da escola.

22:Layout 1criancaesperanca.globo.com/platb/files/2091/theme/22.cap22.pdf · (feito com o próprio lixo), violão, serigrafia, grafite, hip hop, ... Na Medida Certa, para implementar

  • Upload
    dinhnga

  • View
    213

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: 22:Layout 1criancaesperanca.globo.com/platb/files/2091/theme/22.cap22.pdf · (feito com o próprio lixo), violão, serigrafia, grafite, hip hop, ... Na Medida Certa, para implementar

Sustentando sonhos

Instituto Lixo e CidadaniaCuritiba, Paraná

Taís de Oliveira Santos22anos

Diariamente, uma multidão de meio milhão de homens e mulheres,um contingente quase 2,5 vezes maior do que o Exército Brasileiro,formado por 210 mil soldados, marcha silenciosamente pelas ruas de3,8 mil cidades brasileiras. Eles andam desarmados e maltrapilhos,muitas vezes famintos, e são quase sempre invisíveis para o resto dapopulação. Esta tropa é responsável por mais de 90% da reciclagem delixo feita no país. Segundo dados do IBGE em 2008, o Brasil produz 140mil toneladas de resíduos a cada dia – um problema, que, em razão dasua proporção, não terá como ser varrido para debaixo do tapete, comodiz o velho ditado.

Em duas ocasiões especialmente graves, os catadores ganharam asmanchetes de todos os jornais, aqui e lá fora. Primeiro, em 1987,quando alguns deles foram contaminados por Césio 137, em Goiânia.O material radioativo, utilizado em hospitais, havia sido abandonadoem um “lixão” da cidade, sem qualquer cuidado. Sete anos depois, em1994, um novo escândalo: mãe e filho que se sustentavam de coleta,em Olinda (PE), passaram mal após consumirem carne humana, oriundade lixo hospitalar. Alimentaram-se de uma mama amputada e tiveramintoxicação.

Em 1998, a divulgação de uma pesquisa realizada pelo Fundo dasNações Unidas para a Infância (UNICEF) tratou os “lixões” como umproblema da infância brasileira e os casos das crianças catadoraspararam de ser considerados episódios isolados. Segundo os dadosapurados naquela ocasião, 45 mil crianças no país trabalhavam nos“lixões” e 30% delas estavam fora da escola.

22:Layout 1 10/4/10 7:53 PM Page 150

Page 2: 22:Layout 1criancaesperanca.globo.com/platb/files/2091/theme/22.cap22.pdf · (feito com o próprio lixo), violão, serigrafia, grafite, hip hop, ... Na Medida Certa, para implementar

22:Layout 1 10/4/10 7:53 PM Page 151

Page 3: 22:Layout 1criancaesperanca.globo.com/platb/files/2091/theme/22.cap22.pdf · (feito com o próprio lixo), violão, serigrafia, grafite, hip hop, ... Na Medida Certa, para implementar

152

ração satisfatória”, atesta a pedagoga Suelita Röcker, doInstituto Lixo & Cidadania, apoiado pelo CriançaEsperança. A ONG existe desde 2003. No início, oprincipal foco era a erradicação do trabalho infantil,mas atualmente há poucas crianças, pelo menos emCuritiba. “Hoje, as pouquíssimas crianças que acom-panham os pais na coleta estão lá por falta de crecheno contraturno escolar”, diz Suelita. O foco, portanto,foi ampliado: agora inclui gestão de cooperativas eassociações, e educação ambiental dos catadores. OInstituto acompanha 56 grupos em todo o estado doParaná – cerca de seis mil pessoas.

Sustentabilidade

O Lixo & Cidadania oferece cursos de artesanato(feito com o próprio lixo), violão, serigrafia, grafite, hip hop,webdesign, montagem e manutenção de computadorese informática. Taís fez o último e aprendeu a trabalharem planilhas que hoje ajudam a cooperativa. Foi eleitapelos 59 colegas para o cargo de tesoureira. “Eles sabemque sou honesta, justa e certa”, diz, sem empáfia e emvoz alta. Os colegas concordam.

Taís explica que a próxima meta da cooperativa éeliminar os atravessadores, que ainda ficam com boaparte dos lucros. “Nossa intenção é vender diretamentepara a indústria”, diz. Quando for montada uma rede devárias cooperativas, o volume, atualmente de 150 tone-ladas/mês, vai aumentar e será suficiente para baterdiretamente na porta do comprador. Sem os interme-

Maria José

Taís de Oliveira Santos já foi um número dessa esta-tística. Aos 22 anos, nunca teve notícias do pai. Quemlevava o sustento para casa era sua mãe, Maria José.Esse sustento veio sempre do lixo. “Parece que ela nãocansa. Às vezes, traz dois carrinhos cheios por dia, cadaum com 250, 350 quilos. Carrega sacos de 50 quilos nosombros, por isso tem bursite. Está doente de tantocarregar peso, mas ainda assim, adora o serviço. Foiassim que criou os três filhos”, conta Taís. “Tem sidoassim, desde que me entendo por gente. Quando eunasci, ela já fazia isso”, diz.

Entre os 16 e os 17 anos, Taís resolveu seguir os passosda mãe e trabalhou como catadora nas ruas de Curitiba.“Não é a minha praia. Desisti no dia em que fui pedirpara recolher o lixo de um prédio e uma mulher medisse para ir procurar serviço, como se isso não fossetrabalho”, lembra. A partir daí, ela resolveu ajudar a mãenuma parte fundamental do processo: a separação domaterial coletado. Tudo que Maria José leva até o galpãoda cooperativa Catamare, da capital paranaense, Taíscoloca sobre uma mesa e divide em 12 categorias dife-rentes, entre papéis, plásticos, metais e vidros. Ao fim dodia, cada material é pesado e avaliado. Um quilo de gar-rafas pet, por exemplo, que ocupa um saco de 100 litros,é revendido a R$ 0,90. Pelo serviço, Taís fica com R$ 100,00por semana e Maria José, com cerca de R$ 300,00.

“Com a organização do trabalho em cooperativas, épossível trabalhar com lixo de forma digna e remune-

22:Layout 1 10/4/10 7:53 PM Page 152

Page 4: 22:Layout 1criancaesperanca.globo.com/platb/files/2091/theme/22.cap22.pdf · (feito com o próprio lixo), violão, serigrafia, grafite, hip hop, ... Na Medida Certa, para implementar

153

diários, o valor do material coletado subiria de 30 a 60%. “Perdemos bastante dinheiro para os atravessadores”,Taís faz as contas.

A garota sonha alto e planeja criar uma indústria ligada aos galpões de triagem de lixo. A transformação degarrafas pet em flake (espécie de grão), usado como matéria-prima, faria o quilo passar dos atuais R$ 0,90 paraR$ 2,20. Em Curitiba, 92,7% do lixo são reciclados atualmente por catadores, que, desde o ano passado, sebeneficiam de uma lei estadual que obriga todas as autarquias públicas a direcionar o seu lixo não orgânico paraos grupos organizados. O trabalho desenvolvido por eles reduz os gastos públicos com a limpeza e aumenta avida útil dos aterros sanitários.

Assim, aos poucos, a situação de Taís – e de todo o exército do qual ela faz parte – vai melhorando. “Comproroupas, cremes, minhas coisas”, diz, dando espaço à vaidade a que toda garota de sua idade tem direito. “Às vezes,saio pra balada. Mas quando estou cansada, fico dormindo sem culpa”, conta. Em seus planos, mais do que festaou descanso, há mais trabalho e desejo de crescer: “No fim do ano que vem termino o ensino médio”. Vitória daTaís e de um Brasil mais sustentável.

Em Curitiba, 92,7% do lixo são reciclados por catadores. O trabalho deles reduz os gastos públicos com limpeza e aumentaa vida útil dos aterros sanitários.

22:Layout 1 10/4/10 7:53 PM Page 153

Page 5: 22:Layout 1criancaesperanca.globo.com/platb/files/2091/theme/22.cap22.pdf · (feito com o próprio lixo), violão, serigrafia, grafite, hip hop, ... Na Medida Certa, para implementar

154

Em 2007, o governo federal apresentou um

plano de ação para a área da infância e da ju-

ventude: a Agenda Social Criança e Adoles-

cente – um conjunto de projetos que atuariam

de forma articulada e intersetorial com foco

nos direitos da população infanto juvenil em

situação de violência no país. A agenda en-

volveu 47 ações, 14 ministérios, organizações

não governamentais, organismos internacio-

nais, estados e municípios.

Sua criação usou como tripé três grandes

frentes: o projeto Bem Me Quer, para promo-

ver ações de proteção e atendimento nas de-

zenove regiões metropolitanas alcançadas

pelo Programa Nacional de Segurança com Ci-

dadania (Pronasci); o Caminho para a Casa,

para apoiar o acolhimento de crianças e ado-

lescentes e promover o direito à convivência

familiar e comunitária junto a abrigos; e o

Na Medida Certa, para implementar o Sis-

tema Nacional de Atendimento Socioeduca-

tivo (Sinase).

Em 2007, uma boa notícia foi divulgada

pelo Ministério da Saúde: desde 2004, o Bra-

sil vinha conseguindo reduzir em 5% ao ano

a mortalidade materna e neonatal – uma das

metas do Pacto Nacional pela Redução da

Mortalidade Materna e Neonatal, estabele-

cidas pelo governo federal.

Em dezembro, outra conquista na área

de saúde foi revelada: segundo a pesquisa

“Tábuas de mortalidades completas 2006”,

divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geo-

grafia e Estatística (IBGE), a taxa de mortali-

dade infantil no Brasil havia caído quase 1%

nos dois anos anteriores. Em 2005, o índice

2007

Governo federal

apresenta Agenda para

a infância e a juventude

Fernanda Montenegro, uma das mais importantes atrizes brasileiras, sobe ao palco

do show do Criança Esperança para falar sobre a importância da educação

de mortes era de 25,8 por mil crianças nas-

cidas vivas. No ano seguinte, caiu para 24,9

óbitos a cada mil. Segundo o estudo, a me-

lhoria das condições sociais no nordeste foi

essencial para a queda.

No quesito da educação, ao contrário,

havia mais motivos para lamentar do que para

comemorar. Levantamento do Programa de

Avaliação Internacional de Estudantes (Pisa),

de 2006, mostrou que o Brasil piorou seu de-

sempenho em leitura, mas foi um dos paí-

ses que mais melhoraram em matemática.

A pesquisa é realizada pela Organização para

a Cooperação e Desenvolvimento Econômico

(OCDE) a cada três anos e leva em conside-

ração o aprendizado de cerca de 400 mil

alunos de 15 anos, em 57 países. Em leitura

e matemática, a pontuação dos brasileiros

foi 393 e 370, respectivamente. A nota máxima

registrada no Pisa foi de 707,9. Este desempe-

nho faz que o país não consiga passar do nível

1 de aprendizagem (numa escala que varia de

um a seis) em nenhuma das áreas. Isso quer

dizer que os adolescentes sabem ler, mas dei-

xam a desejar na interpretação das informa-

ções. Embora a nota de matemática tenha

melhorado em relação ao levantamento ante-

rior, feito em 2003, os alunos brasileiros fi-

caram com o quarto pior desempenho no

ranking internacional da disciplina, e o pior

entre os países sul-americanos.

A quantidade de reportagens na mídia

sobre a importância da educação e o grande

número de ONGs e fundações empresariais

dedicadas ao tema que surgiram são alguns

indicadores da importância do tema para os

brasileiros. Em 2007, subiu ao palco do showdo Criança Esperança a atriz Fernanda Mon-

tenegro, para informar que 17 milhões de

brasileiros ainda não sabiam ler nem escre-

ver. O especial daquele ano, novamente reali-

zado no Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo,

apresentou reportagens sobre a realidade es-

colar de diversas regiões do país.

Emoção

O tratamento dedicado pelo Criança Espe-rança ao tema da educação foi reconhecidopelo prêmio Top Educação, da revista Educa-ção (publicação especializada da Editora Seg-mento), na categoria social. No show doano, houve apresentação da orquestra da fa-vela de Heliópolis, de São Paulo, regida pelomaestro Isaac Karabtchevsky. Os músicosapresentaram a canção Aos Nossos Filhos, in-terpretada por Ivan Lins. No ano em que o Riode Janeiro sediou os Jogos Pan-Americanos etantas crianças e adolescentes viram-se ins-pirados a praticar esportes, os atletas TiagoPereira e Diogo Silva participaram do show,dando depoimentos de superação, autocon-fiança, dedicação e orgulho de representaro país.

O especial também ficou marcado pelo

uso da alta tecnologia: uma cable cam garan-

tiu aos telespectadores a visão privilegiada de

diversos pontos do palco e da plateia, em telão

de 160 metros quadrados, o maior da história

do programa até então.

Além de educação e meio ambiente, a

campanha também abordou como temas

o trabalho infantil e o futuro.

CO

NTEXTO

22:Layout 1 10/4/10 7:53 PM Page 154

Page 6: 22:Layout 1criancaesperanca.globo.com/platb/files/2091/theme/22.cap22.pdf · (feito com o próprio lixo), violão, serigrafia, grafite, hip hop, ... Na Medida Certa, para implementar

“O programa Criança Esperança canaliza a generosidade dos brasileiros num mecanismo fantásticoque congrega valores humanitários, criação de capacidades, crianças, jovens e doações. É fácil perceberos resultados à medida que as crianças e os jovens ganham mais autoconfiança e integram-se melhorna vida real. Lembro-me da primeira visita que fiz ao Espaço Criança Esperança do Rio de Janeiro. Lá, vimeninos e meninas, num ambiente “real e prático”, aprendendo a melhorar seus conhecimentos sociais,a compartilhar, a ser paciente e a respeitar os colegas. Senti que essas crianças e jovens estavam muitofelizes por ter esse espaço para crescer e nunca me esquecerei do sorriso estampado em seus rostos.Orgulho-me de fazer parte desta história.”

155

Foto

: Eds

on Fo

gaça

Michel Bonenfant Representante adjunto e administrador daUNESCO no Brasil

22:Layout 1 10/4/10 7:53 PM Page 155