Click here to load reader
Upload
barbara-cristina-mota-johas
View
2
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
Marx e a Educao Nildo Viana*
Resumo: O artigo trata da concepo de educao em Marx, analisando o seu fundamento (a teoria da natureza humana), seu projeto educativo para uma nova sociedade, sua crtica da educao burguesa e suas propostas concretas para prtica educativa na sociedade atual. Tambm realiza uma anlise de outras concepes de educao, denominadas como pedagogia internalista e externalista, e, posteriormente, as compara com a concepo marxista, realizando uma abordagem crtica e apresentando as diferenas existentes. Palavras-Chave: Externalismo, Internalismo, Existencialismo, Marxismo, Educao,
Pretendemos, no presente texto, discutir a concepo marxista da educao, tal
como compreendida por Marx, e compar-la com algumas outras concepes, buscando
perceber suas reais diferenas. Iremos comear por uma anlise das diversas concepes
de educao que se desenvolveram historicamente. Obviamente, no iremos, neste
breve texto, apresentar detalhadamente cada uma das inmeras concepes de educao,
mas to-somente apresentar os elementos fundamentais que as sustentam, seu ncleo
comum e fundamental, e colocar alguns exemplos para o esclarecimento de quem so os
representantes de cada uma delas. Aps isto, iremos observar a concepo de educao
em Marx e assim ver em que ela se diferencia das demais.
Devemos deixar mais claro este objetivo e julgamos que Bogdan Suchodolski
(1984) nos oferece uma grande contribuio para pensarmos as concepes de
educao. Segundo ele:
Tentou-se variadssimas vezes, como sabido, efetuar uma classificao do rico patrimnio constitudo pelo pensamento pedaggico moderno. Utilizaram-se vrios princpios de classificao, o que tornou possvel agrupar de vrios modos autores, pontos de vista, correntes e posies. Delinearam-se assim quadros muito diversos da pedagogia moderna. Esses quadros tm, sem dvida, valor didtico, pois ao classific-los de modos distintos evidenciaram-se mltiplos aspectos das diferentes posies pedaggicas; isto pode contribuir para a compreenso de um fato histrico, a saber: que as posies pedaggicas defendidas nunca foram homogneas; no entanto, quer pela genealogia, quer pelas suas repercusses, revelaram sempre numerosos elementos de contato. Assim, se percorrermos o extenso conjunto de pontos de vista e de posies pedaggicas tomando como referncia princpios de classificao diferentes, d-se uma boa lio de antiesquematismo e de pensamento analtico que mostra em que medida a realidade, aparentemente homognea, de fato variada (Suchodolski, 1984, p. 15).
Suchodolski acrescenta que isto insuficiente, pois preciso ir alm da
classificao das diversas concepes para compreender sua problemtica essencial.
Ora, partindo da problemtica essencial das concepes de educao, iremos realizar
* Socilogo, Filsofo, Doutor em Sociologia/UnB; Professor da Universidade Estadual de Gois. E-mail: [email protected]; tel. 62 582-0238
uma nova classificao que, no entanto, no apresenta a mesma quantidade se o
fizermos por seus aspectos superficiais. Suchodolski sugere, ento, que o grande divisor
de guas no pensamento pedaggico ocorre entre a pedagogia da existncia e a
pedagogia da essncia.
Devemos reconhecer o mrito da abordagem de Suchodolski, mas a sua
distino entre pedagogia da essncia e pedagogia da existncia nos parece inadequada.
Assim, iremos seguir as pegadas de Suchodolski at o momento de se pensar qual o
problema essencial das concepes de educao, sem utilizar sua classificao. O
motivo de discordarmos de sua diviso entre pedagogia da essncia e pedagogia da
existncia se encontra no fato de que ele encontra nela a oposio entre filosofia da
essncia e filosofia da existncia (existencialismo), o que, do nosso ponto de vista, traz
mais confuso do que soluo, pois muitos pensadores que ele diz defender o
existencialismo em pedagogia, so, no fundo, essencialistas e vice-versa.
Por isso temos que sugerir uma nova forma de classificao. Faremos isto nos
inspirando no prprio Suchodolski. Aquilo que ele denomina pedagogia da essncia
se caracteriza principalmente por pensar que a educao ou o saber se d atravs de um
desenvolvimento externo ao indivduo, enquanto que, para o que chama de pedagogia
da existncia, isto ocorre via desenvolvimento interno. Da o carter coletivista e/ou
racionalista que muitas vezes acompanha a primeira e o carter individualista ou
romntico que vrias vezes acompanha a segunda. Portanto, as categorias-chave aqui
so interno e externo. Por isso iremos dividir as concepes de educao em duas
formaes bsicas: a pedagogia externalista e a pedagogia internalista. Elas coincidem,
na maioria das vezes, com o que Suchodolski denomina pedagogia da essncia e
pedagogia da existncia, respectivamente, embora isto no ocorra em alguns casos.
Alm disso, a coincidncia ocorre, em alguns casos, devido a fundamentos diferentes
dos propostos por este autor.
A Pedagogia Externalista
A pedagogia externalista considera que o saber no inato ao indivduo, que
ele deve ser transmitido. Um indivduo no aprende sozinho mas to-somente atravs do
ensino. Logo, se estabelece uma distino entre aquele que ensina e aquele que aprende,
entre mestre-discpulo ou professor-aluno.
As origens remotas desta concepo se encontram na filosofia antiga e Plato o
nome de seu sistematizador neste perodo histrico. O contexto social em que isto
ocorre o da ampliao da diviso social do trabalho e da formao de uma nova
camada social, a dos filsofos, que se dedicava exclusivamente ao trabalho intelectual.
A concepo de educao em Plato descrita de forma mais sistemtica e clara em sua
Alegoria da Caverna, na qual realiza a distino entre o mundo das sombras (o mundo
dos sentidos, da experincia) e o mundo das luzes (da razo), sendo que este era
habitado pelos filsofos (Viana, 2000). Sendo assim, as pessoas vivem naturalmente
no mundo das sombras, no reino da doxa (opinio) e para chegarem ao mundo das
luzes, ao reino do logos (razo) precisam da mediao dos filsofos.
A pedagogia externalista reinou absoluta na sociedade feudal. A concepo
medieval de mundo subordina a razo revelao (Viana, 2000), mas mantm a
dicotomia platnica entre duas esferas da realidade: uma emprica, temporal; outra
verdadeira, eterna (Suchodolski, 1984). Assim, os iniciados nas Sagradas Escrituras, os
telogos, so aqueles que possuem o saber verdadeiro e que podem transmiti-lo.
Na sociedade moderna, a pedagogia externalista se desenvolveu sob as mais
variadas formas. O racionalismo renascentista e o iluminismo so algumas das formas
assumidas pela pedagogia externalista. Podemos citar, no amplo conjunto de
representantes da pedagogia externalista, nomes como os de Erasmo de Roterdam, John
Locke, Comenius, Hegel, Kant, Durkheim, entre inmeros outros. Vejamos o exemplo
de Comenius:
Comenius tem (...) confiana na mxima latitude potencial da graa divina, o que, no plano educativo, significa que todos tem necessidade de educao e que em todos a educao apropriada d bons frutos. Para demonstrar o primeiro ponto, isto , de que o homem sem instruo no pode passar de um bruto, Comenius cita alguns casos de crianas selvagens (...). Quanto ao mais difcil assunto, ou seja que a educao frutifique sempre e em todos, Comenius chega a assumir a posio mais radical (que , pois, a nica sensata): s aos tarados da natureza, isto , os idiotas e perversos, pode acontecer que a educao no d ajuda, se bem que conseguir pelo menos adoar-lhes os costumes. A todos os outros, homens e mulheres, trata-se de fornecer a educao apropriada sua posio e aptides para que dem frutos certos (Abbagnano & Visalberghi, 1981, p. 381-382 v2).
John Locke, por sua vez, ir se basear em sua filosofia liberal para desenvolver
sua concepo de educao. Para ele, o homem como uma folha em branco na qual
a cultura escreve seu texto (Locke, 1983). E o texto que deve ser escrito no homem
aquele que cria o gentleman, que deve ser institudo como a base e a medida da
educao (Suchodolski, 1984; Abbagnano & Visalberghi, 1981).
Tomemos um ltimo exemplo, o socilogo mile Durkheim. Este toma a
educao como um processo de socializao, de insero do indivduo na sociedade.
Para ele, a educao um meio que a sociedade utiliza para suscitar na criana um certo
nmero de estados fsicos, mentais e intelectuais exigidos pela sociedade poltica, bem
como as habilidades especficas exigidas pela diviso social do trabalho. O fundamento
de sua pedagogia se encontra na sua oposio entre ser individual e ser social.
Na realidade, esse ser social no nasce com o homem, no se apresenta na constituio humana primitiva, como tambm no resulta de nenhum desenvolvimento espontneo. Espontaneamente, o homem no se submeteria autoridade poltica; no respeitaria a disciplina moral, no se devotaria, no se sacrificaria. Nada h em nossa natureza congnita que nos predisponha a tornar-nos, necessariamente, servidores de divindades, ou de emblemas simblicos da sociedade, que nos leve a render-lhes culto, a nos privarmos em seu proveito ou em sua honra. Foi a prpria sociedade, na medida de sua formao e consolidao, que tirou de seu prprio seio essas grandes foras morais, diante das quais o homem sente a sua fraqueza e inferioridade. Ora, excluso feita de vagas e incertas tendncias sociais atribudas hereditariedade, ao entrar na vida a criana no traz mais do que a sua natureza de indivduo. A sociedade se encontra, a cada nova gerao, como que em face de uma tabula rasa, sobre a qual preciso construir quase tudo de novo. preciso que, pelos meios mais rpidos, ela agregue ao ser egosta e associal, que acaba de nascer, uma natureza capaz de vida moral e social. Eis a a obra da educao (Durkheim, 1978, p. 42).
Durkheim, assim, ope indivduo e sociedade para defender a supremacia da
ltima, de acordo com sua concepo holista (Viana, 1999), e nisto coincide com Locke
e com Comenius. Estes so trs exemplos de pedagogia externalista, pois todos
consideram que o saber deve ser inculcado no indivduo, que ele vem do exterior e nisso
haviam sido precedidos por Plato.
A pedagogia externalista, portanto, compreende a educao como um processo
que ocorre de fora para dentro, da sociedade para o indivduo, do mestre para o
discpulo. Por conseguinte, temos aqui uma concepo de educao nitidamente
conservadora, voltada para a conservao da sociedade burguesa. Esta concepo est
marcada pela naturalizao de uma determinada sociedade, uma determinada cultura,
um determinado saber. Sem dvida, por detrs disso tudo se manifestam valores
coincidentes com a da sociedade existente.
A Pedagogia Internalista
A pedagogia internalista parte de pressupostos contrrios aos da pedagogia
externalista. O saber, para a concepo internalista, um desenvolvimento interno do
indivduo. Este no nasce sabendo, mas nasce com a capacidade de saber. O que cabe ao
indivduo desenvolver esta capacidade e assim adquirir o saber.
Embora possamos vislumbrar a origem remota da pedagogia internalista j na
Grcia Antiga, nos filsofos sofistas, podemos dizer que com o romantismo de
Montaigne e Rousseau que ela d os seus primeiros passos rumo a uma sistematizao.
Rousseau cumpriu um papel fundamental na constituio da pedagogia internalista:
A educao, segundo Rousseau, no deve ter por objetivo a preparao da criana com vista ao futuro ou model-la de determinado modo; deve ser a prpria vida da
criana. preciso ter em conta a criana, no s porque ela o objeto da educao (...), mas, primordialmente, porque a criana a prpria fonte da educao. a partir do desenvolvimento concreto da criana, das suas necessidades e dos seus impulsos, dos seus sentimentos e dos seus pensamentos, que se forma o que ela h de vir a ser, graas ao auxlio inteligente do mestre. Os educadores no podem ter outras pretenses; seriam absolutamente nocivas (Suchodolski, 1984, p. 40).
Segundo Suchodolski, Pestalozzi e Froebel seguiram o caminho de Rousseau e
conceberam a educao como o desenvolvimento das foras espontneas da criana.
Froebel, por exemplo, defendia que a criana deve ser compreendida em sua natureza,
sendo que ela deve ser tratada de acordo com suas foras.
A filosofia existencialista tambm, tal como o romantismo, contribuiu com o
desenvolvimento de concepes pedaggicas internalistas, atravs, principalmente, de
Kierkegaard (Suchodolski, 1984). Mas tal concepo de educao teve um notvel
crescimento no nmero de adeptos, tal como se v a partir do fim do sculo 19: A
pedagogia da existncia [internalista NV] constitui, desde fins do sculo 19, a corrente
de maior importncia da pedagogia burguesa, em virtude de sua energia e diversidade
(Suchodolski, 1984, p. 57).
Poderamos citar diversos outros representantes da pedagogia internalista, mas
abordaremos apenas mais dois, a ttulo de exemplos, a saber: Maria Montessori e Carl
Rogers. Para Montessori, o desenvolvimento interno da criana a raiz do processo
educacional:
O ncleo da pedagogia montessoriana reside em conceber a educao essencialmente como auto-educao, isto , como processo espontneo pelo qual se desenvolve dentro da alma da criana. O homem que nela est adormecido e em considerar que, para que isto acontea nas melhor das formas, a coisa fundamental fornecer criana um ambiente isento de obstculos inaturais e materiais adequados (Abbagnano & Visalberghi, 1982, p. 852).
A pedagogia internalista tambm est presente nas chamadas pedagogias no-
diretivas e dentre os representantes destas podemos destacar Carl Rogers. Rogers
critica a idia de que o professor deve instruir o aluno (Evans, 1979; Hannoun, 1980;
Rogers, 1973). O professor no deve fornecer algo ao aluno mas sim este descobrir por
si mesmo o que necessita. A relao entre professor-aluno uma relao de auto-
descoberta, na qual a apropriao do saber ocorre de maneira significante, auto-
apropriante, experiencial. Para Rogers:
No somente deve recusar-se o ato de instruir, como ainda se verifica que ele intil e vo: com efeito, os conhecimentos so, fundamentalmente, incomunicveis. No h verdadeiros conhecimentos alm daqueles que eu prprio tiver adquirido pelas minhas prprias pesquisas, pelo meu prprio esforo, sem nenhum contributo exterior. Assim, uma comunicao de outrem tocar-me-, certamente, enquanto dela conservar a recordao, mas no captarei intimamente o seu significado. No a compreenderei (Hannoun, 1980, p. 59).
A pedagogia internalista, ao contrrio da externalista, concebe a educao como
um processo que ocorre de dentro para fora, do desenvolvimento espontneo do
indivduo (aluno, criana). No entanto, o indivduo aqui uma abstrao metafsica, um
ser associal, dotado de capacidades e de liberdade de escolha, que, na realidade
concreta, um ser inexistente, o que aproxima tais concepes com as do
individualismo metodolgico (Viana, 1999). Assim, a pratica pedaggica derivada desta
concepo tambm conservadora, pois toma o indivduo constitudo pela sociedade
burguesa e faz sua apologia, defendendo o seu desenvolvimento autnomo, deixando
de lado o fato elementar de que ele nasce no interior de relaes sociais e um ser
social, no escapando das marcas que a sociedade imprime nele.
Montessori parece perceber isto quando coloca: Ora, para tratar a criana de um
modo diferente do atual, para salv-la dos conflitos que colocam em perigo sua vida
psquica, necessrio antes de tudo: modificar o adulto (Montessori, 1990, p. 22). No
entanto, o adulto na sua abordagem , fundamentalmente, o professor. Os limites de
sua proposta pedaggica se localizam a e podemos ver isto quando ela trata da livre
escolha, pois ela afirma, partindo de uma experincia vivenciada por ela em uma
escola:
As crianas usavam o material, mas era a professora quem o distribua e depois tornava a guard-lo. Ela me contou que quando fazia a distribuio as crianas se levantavam e se aproximavam dela; quantas vezes fossem mandados de volta a seus lugares, tornavam a levantar e aproximar-se. A concluso da professora foi de que as crianas eram desobedientes. Ao observ-las, compreendi que seu desejo era recolocar os objetos em seus respectivos lugares, e dei-lhes liberdade para faz-lo. Desse modo, surgiu uma espcie de vida nova: arrumar os objetos e corrigir cada eventual desordem era uma atrao fortssima (Montessori, 1990, p. 134).
Sem dvida, a interpretao de Montessori deste fato mais adequada. Porm,
ela se esquece que tal desejo de organizao no inato e sim constitudo socialmente
e que a criana j o desenvolve antes de entrar na escola, certamente atravs das
relaes familiares. Alis, a prpria Montessori reconhece, ao falar dos ambientes dos
adultos e da diferena entre o trabalho adulto e o infantil, isto e alguns pensadores j
falaram da gerncia domstica que deixa pouco espao para a criana se locomover
(Oliveira, 1986). Por conseguinte, o desejo de organizao apenas a reproduo pela
criana de valores e comportamentos impostos pelos adultos.
No entanto, devemos reconhecer, no interior da pedagogia internalista, uma
corrente crtica que, embora limitada por uma concepo individualista, se aproxima da
concepo marxista de educao. Rousseau, por exemplo, realizava uma crtica da
sociedade burguesa nascente e por isso assumia uma postura de contestao aos
modelos dominantes de educao e alguns representantes das pedagogias no-diretivas
tambm contestam o processo educacional e seu carter repressivo. Apesar disso, a
pedagogia internalista, mesmo em suas concepes mais crticas, no consegue superar
os limites do internalismo. A pedagogia internalista vai se instituindo a partir do
momento da expanso capitalista, que vai gerando, por um lado, um processo crescente
de mercantilizao e burocratizao da sociedade, e esta a fonte das correntes crticas
internalistas, especialmente as influenciadas pelo existencialismo que de certa forma
uma recusa deste estado de coisas (Ozerman, 1974) , e, por outro, um desinteresse e
resistncia crescente por parte dos estudantes aos procedimentos habituais inspirados na
pedagogia externalista, o que vai gerar as correntes internalistas no-crticas.
Aps apresentarmos estas duas concepes de educao (e aqui o termo
pedagogia tem este significado amplo), devemos, tal como fez Suchodolski (1984),
reconhecer que existiram tentativas de fuso delas, mas que, no fundo, acabam
apresentando o predomnio de uma ou de outra em sua abordagem. No entanto,
nenhuma destas concepes de educao so, do ponto de vista marxista, satisfatrias.
Tal como coloca Suchodolski:
O pensamento pedaggico perde-se quando escolhe a pedagogia da existncia [internalista NV], quando opta pela pedagogia da essncia [externalista NV] e quando tenta unir estes dois princpios em funo das condies histricas e sociais existentes. A pedagogia devia ser simultaneamente pedagogia da existncia e da essncia, mas esta sntese exige certas condies que a sociedade burguesa no preenche, exige tambm que se criem perspectivas determinadas de elevao da vida cotidiana acima do nvel atual (Suchodolski, 1984, p. 117).
Neste sentido, preciso descobrir uma concepo alternativa de educao. Sem
dvida, muitas tentativas foram levadas a cabo para atingir tal meta. Iremos destacar
aqui aquela concepo que realizou uma ruptura tanto com a pedagogia externalista
quanto com a pedagogia internalista e, alm disso, conseguiu constituir um projeto de
transformao pedaggica e social. Trata-se da concepo de Karl Marx.
A Pedagogia Marxista
Por pedagogia marxista entendemos a concepo de educao desenvolvida pelo
marxismo, embora, aqui, nos limitemos a abordar apenas a concepo do seu fundador:
Karl Marx. Tambm devemos esclarecer que iremos tratar apenas de sua concepo de
como deve ser a educao e no de como ela efetivamente. Sobre a educao
realmente existente, como sabemos, Marx realizou uma forte crtica e que seus
seguidores desenvolveram no sentido de compreender a relao entre educao e
sociedade de classes e, mais especificamente, entre educao e capitalismo. Aqui iremos
tratar de como Marx considerava que deveria ser a educao numa sociedade ps-
capitalista e apresentaremos a crtica da educao capitalista realizada por Marx no
prximo item e somente aps isto iremos abordar como Marx apresentava a concepo
de como deve ser a educao na sociedade capitalista.
Marx partia de uma determinada concepo de natureza humana para
desenvolver sua tese sobre a educao. E sua concepo de natureza humana aponta
para dois elementos fundamentais: o trabalho e a sociabilidade. O ser humano, para
Marx, um ser ativo por natureza (Marx, 1983). O trabalho uma potencialidade
humana e toda potencialidade deve se realizar, sendo, portanto, uma necessidade. O
trabalho o processo no qual o ser humano se realiza com a natureza e os outros seres
humanos e se exterioriza, humaniza o mundo, d forma humana a ele. claro que aqui
se trata do trabalho enquanto objetivao, ou prxis, que se distingue do trabalho
alienado, institudo pelas sociedades de classes. O trabalho como objetivao uma
ao teleolgica consciente, uma expresso de sua criatividade (Viana, 1995).
Marx tambm concebe o ser humano como um ser social. Segundo ele, o
homem no um ser abstrato, isolado do mundo. O homem o mundo dos homens, o
Estado, a sociedade (Marx, 1980, p. 105). De acordo com Marx, o ser humano somente
se mantm enquanto tal no interior das relaes sociais. No possvel pensar o ser
humano fora das relaes sociais. A linguagem, a conscincia, os valores, o trabalho,
tudo isto social. O ser humano, historicamente, se distanciou da natureza e passou a se
diferenciar do reino animal. Ele passou a se relacionar com o mundo, isto , com a
natureza e os outros seres humanos e fez isto atravs do trabalho. Assim, desenvolveu o
trabalho, a cooperao, e junto com isto a linguagem, a conscincia, os valores.
Marx concebia o trabalho e a sociabilidade como elementos inseparveis. O
desenvolvimento social o desenvolvimento do trabalho humano. A degradao de um,
por sua vez, gera a degradao do outro. A sociedade se fundamenta no trabalho, que
produz os meios materiais de existncia. A produo e reproduo dos meios materiais
de existncia realizada pela mediao do trabalho e um processo social. A
constituio da sociedade verdadeiramente humana (ou seja, que j se inscreve na
transio da animalidade para a humanidade) significa a instituio de uma
sociabilidade consciente e do trabalho humano como seu fundamento, e este um
trabalho socializado. Segundo Marx,
Para observar o trabalho comum, isto , o trabalho diretamente socializado, no precisamos voltar forma naturalmente desenvolvida do mesmo que encontramos no
limiar da histria de todos os povos civilizados. A indstria rural patriarcal de uma famlia camponesa, que produz para seu prprio uso cereais, gado, fio, linho, peas de roupa, etc., constitui um exemplo mais prximo. (...). Os trabalhos diferentes que criam esses produtos, lavoura, pecuria, fiao, tecelagem, costura, etc., so na sua forma natural funes sociais, por serem funes da famlia, que possui sua prpria diviso de trabalho naturalmente desenvolvida, assim como tem a produo de mercadorias. Diferenas de sexo e idade e as condies naturais do trabalho, que mudam com as estaes do ano, regulam sua distribuio dentro da famlia e o tempo de trabalho dos membros individuais da famlia. O dispndio das foras individuais de trabalho, medido por sua durao, aparece aqui, porm, desde a sua origem como determinao social dos prprios trabalhos, porque as foras de trabalho individuais a partir de sua origem s atuam como rgos da fora comum de trabalho da famlia (Marx, 1988, p. 74-75).
O que temos aqui a concepo marxista de natureza humana, que nada tem de
metafsica, pois o ser humano um ser social e ativo e isto fruto de um longo processo
histrico de humanizao. O processo histrico marca o nascimento do trabalho e da
sociabilidade como meios para satisfazer determinadas necessidades (comer, beber,
amar, etc.) e se tornam, eles mesmos, novas necessidades, que, por sua vez, iro criar
outras necessidades. O trabalho enquanto livre atividade criativa, manifestao das
potencialidades humanas (fsicas e mentais) e a sociabilidade enquanto forma livre e
igualitria de associao de seres humanos, so, pois, necessidades humanas.
No entanto, no isto que se observa na sociedade contempornea. Sem dvida,
Marx ir identificar com o surgimento das classes sociais o processo de degradao do
trabalho e da sociabilidade. O trabalho deixa de ser objetivao, prxis, para ser
alienao, trabalho dirigido por outro cujo objetivo a explorao e a sociabilidade
deixa de ser igualitria e passa a se fundamentar na desigualdade, no antagonismo, na
explorao e na dominao. Este processo de degradao do trabalho e da sociabilidade
um processo histrico que se manifestou sob diversas formas e que assume uma forma
especfica na sociedade capitalista, que cria uma forma especfica de trabalho alienado e
de sociabilidade.
Mas o que tem isto tudo a ver com a concepo marxista de educao? Tudo,
pois o processo de educao para Marx o livre jogo do desenvolvimento das
potencialidades e da sociabilidade pelo ser humano. Tal como coloca Manacorda:
Como resultado de um processo histrico de autocriao, o homem se apresenta como uma totalidade de disponibilidades. A apropriao individual (...) de uma totalidade de foras produtivas objetivamente existentes significa, enfim, a absoluta exteriorizao das faculdades criativas subjetivas do homem, sem outro pressuposto que o precedente desenvolvimento histrico. O homem aparece agora universalmente disponvel nas necessidades ou consumos, quer dizer, nas exigncias humanas (...). E aparece tambm disponvel na produo, onde, no mais subsumido pelos aspectos determinados, est em condies de enfrentar como indivduo as variaes da tecnologia. Trabalho omnilateral e no-trabalho igualmente onilateral como desenvolvimento das potncias universais da mente, do crebro humano: esta a manifestao do homem (Manacorda, 1991, p. 84).
Assim, o processo de educao o livre processo de desenvolvimento das
potencialidades humanas, da sociabilidade. Claro que isto, segundo Marx,
inviabilizado na atual sociedade capitalista. Por isso, Marx realizou a crtica da
educao capitalista, da qual trataremos adiante. Iremos encerrar com algumas
consideraes sobre a educao na sociedade ps-capitalista. A educao numa
sociedade ps-capitalista, comunista, para utilizar expresso de Marx na poca, teria
como fundamento a igualdade e a liberdade, bem como um modo de produo livre da
diviso social do trabalho, o que permitiria o desenvolvimento do ser humano
omnilateral, ou seja, um ser humano que tenha superado a unilateralidade imposta pela
diviso social do trabalho e que consegue desenvolver o conjunto de suas
potencialidades. Isto expresso por Marx em vrias passagens, sendo que a mais
conhecida a que ele diz que na futura sociedade socialista, o indivduo poder caar de
manh, pescar tarde e fazer poesia noite, ou seja, desenvolver um conjunto de
atividades que manifestam o conjunto de suas potencialidades. O indivduo omnilateral
aquela que consegue desenvolver o conjunto de suas potencialidades, ou seja, recupera
em si a prxis, a objetivao, e a sociabilidade livre. No entanto, Marx no aprofundou a
questo da educao na futura sociedade comunista, pois considerava isto um erro tpico
dos socialistas utpicos, que consiste em criar modelos aos quais faltam justamente os
fundamentos para produzi-los, o que faz com que se tornem meras fantasias ou
tentativas de direo burocrtica.
Marx e a Crtica da Educao Capitalista
Iremos apenas recordar brevemente a crtica da educao capitalista realizada
por Marx para depois prosseguirmos apresentando sua viso sobre como deve ser a
educao emancipadora na sociedade capitalista e uma comparao entre sua concepo
e as demais concepes de educao anteriormente apresentadas.
Marx criticava a educao capitalista devido a vrios aspectos desta. Tendo em
vista sua oposio ao desenvolvimento de um ser humano unilateral, especialista,
submetido diviso social do trabalho, e sua viso do desenvolvimento do ser humano
omnilateral como o objetivo a ser alcanado, ele se opunha ao modo capitalista de
educao fundamentado na diviso social do trabalho.
A oportunidade para a realizao de cada indivduo como um ser humano integral no pode ser oferecida por uma educao baseada em discriminao de classe. Numa tal educao, a ocupao de cada indivduo o ponto mais importante, porque atravs de seu emprego que as pessoas contribuem para o progresso da sociedade. Na verdade, contribuem para o enriquecimento crescente dos poderosos, objetivo real de
uma sociedade onde o poder est desigualmente distribudo e para o qual toda a educao capitalista tambm est voltada (Rossi, 1981, p. 122-123).
Em outras palavras, a educao capitalista est voltada para formar a fora de
trabalho e esta, no capitalismo, especializada, e, por conseguinte, unilateral, ou seja,
se volta para o desenvolvimento de algumas potencialidades necessrias para o processo
de produo capitalista em detrimento de diversas outras, criando um ser humano
limitado (Rossi, 1981; Nogueira, 1993; Manacorda, 1991).
Outra crtica de Marx educao capitalista se encontra no fato de que esta
possibilita o aumento da explorao dos trabalhadores, pois os prepara para se adaptar
ao processo de produo capitalista, domesticando-os antes de os inserir neste processo
(Rossi, 1981). Assim, a educao capitalista buscaria domesticar a fora de trabalho e
prepar-la para o trabalho no processo de produo capitalista, visando o preparo
tcnico e disciplinar. Assim, ela teria como papel a formao da fora de trabalho de
trabalho para o capital.
Marx tambm considera a educao capitalista marcada pela desigualdade, na
qual a classe capitalista dispe de um grau de educao superior ao do proletariado e do
campesinato (Marx & Engels, 1992). Isto facilmente perceptvel pela diviso entre os
nveis educacionais e na diferena entre aqueles que conseguem atingir os nveis mais
elevados e os que no conseguem, pois expressam classes sociais diferentes.
Um terceiro elemento da crtica de Marx educao capitalista reside no seu
carter ideolgico, caracterizado por buscar inculcar os valores e idias dominantes nas
crianas (Marx & Engels, 1992). Estes elementos foram analisados posteriormente
Marx e foram encontrados no currculo, nos livros didticos, etc.
Os pesquisadores da educao de orientao marxista aprofundaram e
desenvolveram estas teses, juntamente com outras novas, constituindo, assim, uma
ampla crtica da educao capitalista. No iremos apresentar aqui as diversas
contribuies de seguidores de Marx, mas to-somente apontaremos que tais crticas
foram desenvolvidas e ampliadas, mas que no nosso objetivo aqui colocar as diversas
anlises marxistas da educao capitalista.
Marx: Da Educao Capitalista Educao Proletria
Apresentamos anteriormente a pedagogia marxista, ou seja, a proposta de
formao do ser humano apresentada por Marx. Esta significa a proposta de uma
educao adequada natureza humana, sendo, portanto, numa sociedade de classes, to-
somente um projeto, que no pode ser realizado enquanto no se transformar o conjunto
das relaes sociais. Este projeto s pode se concretizar efetivamente numa sociedade
ps-capitalista, ou seja, numa sociedade que aboliu a diviso social do trabalho, a
explorao, a alienao. Marx denominou esta sociedade de livre associao dos
produtores, autogoverno dos produtores, comunismo, e hoje o nome que mais
corresponderia a isto seria autogesto social, pois o projeto revolucionrio de Marx tem
sido confundido com os regimes burocrticos intitulados socialistas, que, no fundo,
nada possuem em comum com sua concepo.
Tal como colocamos anteriormente, a concepo de educao socialista no
pode ser implantada fora da sociedade socialista, o que uma obviedade. Mas Marx no
se limitou a colocar em linhas gerais a forma de educao adequada natureza humana
e, portanto, futura sociedade ps-capitalista. Ele tratou de questes concretas, ou seja,
da educao na sociedade capitalista. O primeiro ponto de sua abordagem foi a crtica
da educao capitalista, da qual tratamos acima, e o segundo foi uma proposta de
educao no interior da sociedade capitalista visando sua transformao.
Marx considerava a unio entre trabalho e educao como um dos mais
poderosos meios para a transformao social. Ora, o modo de educao capitalista se
caracteriza pela separao entre educao e trabalho, a no ser no caso da educao
tcnica profissionalizante, que do interesse do capital.
Se Marx (...) baseou sua educao na associao entre trabalho e escolaridade, a anlise prvia (...) de sua posio indicou que ele excluiu de sua educao todas as atividades desenvolvidas na fbrica capitalista. Em muitos pontos de seu trabalho, Marx identificou o carter burgus de uma educao industrial que prepara o futuro trabalhador para servir ao capitalista e at mesmo para ser mais produtivamente explorado por ele (Rossi, 1981, p. 121).
Por conseguinte, Marx rejeita a educao industrial, mesmo a dita
diversificada e prope uma educao politcnica. Em outras palavras, Marx prope a
unio entre educao e trabalho no sentindo de abolir a separao entre trabalho
intelectual (educao) e trabalho manual (trabalho) visando a formao multilateral
do ser humano como ponto de partida para a transformao social e sua futura formao
omnilateral. Assim, Marx pretende utilizar a educao politcnica, uma alternativa
superior educao industrial diversificada, como meio de transformao social. Rossi
expressou isto da seguinte forma:
Somente atravs dessa perspectiva dialtica o princpio da educao politcnica, que leva criao do homem omnilateral, pode ser entendido em todas as suas implicaes. Primeiro, a educao politcnica no apenas a preparao para diferentes trabalhos, uma espcie de educao industrial diversificada, ou uma educao baseada no desenvolvimento de habilidades gerais para o trabalho. Essa idia apenas uma pequena parte na criao de um homem omnilateral, que s pode emergir de uma educao
integral. H poucas dvidas entretanto de que a disponibilidade de diferentes habilidades e a capacidade de execuo de diferentes trabalhos (atividades produtivas), podem eventualmente ajudar um trabalhador individual a defender-se, no sistema capitalista de produo, ainda que de uma maneira parcial, da manipulao e explorao a que submetido pelo capital, porque, pelo menos, em tais circunstncias, ele poderia ter mais opes ou alternativas no processo de obteno ou mudana de emprego. Segundo: no apenas como essa formao multilateral, mas como um meio para o desenvolvimento de um ser humano integral, a educao politcnica envolve ainda: a integrao da formao terica e prtica em um nico processo; a eliminao da formao parcelar; a recusa da dicotomias tradicionais da concepo burguesa de mundo e a possibilidade de completa realizao para cada indivduo como um ser humano, sem qualquer limitao especfica imposta por sua ocupao. Desenvolvendo-se esses diferentes aspectos da educao politcnica, poder-se-ia aduzir que a eliminao da formao parcelar inclui tambm a rejeio de uma associao complexa de diversas formaes atravs de uma simples justaposio, como feita na educao industrial diversificada. A recusa das tradicionais dicotomias do pensamento burgus inclui a eliminao de separao entre teoria e prtica, trabalho manual e trabalho intelectual, ao e reflexo e, ainda, o enfrentamento da oposio entre cidade e campo, apenas para citar algumas delas (Rossi, 1981, p. 122).
Desta forma, a educao politcnica um meio para a transformao social e,
portanto, para a formao do ser humano omnilateral. Assim, o ser humano deve se
desenvolver de forma omnilateral, mas na sociedade capitalista se desenvolve de forma
unilateral (devido a especializao provocada pela diviso social do trabalho) e, por
isso, deve ser substituda por uma formao multilateral como meio para se atingir a
formao omnilateral, o que significa que possui um papel no processo de
transformao social.
Mas como a educao politcnica contribui, efetivamente, para a transformao
social? Ora, preparando o proletrio para se desenvolver mais plenamente e tambm lhe
fornecendo condies de gerir o processo de produo por conta prpria, sem necessitar
de tcnicos e do capitalista: A formao politcnica, que foi defendida pelos escritores
proletrios, deve compensar os inconvenientes que se derivam da diviso do trabalho,
que impede o alcance do conhecimento profundo de seu ofcio aos seus aprendizes
(Marx & Engels, 1992, p. 98).
Segundo Gorz (1982), dez anos aps escrever A Ideologia Alem, nos
Grundrisse, Marx acreditava ter descoberto o fundamento material da auto-libertao
proletria:
Apenas cerca de dez anos mais tarde [ou seja, aps escrever A Ideologia Alem - NV], diante de uma nova classe de operrios de ofcio, polivalentes e que se tornaro os protagonistas do anarco-sindicalismo, que Marx, nos Grundrisse, acredita poder descobrir o fundamento material da capacidade de auto-emancipao dos proletrios e de sua vocao autogestionria: prev ento que o desenvolvimento das foras produtivas substituir o exrcito de trabalhadores braais e operrios no-qualificados militarmente enquadrados, por uma classe operria de politcnicos, ao mesmo tempo manuais e intelectuais, que dominaro o processo de fabricao em seu conjunto, exercero seu controle sobre conjuntos tcnicos complexos, passaro, com facilidade, de um trabalho para outro, de um tipo de produo para outro. O despotismo da fbrica, os oficiais e suboficiais da produo sero suprimidos, os prprios patres iro aparecer como
parasitas suprfluos e os produtores associados exercero seu poder de autogesto nas fbricas e na sociedade (Gorz, 1982, p.38-39).
Gorz se equivoca aqui em dois pontos: em primeiro lugar, no se trata de
operrios politcnicos produzidos pelo desenvolvimento das foras produtivas, pois
Marx sabia muito bem que o capital no deixaria que isto ocorresse, pois o controle da
produo e da tecnologia fundamental para a reproduo do seu domnio. A formao
de operrios politcnicos era facilitada pelo desenvolvimento tecnolgico, mas no
realizada. A sua realizao dependia da ao do movimento operrio, principalmente
atravs da defesa da educao politcnica (e esta no seria privilgio de um setor da
classe operria mas do seu conjunto). Em segundo lugar, Gorz se esquece que a
formao do proletariado tem um elemento que se constitui fora da fbrica, exterior ao
processo de trabalho, tal como colocaremos a seguir.
Ao lado da formao politcnica, a liberao do operrio do tempo de trabalho
(isto , do tempo de trabalho para o capital, o trabalho assalariado) permite-lhe
desenvolver outras atividades alm das atividades tcnicas. Isto pode ser visto em sua
colocao sobre a aprendizagem da economia poltica pelos jovens, pois, segundo ele,
ela se dar atravs da luta cotidiana pela vida (Marx & Engels, 1992, p. 98).
Aqui se destaca uma questo fundamental para a concepo de educao em
Marx e que esquecida pelos seus comentaristas por se centrarem na questo escolar.
Marx considera que a formao do proletariado se d fundamentalmente na luta de
classes, pois atravs desta que ele desenvolve os fundamentos de uma nova
sociabilidade, novos valores, eleva o nvel de sua conscincia. O desenvolvimento da
indstria, dos meios de comunicao, as crises comerciais, dos conflitos entre fraes da
burguesia e desta com outras classes sociais, permitem o surgimento da associao
operria, embrio da futura sociedade, e cria as bases de sua educao poltica e geral
(Marx & Engels, 1988; Marx, 1989). Portanto, a luta de classes um elemento
fundamental para a educao do proletariado. Segundo Marx e Engels:
Em geral, as colises da velha sociedade favorecem de diversas maneiras o desenvolvimento do proletariado. A burguesia vive em luta contnua: no incio contra a aristocracia; depois, contra as partes da prpria burguesia cujos interesses entram em conflito com os progressos da indstria; e sempre contra a burguesia dos pases estrangeiros. Em todas essas lutas, v-se obrigada a apelar para o proletariado, a solicitar o seu auxlio e a arrast-lo assim para o movimento poltico. A burguesia mesma, portanto, fornece ao proletariado os elementos de sua prpria educao, isto , armas contra si mesma (Marx & Engels, 1988, p. 75).
Assim, em diversos escritos, Marx ir ressaltar o papel da luta de classes no
processo de desenvolvimento do proletariado, de sua conscincia e auto-educao. Este
um processo de humanizao, uma ampliao da solidariedade, da conscincia, de
indivduos omnilaterais.
Marx diante das Pedagogias Externalista e Internalista
Qual a diferena entre a concepo de educao em Marx em relao s
pedagogias externalistas e internalistas? Antes de respondermos a esta pergunta
devemos colocar as posies destas duas concepes em termos marxistas.
A pedagogia externalista parte de uma concepo se fundamenta na primazia da
sociedade sobre o indivduo. Seja se fundamentando numa idia de natureza humana
no fundo uma expresso do indivduo burgus, histrico e transitrio, erigido como
essncia humana que deve ser imposta aos indivduos, seja se fundamentando numa
razo supra-individual que deve ser manifestada atravs dos indivduos, ou em qualquer
outra ideologia, sempre se coloca que o indivduo deve se adaptar sociedade, e a
funo da educao promover tal adaptao.
Sem dvida, o que temos aqui uma determinada concepo que aponta para o
saber como externo ao indivduo e que, portanto, deve ser transmitido a ele (isto vale
mesmo para as concepes que consideram tal saber uma potencialidade intrnseca ao
indivduo). Isto significa que esta posio toma partido da sociedade existente atravs
da defesa do saber institudo.
A pedagogia internalista, por sua vez, parte da primazia do indivduo. O
indivduo possui capacidades e potencialidades e o processo educativo deve to-
somente deix-las desabrochar. Aqui o indivduo deve ser protegido da sociedade. Tal
concepo tambm pode se fundamentar numa concepo de natureza humana, como
o caso de grande parte das teses internalistas, ou no psiquismo ou, ainda, em qualquer
outro fundamento.
Aqui temos uma abordagem sobre o saber que o apresenta como sendo um
produto interno do indivduo e que, portanto, deve ser construdo por ele. o indivduo
que produz ou constri seu saber. Aqui observamos que tal pedagogia toma partido do
indivduo atravs da defesa do saber instituinte, ou seja, do saber enquanto capacidade.
Assim, num caso temos o saber constitudo, o mundo da ideologia e dos valores
dominantes, e noutro, o saber instituinte, o mundo da atividade mental. A pedagogia
externalista parte de contedos ideolgicos e a pedagogia internalista da capacidade
mental.
Estas duas concepes acabam se encontrando com a concepo de educao em
Marx. Se recordarmos que para ele a natureza humana tem como elementos
fundamentais o trabalho (atividade em geral, inclusive mental) e a sociabilidade (o ser
humano um ser social), veremos o primeiro elemento prximo ao saber instituinte e
o segundo ao saber institudo.
Quando Marx aborda a questo da sociabilidade, ele discute a instituio da
sociedade de classes e tudo que deriva da, inclusive as ideologias. Logo, ao contrrio
da pedagogia externalista, Marx critica a sociedade existente e o saber institudo por ela.
Sem dvida, o saber, as ideologias, a sociabilidade, a profisso, os valores, podem ser e
efetivamente so, impostas aos indivduos, mas isto no significa um processo de
educao no sentido marxista, pois significa a criao de indivduos unilaterais,
alienados, etc.
Quando Marx aborda a questo do trabalho enquanto objetivao, discute as
potencialidades do indivduo, seu processo de autoformao. No entanto, este um
indivduo que manifesta a natureza humana, o que s pode ocorrer sob relaes sociais
igualitrias, em sociedades no-classistas. Assim, ao contrrio do que pensa a pedagogia
internalista, o indivduo da sociedade atual no consegue desenvolver todas as suas
potencialidades e, mesmo que a escola tentasse realizar isso, faria com um indivduo
que no tabula rasa, pois j sofreu a socializao atravs da famlia, comunidade, etc.,
e que, portanto, j est impregnado de valores, sentimentos, representaes, tpicas desta
sociedade, o que significa que, entre outras coisas, so limitadores de sua criatividade.
Assim, a concepo de educao em Marx distinta das pedagogias internalista
e externalista, pois no isola fantasticamente o saber institudo e o saber instituinte, no
separa indivduo e sociedade e compreende que numa sociedade repressiva o indivduo
reprimido. Logo, no se deve partir do saber institudo, da pedagogia externalista, e
nem do saber instituinte, da pedagogia internalista. O indivduo ao chegar na escola no
uma tabula rasa e portanto no se pode pensar que o seu desenvolvimento espontneo
ir proporcionar-lhe um saber que no seja o institudo, pois ele j entra l impregnado
por ele. Muito menos, na perspectiva marxista, deve-se partir da pedagogia externalista,
que se fundamenta no saber institudo, pois este transmitido por professores que j
sofreram uma socializao muito mais longa, intensiva e extensiva, ou seja, tanto o
contedo (o saber institudo) quanto o transmissor dele (o professor), esto impregnados
pelos valores dominantes.
Estas duas concepes separam forma (como o caso da pedagogia internalista,
que ao eleger o saber instituinte como objeto de sua ao acaba se preocupando com
mtodos que permitam o desenvolvimento espontneo do aluno: no-diretividade,
ambiente isento de obstculos, etc., e isto significa se preocupar com a forma e no com
o contedo que repassado) e contedo (pedagogia externalista, preocupada
fundamentalmente com o saber que ser transmitido: educao moral, cincia,
socializao para o trabalho e o civismo, a formao do gentleman em Locke, etc.). Do
ponto de vista da pedagogia marxista preciso atuar simultaneamente na forma
(criatividade, espontaneidade) e no contedo (pensamento crtico, crtica da sociedade
capitalista), pois nada mais contraditrio do que uma educao autoritria que prega a
libertao e a recusa dos valores dominantes ou ento uma educao libertria que
prepara para a servido e os valores dominantes.
Tal como colocamos anteriormente, a pedagogia internalista est mais prxima
do marxismo do que a pedagogia externalista, cujo conservadorismo por demais
evidente. A pedagogia internalista apresenta elementos que podem ser reaproveitados na
concepo marxista de educao, embora acrescentando-se o carter poltico do
processo educativo e extrapolando a escola como instituio educativa, pois a formao
do indivduo multilateral que abre espao para a constituio de um ser humano
omnilateral atravs da transformao social se d na vida cotidiana, no somente na
escola e/ou no trabalho, mas em todos os aspectos da vida social.
Enfim, apresentamos uma breve discusso sobre concepo de educao em
Marx e comparamos ela com as concepes de educao predominantes em nossa
sociedade. Podemos concluir que somente o desenvolvimento de reflexes sobre a
educao e sobre nossa prtica poder abrir caminho para que no consideremos o que
nos cerca natural e universal ou, caso contrrio, ficaremos como os peixes, que
nunca fazem reflexes sobre a gua e, por isso, no sabem nada do que lhes cercam.
Bibliografia
ABBAGNANO, N. & VISALBERGHI, A. Histria da Pedagogia. Vol. 2, Lisboa, Horizonte,
1981.
__________, N. & ___________, A. Histria da Pedagogia. Vol. 4, Lisboa, Horizonte,
1982.
DURKHEIM, mile. Educao e Sociologia. 11a edio, So Paulo, Melhoramentos,
1978.
EVANS, Richard. Carl Rogers: O Homem e Suas Idias. So Paulo, Martins Fontes,
1979.
GORZ, Andr. Adeus ao Proletariado. Para Alm do Socialismo. Rio de Janeiro,
Forense, 1982.
HANNOUN, Hubert. A Atitude No-Diretiva de Carl Rogers. Lisboa, Horizonte, 1980.
LOCKE, John. Carta Sobre a Tolerncia e Outros Escritos. 3a edio, So Paulo, Abril
Cultural, 1983 (Col. Os Pensadores).
MANACORDA, Mario A. Marx e a Pedagogia Moderna. So Paulo, Cortez, 1991.
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrpolis, Vozes,
1988.
_____, Karl & _____, Friedrich. Textos Sobre Educao e Ensino. 2a edio, So
Paulo, Moraes, 1992.
MARX, Karl. A Misria da Filosofia. 2a edio, So Paulo, Global, 1989.
_____, Karl. A Questo Judaica. So Paulo, Moraes, 1980.
_____, Karl. Manuscritos Econmico-Filosficos. In: FROMM, Erich. Conceito Marxista
do Homem. 8a edio, Rio de Janeiro, Zahar, 1983.
_____, Karl. O Capital. 3a edio, vol. 1, So Paulo, Nova Cultural, 1988.
MONTESSORI, Maria. A Criana. So Paulo, Nrdica, 1990.
NOGUEIRA, Maria Alice. Educao, Saber, Produo em Marx e Engels. 2a edio, So
Paulo, Cortez, 1993.
OZERMAN, Teodor. O Existencialismo e a Sociedade. in: OZERMAN, Teodor; SVE,
Lucien; GEDOE, Andras. Problemas Filosficos. 2a edio, Lisboa, Prelo, 1974.
OLIVEIRA, Paulo S. Brinquedo e Indstria Cultural. Petrpolis, Vozes, 1986.
ROGERS, Carl. Tornar-se Pessoa. Lisboa, Moraes, 1973.
ROSSI, Wagner. Pedagogia do Trabalho. Razes da Educao Socialista. So Paulo,
Moraes, 1981.
SUCHODOLSKI, Bogdan. A Pedagogia e as Grandes Correntes Filosficas. 3a edio,
Lisboa, Horizonte, 1984.
VIANA, Nildo. A Filosofia e Sua Sombra. Goinia, Edies Germinal, 2000.
_____, Nildo. Alienao e Fetichismo em Marx. Fragmentos de Cultura. no 5, maio de
1995.
_____, Nildo. Individualismo e Holismo na Metodologia das Cincias Sociais.
Fragmentos de Cultura, n 6, vol. 9, maio de 1999. Artigo publicado originalmente em: Revista Estudos/UCG, Goinia, v. 31, n. 3, p. 543-566, 2004.