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TITÍLIA ODEMONÃO

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A história não contadaA vida amorosa na corte imperial:mensagens de d. Pedro I à marquesa de Santos

Paulo Rezzutti

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Copyright © 2011 Paulo Marcelo Rezzutti© 2019 Casa da Palavra/LeYa

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.02.1998.É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora e do autor.

Editor executivoRodrigo de Almeida e Maria Cristina Antonio Jeronimo

Gerência de produçãoMaria Cristina Antonio Jeronimo

RevisãoAlvanísio Damasceno

IndexaçãoJaciara Lima

Capa e projeto gráficoVictor Burton

DiagramaçãoFiligrana

Imagens/créditos de capaRetrato de D. Pedro I por Benedito Calixto, 1902. Museu Paulista da USP.Retrato da Marquesa de Santos – atribuído a Francisco Pero do Amaral. Museu Histórico Nacional-Ibram.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Angélica Ilacqua CRB-8/7057

R22t Rezzutti, Paulo

Titília e o Demonão: a vida amorosa na corte imperial: mensagens de d. Pedro I à marquesa de Santos / Paulo Rezzutti; prefácio de Maria Celi Chaves Vasconcelos. – São Paulo: LeYa, 2019.

240 p.: il. (A história não contada)

BibliografiaISBN 978-85-7734-678-3

1. Brasil - História - Império, 1822-1889 2. Pedro I, Imperador do Brasil, 1798-1834 - Cor-respondência 2. Santos, Domitila de Castro Canto e Melo, Marquesa de, 1797-1867 - Corres-pondência I. Título II. Vasconcelos, Maria Celi Chaves

19-0747 CDD 981 CDU 94(81)

Todos os direitos reservados àEditora Casa da PalavraAvenida Eng. Armando de Arruda Pereira, 2.937Bloco B - Cj 302/303 B - Jabaquara04309-011 - São Paulo - SPwww.leya.com.br

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A todos aqueles que já tiveram um

amor impossível.

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Mas outras missivas de mesma origem e destino, das quais noventa e quatro caíram do balcão de Chadenat, em Paris, nas unhas de um livreiro alemão,

dormem felizmente ainda escapas do cautério panfletário que chamuscou as outras. Vindas a lume com o mesmo rigor de cópia do gramático e romancista

que se deu ao trabalho e paciência, faça-se-lhes a caridade de não consertar a sintaxe, nem emendar a ortografia e nem cortar os destemperos do assunto

ou da linguagem. Nada de emendas ou de ortopedismos, e principalmente nenhuma supressão. De certos animais tudo se aproveita. Não são mais úteis os miolos ou o sangue da rés que os ossos ou o fel. Nos segredos da alma que

não se resguardou estão as chaves de sua decifração. Decifrar é compreender.RANGEL, Alberto. Dom Pedro I e a marquesa de Santos, p. 50.

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Sumário

Prefácio 11Nada é por acaso 17Os amantes 23

CartasCritérios utilizados 611823 651824 731825 871826 1171827 1331828 165

Anexos 179Cronologia 203Notas 207Bibliografia 215Índice onomástico 221Índice de localidades 227Índice de imagens 233Agradecimentos 237

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Prefácio

Meu amor [...] amo-a, jamais deixarei de amá-la, ainda que mecê vá para o inferno eu haveria vê-la, e pela minha parte achará sempre constância à prova de sombra, assim eu achasse da sua. [...] O Demonão1

Os romances reais, mais especificamente os que contam histórias de reis e suas concubinas, têm tido, ao longo dos tempos, imenso apelo popular. São histórias que povoam a imaginação de milhares de “súditos”, da antiguidade à contempora-neidade, sendo denominados até como “romances do século”, alcunha imputada, por exemplo, aos célebres amores entre Wallis Simpson e o rei Eduardo VIII, bem como, recentemente, ao furor causado por seu descendente príncipe Charles, ao trocar a bela Diana, por Camilla Parker Bowles.2 Mas que talento fez com que mu-lheres plebeias nascidas tão longe da riqueza e do luxo dos palácios reais tivessem tal poder para envolver homens destinados a governar, a ponto de fazê-los correr sérios riscos de colocar tudo a perder por uma paixão?

Provavelmente, em cada uma delas, para eles, havia um encantamento mági-co capaz de elevá-las a um grau de importância e de influência tão grandes, junto ao monarca, que deixavam de ser assunto privado, tratado nas conversas de salão por toda a corte, e passavam a ser assunto de Estado, descrito em cartas diplomá-ticas que cruzavam fronteiras e oceanos. Além disso, os casos amorosos dos reis ocupavam boa parte do serviço secreto dos países, seja com agentes infiltrados junto às concubinas,3 seja com a interceptação de cartas e outros documentos tro-

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cados entre os amantes, em uma mistura interessante de política, sexo e paixão. Contudo, desiludindo e contribuindo com o desespero imaginativo de todas as pessoas que possuem alguma latência de voyeurismo, esses papéis dificilmente fo-ram preservados, considerando o seu valor para diferentes usos indevidos.

A obra Titília e o Demonão, de Paulo Rezzutti, para o nosso deleite reeditada, traz uma dessas histórias de rei, concubina, amante, sexo e escândalo. Tudo isso impregnado em cartas trocadas, roubadas, escondidas, reaparecidas, vendidas, descobertas, reunidas, relidas... escritas, originalmente, por um imperador jovial e enamorado, que tem nelas o principal elo de comunicação com a amante nos mo-mentos em que estão separados. Contém, ainda, para a exacerbação do pensamen-to que supera a arte na habilidade de recriação, todos os elementos que podem ser acrescidos às histórias que se passam nas proximidades com os trópicos: o cenário é o Rio de Janeiro ainda com a arquitetura colonial, sob o sol escaldante e a chu-va incessante a cair sobre as águas azuis de uma baía usada com fins medicinais, emoldurada por florestas de múltiplos tons de verde e seus habitantes, produtores de uma sinfonia natural tocada da manhã à noite. É nesse conjunto difícil de ser recuperado apenas pela imaginação que, de forma “brejeira” (muito diferente de Leopoldina, a esposa alemã), Domitila de Castro Canto e Melo vai conquistar (e arrebatar de paixão) o imperador, após forjar um primeiro encontro com d. Pedro I, aproveitando-se do conhecimento que possuía com membros de sua comitiva, durante a passagem por São Paulo, quando o monarca “independentizou” o Brasil.

Luiz Norton,4 ao narrar os acontecimentos que antecederam a separação do Brasil de Portugal, tendo a imperatriz Leopoldina como protagonista do que ele chama de “Dona Leopoldina e a independência”, atribui à carta da esposa de d. Pe-dro I um papel crucial no episódio ocorrido na planície do Ipiranga, que mudou para sempre o destino deste país. Segundo esse autor, o imperador, após “libertar o Brasil de Portugal”, regressou ao Rio de Janeiro no dia 15 de setembro de 1822 e, na noite seguinte, foi a um espetáculo de gala com a imperatriz, ocasião em que ouviram, em “delirante apoteose”, o Hino da Independência. No entanto, o mo-narca já não era o mesmo; havia ocorrido algo durante aquela campanha militar que mudaria para sempre não apenas o destino das duas nações, mas a vida pes-soal de Pedro e Leopoldina. Ele acabara de conhecer Domitila de Castro Canto e Melo, a mulher que, a partir do livro de Paulo Rezzutti Titília e o Demonão, temos a oportunidade de ver mais intimamente, ainda que pela pena de seu amante, na exemplar demonstração de uma mulher silenciada, como infere Michelle Perrot,5 revelada por um homem a partir das interpretações de seus pensamentos e de suas vontades.

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Benedetta Craveri6 diz que as mulheres, na história, quando tiveram poder, não o assumiram em seu próprio nome, mas sempre devido a um vazio ou a uma debilidade masculina e, em suas engrenagens, para não serem “trituradas” pelos homens, precisaram disfarçar-se, usar de astúcia, criar aliados poderosos, distribuir favores, seduzir, corromper, castigar... As cartas para Titília, escritas pelo imperador que se nomeava o “Demonão”, denotam todas essas facetas utilizadas com maestria para seduzir o soberano, tornando-o capaz de se afirmar completamente entregue aos caprichos da amada, retratando um apaixonado correspondente, que chegou ao ponto de usar uma luneta para, do seu palácio, controlar a astuta amante.

Do primeiro encontro, em setembro de 1822, até a última carta reproduzida neste livro, em que a marquesa comunica a sua partida “esta madrugada”, no dia 27 de agosto de 1829, Titília será uma exemplar patronesse das “maîtresses-en-titre” no Brasil, título dado a amante oficial dos reis em França, embora já não houvesse mais a hegemonia do regime político que as abrigara e nem a irrestrita tolerância dos súditos para com a poligamia dos soberanos. Ainda assim, ela foi, como suas antecessoras, instalada no palácio – tanto como dama camareira da imperatriz no Paço de São Cristóvão, como tendo um palacete próprio nos arredores da Quinta da Boa Vista –, teve os filhos legitimados convivendo com os príncipes reais e transitou pela corte com plenos direitos de ali estar, inclusive paga pelos cofres do Estado.

Entre as inúmeras possibilidades de imaginação que este livro nos proporciona, um aspecto interessante refere-se ao luxo, às vestimentas e às joias, frequentemente citadas nas cartas. Traço comum entre as concubinas era o gosto pelos diamantes, muito praticado pelas madames de Pompadour e du Barry,7 cujos epítetos foram diversas vezes utilizados para designar a marquesa. Mesmo que nem todos os sobe-ranos tenham chegado à extrema ousadia de tornar suas amantes detentoras de altos títulos nobiliárquicos, os reis gostavam de expor suas mulheres cintilando desde o penteado até os pés. Tiaras, brincos, colares, pulseiras, anéis, tornozeleiras, fivelas, botões, seguranças e alfinetes, de brilhantes, de pérolas e de coloridas pedras pre-ciosas disputavam com as fitas, as rendas e os brocados a profusão da beleza, que fazia de cada encontro um momento que deveria perpetuar o efeito ilusionista sobre o príncipe. Ao mais poderoso homem da terra, a mais bela e rica “donzela”! No en-tanto, despida, ela superava qualquer outra mortal, aliando a perfeição daquilo que Deus e os homens eram capazes de produzir juntos! Com o imperador brasileiro não foi diferente; ao contrário, tratou de enfeitar a bela Titília com uma abundância de presentes valiosos, como registra nas cartas. São poucas as missivas em que não se refere a uma prenda para sua amada, tanto uma goiabada ou cinquenta laranjas, quanto um colar de ametistas ou uma pulseira. Inadequada no tempo e no lugar,

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Titília jamais deixou de cintilar, não apenas com magníficas joias, tecidos de cetins, tafetás, toquinhas, bordados, plumas, lenços, luvas, leques e sombrinhas, com os quais a modista sugerida pelo imperador irá vesti-la desde a sua chegada à corte, “para se apresentar na Glória enervando todas que lá aparecerem”,8 mas, também, nos olhares e nas bocas de cortesãos e cortesãs que, por certo, pagariam qualquer preço para ler essas cartas que você, agora, tem em mãos, caro leitor!

Certamente era essa ascensão notória que fazia da cama do imperador um espaço bastante disputado. Maria Graham9 conta, em suas memórias, que a con-dição de “favorita” de d. Pedro I era a aspiração de muitas mulheres que, da mes-ma maneira que havia procedido a futura marquesa, cuja nobreza foi conquistada entre os lençóis, tentavam se aproximar do monarca utilizando aqueles que ti-nham o privilégio de ser recebidos por ele. Para isso, conta a inglesa, ela teria sido insistentemente incitada por madame Bonpland, uma francesa, a promover uma entrevista dela com o soberano, a fim de resolver várias pendências, mas que, na verdade, tinha outro interesse, como concluía: “[…] não pode haver dúvida que o intento desta mulher era suplantar Mme. de Castro”. Nesse quesito, as cartas, por sua vez, revelam aquilo que se pode imaginar tratando-se de dois personagens de gênio reconhecidamente forte: o Demonão utiliza grande parte do seu tinteiro para convencer a ciumenta Titília de que está mudado e que ela é a única mulher com quem ele faz “amor por devoção”, em contraponto à obrigação do “amor de matrimônio”10 relegado à imperatriz.

Entretanto, ainda que se esforce, por meses, para demonstrar a sua fidelidade e, na despedida das cartas, faça questão de registrar que ela é a única “do seu aman-te fiel, constante, desvelado, verdadeiramente agradecido”, o teor das explicações permanentes denota que a atenta Titília não estava disposta a abrir mão de seus privilégios e contava com uma rede de informantes para vigiar as possíveis recaí-das do imperador. Entre esclarecimentos, linhas e mais linhas de justificativas, d. Pedro aparece para os leitores atuais como um homem atormentado pelos ciúmes da mulher amada e, surpreendentemente, com a extrema preocupação de perder o seu afeto, caso ela decidisse acreditar em alguma das “intrigas” contadas, a ponto de assim encerrar uma de suas cartas: “Este seu fiel, triste e desconsolado amante que com lágrimas rega esta carta”.11

Não se pode esquecer que o mesmo d. Pedro apaixonado, que não via a hora de trazer a amada para a corte, não se furtou a ter um caso com a irmã de Domitila (nesse ínterim em que ela se deslocava), do qual nasceu uma criança e resultou em mais um título de baronato à família. Por sua vez, o próprio imperador também protagoniza, nas cartas, diferentes cenas de ciúmes que envolvem desde uma pri-

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ma de Titília, até um anel dado por ela,12 chegando ao extremo de se estabelecerem regras para contornar os ciúmes de ambos, descritas em uma das cartas.13

Nas cartas há ainda muito mais; sobretudo, passagens hilárias que poderiam ser escritas por qualquer homem comum dirigindo-se à sua amante, não exis-tindo a menor hipótese de se desconfiar que se tratava do imperador do Brasil, particularmente quando ele reclama de dores, tem constantes preocupações com a saúde, tem pânico de dores de cabeça,14 chama os médicos de ladrões, entre outras peripécias que mais se assemelham às de um burguês de seu tempo. Aliás, talvez, esteja aí o trunfo de Titília: um enredo familiar no qual d. Pedro era tratado apenas como mais um participante, embora protagonista, mas que chamava aos pais dela de “velho” e “velha”,15 assim como aos irmãos de “manos”. Era como se aquela fosse a sua casa, com a qual ele se preocupava, inclusive com as atividades domésticas, enviando gêneros para a ceia, dando permissão para passeios, autorizando o tra-tamento dos cavalos etc.

Além disso, não era, particularmente, durante os dias que a visita ilustre do imperador, ao apear do cavalo e cruzar a soleira da porta, transformava-o tão so-mente em um próspero burguês, comportando-se deliberadamente como tal. Pelo que se depreende das cartas, essa transfiguração ocorria, notadamente, às noites, após as 10 horas, que parecem ter sido os principais momentos em que coabitavam Titília e o Demonão, juntos, na mesma cama, quando conversavam e se apalpavam “por dentro e por fora”,16 consolidando a visão burguesa, muito diferente dos reis e rainhas, cada um em seus aposentos palacianos.

Em que pese o fato de os contemporâneos de Titília e Demonão não terem conhecimento do conteúdo das cartas dispostas maravilhosamente como ima-gens e transcritas neste livro, o romance entre os amantes era público. A con-cubina, que virou favorita, que virou marquesa e a quem, segundo Norton, o imperador teria coberto de benesses, com uma “girândola de títulos” que abran-geram todos os Castros Cantos e Melos, Toledos Ribas e “até alguns colaterais destes”, irritou profundamente a população brasileira. Tal antipatia pela marque-sa era tamanha que, com a notícia do falecimento da imperatriz Leopoldina, “se ensofregou a cidade a inquirir das prováveis causas da morte, enredando historie-tas, entabulando conjecturas e lançando o nome de Domitila à execração popular, como a principal provocadora do que acontecera”. Essa imagem, até hoje, povoa nosso pensamento... Muito mais, ainda, depois das cartas... Quem de nós não fe-cha o livro e sacode a cabeça quando d. Pedro desvia os presentes da imperatriz para dar à Titília? Não é de espantar que naquela época tenha sido necessário co-locar patrulhas de cavalaria às portas do palacete de Domitila, em São Cristóvão,

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até para defendê-la de tropas de soldados mercenários alemães sublevados, indig-nados com o ocorrido à imperatriz.17

Viúvo, o imperador passou a exibir-se publicamente na companhia de Tití-lia. O ministro francês Gabriac escrevia: “l’esclave de l’habitude d’une passion qui le subjugue”.18 Você, caro leitor, poderá julgar, por si mesmo, o quanto o imperador era escravo dessa paixão, acompanhando seus registros, pelos sete anos em que ela durou.

Paulo Rezzutti, por sua vez, o autor de Titília e o Demonão, poderia ser apre-sentado de diversas maneiras: biógrafo consagrado, escritor premiado, pesquisa-dor competente e cuidadoso etc. Escolho aquela que me parece uma das principais contribuições que ele legou à nossa e às próximas gerações: suas obras possibilita-ram descortinar um passado envolto em sombras, humanizar personagens demo-nizados ou glorificados, mostrando que eram pessoas de carne e osso, convivendo com seus medos, dores, angústias, moléstias, ambições, inveja, medos, loucuras, extravagâncias, alegrias, prazeres, tristezas, mesquinharias, às vezes, contidas, ou-tras mais evidentes.

Ao longo da história, os reis costumavam ter perto de si um biógrafo, alguém contratado para registrar seus feitos e glórias, contar suas histórias. Algumas vezes, embora poucas, esses escribas se rebelavam e contavam mais do que deviam. A es-crita de Paulo Rezzutti se parece muito com a de alguém que esteve lá, sorrateira-mente, abrindo uma porta, servindo uma taça, atrás de alguma cortina ouvindo o que se passava. Ele tem o dom de nos fazer acreditar que a sua escrita está impreg-nada de memórias, ainda que elas sejam evidenciadas pelas inúmeras fontes que ele consulta para construir suas obras. Todavia, a sensação permanece... é como se ele estivesse estado lá e também nos transportasse para lá. E onde é lá? É nos fios da história que se tecem e destecem a cada acontecimento. Ler Titília e o Demonão não é um convite apenas à intimidade de um rei e de sua concubina; é um convite à intimidade de uma época, de uma cidade, de uma corte forjada à brasileira, com padrões copiados da Europa e adaptados a um país que diferia completamente dos arquétipos já decadentes do velho continente.

Deixe que o século XIX envolva sua leitura e compartilhe com o imperador d. Pedro I um pouco dos sete anos do seu apaixonado cotidiano!

Rio de Janeiro, outono de 2019.Maria Celi Chaves Vasconcelos*

* Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Pesquisadora do CNPq/Cien-tista do Estado do Rio de Janeiro.

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Nada é por acaso

Durante as pesquisas históricas realizadas para um romance sobre um antigo professor da Faculdade de Direito de São Paulo, Júlio Frank, um vulto feminino insinuava-se.

Nas esquinas da velha São Paulo, com suas casas protegidas por rótulas e suas mulheres de mantilha, na Revolução Liberal de 1842 e até no cemitério da Consolação, eu tropeçava nela. A presença, delicada a princípio, ampliou-se, beirando o incômodo. Tornava-se impossível não coletar o que ia surgindo a respeito dela em paralelo com as pesquisas sobre o professor alemão enterrado nas Arcadas.

Após achar que o romance sobre a Bucha estava terminado, comecei a me ocupar dessa senhora. Primeiro chamava-a veneravelmente de “Marquesa”, com “m” maiúsculo mesmo, pouco me importando com as normas. Não podia ser de outra forma: o retrato dela, já idosa, no seu túmulo exigia tal deferência. Até que a vi, próxima do final de sua existência, através dos olhos de Isabel Burton,1 sentada no chão de terra batida, fumando cachimbo! Desse dia em diante passamos a uma maior intimidade, bem... nem perto da que ela teve com seu famoso amante, mas já podíamos, ao menos, considerar-nos amigos.

Procurando livros, filmes e artigos sobre a vida de “Nhá Titília”, como a cha-mava d. Pedro I em suas primeiras cartas, a esperança de ter algo original na bio-grafia que eu projetava sobre ela esvaía-se no horizonte. Corri museus e arquivos públicos e privados atrás de fontes primárias, mas pouco ou nada de novo surgia,

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além de duas mensagens do imperador para ela, guardadas na Academia Paulista de Letras e presentes nesta edição. Estudando o livro sobre as cartas de d. Pedro para Domitila, publicado pela Nova Fronteira em 1984, algo me chamou a atenção. No final da introdução, o editor informava, baseado no historiador Pedro Calmon, que as 36 cartas pertencentes à coleção do embaixador Caio de Melo Franco, in-clusas na obra, encontravam-se atualmente na “Spanish Society” de Nova York e, portanto, não puderam ser cotejadas com as transcrições feitas pelo historiador e romancista Alberto Rangel, na década de quarenta. Estranhei a informação; afinal, em Nova York pode até existir alguma sociedade espanhola, mas o museu a que eles deveriam estar se referindo era a Hispanic Society of America. Mas deixei isso de lado. Se as cartas já haviam sido pesquisadas anteriormente por Rangel, e esta-vam transcritas na coletânea, não haveria por que ir atrás disso.

Conversando sobre o assunto com uma amiga, a professora e pesquisado-ra Claudia Thomé Witte, soube que o Itaú possuía uma carta de d. Pedro I para Domitila.2 Ao lê-la, percebi que não era inédita: tratava-se de uma das peças da coleção Caio de Melo Franco.3 Se esse acervo havia sido vendido para um museu em Nova York, conforme afirmara Calmon, como uma instituição no Brasil pos-suía uma das cartas? Entrei em contato com mr. John O’Neill, curador da seção de obras raras e manuscritos da Hispanic Society, que confirmou existirem no acervo do museu 94 cartas do imperador brasileiro para a marquesa de Santos. Como uma coleção que eu pensava achar desfalcada poderia ter triplicado? A confu-são ficou maior quando o curador norte-americano informou que o acervo havia sido adquirido entre 1890 e 1917. Então não poderiam ser as mesmas cartas. Melo Franco havia comprado as suas em 1939, como documenta uma ata do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.4

A confusão, quem desfez foi Alberto Rangel. No seu primeiro livro sobre o casal de amantes, Dom Pedro I e a marquesa de Santos, editado em Paris, ele infor-mava haver perdido o paradeiro de 94 cartas que uma senhora brasileira vendera ao livreiro antiquário Charles Chadenat, em 1908, na França, e só sabia que esse comerciante as repassara a um antiquário alemão. A primeira edição desse livro de Rangel é de 1916, quando o autor encontrava-se na capital francesa sitiada pelos alemães, em plena Primeira Guerra Mundial. Sem conseguir contato com o anti-quário germânico, perdeu o rastro. Mas eu o achei.

Chadenat vendeu as cartas para seu colega Karl Hiersenann. Este revendeu--as, conforme apurei com mr. O’Neill, para mr. Archer Milton Huntington, que fez negócios com o comerciante alemão até 1917, quando os Estados Unidos entraram no conflito. Mr. Huntington era enteado de um barão de estradas de ferro e, com

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sua fortuna, dedicou-se, entre outros trabalhos, à criação da Hispanic Society of America, o maior acervo hispânico fora da Europa. Colecionadores e antiquários do mundo inteiro ofereciam a ele quadros, livros e documentos, inclusive das pos-sessões espanholas na América, e com isso algum material a respeito do Brasil acabou entrando para o museu.

E esta é a história dessa descoberta e do soterramento momentâneo de um romance sobre a Bucha e de uma nova biografia da marquesa de Santos, surpreen-didos pelo estouro de 94 cartas que, rompendo fronteiras e barreiras, chegaram às minhas mãos e, agora, às suas.

Paulo Rezzutti

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1. Anúncio do antiquário alemão a respeito do lote de cartas de d. Pedro I para

a marquesa de Santos conservado na Hispanic Society of America.

Pedro I, (1822-1831), cartas de amor de Dom Pedro I, Imperador do Brasil, à Marquesa de

Santos. 1827-28. Coleção altamente interessante de 94 cartas de amor não impressas,

escritas de forma cursiva à mão pelo primeiro imperador do Brasil (1822-1831) em língua

portuguesa. Abrange 116 páginas de texto in 4º e 8º. Algumas mostram ainda o endereço

da destinatária e o selo imperial. O vocativo é normalmente querida marquesa, filha, meu

bem, meu beminho [sic], minha boa senhora, meu amor, meu coração, minha fililia [sic]. E

como assinatura encontra-se Pedro, o imperador, e na maior parte das vezes O Demonão,

um apelido que o imperador usava entre seus amigos. As respostas da marquesa não

estão disponíveis. As cartas são uma excepcional contribuição para a caracterização do

imperador e o conhecimento de sua vida íntima amorosa, assim como de personalidades

e hábitos da corte. Elas mostram como ele se deixou dominar por sua paixão, o que no

final o levou a tal antagonismo com seu povo que uma insatisfação geral rompeu e ele teve

que deixar o governo. (Tradução do alemão por Claudia Thomé Witte)

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2. Vestimentas do Rio de Janeiro.

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Os amantes

SÃO PAULO, 3 de novembro de 1867.

Às quatro e meia da tarde, pouco antes de completar sua sétima década, chegava ao fim a vida de uma das paulistas mais fascinantes do século XIX. Protetora dos es-tudantes, santa perante a pobreza envergonhada, atenciosa e preocupada com seus escravos e parentes, que a cercaram durante os últimos oito dias, falecia Domitila de Castro Canto e Melo, a marquesa de Santos.

Difícil afastar a curiosidade de saber qual teria sido o seu último pensamento. Uma oração final? Preocupação com os que ficavam? Ou algo mais antigo, como a recordação de uma velha paixão? Um louco e devastador amor nutrido por um imperador que fez dela, uma simples divorciada, motivo de despachos diplomá-ticos e assunto mundano nas principais cortes europeias. Teria se arrependido de algo nos instantes finais? Provavelmente não. Ninguém que toma para si as rédeas da própria existência, rompendo os padrões de conduta que se espera de mulheres de sua época e de seu nível, pode ter grandes arrependimentos além de não ter transgredido, vivido e amado mais.

Junto com propriedades, joias, títulos e ações, essa velha senhora deixava para a posteridade cartas recebidas de d. Pedro I ao longo dos sete anos em que foram íntimos, no sentido mais amplo do termo. Umas poucas poderiam ter sido suficientes para relembrar o passado na corte, reafirmar a progenitura das filhas que teve com ele, reviver o amor e os ciúmes. Ninguém passa impunemente por

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uma grande paixão, e mesmo seus ecos vindos de um passado longínquo ainda podem servir para nos lembrar do quanto fomos amados, desejados e importan-tes para alguém. Se para isso algumas migalhas bastam, o que dizer de mais de duzentas cartas? Quis Domitila, talvez, que seu romance fosse eterno. Apesar de dispersada pelos parentes, essa memória íntima foi ressurgindo em diversos locais, no Brasil e no exterior, e, ao longo do século XX, acabou sendo apresentada ao público em geral.

Como numa brincadeira além-túmulo, quando achávamos que não houvesse mais nada de inédito a ser pesquisado, a curiosidade revelou uma enorme surpre-sa: 96 cartas inéditas contando um pouco desse relacionamento. Antes, porém, de deixarmos os sentimentos do imperador transbordarem novamente, fazendo os amantes reviverem uma vez mais, vamos abandonar o corpo que começa a esfriar em um palacete na antiga rua do Carmo, no centro de São Paulo, e vê-lo ressurgir jovem, saudável, repleto de vida, às vésperas da Independência brasileira.

A formosa sem dote1

“A primeira de vocês que sair à rua ou chegar à janela, enquanto d. Pedro estiver em São Paulo, tem de se haver comigo!” — teria esbravejado o militar Daniel Pe-dro Müller2 às filhas em agosto de 1822, poucos dias antes da chegada do príncipe regente à cidade.

Vindo do Rio de Janeiro, d. Pedro tinha uma missão, além de aterrorizar pro-genitores zelosos e servir de suposto pai a dezenas de crianças nascidas após sua passagem pelo Vale do Paraíba: apaziguar São Paulo.

Um ano antes, em 25 de abril de 1821, o rei d. João VI retornara a Portugal, deixando d. Pedro como herdeiro de uma dívida milionária. Seu pai havia levado consigo todo o dinheiro do Tesouro. Em carta para d. João,3 o jovem príncipe re-gente queixava-se da penúria em que se encontrava a economia e os apertos para dar conta da folha de pagamento pública, chegando a cunhar moedas com o cobre que conseguiam arrancar de velhos navios! Não demorou muito para os soldados reclamarem da falta do soldo.

Em 23 de junho, uma sublevação militar estourou na cidade de São Paulo, levando o povo e a tropa a convidarem José Bonifácio de Andrada e Silva para pre-sidir a eleição de um novo governo paulista. De uma janela da casa da Câmara de

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São Paulo, José Bonifácio leu uma lista de cargos e nomes, que o povo aclamava, elegendo seus representantes pela primeira vez na história. Ao ex-capitão-general deposto, João Carlos Augusto de Oyenhausen-Gravenburg, foi oferecida a pre-sidência, tornando-se José Bonifácio o seu vice. Martim Francisco de Andrada, irmão do futuro Patriarca da Independência, ficou com a pasta do Interior e Fa-zenda. De 28 para 29 do mesmo mês, o 1º Batalhão de Caçadores, aquartelado em Santos, revoltou-se devido ao atraso de seus vencimentos. Em 2 de julho, os coro-néis Lázaro Gonçalves e Daniel Pedro Müller partiram da capital paulista para pôr um fim no levante santista.

Com a chegada das ordens das Cortes de Lisboa exigindo o retorno imediato do príncipe para Portugal e o fim da Regência, os governos de Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais posicionaram-se ao lado de d. Pedro, levando ao famoso Dia do Fico, em 9 de janeiro de 1822. Com a movimentação do comando portu-guês, chefiado pelo general Avilez, sediado no Rio de Janeiro, para fazer cumprir as ordens de Lisboa, d. Pedro enviou sua família para fora da capital e, em carta de 12 de janeiro, pediu que São Paulo e Minas enviassem tropas para a Corte. São Paulo atendeu à solicitação do príncipe e, por meio de seus capitalistas,4 armou e despachou 1.100 homens, os Leais Paulistanos. Entre eles estava o jovem cadete Francisco de Castro do Canto e Melo, caçula de uma família de militares. Em 19 de janeiro, José Bonifácio chegou à Corte chefiando uma delegação paulista e foi nomeado ministro do Reino e do Estrangeiro.

Enquanto José Bonifácio transformava-se no principal conselheiro político do futuro imperador, em São Paulo o governo da província rachava: de um lado os “andradistas”; do outro, os capitalistas Francisco Inácio de Souza Queirós, vogal pelo comércio,5 e José da Costa Carvalho, ouvidor-geral. O presidente João Carlos Augusto de Oyenhausen-Gravenburg, vacilante entre os dois partidos, foi chama-do ao Rio de Janeiro por ordem de José Bonifácio. Na ausência de ambos, quem de-veria assumir a presidência da junta governamental paulista era Martim Francisco.

Em 23 de maio, os inimigos dos Andradas, apesar da relutância da Câmara de São Paulo, fizeram do povo e da tropa massa de manobra para evitar que Oye-nhausen-Gravenburg deixasse o governo e que Martim Francisco tomasse posse.6 O episódio, que entrou para a história como “Bernarda de Francisco Inácio”, teria diversas consequências. Martim Francisco, escoltado para a corte, veria o seu guar-dião preso, sendo logo nomeado ministro da Fazenda. Algumas Câmaras Munici-pais uniram-se ao governo revoltoso paulista, outras ficam ao lado da legalidade. Somente em 21 de julho, com a entrada do marechal Cândido Xavier de Almeida e Souza na capital da província, Oyenhausen-Gravenburg seria efetivamente deposto.

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D. Pedro, instado pelas cartas recebidas da Câmara paulista garantindo fi-delidade e pelos acontecimentos que se precipitavam, partiu em 14 de agosto do Rio de Janeiro em direção à sitiada São Paulo, acompanhado de poucos e fiéis se-guidores, entre eles o jovem Francisco de Castro do Canto e Melo. A comitiva foi engrossando à medida que passava por Lorena, Taubaté, Guaratinguetá e outras cidades do Vale do Paraíba, onde o príncipe ia tomando as medidas necessárias para a pacificação da província enquanto tecia alianças importantes para o futuro do Brasil independente. No dia 24, já no subúrbio paulista, d. Pedro pernoitou na Penha, de onde despachou Francisco de Castro, promovido por ele a alferes três dias antes, e Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, seu amigo e futuro secretário, para verificarem o “espírito” dos moradores da cidade. Segundo recordaria Fran-cisco de Castro: “[...] regressamos à meia-noite, dando notícias da perfeita quieta-ção em que a tínhamos encontrado”.7

Francisco de Assis Vieira Bueno era um garoto de pouco mais de seis anos quando viu o príncipe entrar na cidade, na manhã de 25 de agosto.8 D. Pedro atravessou a galope a ponte do Carmo e no meio da ladeira9 foi recepcionado pelo bispo d. Mateus Pereira e por representantes políticos. Além de lembrar-se de ter chorado com o susto provocado pelas salvas de tiros em honra do futuro monarca, Vieira Bueno registrou um boato interessante: d. Pedro teria estado na cidade na véspera, na calada da noite, incógnito, junto com “Xico” de Cas-tro. Teria aí então conhecido a irmã divorciada do alferes, Domitila de Castro? Infelizmente ninguém documentou esse encontro, confirmando o rumor que Vieira Bueno ouviu. O que se sabe é o que nos conta o próprio d. Pedro I, já imperador, em cartas para a amante: a intimidade entre eles começou em 29 de agosto de 1822.10

Arrotando cegonhas11

Matilda,12 Domitila, Demetília ou ainda Dimitília de Castro Canto e Melo, como consta de sua certidão de batismo, nasceu em São Paulo, em 27 de dezembro de 1797. Era a sétima e penúltima filha do militar açoriano João de Castro do Canto e Melo e da paulista Escolástica Bonifácia de Toledo Ribas. Teve por ama de leite Catarina Angélica da Purificação Taques, prima de sua mãe e filha do genealogista dos bandeirantes Pedro Taques de Almeida Paes Leme. Pela linha paterna, supos-

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tamente descenderia de Inês de Castro, e pela materna, de Fernão Dias, de Brás Cubas, do cacique Piquerobi e de Anhanguera, o que a tornava, para a pequena São Paulo da época, com cerca de cinco mil habitantes, uma filha da elite colonial, com toda a nobreza de sua origem e o desmazelo de seu provincianismo.

Aos 15 anos, em 13 de janeiro de 1813, Domitila casou-se com o alferes Felício Pinto Coelho de Mendonça, de 24 anos. Felício servia no regimento de cavalaria mineiro que aguardava, aquartelado no convento de São Francisco, em São Paulo, ordens para seguir para o Sul, a fim de entrar em combate na Pri-meira Campanha Cisplatina. Devido a mudanças de ordens, no meio do ano o regimento retornou para Vila Rica, Minas Gerais. Domitila, seguindo o marido, trocaria a pacata São Paulo pela terra onde seu sogro, com oitenta escravos, mi-nerava ouro. Em 13 de dezembro de 181313 foi batizada a primeira filha, Fran-cisca Pinto Coelho de Mendonça e Castro. Felício, o segundo, nasceu em 20 de novembro de 1816. Mas os problemas domésticos não se fizeram demorar. Con-ta o bisneto de Domitila, o arquiteto José Tobias de Aguiar,14 que Felício a mal-tratava muito, era um “cavalo”. No afã de tirar seu ar aristocrático, obrigava-a a servir à mesa como uma serviçal qualquer, isso em pleno regime escravocrata.

3. Vista noturna da cidade de São Paulo, primeira metade do século XIX.

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No relatório enviado pelo capitão-general Oyenhausen-Gravenburg para o rei d. João VI por ocasião da separação do casal15 e consequente disputa pela guarda dos filhos, ele comenta sobre o péssimo gênio de Felício, seus costumes depravados e as surras que dava na mulher. Ainda segundo o governador, Domi-tila, cansada de sofrer, havia buscado abrigo na casa da avó, Ana Maria de Toledo Ribas, então residente em Vila Rica. Quando escreveu para a casa paterna sobre o que vinha passando, os pais mandaram que ela retornasse a São Paulo.

Em 1817, Felício conseguiu uma transferência e mudou do Regimento de Cavalaria de Vila Rica para o de Caçadores de Santos. Mais próximo da mulher, convenceu-a, e a seus pais, de que havia mudado, e o lar foi refeito. Mas a paz não durou muito, ainda segundo Oyenhausen-Gravenburg: “Então seus pais e o públi-co conheceram que a suplicante [Domitila] não tinha uma camisa que este [Felí-cio] lhe desse, nem para seus filhos [...]. Não há uma pessoa nesta cidade a quem [ele] não pedisse dinheiro, dizendo ser para sustentar a sua família, porém mal dela se não fosse o amparo dos pais da suplicante.” No meio dessas idas e vindas, rompimentos e conciliações, nasceria em 1818 o terceiro e último filho do casal, João, falecido ainda criança.

Por volta das sete horas da manhã de 6 de março de 1819,16 quando Domitila estava indo à bica de Santa Luzia pegar água, ou encontrar-se com um amante, ou ainda ver uma prima, conforme cada cronista narra o episódio, Felício esfaqueou-a duas vezes, na coxa e na barriga. Ainda com a arma ensanguentada, ele procurou refúgio na casa de parentes, que lhe recusaram o abrigo. No mesmo dia, foi preso e enviado para a sede de seu regimento, em Santos.

Mas Domitila estava ainda longe de ser deixada em paz pelo marido. Em janeiro de 1820, começava a disputa pelas crianças, que só teria fim quatro anos depois. Apesar da ordem régia, obtida graças ao prestígio e fortuna do sogro de Domitila, para que os três filhos fossem entregues a um procurador de Felício, já que este havia se mudado para a corte, as crianças nunca deixa-riam a casa materna.

Os futuros detratores de Domitila irão aumentar o acontecido, e não raro dar razão a Felício. Afinal, se ela havia se tornado amante do imperador, devia ter feito isso anteriormente, pensariam. Quanto ao pobre marido, um homem lavar a honra com o sangue da mulher adúltera era coisa corriqueira até o início do século passado.

Tinha assim início a fama de Domitila, adúltera, esfaqueada pelo marido com razão! O que não era de conhecimento público, e somente a leitura atenta do pro-cesso de divórcio17 revela, é que, segundo testemunhos, além de negar dinheiro,

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alimentos e roupas para a família, Felício ameaçava constantemente a mulher, che-gando a dormir com uma faca na cabeceira da cama. Para completar, teria falsi-ficado a assinatura da esposa para poder vender terras em Minas, herdadas pelo casal com o falecimento da mãe dele.

Titília e o Demonão

Alguns historiadores afirmam que o primeiro encontro entre Domitila e d. Pe-dro ocorreu em uma chácara próxima ao antigo cemitério dos Aflitos, onde hoje fica o bairro da Liberdade, em São Paulo. Era, na época, alugada pelo pai de Domitila, inspetor de reparação das estradas de São Paulo, cujo supervisor era o engenheiro militar Daniel Pedro Müller, envolvido com a “Bernarda de Fran-cisco Inácio”. Uma outra propriedade do coronel João de Castro era uma cháca-ra localizada a cerca de trezentos metros do riacho do Ipiranga, perto de onde hoje está o Monumento da Independência. Essa propriedade era utilizada como pasto para suas tropas de mula, que faziam a ligação entre Santos e São Paulo. A casa foi demolida em 1941, segundo registros, fotos e artigos existentes no Museu Paulista da USP. Antônio José de Oliveira,18 casado com uma prima de Domitila e ajudante de ordens do imperador, deixou um relato curioso sobre um dos primeiros encontros entre ela e d. Pedro. O príncipe regente, encantado em vê-la chegando numa cadeirinha transportada por escravos, dispensou um dos carregadores e assumiu ele próprio um dos varais, afirmando querer ver o peso da ocupante. Entre risos e flertes, os escravos acabaram sendo substituídos por homens de sua guarda de honra, com d. Pedro brincando que jamais Domitila teria negrinhos como aqueles.

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4. Alegoria ao juramento da Constituição.

Quem fizer questão de possuir um retrato muito parecido da festejada D. Dimitila faça vir

de Paris uma estampa que traz a legenda “Salve! Querido brasileiro dia”, na qual está

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alegoricamente representada a Independência do novo Império do Brasil. Sobre despeda-

çados grilhões de escravos e serpentes calcadas aos pés, vê-se o jovem d. Pedro com uma

encantadora americana que se lhe atira nos braços. A bela condessa é o original dessa

figura. Não me atrevo a afirmar que tenha posado para o pintor nos mesmos trajes com

que na gravura se apresenta.

Schlichthorst, C. O Rio de Janeiro como é (1824-1826), p. 60.

Levando-se em conta o gênio indomável de d. Pedro I, que havia de levar uma bofetada de uma bonita escrava em Santos, às vésperas da Independência, por tê-la tomado no meio da rua e lhe dado um beijo, bem poderia ser verdade a história relatada. As cartas, mais adiante reproduzidas, mostram o perfil de um homem apaixonado que seria capaz, imperador ou não, de dirigir tal cena.

Mas lembremos que Francisco de Castro, irmão de Domitila, havia vindo junto com o príncipe regente, e no caminho, na intimidade que era própria de d. Pedro ter com qualquer um que se acercasse dele, não seria impossível imaginar que “Nhô Xico” tivesse contado a ele sobre os problemas da irmã, sobre a tentativa de assassinato e a briga dela com o ex-marido e com o sogro, que tentavam tirar--lhe os filhos. Corrobora essa hipótese um despacho de 1826 enviado pelo conde de Gestas, diplomata francês, para o seu governo, comentando que a marquesa de Santos havia se aproveitado da viagem de d. Pedro a São Paulo para relatar seus problemas.19

Quatro anos depois desse encontro, o mercenário alemão Bösche,20 descre-vendo o imperador, que subira ao navio para cumprimentar os imigrantes, pintou um retrato bastante interessante de d. Pedro:

[...] se bem que não fosse bonito, era simpático e bem feito de corpo. Cabelos pretos e anelados cobriam-lhe a fronte; os olhos eram pretos, brilhantes e muito móveis, o nariz aquilino, a boca regular e os dentes bem alvos. Os sinais de bexigas do rosto não eram repugnantes, como acontece com outras pessoas; as suas suíças espessas ocultavam-nos inteiramente. Tinha uma atitude imponente e reconhe-cia-se logo nele o senhor, não obstante a simplicidade do vestuário.

Se um militar alemão descreveu d. Pedro dessa maneira, podemos imaginar o que Domitila deve ter achado desse homem quando o conheceu.

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5. D. Pedro I.

O que ele viu nela pode ter sido o mesmo que outro alemão, Schlichthorst.21 Em suas memórias do Rio de Janeiro, comentaria que a favorita do imperador distinguia-se pelo rosto regular e formoso e pela tez clara. E que, apesar de não lhe faltar gordura, o que corresponderia ao gosto geral dos brasileiros de então, e de não ser mais tão jovem, os olhos nada haviam perdido de seu fulgor, com uma por-ção de cachos escuros emoldurando sua face. Ainda afirma que Domitila era uma mulher verdadeiramente bela, de acordo com a fama de que gozavam as paulistas. O germânico fazia eco a diversos outros viajantes europeus que haviam notado a beleza das moças de Piratininga.22

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6. Domitila de Castro, marquesa de Santos.

O príncipe regente já era casado com a arquiduquesa Leopoldina da Áustria fazia cinco anos quando conheceu Domitila. O jovem atlético, que escalava mor-ros no Rio de Janeiro, nadava nu na praia de Botafogo e na Ilha do Governador e esgotava seus cavalos em passeios de um dia inteiro, parecia querer viver tudo o que podia a um só tempo, como se suspeitasse que a morte estava à espreita para ceifá-lo jovem. E era assim também nos amores. Desde antes do casamento já ar-rumara uma amante, e o filho que teve com ela, morto na infância, seria um dos primeiros espúrios reais a nascer. Apesar de ser, hoje, inquestionável o amor que ele sentia por Domitila, isso não garantiu a ela sua fidelidade. Ao longo do rela-

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cionamento de sete anos, quatro dos quais ele passou casado com d. Leopoldina, diversas aventuras amorosas despertaram os ciúmes da paulista, como podemos ver nas respostas que ele lhe enviava:

Eu já não namoro a ninguém depois que lhe dei minha palavra de honra (carta 50, p. 129).

Mas, como em qualquer início de namoro, as brigas por ciúmes ainda esta-vam longe de acontecer. Provavelmente Domitila não ficara sabendo do tapa que ele levara da escrava santista alguns dias após dormir com ela pela primeira vez.

Proclamada a Independência em São Paulo, d. Pedro retornou para a corte, no Rio de Janeiro. Em 17 de novembro,23 escrevia para Domitila, encantado com as cartas que esta lhe enviara. Dava a entender que falara com o pai dela, João de Castro, que a filha encontrava-se grávida dele.

Tive arte de fazer saber a seu pai que estava pejada de mim (mas não lhe fale nisto) e assim persuadi-lo que a fosse buscar e a sua família, que não há de cá morrer de fome, muito especialmente o meu amor, por quem estou pronto a fazer sacrifícios.

Assim foi feito, e toda a família, com exceção dos irmãos mais velhos, João e José de Castro, militares aquartelados no sul do Brasil, mudou-se para o Rio de Ja-neiro. Dessa primeira gravidez pouco se sabe de concreto. Arteiro, não seria difícil imaginar que d. Pedro houvesse enganado o velho coronel, assim como Domitila, vendo que a sorte lhe sorria pela primeira vez, poderia ter feito o possível para segurar o homem que a chamava de “meu amor”. Depois das facadas, do boato de infidelidade abafando a questão de sua assinatura falsificada, do processo de divórcio e da tentativa de lhe tirarem os filhos, a preocupação com sua reputação na pequena São Paulo devia ser irrelevante.

Os filhos do primeiro casamento, os pais, a avó, irmãos, cunhados, tios e pri-mas desceram em avalanche sobre a capital do nascente império brasileiro, onde contaram com a proteção de d. Pedro para manterem-se. O imperador iria real-mente ajudá-los, dando empregos e promoções, mas sempre dentro da legalidade. Recusaria diversos favores solicitados, chegando, em certa ocasião, a alegar:

Sinto infinito quando não posso fazer o que mecê pede; mas é o que acontece a quem como eu deseja manter a justiça e a disciplina militar (carta 29, p. 102).

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Ele podia amá-la, mas não deixava de lado os negócios de Estado para aten-der a seus caprichos.

A data exata em que Domitila se instalou na corte não é certa, mas a cor-respondência entre eles e algumas resoluções e despachos oficiais mostram que a chegada deve ter ocorrido entre janeiro e março de 1823. A irmã, Ana Cândida, chamada de Nhá Cândida por d. Pedro (carta 1, p. 66), e o marido, o militar Carlos Maria Oliva, mudaram-se para o Engenho Velho; o cunhado, Boaventura Delfim Pereira, e a esposa, Maria Benedita, irmã mais velha de Domitila, compraram uma chácara na ladeira da Glória (carta 17, p. 89), próximo da igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro. Domitila, os pais e os filhos do primeiro casamento estabele-ceram-se em uma casa em Mata-Porcos, onde hoje se localiza o bairro do Estácio.

Inicialmente, a relação entre eles não foi escancarada como querem os seus detratores, principalmente os políticos e cortesãos em queda. Seria mais fácil acu-sar d. Pedro de ter se deixado influenciar pela sua amante paulista do que assumir sua inépcia ou sua ganância pelo poder como causa de sua demissão. Até mesmo os diplomatas estrangeiros no Rio de Janeiro ajudariam a espalhar a fama de Do-mitila, como o embaixador francês marquês de Gabriac, que atribuiria os sucessos do embaixador britânico sir Robert Gordon em tentar pôr um fim ao tráfico ne-greiro ao fato de este haver enfrentado a marquesa...

A primeira carta publicada nesta edição (carta 1, p. 66) mostra que, se eles já mantinham um relacionamento em junho de 1823, quando d. Pedro caiu do cava-lo e fraturou costelas, ganhando hematomas e traumas que o prenderam ao leito, os encontros eram feitos secretamente, de maneira bastante discreta, até mesmo com a determinação do imperador de que o irmão dela, Francisco de Castro, a acompanhasse à corte. D. Pedro não deveria estar muito preocupado nessa época com o que a amante, de escrita irregular e ortografia pobre, tivesse a dizer sobre a queda dos Andradas, ou sobre as relações externas. O imperador estava mais interessado em tratá-la bem, dando-lhe joias de presente e cuidando para que fre-quentasse a modista certa (carta 2, p. 69).

Qualquer novidade despertava nele a lembrança de Domitila. Assim, des-viava presentes que deveriam ter sido entregues à imperatriz (carta 40, p. 113) e remetia-lhe pequenos mimos, como um queijo (carta 53, p. 134), ou morangos e flores (cartas 8 e 31, p. 78 e 104).

Em 21 de maio de 1824, saiu a sentença de divórcio separando Domitila do ex-marido e dando a guarda dos filhos para a mãe. Francisca seria educada em um colégio da elite carioca, enquanto Felício filho, mais tarde, completaria seus estudos em Paris. Dois dias depois, em 23 de maio, nasceu a primeira filha do casal

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de amantes, Isabel, a Bela, ou Belinha, como a chama d. Pedro (carta 10, p. 81). Inicialmente a menina foi registrada como filha de pais desconhecidos. O impera-dor afirmaria, em carta para Domitila, que Isabel deveria viver com a mãe, até que tivesse idade para ser educada (carta 9, p. 80).

Mas a vida de Domitila não era apenas bailes, filhos, vestidos e joias novas. Em algum momento, ela receberia um duro golpe. Rodrigo Delfim Pereira, filho de sua irmã Maria Benedita, nascido em 4 de novembro de 1823, era fruto de rápido entrevero amoroso entre ela e d. Pedro. Muito antes do que julgam seus detratores, Domitila deveria saber sobre o assunto, como ilustra uma resposta de-sesperada do imperador, dada em algum momento de 1825:

Eu não fui na casa nem do grande nem do pequeno Boaventura (carta 37, p. 109).

Assim como a imperatriz Leopoldina, que escrevia para a irmã Maria Luísa, muito antes de d. Pedro começar o seu caso com Domitila,24 comentando sobre a decepção que era o marido em termos de fidelidade, Titília era ciente das traições do imperador. Mas, diferente da mulher legítima, era capaz de grandes cenas e até mesmo de atormentá-lo por isso, o que levava o monarca a escrever-lhe cartas assegurando que nada havia feito de mal, ou antecipando-se a fofocas que fariam por ele ter se encontrado com alguma mulher (carta 36, p. 108).

Quatro meses após o nascimento de Isabel, em setembro de 1824, Domitila, ao tentar entrar em uma sessão do Teatrinho Constitucional São Pedro, foi impe-dida por não ter sido convidada. A fúria do amante real não se fez esperar (carta 11, p. 83). Irritado ao saber que ela havia sido barrada na porta do prédio, d. Pedro retirou-se e, no dia 22, o teatro foi fechado.

Pouco menos de um ano depois, durante as comemorações da Semana Santa de 1825, um novo incidente ocorreu. D. Pedro pedira que um servidor do paço levasse Domitila até a tribuna de honra da Capela Imperial para participar das comemorações da Páscoa. As damas da corte, lá instaladas, indignadas com a pre-sença de uma desconhecida que os rumores indicavam ser amante do imperador, levantaram-se e acintosamente deixaram o local, expondo a paulista ao vexame. Novamente o imperial amante intercedeu e fê-la nomear dama camarista da im-peratriz (anexo 1, p. 183), passando, hierarquicamente, a ter mais importância e maiores direitos que as outras damas do paço. Isso qualquer livro sobre a intimi-dade da corte brasileira do Primeiro Reinado poderia contar; mas a saborosa carta em que d. Pedro esmiúça o plano de vingança, informando à amante ter mandado

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instalar uma tranca na tribuna para impedir que qualquer outra pessoa se sentasse antes da chegada de Domitila, ainda não havia sido descoberta (carta 25, p. 96).

“Tenho muita glória de punir por ti e pela tua honra”, como dirá a essa aman-te que, mesmo não tendo sido fiel a ela, foi uma das poucas que realmente amou. Afinal, com qual outra teria trocado este tipo de confidência:

Ontem mesmo fiz amor de matrimônio para hoje, se mecê estiver melhor e com disposição, fazer o nosso amor por devoção (carta 9, p. 80).

7. Largo do Paço e rua Direita. A Capela Imperial é a segunda edificação à esquerda.

Com a pena transformada em vara de condão, d. Pedro transformou os feios patinhos paulistas em belos cisnes dignos de frequentar a corte. Sua Titília foi feita viscondessa de Santos em 12 de outubro de 1825, dia do aniversário do imperador, quando anistias eram dadas e mercês, distribuídas. À família, seguiu nobilitando: o pai recebeu o título de visconde de Castro; os irmãos ganharam comendas e títu-los de honra; e o cunhado, Boaventura Delfim, que assumiu Rodrigo como se fosse seu filho, se tornaria barão de Sorocaba. É do outro lado do Atlântico que nos vem uma das mais indignadas reações: “Quem sonharia que a michela25 Domitila seria viscondessa da pátria dos Andradas?”,26 perguntaria indignado José Bonifácio, em

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seu exílio na França, a seu fiel escudeiro Vasconcelos Drummond, em 26 de janei-ro de 1826. A provocação de d. Pedro ao escolher a cidade natal do antigo ministro para nobilitar a amante surtira efeito.

Em 7 de dezembro de 1825, cinco dias depois do nascimento de d. Pedro de Alcântara, futuro d. Pedro II, nascia outro Pedro, este no bairro de Mata-Porcos, fru-to dos amores imperiais com Domitila. Essa gravidez não diminuiu o furor sexual do imperador. Em junho desse mesmo ano, enquanto esperava sir Charles Stuart, diplomata britânico, mediador do tratado de reconhecimento entre Portugal e a an-tiga colônia, d. Pedro escrevia à amante: “Estou munido bastante” (carta 28, p. 101).

Se a vida íntima ia bem, o mesmo não acontecia com o destino do Brasil. A Província Oriental do Rio da Prata, hoje conhecida como Uruguai, desde 1680 era alvo de disputa entre a Espanha e Portugal devido à sua posição estratégica: quem a controlasse detinha não só o domínio sobre o rio da Prata, como ainda os acessos aos rios Paraguai e Paraná. Em 1821, essa região foi incorporada por d. João VI ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, com o nome de Província Cisplatina. Em abril de 1825, durante o processo de organização das Províncias Unidas do Prata, que dariam origem ao Estado argentino, alguns exilados uruguaios, vindos de Buenos Aires, retornaram à Cisplatina levantando a população espanhola con-tra o governo brasileiro. O general Lecor conseguiu manter Montevidéu e outras cidades, porém o interior da província permanecia nas mãos dos portenhos. Após receber tropas vindas do Rio Grande do Sul, Lecor preparou uma ofensiva contra os rebeldes, mas essa força expedicionária acabou dizimada na batalha de Sarandi, em 12 de outubro. Algumas semanas depois, devido ao sucesso dos uruguaios dis-sidentes, o governo argentino decidiu aceitar oficialmente a petição deles para que a Cisplatina fosse admitida na união. Buenos Aires e outras províncias mandaram tropas para ajudarem os uruguaios contra os brasileiros, levando d. Pedro a decla-rar guerra contra a Argentina em 10 de dezembro.

Como fizera antes com Minas e São Paulo na época da Independência, d. Pe-dro planejou uma viagem à Bahia para buscar apoio ao esforço de guerra. Porém, diferente das excursões de sua época como príncipe regente, onde uma comitiva pequena era suficiente, dessa vez ele levaria a mulher, d. Leopoldina, a filha, d. Maria da Glória, futura rainha de Portugal, e mais de setenta convidados, entre eles Domitila, no cargo de dama da imperatriz.

Em carta de 6 de novembro de 182427 para a amiga e confidente Maria Graham, d. Leopoldina confessava que se sentiria aliviada quando tivesse se “li-vrado de certa canalha”. Querem os amantes de estudos superficiais ver no termo uma alusão direta a Domitila. Porém a viajante inglesa, no seu Escorço biográfico

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de Dom Pedro I, narra todo o problema que houve nesse período entre ela e os funcionários do paço, envolvendo o administrador Plácido e as damas portugue-sas, o que levou à sua demissão do cargo de governanta das princesas. Nenhuma menção a Domitila é feita pela própria vítima das armações da “canalha do Paço”, no coletivo, como se refere o próprio d. Pedro em citação registrada por Graham.28

D. Leopoldina tinha, em excesso, a educação que faltava a Domitila, e isso foi o seu fim. Produto de seu tempo e seu meio, criada para não ver, não ouvir e so-mente cumprir a função que lhe era destinada, o seu lado “arquiduquesa Habsbur-go” contrastava com sua sede de conhecimento e saber compartilhada com raras pessoas, como José Bonifácio e a amiga inglesa, ambos tirados dela por problemas políticos — no caso de Graham, pela intriga da camarilha portuguesa que cercava os imperadores.

Sem ter afinidades com a comitiva que os acompanhou para a Bahia, d. Leo-poldina trancou-se na cabine durante a viagem de navio. Comia sozinha, evitando a mesa comum do marido. Para compartilhar as refeições, d. Pedro chamava a seu lado a amante, que foi muitas vezes vista não só na companhia do monarca como na da filha dele. Na chegada a Salvador, a d. Leopoldina seria destinada uma residência diferente daquela em que dormiriam d. Pedro e Domitila. A tudo ela se resignava até mesmo nos passeios que fazia com o marido. D. Pedro dirigia sua própria carruagem, com a esposa na boleia, levando a amante e d. Maria da Glória sentadas atrás.

Em 1º de abril de 1826, quando retornaram ao Rio de Janeiro, Pedro e Domi-tila tomaram ciência de que o filho nascido em dezembro falecera em 13 de março. Esse ano foi para d. Pedro uma época de perdas. Além dessa, recebeu em 24 de abril a notícia da morte do pai, d. João VI, em Portugal, aos 59 anos, o que daria início a uma crise dinástica só resolvida em 1834.

Ainda no primeiro semestre, a viscondessa mudou-se para o bairro de São Cristóvão, morando inicialmente em uma das casas existentes na chácara29 que havia comprado. Após a conclusão das obras do seu palacete, praticamente à porta da Quinta da Boa Vista, residência imperial, transferiu-se para ele, em 1827. Assim ela viveria a uma distância de pouco menos que um quilômetro do amante, que do palácio, não raro, a espionaria com uma luneta (carta 48, p. 125). Em maio, no dia 20, às vésperas do aniversário de Isabel, d. Pedro decidiu reconhecê-la oficial-mente como sua filha. Mas encontrou alguém que o afrontasse. O bispo do Rio de Janeiro negou-lhe autorização para mudar o registro do batismo. Isso poderia ser um empecilho para outros, mas não para o imperador. O reconhecimento foi feito via ato ministerial, com os ministros Lages, Inhambupe e José Feliciano Fernandes

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Pinheiro30 atestando a paternidade da menina. Após o decreto, o secretário do im-perador foi à igreja de São Francisco Xavier, no Engenho Velho, e intimou o padre a reformar a declaração de batismo, acrescentando o nome de d. Pedro como pai. O decreto também mudou o nome da criança. Antes somente Isabel na certidão de batismo, agora passava a chamar-se Isabel Maria, o mesmo nome da irmã de d. Pedro que, durante a doença de d. João VI, havia assumido a regência portuguesa e agora governava Portugal em nome do irmão. Na nova certidão constava apenas o nome do pai, não havendo qualquer referência à mãe, mas, oficialmente, d. Pedro daria ao leal visconde de Castro, avô da criança, a incumbência de criá-la, ficando Isabel Maria nesse arranjo junto de Domitila. No dia 24, concedeu à menina o título de duquesa de Goiás. D. Pedro parecia ter uma predileção especial por essa filha: no mesmo ano, uma corveta construída para integrar a Marinha brasileira foi batizada com seu título (carta 43, p. 118).

Domitila, que teve seu título nobiliárquico elevado para marquesa de Santos em 12 de outubro, também perderia o pai em 2 de novembro. A doença do vis-conde de Castro causou problemas para d. Pedro. Querem alguns que ele tenha passado um mês longe de casa cuidando do velho visconde, o que teria feito d. Leopoldina revoltar-se e ameaçar de pô-lo na rua, ou ainda de partir para a Euro-pa, abandonando-o. Mexericos da criadagem31 do palácio à parte, Melo Morais32

afirma ter o imperador passado junto ao doente dois dias e duas noites. Muito mais realista do que ter abandonado por trinta dias a família e os negócios do Brasil, incluindo o Tesouro exaurido e a Guerra da Cisplatina, além dos negócios portugueses. O certo é que o funeral do velho militar, numa pompa desusada, seria pago pelo monarca.

Em cartas enviadas à sua amiga Maria Graham desde seu retorno da viagem da Bahia, d. Leopoldina tinha um travo amargo, depressivo, além de reclamações a respeito da saúde. Ao visitá-la pela última vez antes de partir para a Europa, em setembro de 1825, três meses antes do nascimento de d. Pedro II, Graham encon-trou-a em depressão e fraca de saúde.33 O estado dela piorou com uma nova gra-videz, o que não impediu que d. Pedro a deixasse, sob cuidados médicos, para ver de perto a situação em que se encontrava o exército brasileiro no Sul. O imperador partiu em 24 de novembro com uma frota de navios, entre eles a corveta Duquesa de Goiás, levando oitocentos oficiais e as tropas mercenárias do 27º Batalhão de Infantaria Ligeira, com destino à Cisplatina. Sua primeira parada foi Santa Cata-rina, aonde chegou cinco dias depois e escreveu para a esposa e a amante cartas praticamente idênticas, descrevendo as particularidades da viagem. Porém para Domitila o final foi estendido, com protestos de saudades e de amor.34

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8. D. Pedro I e d. Leopoldina visitam os órfãos da Casa dos Expostos em 1826.

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Alguns estrangeiros que estavam no Brasil à época recolheriam os comen-tários das ruas e iriam transformá-los em principal razão para a morte de d. Leopoldina: d. Pedro teria agredido a esposa antes da partida, provocando um aborto e a sua morte. Realmente, a imperatriz abortaria um feto de três meses na madrugada de 2 de dezembro, mais de uma semana depois do embarque do marido. Depois disso, não recuperou totalmente a consciência, falecendo em 11 de dezembro de 1826.

O barão de Mareschal,35 diplomata austríaco no Rio de Janeiro, escreveu para Maria Graham logo após a morte de d. Leopoldina:

Sua moléstia foi curta e dolorosa. Não a perdi de vista durante todo seu curso. Ela desesperou desde o princípio; tendo em vista sua idade, sua constituição e a fatal complicação de uma gravidez, fez-se o que foi possível para salvá-la. Sua morte foi chorada sincera e unanimemente. Ela deixa um vácuo perigoso. Nada até agora indica nem que se pretenda preenchê-lo, nem por que pessoa.

Graham afirma36 ser essa a versão “oficial” e narra que depois começaram a chegar cartas de outras pessoas, contando outras histórias. Uma delas afirma-va que Domitila, fazendo uso de suas funções como dama camarista, proibiu as crianças de verem a mãe e teve que ser retirada à força por um servidor do palácio. Mareschal, chamado de “abelhudo” pelo historiador Alberto Rangel, não era bem visto nem por sua conterrânea d. Leopoldina37 e não deixou diferentes impressões quando serviu nos Estados Unidos, onde ficou conhecido por suas intrigas e pelas fofocas com que recheava seus relatórios ao governo austríaco. Presente no Palácio de São Cristóvão durante a enfermidade de d. Leopoldina, não lançou uma única linha sobre ter visto Domitila no quarto da imperatriz. Sempre bem informado, no seu relatório de 13 de dezembro38 afirma que a falecida não havia deixado nenhu-ma disposição testamentária, o que vai contra uma suposta última carta.

Em 8 de dezembro, d. Leopoldina teria ditado suas últimas palavras para a camareira-mor, a marquesa de Aguiar, contando, às vésperas da morte, as agruras por que vinha passando. Nessa carta para a irmã Maria Luísa, ex-imperatriz dos franceses, ela chama-a ora de “minha adorada mana”, ora de “minha mana”. Em um trecho, descreve a pessoa a quem a carta está sendo ditada:

A marquesa de Aguiar, de quem bem conheceis o zelo e o amor verdadeiro que por mim tem, como repetidas vezes te escrevi, essa minha única amiga que tenho, é quem lhe escreve em meu lugar.

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No fim, ela manda recomendações para que paguem tudo o que deve aos credores, além de dispor que os filhos sejam educados pela marquesa de Aguiar, até que “o meu querido Pedro não disponha em contrário”.

Esse documento apresenta alguns detalhes que parecem ter sido ignorados pelos historiadores por quase dois séculos. Primeiro: em nenhuma outra carta co-nhecida d. Leopoldina trata a irmã por “mana”. Sempre a chama de “caríssima” ou “queridíssima Luísa”,39 independente de a mensagem seguir por correio diplomáti-co ou por mensageiro particular. Segundo: a marquesa de Aguiar não é menciona-da em nenhuma outra das mais de duzentas cartas conhecidas da imperatriz. Melo Morais40 informa que a camareira-mor não morava no paço; para lá se mudou unicamente devido à doença da consorte imperial, por exigência do seu cargo e pela ausência do imperador, não sendo suficientemente íntima de d. Leopoldina. Maria Graham comenta sobre a marquesa de Aguiar ser uma mulher honesta e educada, “para uma portuguesa”.41

Este trecho da carta faz eco aos comentários do povo de que d. Pedro teria maltratado a imperatriz:

[...] maltratando-me na presença daquela mesma que é a causa de todas as minhas desgraças. Muito e muito tinha a dizer-te, mas faltam-me forças para me lembrar de tão horroroso atentado que será sem dúvida a causa de minha morte.

Faltavam-lhe forças para se lembrar do “horroroso atentado”, mas não para continuar ditando mais da metade do total da carta, falando sobre credores e as dívidas que estes haviam contraído para ajudá-la financeiramente. Mareschal dá a entender que d. Leopoldina teria perdido os sentidos após o aborto e, quando voltava a si, não estava de todo consciente.

Todos os que se ocuparam até o momento do estudo dessa carta serviram--se de uma cópia, que hoje se encontra no Arquivo Histórico do Museu Imperial. A original nunca foi encontrada em qualquer arquivo, no Brasil ou no exterior. A cópia existente em Petrópolis está escrita em português, com uma única frase em francês dizendo que a transcrição foi feita de acordo com uma original expedida em 12 de dezembro de 1826. Só surgiu no Rio de Janeiro em 5 de agosto de 1834 — quase oito anos após a morte da imperatriz — para ser registrada junto ao tabelião Joaquim José de Castro. Testemunharam: César Cadolino, J. M. Flach, J. Buvelot e Carlos Heindricks. Desses, comprovadamente com dois, Cadolino e Flach, d. Leo-poldina fizera grandes dívidas. Exatamente por essa época deve ter chegado ao Rio de Janeiro a informação de que d. Pedro, na noite de 27 de maio de 1834, sob os

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apupos de uma plateia furiosa com a anistia dos absolutistas portugueses, tossira sangue, manchando seu lenço diante de todo o teatro São Carlos, em Lisboa.42 A tuberculose o mataria em 24 de setembro do mesmo ano.

Era, portanto, conveniente ter alguma prova das dívidas da imperatriz, me-lhor ainda se confessada pela própria. Apesar de o decreto de 11 de outubro de 1827 ter criado uma dotação de oitenta contos de réis para o pagamento aos credo-res da falecida, nos anais da Câmara dos Deputados existe menção às dívidas ainda em 1838.43 Quanto à pessoa a quem a carta teria sido ditada, a marquesa de Aguiar, assim como diversos cortesãos portugueses, retornara para Portugal após a abdi-cação do imperador, desembarcando no cais de Belém em 5 de agosto de 1831,44 e estava convenientemente longe o bastante do Brasil em 1834 para confirmar ou negar a autenticidade do documento. O barão de Mareschal, também citado na carta, tinha partido do Brasil quatro anos antes de o documento aparecer. Entre 1833 e meados de 1834, alguns políticos veriam com bons olhos um documento público que demonizasse o ex-imperador, afinal, o Partido Caramuru, capitaneado pelos Andradas, ainda nutria alguma esperança de que d. Pedro, após conseguir pacificar Portugal e entronizar d. Maria da Glória, pudesse voltar para o Brasil como regente de d. Pedro II. A produção de escândalos para denegrir a imagem pública de alguém não é invenção recente.

Informado da morte da esposa, d. Pedro chegou ao Rio em 15 de janeiro de 1827. Num ato contínuo, demitiu boa parte do ministério, além de funcionários da casa imperial e até o confessor e antigo professor, frei Antônio de Arrábida. Querem alguns ver nisso a fúria imperial pelas queixas de Domitila por ter sido barrada no Palácio de São Cristóvão, quando os servidores não a deixaram ver d. Leopoldina uma última vez. Segundo outras fontes, a demissão dos ministros foi consequência da desorganização administrativa e logística que d. Pedro en-controu no sul do país e, quanto aos servidores do paço, o jornal Sete de Abril, em 2/2/1831, comentava que essas antigas demissões foram devidas à falta de protocolo e pompa que conviria ao velório de uma imperatriz.45 Mas Domitila não só levaria a culpa pela morte da primeira esposa de d. Pedro. Ela teve a casa apedrejada e seu cunhado Carlos Oliva, casado com sua irmã Ana Cândida, foi baleado na rua.

O vértice mais fraco do triângulo amoroso partia-se. Ainda no Sul, ao sa-ber da morte da esposa, d. Pedro escreveu um poema46 lamentando sua perda. Em um trecho, diz: “Ela me amava com o maior amor / Eu nela admirava a sua honestidade”. Ele tinha certeza que d. Leopoldina o amava, porém ele tinha por ela somente admiração. Admirava a mulher que, além de ser mãe de seus filhos,

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havia embarcado com ele na aventura da Independência do Brasil e no liberalismo político, apesar de ter sido criada dentro dos rigores do absolutismo austríaco. D. Leopoldina era muito mais culta, educada e preparada que d. Pedro. Além de tro-car correspondência com naturalistas na Europa e receber visitantes estrangeiros que aportavam no Brasil, servira de intérprete ao marido diversas vezes junto aos militares alemães que vieram ingressar nas tropas de mercenários estrangeiros. Seu importante papel na Independência e junto às cortes europeias no reconheci-mento do novo Estado americano é inegável. Esse vértice faria falta ao imperador em 1827, durante a desacreditada Guerra da Cisplatina, que se transformava em um sorvedouro de dinheiro e almas.

Em 3 de maio, durante o discurso de abertura da Assembleia, políticos e cortesãos notaram a comoção do imperador ao falar sobre a morte da esposa. Alguns propagariam a lenda de que no dia 24, durante a comemoração do ani-versário de Isabel Maria no Palácio de São Cristóvão, o imperador desapareceu subitamente. Domitila, indo procurá-lo, o teria encontrado chorando abraçado a um retrato da esposa morta. Boato ou verdade, o barão de Mareschal, em despa-cho para Viena, comentaria sobre o arrefecimento da relação dos amantes desde o início de junho.47 No dia 16, para surpresa do diplomata, d. Pedro pediu-lhe ajuda para que conseguisse, sob as bênçãos do imperador Francisco I, avô de seus filhos, uma noiva para ele na Europa. Mareschal preparou um dossiê para d. Pedro, listando algumas condições para que a busca de uma nova mãe para as crianças pudesse ter sucesso, entre elas o afastamento de Domitila e de sua filha, Isabel Maria, da corte. D. Pedro não concordou com esses dois pontos: não vi-veria sem a filha por perto e, quanto à marquesa de Santos, ela estava no sétimo mês de gestação. Ele recusava-se a colocar a vida dela e da criança que esperava em risco.

No dia 23, mensageiros partiram para Viena levando documentos e cartas para Francisco I a fim de que se arranjasse uma nova esposa para d. Pedro. Em 13 de agosto, Domitila deu à luz Maria Isabel, reconhecida pelo imperador no ato de batismo. Uma semana depois, o marquês de Barbacena viajava para a Europa, para tratar com Inglaterra, França e Áustria o apoio na questão sucessó-ria do trono português. Na bagagem, levava presentes em diamantes e dinheiro para a corte austríaca e para a futura noiva do imperador. D. Pedro, sua filha d. Maria da Glória e diversos cortesãos foram à Glória, no dia 19, assistir à quei-ma de fogos em homenagem a Nossa Senhora da Glória, que havia sido adiada devido ao mau tempo. D. Pedro dormiu na casa da irmã de Domitila, Maria Benedita, baronesa de Sorocaba, que morava com a família nas proximidades da

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igreja, e, no dia seguinte, partiu com seu administrador, o barão de Sorocaba, para a fazenda de Santa Cruz. Três dias depois, o destino de Domitila sofreria mais um revés. Voltando de carruagem para casa, durante a noite, Maria Bene-dita teve seu veículo alvejado a tiros. Pedindo segredo aos seus criados a respeito do ocorrido, despachou um mensageiro a Santa Cruz para informar ao marido sobre a tentativa de assassinato. Na carta, a baronesa dizia ter sido vítima de uma emboscada, e que um soldado do regimento de São Paulo e um dos irmãos dela eram os culpados.

Ciente do ocorrido, e levado a crer que Domitila, movida pelos ciúmes que tinha da irmã, estivesse por trás do crime, d. Pedro, nos rompantes que lhe eram peculiares, retornou à corte, e no dia 26 uma torrente de ordens cho-veu como flechas, tendo o palacete da marquesa como alvo. Além de demitir o intendente da polícia da corte, amigo de Domitila, retirava a recém-nascida Maria Isabel e a duquesa de Goiás da mãe, levando-as para morar com ele na Quinta da Boa Vista. Seu secretário particular, Francisco Gomes, o Chalaça, ordenou que a marquesa de Santos embarcasse para a Europa (anexo 2, p. 183) e que seus irmãos a acompanhassem (anexo 3, p. 184). Quem serviu de mensa-geiro foi o bispo de São Paulo, que se encontrava na ocasião no Rio de Janeiro. Amigo dos Castros do Canto e Melo desde a época em que moravam em São Paulo (carta 56, p. 137), ele intercederia junto ao imperador para que Domitila pudesse aguardar o término do resguardo de parturiente. Dentro de quarenta dias, afirmava, ela partiria.

Embora não haja, até hoje, surgido prova concreta alguma da participação de Domitila e dos irmãos na tentativa de assassinato da baronesa de Sorocaba, d. Pedro continuaria expurgando a família para longe do Rio. No começo de setem-bro, ordenou o embarque para o Recife do 5º Batalhão de Caçadores de Linha, estacionado em São Cristóvão. Esse batalhão, formado em grande parte por mo-ços de famílias paulistas, que tinham na marquesa praticamente uma madrinha, era comandado pelo tenente Carlos Maria Oliva, cunhado de Domitila. Barrando a retaguarda dessa tropa, seguiu um batalhão de mercenários alemães.48 Pedro e José, irmãos de Domitila, receberam ordens de sair do Rio de Janeiro e juntar-se às tropas na Cisplatina.

Porém, em algum momento entre o início de setembro e o dia 10, a tormen-ta imperial abrandou. No dia 12, Domitila compareceu ao teatro. Ante o mal-es-tar gerado entre os cortesãos, sem saber se a cumprimentavam ou não, d. Pedro desfez o clima, acenando de seu camarote para ela. O barão de Mareschal, inco-modado com tal gesto, aplicou pressão ao governo austríaco para que arranjas-

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sem logo uma noiva para o monarca. Enquanto isso não acontecia, o imperador colocava não só a corte como a Europa em estado de choque. No seu aniversário, em 12 de outubro, concedeu a João de Castro, irmão mais velho de Domitila, o título de visconde de Castro, que pertencera ao pai deles, e nobilitou os outros irmãos e diversos parentes com a Ordem do Cruzeiro, alguns como dignitários, outros como oficiais. Em conversa com Mareschal, em dezembro, d. Pedro justi-ficou as nomeações dos parentes da marquesa como uma forma de indenizá-los por terem sido acusados injustamente na tentativa de assassinato da baronesa de Sorocaba.49 Realmente algo deve ter desfeito o mal-entendido entre as irmãs, pois Maria Benedita teria um lugar reservado para o banquete do quinto aniversário da duquesa de Goiás, em 1829, conforme documento que atualmente se encontra no Museu Imperial.50

Essas mercês aos parentes de Domitila iriam custar caro ao imperador. Para não piorar a situação, Francisco Gomes da Silva, a mando de d. Pedro, des-pachou no início de janeiro de 1828 uma carta51 para o marquês de Barbacena, mandando-o mentir se questionado na Europa sobre as nomeações dos Castro do Canto e Melo e dos Toledo Ribas. Mas esses escrúpulos de nada adiantariam. Antes mesmo do despacho seguinte do diplomata austríaco, d. Pedro recebia, pelo embaixador britânico sir Robert Gordon, as primeiras notícias referentes aos problemas de se conseguir uma noiva para ele. Jornais europeus começa-vam a publicar a respeito de seus amores com a marquesa de Santos, e alguns até dariam, mais tarde, a notícia de que eles haviam se casado. Desesperado, em novembro, o imperador perguntava diversas vezes sobre a menstruação da amante. Tudo o que ele não precisava naquele momento era de mais um bastar-do (carta 72, p. 155).

De setembro de 1827 até o retorno do marquês de Barbacena à corte, em maio de 1828, o relacionamento entre d. Pedro e Domitila voltou ao ritmo do iní-cio, tudo escondido para que ninguém percebesse que eles efetivamente estavam juntos outra vez. Ele até mandou-a fazer uma porta (carta 66, p. 148) para que con-seguisse entrar na casa dela sem ser visto. A chácara de Domitila, com o acréscimo de outros terrenos, acabou fazendo divisa com a Quinta da Boa Vista, e no muro que separava as propriedades foi de fato aberta uma passagem. Em outras cartas, eles combinavam a respeito de quem iria quando ao teatro para evitar serem vistos juntos (carta 76, p. 161). Porém, após se encontrar com Barbacena e ouvir de viva voz as notícias a respeito da sua reputação na Europa, transtornando qualquer tipo de negociação de casamento, d. Pedro escreveu para Domitila em 13 de maio de 182852 informando que ela deveria deixar a corte. Nas cartas seguintes, cobra-

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ria várias vezes esse exílio, afirmando que deveria sair antes de Barbacena partir novamente para a Europa, em julho, para que os que fossem no navio pudessem divulgar que ela já não se encontrava mais no Rio de Janeiro. Em 23 de maio, d. Pedro partiu para a fazenda do irmão de Barbacena, o visconde de Gericinó, que ajudaria Domitila nos preparativos de sua viagem. O imperador retornou para a corte no dia 25, estrategicamente livrando-se de duas comemorações: o casamen-to de Francisca, filha de Domitila, e o aniversário de Isabel Maria, realizados no mesmo dia, 24.

Domitila, muito a contragosto e bastante irritada (anexo 5, p. 185), porém embalada pela promessa de rápido retorno que lhe alimentava d. Pedro (carta 95, p. 176), partiu da cidade do Rio de Janeiro em 27 de junho. Por conta de uma indisposição, hospedou-se por quinze dias na fazenda de Gericinó (anexo 8, p. 187). Barbacena efetivamente partiu para a Europa no início de julho. Além de prosseguir na busca de uma nova noiva para d. Pedro, ele tinha a missão de en-tregar a primogênita do imperador, d. Maria da Glória, para ser educada pelo avô em Viena, até ter idade para assumir tanto o casamento com o seu tio, d. Miguel, como o trono de Portugal.

Na primeira quinzena de agosto, Domitila chegava a São Paulo. Antônio Ma-riano de Azevedo Marques, o “Mestrinho”, advogado paulista, assim deixou regis-trado o acontecimento em carta para seu irmão:

A marquesa chegou na tarde de 15, com pouco acompanhamento, dizem que por querer vir a galope, e, por isso, ficaram atrás os do encontro.

O Carmo e Santa Teresa repicaram ao passar ela por essas igrejas, dizem que por pedido do bispo, que foi esperá-la em casa e é quem a hospedou, dizem que bem mal acerca dos arranjos a ponto de não ter ela bolinhos para virem com o chá, vendo-se na necessidade de dar satisfação às visitas.

Ela muito tratável, muito queixosa de suas patrícias pela pouca amizade que lhe têm mostrado. Veio também a filha e José de Castro, e diz que está mui pren-dada... Hoje grande baile do Xico de Castro, em obséquio à irmã.53

Em 7 de setembro, Domitila, em vestido de corte, aturdindo os matutos paulistas com as sua joias, deu um baile em homenagem à Independência do Brasil. No mês seguinte, em 25 de outubro, Maria Isabel, a filha de um ano e dois meses que havia sido tomada por d. Pedro, morreu de meningite e foi enterra-da na igreja de São Francisco Xavier, no Engenho Velho. Farta de seu degredo, Domitila escreveu para d. Pedro, comunicando que partiria de volta para o Rio

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de Janeiro em 23 de dezembro (anexo 9, p. 188). Se nessa mensagem a marquesa queixava-se da falta de cartas do amante, estas não se fizeram esperar. Foi o início de uma correspondência ríspida (carta 96, p. 177), em que o imperador exigia ser obedecido, e para isso não poupava nem a mãe de Domitila, que receberia a seguinte advertência:

Uma pessoa que saiu do nada por meu respeito devia, por um reconhecimento eterno, fazer o que eu lhe tenho até pedido. [...] seu fim é inteiramente opor-se ao meu casamento [...], mas eu lhe declaro, mui expressamente, que, se a marquesa se apresentar no Rio sem ordem minha, eu suspendo-lhe as mesadas, a ela e a toda aquela pessoa de sua família que influi para este sucesso, bem como a demito de dama e privo de entrarem no Paço seus parentes.54

Aflita, dona Escolástica, respondeu:

Com a maior mágoa li a carta de V. Majde. que me pôs na mais grande perturba-ção por ver o quanto V. Majde. se aflige com o recebimento da carta da Marquesa [...]. Não é de supor, Senhor, que ela dê um passo tão inconsiderado [...] por mim está prevenida, muito de antemão, para não dar um só passo sem positiva deter-minação de V.M.I. [...] Sinto meu senhor, e sinto n’Alma, que uma produção de meu desgraçado ventre viesse ao mundo para dar motivos de inquietações a V. Majde. (anexo 10, p. 189).

O Chalaça mostraria ao barão de Mareschal tanto as cartas de Domitila quan-to as respostas de d. Pedro, como que para informar ao bisbilhoteiro-mor da corte sobre a resolução do monarca em levar uma nova vida e esperar pacientemente pela nova esposa.

Enquanto isso, o marquês de Barbacena chegava a Gibraltar, no começo de setembro. Lá ficou sabendo do golpe dado por d. Miguel em Portugal, o que fez com que mudasse seus planos. Em vez de entregar d. Maria da Glória para a co-missão austríaca que a esperava em Gênova, partiu para a Inglaterra. Desde o ano anterior o marquês já desconfiava das intenções da Áustria em conseguir uma nova esposa para o soberano brasileiro. Se d. Pedro se casasse novamente e tivesse outros filhos homens, no caso da morte do príncipe herdeiro, não seriam as filhas de Leopoldina a herdar o trono brasileiro, conforme a Constituição imperial. Com a traição do irmão, também d. Pedro passaria a suspeitar do apoio da absolutista Áustria nos negócios de Portugal. Assim, escreveu ao sogro, para despistar, infor-

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mando que os negócios portugueses eram agora mais importantes que os projetos de um segundo casamento.

Barbacena ainda passaria por outros constrangimentos na Europa, mas não envolvendo casamento, e sim paternidade. Clemência Saisset e o marido, comer-ciantes da rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, embarcaram em dezembro para a França às pressas, já que ela estava grávida de um filho de d. Pedro (anexo 17, p. 199). Esse casal inescrupuloso haveria de tentar sangrar os cofres particulares do imperador até as vésperas da morte dele.55

Diversas minutas encontradas no Arquivo Histórico do Museu Imperial mos-tram que d. Pedro, abatido pelas recusas, estava indeciso em continuar buscando uma noiva. Após tomar conhecimento do “não” de uma filha do rei da Dinamarca, que se somaria a sete outras negativas, inclusive à de uma princesa que nem havia sido pedida, d. Pedro autorizou o retorno de Domitila para a corte e, em 20 de abril de 1829, partiu para a fazenda de Santa Cruz para esperá-la no caminho. No dia 29 ela entraria novamente em seu palacete de São Cristóvão. Seu apogeu deu-se no dia do aniversário da duquesa de Goiás, duplamente comemorado: d. Pedro ofe-receu uma recepção no Palácio de São Cristóvão, Domitila preparou um banquete para sessenta pessoas, ao qual o imperador compareceu.

Enquanto d. Pedro e Domitila reatavam publicamente, na Europa Barbace-na continuava com suas negociações para encontrar uma noiva para o impera-dor. Em 30 de maio finalmente assinaria o contrato de casamento com Amélia de Leuchtenberg, princesa bávara, neta da imperatriz Josefina, primeira esposa de Napoleão. No início de julho, chegavam ao Rio de Janeiro as primeiras notícias a respeito do noivado e um retrato da bela Amélia, que reunia três das quatro qualidades exigidas por d. Pedro para a nova esposa: virtude, cultura e beleza. Após tantas recusas de princesas de casas reinantes, nascimento, a quarta exigên-cia, passara a ser secundário. Com a chegada do contrato de casamento, no dia 24, intempestivamente d. Pedro mudou-se para a residência de Botafogo, afastando-se da vizinhança de Domitila. Assim iniciava medidas necessárias para o banimento definitivo da amante da corte.

Mas, dessa vez, a marquesa resistiria (anexos 14 e 15, p. 195). Fincou o pé: já havia sido exilada uma vez e, depois de se acostumar com a vida na corte, ser amada publicamente pelo imperador, ter as filhas reconhecidas por ele, São Paulo não mais lhe bastava.

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9. Gravura representando o pedido de casamento feito pelo marquês de Barbacena em nome

de d. Pedro I. Da esquerda para a direita: Barbacena, o retrato de Pedro I ao fundo, Augusto

de Leuchtenberg, irmão da princesa Amélia, Augusta, mãe deles, e Amélia por último.

10. D. Amélia de Leuchtenberg, imperatriz do Brasil.

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Pensava conhecer o homem com que tivera relações durante sete anos e a quem dera quatro filhos. D. Pedro, porém, estava enfeitiçado pela imagem da jovem virgem bávara de dezessete anos, cujo retrato levava consigo,56 e já tinha tomado a resolução de se livrar da amante. A luta que se seguiu foi entre titãs. O imperador chegou a enviar até o ministro José Clemente Pereira para negociar a retirada de Domitila, transformando o fim do relacionamento em negócio de Estado. Nem mesmo apelando para a intercessão e o bom senso dos parentes d. Pedro conseguiu demovê-la. Por fim, retirou seus criados e escravos da moradia da antiga favorita, e a marquesa, no palacete vazio, foi intimada oficialmente pelo ajudante de ordens do imperador para que se retirasse da corte em uma semana. Em meados de agosto, exaurida, Domitila capitulou. Concordou em vender suas propriedades para o imperador e retirar-se com a família para São Paulo (anexo 16, p. 197). No dia 28, o Diário Fluminense dava conta de sua partida na véspera. Seus móveis foram despachados em 6 de setembro para Santos, a bordo do na-vio União Feliz, nome irônico para um fim tão amargo. Porém, além da família, alguém mais a acompanhava a São Paulo. Domitila esperava o último filho que teria de d. Pedro.

Assim como d. Leopoldina doze anos antes, a princesa Amélia desembarcaria no Arsenal da Marinha, no Rio de Janeiro, em 16 de outubro, casando-se com d. Pedro no dia seguinte. Vinha acompanhada do irmão, Augusto, futuro genro do imperador. A nova esposa trazia consigo, além do enxoval, brinquedos para os filhos de d. Leopoldina e uma carta de sua mãe, a duquesa Augusta de Leuchten-berg, para d. Pedro, datada de 3 de agosto, onde se lê:

[...] meu filho, porque ouso, agora, vos dar este doce nome, afastai dela o que lhe possa dar a ideia de uma falta passada, a fim de não aterrorizar no futuro esse jovem coração, que é a própria pureza.57

Em novembro, o que poderia “dar a ideia de uma falta passada”, a pequenina duquesa de Goiás, com apenas cinco anos, embarcou para a Europa para estudar no Sacré Coeur, em Paris. Domitila nunca mais veria essa filha.

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11. Isabel Maria de Alcântara Brasileira, duquesa de Goiás.

Isabel Maria casou-se mais tarde, sob o patrocínio de d. Amélia, na nobreza alemã, contrariando a vontade de d. Pedro, que era vê-la freira.58 Graças à interces-são da ex-imperatriz, a menina conseguiu um bom dote, tendo contribuído para a “vaquinha”, além da madrasta, seus meios-irmãos d. Pedro II e d. Maria II, rainha de Portugal. O sangue de Domitila corre nas veias desses descendentes bávaros até hoje.

Em 28 de fevereiro de 1830, nasceu em São Paulo a segunda Maria Isabel de Alcântara Brasileira, última filha de d. Pedro e da marquesa. A criança foi batizada em 24 de maio de 1831 pelo bispo de São Paulo. Em sua certidão, consta que ela foi exposta na casa de sua avó, a viscondessa de Castro, mãe de Domitila. Segundo a própria Maria Isabel, já idosa, em carta biográfica a uma amiga, essa decisão foi tomada por sua mãe para facilitar um futuro reconhecimento de d. Pedro. Apesar de alguns afirmarem que ela não seria filha do imperador, ele assumiu-a em di-versas ocasiões (anexo 17, p. 199), entre elas na carta que enviou59 em 1831, já no

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exílio, pedindo que Domitila mandasse a menina para ser educada na Europa. A marquesa diplomaticamente recusou a oferta afirmando que, se a filha fosse, ela, como mãe, iria acompanhá-la. Tendo espírito esportivo, d. Pedro deve ter achado graça nessa resposta irônica. Se a presença de Domitila na corte, como bem ela ti-nha consciência, já havia sido um estorvo para os planos do imperador de casar-se novamente, imagine-se o que aconteceria se ela desembarcasse na Europa carre-gando mais uma filha dele.

12. Maria Isabel, condessa de Iguaçu.

Após a morte de d. Pedro em 1834, d. Amélia, sua viúva, tentará fazer cum-prir a vontade do marido lavrada em testamento: “Aquela menina [...] que nasceu na cidade de São Paulo, no Império do Brasil, no dia vinte e oito de fevereiro de mil oitocentos e trinta, e desejo que esta menina seja chamada à Europa para receber igual educação à que se está dando a minha sobredita filha, a duquesa de Goiás.”

A marquesa recusaria mais uma vez, alegando que, além de a filha não lhe ser nenhum fardo, era doente e precisava de seus cuidados. Maria Isabel havia herda-do a epilepsia do pai.

A caçula de d. Pedro e Domitila casou-se com Pedro Caldeira Brant, conde de Iguaçu. Nova ironia do destino: Pedro era filho do marquês de Barbacena — o “Santo Antônio do Paço de São Cristóvão”, como o apelidou Carlos Maul — que

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tanto contribuíra para a separação do casal de amantes. Infelizmente, a condessa de Iguaçu não teve a mesma sorte da duquesa de Goiás. Não foi feliz no casamento, porém deixou marca profunda no coração do jovem poeta Álvares de Azevedo.60

Domitila, convivendo durante sete anos com o homem mais importante do Brasil, aprendeu muito mais do que se vestir e se enfeitar. Com ele conheceu a política e a diplomacia. Seu retorno definitivo para São Paulo fez com que a cidade rapidamente se dividisse entre “marquesistas” e “antimarquesistas”. Entre os “mar-quesistas” estavam seu cunhado, Carlos Oliva, comandante de armas da cidade, e o bispo de São Paulo, seu amigo pessoal. Mostrando a têmpera de que era feita, a marquesa conquistou justamente um dos líderes dos “antimarquesistas”, o briga-deiro Rafael Tobias de Aguiar, rico tropeiro sorocabano e líder do Partido Liberal, duas vezes eleito presidente da província de São Paulo, cargo equivalente hoje ao de governador do estado. O casal teve seis filhos em um relacionamento que durou mais de vinte anos. Juntos desde meados da década de 30 do século XIX, casaram--se somente no final da Revolução Liberal, em 14 de junho de 1842, no oratório da casa da mãe de Aguiar, d. Gertrudes, em Sorocaba. Serviu como testemunha o senador padre Diogo Antônio Feijó.

Ao contrário do que se poderia pensar, Tobias de Aguiar não se envergonha-va de Domitila. Se esperou os últimos momentos para se casar, foi porque ela é que não queria unir-se novamente em matrimônio. As facadas de Felício,61 o primeiro marido, ainda deviam doer-lhe. Tobias de Aguiar carregava consigo uma portaria assinada pelo bispo de São Paulo,62 com autorização para se casarem em qualquer paróquia paulista, dispensadas as formalidades de estilo, mas a marquesa só acei-tou oficializar o relacionamento por necessidade. Como esposa, ela poderia seguir o brigadeiro na sorte que tivesse. Depois de capturado no Sul, Aguiar foi enviado preso para o Rio de Janeiro. Domitila, a antiga favorita imperial, acostumada com os faustos do Primeiro Reinado, voltaria à corte por um motivo bem menos gla-moroso. Por meio de um intermediário, solicitou ao filho de seu amante, o impera-dor d. Pedro II, autorização para viver junto com Aguiar na prisão a fim de cuidar do marido doente. Mas isso já é um outro livro...

E assim termina a história de um caso de amor que até hoje ainda causa des-conforto e muita curiosidade...

Mas um instante ainda!As cortinas abrem-se. O cenário: o Rio de Janeiro de quase duzentos anos

atrás. Os personagens: os eternos amantes de São Cristóvão, que são vistos nova-mente entre arrulhos amorosos e ataques de ciúmes. Silenciosamente, venha co-migo. Vamos espiar!

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5 6 T I T Í L I A E O D E M O N Ã O O s A M A N T E s 5 75 6 T I T Í L I A E O D E M O N Ã O O s A M A N T E s 5 75 6 T I T Í L I A E O D E M O N Ã O O s A M A N T E s 5 7Planta da cidade do Rio de Janeiro, 1820, autor Jacques Arago.

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Cartas

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Critérios utilizados

Quanto à datação

Diferentemente das cartas trabalhadas por Alberto Rangel, das 94 que descobri-mos na Hispanic Society apenas 23 eram datadas. Em vez de apresentar uma edi-ção com as missivas organizadas por temas, preferimos o desafio de criar uma linha sentimental que se aproximasse o mais possível da cronológica.

Analisando as cartas datadas que até então haviam sido publicadas, achamos alguns padrões: se na despedida d. Pedro chega à monotonia, com o seu “fiel, ami-go, amante, desvelado etc.”, o mesmo não acontece com outros elementos, como a assinatura (“Demonão”, “Fogo Foguinho”, “Imperador”, “O Imperador” e “Pedro”) e principalmente o vocativo (“Titília”, “Meu Amor”, “Meu Bem”, “Querida Filha”, “Filha”, “Querida Marquesa”). As formas como d. Pedro chama sua amante e como ele assina, somadas a fatos históricos e situações familiares conhecidas menciona-das nas cartas, permitiram, na maioria das vezes, identificar o ano e até a quinzena do mês em que foram escritas.

As cartas publicadas na edição da Nova Fronteira também ajudaram a esta-belecer o critério adotado para a datação dos vocativos utilizados, assim como as “conversas” existentes entre algumas das apresentadas nesta obra e as já publicadas anteriormente.

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Assim, para fixar as cartas não datadas em espaços de tempo delimitados, foram levados em conta os seguintes fatores:

Vocativos:

1823: “Nhá Titília”, “Minha Titília”.1824 (aproximadamente primeiro semestre a meados do segundo semestre): “Meu bem”.1824 (aproximadamente segundo semestre) a 1825 (aproximadamente segundo semestre): “Meu amor e meu encanto” e “Meu amor”.1825 (final do segundo semestre) a 1826: “Meu amor, Minha Titília”, “Meu amor do meu coração”. 1827 (até outubro): “Minha filha” e “Querida amiga do coração”.1827 (de outubro a dezembro): “Filha”.1827 (dezembro) até 1829: “Querida Marquesa”.

Algumas vezes, no final de 1827, aparecem cartas em que d. Pedro usou os vocativos “Marquesa” ou “Querida Marquesa”. São cartas formais, onde transpare-ce a tentativa inútil de iludir a quem o visse escrever. É desse período uma mensa-gem em que ele afirma não ter escrito antes, pois o Chalaça, seu secretário, estava na mesma sala (carta 58, p. 140).

Assinaturas:

De 1822 a 1825: “O Demonão” (aparece em todo o período), “Fogo Fogui-nho” (1823), “Imperador” (pontuado ao longo do período, surge com maior fre-quência em 1825).

De 1823 a 1828: “Imperador” ou “O Imperador”, variando a despedida de “seu amigo”, “seu amante”, ao mais formal em 1827 e 1828, “seu amo e senhor”.

Em meados de 1828 e em 1829, ele assina apenas como “Pedro”, do mesmo modo como assinaria a abdicação, em 1831.

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Quanto à transcrição das cartas

As grafias das palavras foram atualizadas e, em alguns casos, corrigidas. A pontuação foi alterada para melhor compreensão do leitor. Algumas passagens inteiras originariamente não continham vírgulas, por exemplo, como nesta carta:

Francisco Manuel diz que são dentes que já receitou e que se não façam mais remédios além dos que ele disse [...]. Que se lhe desse cozimento branco um caldo e quando vomitasse alguns goles de água fria [...].

Na transcrição:Francisco Manuel diz que são dentes, que já receitou e que se não façam

mais remédios além dos que ele disse [...]. Que se lhe desse cozimento branco, um caldo, e quando vomitasse, alguns goles de água fria [...].

O sinal de igual (=) e os sublinhados utilizados por d. Pedro para chamar a atenção para algo, foram mantidos. A maneira de o imperador escrever números em algarismos, seguindo imediatamente a forma por extenso, foi simplificada. Por exemplo: “1 hum”, foi padronizado como “um”.

Não se alterou a forma das cartas. Manteve-se a paragrafação, os vocábulos curiosos, o modo como ele as datava. No caso de palavras utilizadas por d. Pedro cujo sentido não seja comum nos dias de hoje, foi feita breve nota explicativa. Para facilitar o entendimento de algumas frases, foram inseridas palavras, que se en-contram entre colchetes []. E, finalmente, atendendo ao pedido do próprio Alberto Rangel, lançado no distante ano de 1916 e direcionado para quem encontrasse essas 94 cartas perdidas:

Nada de emendas ou de ortopedismos, e principalmente nenhuma supressão. De certos animais tudo se aproveita. [...] Nos segredos da alma que não se resguardou estão as chaves de sua decifração. Decifrar é compreender.1

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1823

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Esta noite passei bem, só acordei quando me voltaram por causa de algumas dores que ainda tenho nas costelas, contudo já da perna estou consideravelmente melhor.

Tomara eu que os ladrões dos médicos deixassem já de cá dormir, para você me vir cá visitar com o Nhô Xico (1) conforme lhe mandei dizer, o que por ora não pode ser, em consequência do acima exposto.

Dê-me recados a sua mãe (2) e a seu pai (3) e a seu mano Carrollos (4) e a Nhá Cândida (5), agradeça-lhe o cuidado que tem em mim. Se precisas [de] alguma coisa deste aleijado, mandes dizer que ele fará todas as diligências para desempachar como quem é de você seu

Fogo Foguinho

(1) O “Nhô Xico” é Francisco de Castro do Canto e Melo, irmão mais novo de Domitila. Após acompanhar d. Pedro na viagem do Rio para São Paulo em 1822 e ter testemunhado a proclamação da Independência, em 7 de setembro, tornou-se amigo pessoal do imperador, que chegou a ser padrinho de um de seus filhos.

(2) Escolástica Bonifácia de Toledo Ribas (1765-1859). Natural de São Sebas-tião, São Paulo. Está enterrada no mesmo túmulo que a filha, Domitila, no cemi-tério da Consolação, em São Paulo. Casou-se em 1784 na Sé de São Paulo com o militar João de Castro do Canto e Melo (3) (1740-1826). Natural da ilha Terceira, nos Açores. Visconde de Castro em 12/10/1826.

(4) Carlos Maria Oliva (1791-1847). Militar, chegou ao posto de brigadeiro. Em São Paulo, como comandante de armas, em 1830, prendeu os acusados de as-sassinarem o jornalista liberal e médico italiano Líbero Badaró. Era casado desde 1812 com Ana Cândida (1795-1847), irmã de Domitila, a quem d. Pedro chama nas cartas de “Nhá Cândida”.

(5) O imperador foi padrinho de dois de seus filhos, Leopoldina e Pedro.

Em 30 de junho de 1823, segundo relatório enviado à Assembleia Constituin-te em 8 de julho, o cirurgião da Imperial Câmara e assistente de Sua Majestade o Imperador, dr. Domingos Ribeiro dos Guimarães Peixoto, relatava:

1

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Vindo Sua Majestade Imperial da sua chácara, denominada Macaco, no dia segun-da-feira último de junho, quase pelas 6 horas da tarde, aconteceu que ao chegar à ladeira perto do paço de S. Cristóvão, como corresse o selim tanto para a garupa do cavalo em que vinha, pela razão de estarem as silhas traseiras mui largas, que estas ficaram nas virilhas do animal, que se corcoveava e desabridamente corria, Sua Majestade Imperial, receando resvalar juntamente com o selim e ser, em con-sequência, maltratado pelos muitos e violentos coices, sobretudo faltando-lhe o apoio da crina por se ter esta arrebentado e à qual lançara a mão, tomou a resolu-ção de deitar-se abaixo, o que fez para o lado esquerdo.

Depois de uma queda tão considerada, batendo com as costas em cheio so-bre barro duro, não obstante levar de encontro o braço esquerdo, [...] soldados do telégrafo, que logo o acudiram e seguraram até que chegou Sua Majestade, a Imperatriz, acompanhada de seu criado, que ajudaram Sua Majestade Imperial a recolher-se ao paço [...] subiu a escada [...] seguro tão somente a uma bengala, como observei, quando o vi [...].

Na queda, d. Pedro fraturou duas costelas e a clavícula esquerda e contundiu o quadril. Nesse relatório, o médico finalizava dizendo que, passados nove dias, o monarca encontrava-se recuperado. D. Leopoldina, em carta1 de 9 de julho a seu pai, o imperador Francisco I da Áustria, faz eco ao médico, informando que o marido estava melhor.

Em 15 de julho, Plácido Antônio Pereira de Abreu, servidor do paço im-perial, recebeu uma carta e uma ameaça: sua vida correria perigo se ele não entregasse aquela mensagem para o imperador. Desesperado, não só cumpriu sua parte do combinado como, sem saber a quem comunicar, mandou publicar no dia seguinte, no Diário do Rio de Janeiro, que fizera a entrega a d. Pedro. A mensagem, escrita em alemão, foi traduzida por d. Leopoldina. Infelizmente o con teú do não é conhecido até hoje, mas a reação do imperador, sim. Mandou chamar José Bonifácio e, enquanto este conversava em uma sala com a impe-ratriz, saiu do palácio junto com soldados armados. Foi até a cidade, invadiu a sede do Apostolado, uma espécie de confraria paramaçônica criada pelos irmãos Andrada, na qual o imperador tinha o título de arconte-rei, encerrou a sessão que estava sendo realizada, apreendeu todos os papéis e fechou definitivamente a sociedade. Voltando ao Palácio de São Cristóvão, confrontou-se com José Bo-nifácio. No dia seguinte o ministro demitiu-se, assim como seu irmão, e a irmã deles do posto de dama da imperatriz.

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Quiseram os detratores de d. Pedro transformá-lo em marionete, ora com José Bonifácio a manipular as cordas, ora com Domitila de Castro. Os próprios Andradas ajudaram a criar o mito, alegando, como um dos motivos para sua que-da, a influência da amante paulista do imperador. O fiel paladino andradista An-tônio Menezes de Vasconcelos Drummond, nas suas Anotações,2 38 anos após o episódio, se prestaria a encarnar um velho ditado russo: “Ele mente como uma testemunha ocular”. Como se não bastasse afirmar que Domitila estava no quarto ao lado quando Bonifácio foi demitido, ainda acusou-a de receber suborno dos paulistas para conseguir o perdão dos participantes da “Bernarda de Francisco Inácio”. Ciente do fato, e não conseguindo impedir que d. Pedro anistiasse seus inimigos políticos, José Bonifácio teria pedido demissão. O curioso da narrativa do velho conselheiro Drummond é que ele afirma ter documentos que provariam tudo que diz, porém estes teriam desaparecido num incêndio. Mas esse simples de-talhe não impediu que centenas de historiadores repetissem suas histórias, muitas vezes de segunda ou terceira mão, sem conhecer a fonte, ampliando o mito ao re-dor de Domitila. Como alguém chegada há menos de cinco meses de São Paulo, e encontrando-se às escondidas com o imperador poderia ter alcançado tal nível de influência política e domínio, a ponto de fazer um soberano demitir seu principal homem de confiança?

A primeira carta transcrita nesta edição mostra que Domitila só seria bem- -vinda ao Palácio de São Cristóvão acompanhada do irmão, e mesmo assim se não houvesse muitas pessoas por perto. Está muito longe da afirmação de Drummond:

[...] retido no leito, essa mulher foi admitida com inaudito escândalo no seu quar-to e começou logo a imperar.

A inglesa Maria Graham, que, além de Melo Morais, comenta sobre a carta entregue a Plácido, acredita ser verdade que o imperador “durante seu isolamento em razão do acidente, ficara sem ver Mme. Castro”.3 Seria difícil a estada de Do-mitila sem que alguém notasse: Graham informa sobre a fila na frente do palácio aguardando por notícias do imperador, e existem relatos das visitas oficiais que d. Pedro recebia, como a dos deputados da Assembleia Constituinte. Com tempo e disposição, tomou conhecimento do que ocorria no resto do país, sem passar pela filtragem do Ministério, o que permitiu ao imperador saber realmente o que ocor-rera em São Paulo durante a bernarda e as duras medidas que os Andradas haviam tomado contra seus inimigos. Tal hipótese é defendia por alguns historiadores, como Octávio Tarquínio de Sousa.

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Um fato curioso é o idioma em que a mensagem estaria escrita. Oyenhausen--Gravenburg, o ex-capitão-general de São Paulo, e Daniel Pedro Müller, participan-tes da bernarda paulista, eram filhos de alemães servidores da coroa portuguesa. Ambos encontravam-se no Rio de Janeiro à época, afastados de São Paulo, en-quanto o gabinete dos Andradas realizava uma devassa sobre a revolta ocorrida em 1822. Anistiado, Oyenhausen-Gravenburg seria futuramente contemplado com o título de visconde de Aracati. Já como marquês, em 1828, ocuparia as pastas da Marinha e das Relações Exteriores. Foi um dos articuladores do tratado de paz entre o Brasil e a Argentina, dando fim à Guerra da Cisplatina. Müller voltaria para São Paulo, onde exerceria novamente suas funções de engenheiro militar, atuando na formação de jovens técnicos no recém-criado Gabinete Topográfico.

Nhá Titília,

Desejando eu que, quando mecê apareça publicamente, apare-ça bem-vestida, e decente: aí lhe mando essa peça de touquinha, mais renda, para que as mande fazer em um vestido com guarni-ções brancas na última moda, e como mecê o não saberá fazer, bom, será bom que Boaventura (1) a leve à casa da modista Ma-dame Josefine (2), para que ela lhe tome a medida, e saia uma obra boa. Espero que isto faça para se apresentar na Glória ener-vando todas que lá aparecerem.

Para esse dia já terei as ametistas (3) postas em bom adereço completo que fica obra digna de quem a dá, e de quem a recebe.

Aceite os protestos de estima

Deste seu amante O Fogo Foguinho

(1) Boaventura Delfim Pereira (1788-1829), barão de Sorocaba. Era casado com Maria Benedita (1792-1857), irmã mais velha de Domitila.

(2) Madame Josefine foi uma das mais famosas modistas do Primeiro Reina-do. Estabeleceu-se entre 1823 e 1824 na rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro. Teria criado vestidos para a imperatriz d. Leopoldina e para “todas as senhoras da corte, e, portanto, de quantas outras senhoras tinham pais e maridos dispostos a pagar

2

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frequentemente a habilidade e a fama da modista, cuja tesoura de imperial predi-leção cortava cara e desapiedadamente”.4

(3) Trata-se, provavelmente, das 14 grandes ametistas que foram utilizadas para montar o famoso colar que pertenceu a Domitila e que hoje se encontra no Museu Imperial, em Petrópolis.

13. Colar de ametistas, presente de Pedro I para Domitila de Castro.

Museu Imperial/IBRAM/MinC, Rio de Janeiro

A fama de d. Pedro como sovina entra em confronto com esses arranjos. Ves-tidos, joias, tudo para que a provinciana paulista por quem se apaixonara não pa-recesse inferior a qualquer outra dama no teatro, na igreja ou em eventos públicos. Embaixadores estrangeiros registrariam, ao longo do relacionamento entre ambos, que ela parecia mais bem vestida que a própria imperatriz em certas ocasiões.

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Alguns biógrafos de d. Pedro já notaram que o linguajar usado por ele ao escrever para seus filhos não levava muito em consideração as idades deles. Isso pode ser observado nas cartas dirigidas ao futuro d. Pedro II. O mesmo ocorre quando escreve para Domitila. O imperador chega a utilizar expressões em latim e fazer brincadeiras que provavelmente ela só viria a entender algum tempo depois, talvez só mesmo em São Paulo, anos após a morte de seu amante, ao relê- las. As cartas dela para ele, que são raras, mostram uma pessoa não muito instruída. D. Pedro parecia amá-la a ponto de elevá-la, criá-la, ensiná-la.

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1824

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14. Calendário Perpétuo Alegórico dedicado a d. Pedro I.

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Meu bem,

Assento que será melhor um dia fazerem-se lá (1) as sombrinhas para mecês verem, pois aqui lhe é mui dificultoso, com especiali-dade hoje que é noite de lua (2) e, portanto, não vai a sege (3), e eu irei depois de tudo acabado. Graças a Deus vou bem, e sempre pronto para a servir como quem é

Seu amanteO Demonão

(1) D. Pedro invariavelmente usa “lá”, em vez de “aí”, quando se refere à casa de Domitila.

(2) A única explicação que ocorre para esse bilhete seria a possibilidade de estarem falando sobre teatros de sombras ao ar livre, o que seria difícil devido à luz da lua.

(3) Carruagem pequena, de um só assento, provida de dois varais, cortina de couro na frente, dotada de duas rodas e puxada por dois cavalos. Nas laterais, pequenas vigias permitiam ao passageiro ver a paisagem.

Meu bem,

Faça-me o favor de enviar pelo portador deste o seu fio de pedras brancas e mais os brincos, que é para se arranjar no toucado.

Seu amanteDemonão

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Meu bem,

Desejo saber se passou bem a noite. Eu logo que me deitei fui pedra em poço; mas quando me levantei, e agora mesmo, ainda estou sentindo alguma coisa.

Adeus, até à noite,Seu amante

Meu bem,

Cumprindo com o prometido, e com os deveres não só de aman-te, mas até de amigo: lhe dou parte que passei bem; mas sonhei alguns sonhos que me mortificaram, todos relativos à nossa cara Pátria (1), à qual desejamos sumas venturas.

À noite lá irei, e o mais cedo que puder, para ter o gosto de gozar da sua tão amável companhia, e que até se faz precisa para a existência.

Deste seu desvelado amanteO Demonão

(1) A Guerra da Independência, mais aguerrida no Nordeste e no Sul, só terminaria no início de 1824, ano em que estourou a Confederação do Equador. Além dos problemas internos, era preciso também lutar pelo reconhecimento do Império Brasileiro e por um tratado de paz com Portugal, o que só ocorreria no segundo semestre de 1825 com a intervenção da Inglaterra, visando à prorroga-ção do tratado que lhe concedia benefícios comerciais de que gozava no Brasil desde 1810.

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Meu bem e meu tudo,

Dormi muito bem de noite, assim lhe acontecesse. Aí vão es-ses morangos para a nossa ceia, que há de ser mais substan-cial, mas muito menos saborosa que a de ontem, comida em camarote. Agora vou para o Macaco (1), e à noite lá vou ser o Seu Mico. Tenha os puros votos da mais cordial amizade que lhe consagra

Este luxurioso, o seu amanteO Demonão

P. S.Por mais que me apure para ter graça, nunca chegarei aos cal-canhares do desengraçado Francisco Alves (2); mas espero não digo bem, mas apesar da sensaboria caí mais em graça do que ele.

(1) A Imperial Quinta do Macaco, assim como a fazenda Santa Cruz, era uma antiga possessão jesuíta que passou a pertencer à coroa e posteriormente à família imperial, após a expulsão da Companhia de Jesus pelo marquês de Pom-bal no século XVIII. Com a morte de d. Pedro I, a fazenda foi herdada por sua viúva, a imperatriz Amélia, que a vendeu para o barão de Drummond, o criador do jogo do bicho. Este urbanizou e loteou o local, dando origem ao bairro de Santa Isabel.

(2) Joaquim Francisco Alves Branco Muniz Barreto (Bahia, 1801-85)?

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Meu único bem,

Sinto infinito que ainda esteja com dores de cabeça, mas espero (Deus queira) que mecê fique aliviada desse incômodo, que dos incômodos é dos maiores. Mande-me dizer se quer que eu mande vir o Peixoto (1), pois bem vê o quanto é necessário atalhar com tempo qualquer incômodo, que pode de nada tornar-se funesto (o que Deus não permitirá), para que tenha satisfação de a ver sempre boa, e gozar da sua tão agradável companhia.

Este seu desvelado, constante, fiel, verdadeiro e agradecido até a morte

O Demonão

P. S.Farei todas as diligências para ir saber de mecê pessoalmente. O mais cedo possível.

(1) Dr. Domingos Ribeiro dos Guimarães Peixoto (1790-1846), barão de Iguaraçu, cirurgião-mor do Império. Médico da família imperial, amigo íntimo de d. Pedro. Em 16 de setembro de 1827,1 foi para Paris aperfeiçoar-se em Medicina, acompanhando Felício, filho do primeiro casamento de Domitila, que ia continuar seus estudos. Como ele realizou alguns dos partos de d. Leopoldina, a preocupa-ção com o estado de Domitila faz imaginar que a carta seja do período em que ela se encontrava grávida de Isabel Maria, futura duquesa de Goiás.

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15. Carta de d. Pedro I para Domitila de Castro. Rio de Janeiro,

circa 1824. Hispanic Society of America, Nova York.

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Meu bem,

Desejo, pelo muito que me interesso pela sua saúde, [que] me mande dizer como passou do seu incômodo da cabeça, e junta-mente como passou a nossa Belinha (1), que de mecê será in-separável até ter idade de aprender, e mecê querer. Eu graças a Deus passei menos mal, mas ainda acordei com dores de cabeça e nos olhos; acho-me agora melhor. Ontem mesmo fiz amor de matrimônio para que hoje, se mecê estiver melhor e com dispo-sição, fazer o nosso amor por devoção (2). Aceite, meu benzi-nho, meu amor, meu encanto e meu tudo, o coração constante

Deste seu fiel amanteO Demonão

P. S.Mande as pulseiras.

(1) Isabel Maria de Alcântara Brasileira, filha de d. Pedro e Domitila, nasceu em 23 de maio de 1824. Foi reconhecida pelo imperador em maio de 1826, quando recebeu o título de duquesa de Goiás. Em 23 de outubro de 1842, casou-se com Ernesto Fischler, conde de Treuberg e barão de Holzen. Faleceu em Murnau, na Baviera, em 3 de novembro de 1898, deixando descendência.

(2) Já ia longe agosto de 1822, quando eles tiveram a primeira relação sexual, e d. Pedro ainda parecia um apaixonado. Impossível acreditar que não fosse. Se d. Leopoldina era a mãe oficial, a imperatriz, Domitila era a mulher carnal, a amante. A esposa, intelectual, conversava com botânicos, viajantes, naturalistas e sábios como José Bonifácio. Domitila, o oposto, receberia pouco antes de sua morte a mulher do cônsul da Inglaterra, Isabel Burton, sentada descalça, no chão de terra batida de sua cozinha, fumando cachimbo. Com o gênio e a educação de d. Pedro, relacionar-se com a paulista era mais simples do que com alguém que colecionava minerais, estudava conchas, conversava em diversos idiomas e que, de igual para igual, tratou com seus parentes europeus como imperatriz da nova pátria logo após a Independência, ajudando o marido no possível para que a Europa reconhe-cesse o nascente Império brasileiro.

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Meu benzinho,

Desejarei que me mande notícias suas, e da nossa Belinha. O Vicentinho (1) está muito doente, vomitando e obrando imenso. Estou com bem cuidado nele, pois o médico não me respondeu se ele escapava, só sim que o ia ver, e depois me diria. Peço-lhe, meu amor, perdão se ontem a escandalizei (2). Eu, meu bem, jamais a desejo escandalizar, antes busco todos os modos de obsequiá--la. Espero, meu bem e meu tudo, que me perdoe, pois está aflito, enquanto lhe não perdoar, o coração.

Deste seu constante e fiel amante que tudo lhe ofertou

O Demonão

(1) Em nenhuma outra carta já publicada, ou nestas inéditas, aparece qual-quer referência a Vicente ou Vicentinho. Nem ele, nem Domitila, tiveram nenhum filho com esse nome. O fato de d. Pedro relacionar-se facilmente e preocupar-se com assuntos administrativos de sua casa, com seus criados, colonos e escravos de suas propriedades, abre um leque de infinitas possibilidades.

(2) Escandalizar: “Ofender, causar escândalo com mau exemplo, com pa-lavras indecentes, ímpias e ações indecentes”.2 D. Pedro não primava pelos bons modos e não se orgulhava por não ter educação. Em carta de 13/12/1827,3 des-culpa-se por ser rude com Domitila, afirmando: “[...] a fruta é fina, posto que a casca seja grossa”.

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16. Carta de d. Pedro I para Domitila de Castro. Rio de Janeiro,

circa 1824. Hispanic Society of America, Nova York.

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Meu bem,

Aí vai o remédio que chegou neste momento da cidade, não me esqueço de nada seu. Já se mandou fechar o teatro (1), apreender papéis e proceder à devassa do que se sabe para meu esclareci-mento. Vai o folheto para José (2) aprender as manobras de cava-laria. Hoje já não trabalha o teatro, e estão todos de boca aberta.

Seu amante, fiel e constante

O Demonão

(1) Na segunda quinzena de setembro de 1824, Domitila passou por seu primeiro vexame público. Tentando assistir a uma apresentação no Teatrinho Constitucional São Pedro, foi proibida de entrar sob a alegação de que precisa-va de convite. Ao saber do incidente, o imperador retirou-se do local. Em 22 de setembro,4 d. Pedro mandou fechar o teatro. Os artistas foram despejados, e seus trajes e cenários alimentaram uma grande fogueira. Armitage5 deixou registrado que o incidente devia-se à “Nova Castro”, uma referência zombeteira ao romance entre d. Pedro I de Portugal e Inês de Castro, que foi rainha depois de morta, su-posta antepassada remota de Domitila.

(2) José de Castro do Canto e Melo, irmão de Domitila, batizado na Sé de São Paulo em 17 de outubro de 1787. Militar, chegou ao posto de brigadeiro.

Meu amor do meu coração,

Eu estou acabando o Conselho (1), e imediatamente ele acabe, remeterei o colarinho pelo qual desejarei que mecê me mande fazer duas dúzias, e igualmente remeterei um lenço para mecê saber o comprimento que devem ter os novos, que deverão ser em número de vinte e quatro.

Seu amante Imperador

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(1) Conselho de Estado. Após a dissolução da Assembleia Constituinte, em 1823, d. Pedro criou o segundo Conselho de Estado, que teve papel importante na elaboração da Constituição Imperial de 1824, a Carta mais duradoura que o Brasil já teve. Esse conselho foi extinto em 1834.

Nunca se soube, até então, que Domitila servia a d. Pedro também como costureira.

Meu amor,

Remeto as amostras escolhidas, e assinaladas com um alfinete. Mande-me notícias suas e da Belinha.

Seu amante fiel e constanteO Demonão

Meu amor,

Mande-me dizer como passou e mais a nossa Belinha. Remeto francamente o seu retrato (1), e espero [que] cumpra a sua pa-lavra, entregando-mo à noite. Vai, também, a água para tomar à noite, como lhe disse, antes de irmos para o banho, o lenço azul para servir de molde para se dobrarem os outros por ele, e, para que mecê veja que a não engano, vai o lenço de seda para que veja que de todo não é irmão do seu apesar de ser semelhante. Aceite o coração e etc.

Deste seu desvelado, verdadeiro, fiel, constante e agradecido amante do coração

O Demonão

P. S.O lenço, mande-mo quando me responder para o levar à tarde a passeio, que será ao Sabino (2).

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(1) No retrato de Domitila, que está atualmente no Museu Histórico Nacio-nal, ela aparece portando a Ordem de Santa Isabel de Portugal, que só recebeu de d. Maria da Glória em 1827. Não é conhecido, até o momento, nenhum outro retrato dela do período em que viveu na corte.

(2) Provável referência ao camarista imperial e escrivão da Fazenda João Sa-bino de Melo e Bulhões Castelo Branco.

Meu amor,

Mande-me notícias suas, e da nossa Belinha. Remeto as luvas e essa doce pera. Aceita o coração

Deste seu constante e fiel amanteO Demonão

Meu amor,

Mande-me dizer como tem passado a nossa querida Bela, produ-to dos nossos sinceros amores.

Bem sabe o quanto se interessa na saúde dela.Este seu fiel, constante, desvelado, agradecido e verdadeiro

amante

O Imperador

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17. Carta de d. Pedro I para Domitila de Castro. Rio de Janeiro,

circa 1824. Hispanic Society of America, Nova York.

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Meu amor e meu encanto,

Como me diz que sua Mãe vai para a Glória (1) até domingo, e me manda perguntar a minha vontade a seu respeito, digo que me parece bem que vá com ela para a Glória, e que volte no domingo para domingarmos. Aceite o meu coração que todo para mecê é amor, sem confeição (2) alguma. Estes os votos que lhe consagra

Este seu amante O Demonão

(1) No número 2 da ladeira da Glória, em uma chácara com uma casa asso-bradada, em meio a jardins e uma fonte, morava a irmã de Domitila, Maria Bene-dita de Castro Canto e Melo.

(2) Íntegro, sem mistura.

18. Ladeira da Glória. Ao alto, à direita, a torre da igreja da Glória.

A irmã de Domitila morava nas proximidades.

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Meu amor,

Mando o Rath (1) para mecê ir, pois para andar a passo e subir não o há melhor.

Vá nele antes que no seu pois assim lhe pede

Este seu amante fiel e constanteO Demonão

(1) Espécie de charrete.

Manda-me a cadeirinha (1) que eu te dei pois a quero mos- trar, e logo te a entregarei.

Teu etc.

(1) As “cadeirinhas” eram um meio de transporte até de famílias remediadas. Existiam dois modelos: a serpentina, mais simples, fechada por cortinas em toda a volta, ocultando o passageiro, e a cadeirinha de arruar, mais elaborada, com pa-redes de madeira, janelas envidraçadas e uma abertura lateral para o passageiro entrar e sentar-se. Essa abertura poderia ser fechada com uma cortina ou uma portinhola com vigia. Seus varais, traseiros e dianteiros, eram sustentados por es-cravos robustos, sobre os ombros no primeiro caso e nas mãos no segundo, como uma padiola. Vieira Fazenda conta que os escravos carregadores de cadeirinhas eram vendidos como parelhas de cavalos e costumavam ser muito bem tratados por seus donos, principalmente os condutores de cadeirinhas de arruar, que não raro usavam librés.

Havia os peritos e certos na andadura, que uma pessoa sentada podia levar à mão um copo cheio d’água e esta, apesar do movimento cadenciado, não trans-bordaria.1

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19. Exemplo de cadeirinha, no caso uma serpentina, em que

os escravos levam um bebê para ser batizado.

Ilma. e Exma. Sa. D. Demetília de Castro,

Tenho a honra, Excelentíssima senhora, de participar-lhe que sua Majestade Imperial houve por bem despachar o mano de Va. Exa., o senhor Pedro de Castro do Canto e Melo (1), Moço de Sua Imperial Câmara.

Queira Va. Exa. desculpar meu atrevimento de lhe escrever posto que me assine de um modo que não posso ser ou deixar de ser conhecido de Va. Exa. de quem a ventura de ser

Seu afetuoso e obrigadíssimo...O Anônimo

P. S.Desculpe Va. Exa. a falta do verbo ter na última linha, que não insiro depois de escrito a carta para não levar às mãos de V. Exa. emendada.

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(1) Pedro de Castro foi feito moço de câmara em 1825.2 D. Pedro, ao longo de seu reinado, escreveu diversas vezes artigos para a im-

prensa sob pseudônimos. Mas também parecia se divertir com a amante, como prova esta carta, em que o imperador, todo formal, avisa Domitila sobre a nomea-ção do irmão. A letra é a prova do crime. Se consegue escrever como um cortesão pomposo, não disfarça a caligrafia.

Meu amor,

Estimo passasse bem e a nossa Bela. Eu estou quase bom, e pron-to para montar a cavalo. Desejo que em consequência de eu estar melhor ou bom me mande dizer se quer ir ao Depósito (1), para dar ordem para a sege e muda, e para os cavalos que hão de ir. Pode mandar dizer que vai pois eu, a mecê não ir ao Depósito, vou à Glória a cavalo, e assim não me faz mal, até porque vou ter o gosto de estar com mecê.

Sou de mecê seu fiel, constante, desvelado, agradecido, e verdadeiro amante

O Imperador

(1) Durante o reinado de d. Pedro foi intensificada a captação de imigrantes para o Brasil. Alemães, irlandeses e outros povos começaram a afluir ao Rio de Janeiro, trazidos por contratos celebrados com agentes imperiais na Europa. Gus-tavo Barroso3 informa que os imigrantes eram acomodados nos edifícios da Ponta da Armação, em Niterói, antes de embarcar para o sul do Brasil. Essas edificações, conhecidas como Depósito dos Estrangeiros, eram anteriormente utilizadas para a pesca baleeira realizada na baía de Guanabara.

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Meu amor,

Francisco Manuel (1) diz que são dentes, que já receitou e que se não façam mais remédios além dos que ele disse, pois, enquanto houvessem dentes a sair, havia de padecer. Que se lhe desse co-zimento branco (2), um caldo, e quando vomitasse, alguns goles de água fria, e que se lhe untassem as gengivas com o que ele mandou, e que não tem febre, e que muitos remédios é mantê-la que ele lhos aplicaria quando fossem necessários. Graças a Deus que está a doença conhecida para sossego seu e deste seu fiel, constante, desvelado, agradecido e verdadeiro amante

O Imperador

(1) Provável referência a Francisco Manuel de Paula, barão da Saúde, médico de d. Pedro.

(2) Cozimento branco era um remédio manipulado, que poderia ser simples ou composto. O simples era usado para diarreia infantil.4 D. Pedro mostra preocu-pação com a saúde de sua primeira filha com Domitila, Isabel.

Meu amor,

Aí vai a coleira. Se a puder aprontar até amanhã às 10 horas, muito bem, quando não, ficará para outra ocasião. A Imperatriz já está assistida. Dou-lhe parte para que diga a seu pai que Nhô Chico saiu mais antigo (1) que o filho de Francisco Antonio. Até à noite, que conversaremos, e nos apalparemos por dentro e por fora. Não deixe.

Este que é seu verdadeiro, constante, fiel e agradecido aman-te do coração

O Demonão

P. S.Vão as luvas também.

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(1) Francisco de Castro do Canto e Melo foi promovido a tenente em 22 de janeiro de 1825. Pela menção “diga a seu pai”, a carta é anterior à morte de João de Castro, pai de Domitila, falecido em 2 de novembro de 1826. “Saiu mais antigo” diz respeito ao critério de desempate por antiguidade usado na promoção da patente.

Meu amor,

Remeto esses cravos, posto que do Senhor dos Passos (1), que deveriam ser de ferro, contudo são flores e dignas de quem as vai possuir, e de seu amante Demonão, que tem o gosto de lhas oferecer. É incalculável a disposição física e moral com que estou hoje para lhe ir aos cofres.

P. S.Já não me recomendo a Nhá Cândida (2) por causa dos seus ciúmes, agora só no velho, velha, e colaça (3), por me parecer que assim os não terá.

(1) A festa do Senhor dos Passos realiza-se na Quaresma (março/abril).(2) Ver carta 1, nota 5.(3) Pessoa que compartilhou a mesma ama de leite, “irmã de leite”.

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20. Carta de d. Pedro I para Domitila de Castro. Rio de Janeiro,

circa 1825. Hispanic Society of America, Nova York.

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Meu amor,

Já esta tarde começam os desavergonhados a saber quem eu sou, e quem mecê, e quanto eu a estimo.

Mandei pôr uma fechadura na porta das tribunas (1) para se fechar a porta, que não será aberta venha quem vier enquanto mecê não vier, e assim ficam todos sem lugar. Além disso, hei de tratar os maridos de bonito modo, e eu lhe prometo que mais nada hão de fazer aos amores.

Deste seu desvelado, constante, fiel, agradecido e verdadeiro amante

O Imperador

P. S. [na lateral da carta:]São 3 horas, vou jantar. Mecê venha para a tribuna às 6 horas para que se ponha bem em prática o plano.

(1) Depois do incidente com Domitila no Teatrinho Constitucional São Pe-dro, em setembro do ano anterior, um novo vexame ocorreria durante as come-morações da Semana Santa na Capela Imperial (Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo).

As tribunas de honra da igreja, localizadas próximo do altar, eram destinadas à família imperial e seu séquito. D. Pedro havia solicitado que Joaquim Valentim Faria de Souza Lobato, porteiro da Câmara Imperial, levasse Domitila para assistir missa na tribuna das damas do paço, sem que a isso efetivamente tivesse direito, como não tinha de entrar sem convite no teatro em 1824. A reação da baronesa de São Salvador dos Campos de Goytacazes, ao ver Domitila sentar-se junto a ela e outras damas de honra da imperatriz, foi imediata: como que afrontada, levantou--se e saiu do local, seguida por diversas outras senhoras.

Ana Francisca Rosa Maciel da Costa, baronesa de Goytacazes, era viúva do coronel Brás Carneiro Leão, um português que fez fortuna no comércio brasileiro. Ela foi uma das primeiras brasileiras natas agraciadas com um título nobiliárqui-co, recebido em 1812, de d. João VI. Teve o título elevado em 1823 por d. Pedro I, quando recebeu as Honras de Grandeza, com as quais podia usar a coroa de visconde sobre o seu brasão, e seus herdeiros poderiam requerer a continuidade

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do título na família. Os Carneiro Leão eram uma das famílias mais ricas do Rio de Janeiro e gostavam de ostentar isso, como apontam Maria Graham e outros es-trangeiros, escandalizados com o tamanho e a qualidade das joias que as mulheres da família usavam.

Em 1825, quando a baronesa de Goytacazes resolveu, com seu ato, colocar Domitila em seu lugar, já fazia quatro anos que d. João VI e a corte portuguesa haviam deixado o Brasil e retornado a Portugal. A verdadeira nobreza da metró-pole, hereditária, fruto do feudalismo português, não via com bons olhos essa nova nobreza colonial caricata, para a qual o dinheiro assegurava os títulos. Os portugueses vingavam-se nos dias de grande gala na corte, quando a nobiliarquia ditava as regras, e as antigas famílias e mercês tinham precedência sobre os no-vos titulados. “Macaco vê, macaco faz”, e assim aconteceu. A nobreza brasileira tratou Domitila como tinha amargamente sido tratada pela nobreza de sangue portuguesa. Mas a resposta não se fez esperar. Na segunda-feira, 4 de abril de 1825, aniversário de d. Maria da Glória, terminada a Páscoa, Domitila foi nome-ada dama camarista da imperatriz (anexo 1, p. 183). Esse posto conferia o direito de acompanhar d. Leopoldina a todos os lugares, sendo-lhe destinado o lugar de honra logo após os imperadores em qualquer ocasião pública, isto é, na igreja, no teatro e em outros eventos, tendo precedência sobre as outras damas. E, como se isso tudo não bastasse, d. Pedro, nesse bilhete, informa que ainda mandou colocar uma tranca na porta da tribuna e deu ordens para que ela só fosse aberta quando Domitila chegasse.

Maria Graham5 nos conta que as principais damas da corte se recusaram, a princípio, a visitarem Domitila para lhe cumprimentarem pela nomeação: “[…] mas em breve fizeram-lhes compreender que a teimosia não resultaria em ne-nhum bem à imperatriz, mas, com maior probabilidade, arruinar-lhes-ia as famí-lias. Antes, pelo contrário, sei que o preço exigido pelo perdão de uma Casa foi o sacrifício de uma linda carruagem nova, havia pouco importada de Londres, e que se destinou à cocheira dela.”

Já havia antes uma Carneiro Leão, nora de Ana Francisca, perdido a vida por conta dos ciúmes de Carlota Joaquina. Perder uma carruagem seria o menor dos problemas.

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21. Antigo Largo do Palácio, atual Praça XV, com o chafariz em primeiro

plano, o Paço da Cidade à esquerda e a Capela Imperial ao fundo.

Meu amor,

Com aquela confiança que é própria entre amantes, e que entre nós existe, lhe ofereço essa Cutia (1), que comprei de propósi-to para lha enviar. Mecê me perdoará tanta impertinência; mas mande-me na sua carta um abraço, um beijo e um aperto de mão para consolar a

Este seu fiel, constante, desvelado, verdadeiro e agradecido amante até a morte

O Demonão

P. S.Como a nossa Belinha gosta desses bolos, eu lhe peço que de mi-nha parte lho ofereça dando-lhe um beijo.

(1) O cozinheiro nacional, primeiro livro a registrar algumas comidas tipi-camente brasileiras, fornece uma receita de bolo de paca e dá diversas receitas utilizando carne de cutia. Devido à semelhança das duas, parece provável que se fizessem, na época, bolos com esse ingrediente. Cláudio Zannoni informa que o bolo de cutia era uma iguaria indígena e dá a receita: “A carne de cutia é socada no pilão junto com a farinha de puba e com ela são feitos uns bolos de carne que,

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colocados no tupé, serão distribuídos por cada moça, no fim das festas, às pessoas mais queridas ou aos convidados especiais […]”.6

Meu amor,

Dou-lhe parte que seu Mano João saiu (1), por proposta do Viei-ra (2), que teve ordem Minha para arranjar os oficiais que esta-rão às ordens do General Abreu (3), Comandante do Rio Pardo. É para mim o prazer maior que tenho o agraciar-lhe algum seu parente e mui especialmente como um mano seu.

Aceita o coraçãoDeste seu desvelado, verdadeiro, constante, fiel e agradecido

amante até a morte

O Demonão

(1) João de Castro do Canto e Melo (1786-1853), segundo visconde de Cas-tro, em 1827. Militar, chegou à patente de brigadeiro em 1837.

(2) João Vieira de Carvalho (1781-1847). Barão, conde e marquês de Lages, ministro da Guerra.

(3) José de Abreu Mena Barreto (1821-1826). Barão do Serro Largo, foi go-vernador de Armas do Rio Grande do Sul. Morto por fogo amigo durante a batalha de Ituzaingó (ou Passo do Rosário), durante a Guerra da Cisplatina.

O nome do irmão de Domitila foi escolhido em 1825, junto com diversos ou-tros, de uma lista enviada pelo governador militar do Rio Grande em 23 de outu-bro de 1824. João de Castro foi nomeado nessa ocasião comandante da guarnição de Rio Pardo no Rio Grande do Sul.

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22. Sir Charles Stuart.

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Meu amor,

O Stuart (1) até agora ainda não veio, não sei se por culpa de Luiz José (2) lhe não ter dado meu recado. Agora mandei o sar-gento ver se ele vem, e não podendo eu sair sem receber a notícia, estimaria que mecê me viesse acompanhar, e depois de falar ao homem ou saber que ele não vem, iremos ambos para sua casa.

Seu amante etc.O Imperador

P. S. Estou munido bastante.

(1) Sir Charles Stuart (1779-1845), diplomata britânico encarregado de me-diar o reconhecimento, por Portugal, da Independência do Brasil. Desembarcou no Rio de Janeiro na segunda-feira, 18 de julho de 1825. O almirante Graham Eden Hamond, que trouxe Stuart ao Brasil, informa em seu diário que, ao desem-barcarem, avistaram uma carruagem com uma escolta de guardas. Era d. Pedro, dirigindo ele mesmo seu carro, tirado por quatro cavalos. Exibindo sua destreza, o imperador respondeu a posição de sentido e o cumprimento dos ingleses sem parar a viatura. Após passar por eles, retornou e perguntou se era o embaixador Stuart. Diante da confirmação, conversaram por cerca de cinco minutos. Tanto ao embaixador quanto ao almirante ficou a impressão de que a atitude intempestiva de d. Pedro em aparecer durante o desembarque não foi muito digna de um im-perador. Os fleumáticos britânicos esperavam encontrar um governante que fosse capaz de refrear sua curiosidade. Em 21 de julho,7 d. Pedro chamou sir Charles Stuart para uma reunião, mas ele só apareceu no dia seguinte. É provável que esta carta seja dessa data.

(2) Luís José de Carvalho e Melo (1764-1826), ministro do Estrangeiro na época.

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Meu amor,

As razões em contrário à ida do Tomás (1) são as mesmas por mim dadas ontem a mecê, e acresce mais que, indo o seu batalhão e sendo ele trocado, o seu contrário em São Paulo dirá que isto foi feito de propósito para que o Tomás lhe não pague, vista esta razão que acresce em contrário deve ir, pois vai o seu corpo, e ele que faça um requerimento requerendo meios de conciliação com o seu adversário, o que é muito fácil.

Sinto infinito quando não posso fazer o que mecê pede; mas é o que acontece a quem como eu deseja manter a justiça e a dis-ciplina militar, que muitas vezes tem de dar golpes em sua alma e faltar a quem ama quando lhe pede qualquer coisa.

Pode dispor de tudo o que for propriedadeDeste seu desvelado, constante, verdadeiro, fiel, agradecido,

e todo amante

O Demonão

(1) Provável referência ao primeiro cirurgião-mor da Legião das Tropas Li-geiras de São Paulo, Tomás Gonçalves Gomide. Quando Domitila foi apunhalada por Felício em 1819, esse médico cuidou de seus ferimentos. Ou ainda a Tomás de Aquino e Castro, tenente de Caçadores do 1º Batalhão de São Paulo, estacionado em São Cristóvão, no Rio de Janeiro, que, presente à Casa de Ópera de São Paulo na noite de 7 de setembro, recitou um poema de sua autoria em homenagem a d. Pedro I. Ele também testemunhou a favor de Domitila no processo de divórcio, em 1824.

A consciência da posição que ocupava é explícita nesta frase: mas é o que acontece a quem como eu deseja manter a justiça e a disciplina militar. Tanto essa carta como a que aparece na sequência comprovam que ele não atendia a todos os pedidos da amante.

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Meu amor,

Recebi o requerimento que me mandou. Estimaria muito fazê-lo, mas bem vê que se um quer ficar, outro logo adquire o direito de ir, e assim não há aquela obediência que é mister que haja entre militares, e em um tempo que tudo é fazerem todos o que que-rem e lhes apraz. A proposta já está acabada, e arranjados os capitães conforme suas capacidades relativas às dos comandan-tes dos comandados, e dos empregos que de ordinário se dão às companhias em ocasiões de fogo ou de exercício. Alguns que são doentes com o Delbeck vão, e D. Antonio (1). Eu sempre estou pronto para fazer o que mecê quiser, e portanto decida e ordene--me o que quiser à vista das razões que exponho, e me parecem de ponderação, e mostre esta ao seu mano Carlos (2), que ele co-nhecerá a razão do exposto. Além disso, como eu mudei capitães de um batalhão para o outro, não estou certo no batalhão em que ficou o Chagas.

Fica sempre pronto para a servir em tudo, e por tudoEste seu amante fiel, constante, desvelado, verdadeiramente

agradecido

O Imperador

(1) Indivíduos não identificados.(2) Vide carta 1, nota 4.

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Meu amor,

Estimo que passasse bem, e melhor um tanto a nossa Belinha. Neste momento chego da velha Condessa (1), e como em toda a parte nunca de mecê me esqueço, trouxe esses quatro morangos que são de planta do Chile, e não trouxe mais nem comi nenhum, primeiro porque não haviam mais, e segundo porque lhe traria todos por ser meu prazer mimoseá-la. Igualmente trouxe a planta deles, a de roseiras de cem-folhas e a de hortênsia, que são para a sua chácara, mas enquanto mecê para lá não vai (2) eu as tra-tarei para depois irem. Esta tarde vou ao depósito ver os estran-geiros, e terei o gosto de a ver à noite às horas que a costumo ver.

Este seu desvelado, constante e fiel amante

O Demonão

(1) D. Pedro refere-se à condessa de Roquefeuil (?-27/9/1835), antiga dama de honra de madame Elisabete, irmã de Luís XVI. Mlle. de Roquefeuil fugiu da França durante a Revolução, logo depois da prisão de madame Elisabete.8 Na companhia de seu sobrinho, o conde Aymer de Gestas, estabeleceu-se em Por-tugal, sob proteção da família real, com a qual seguiram os dois para o Brasil em 1808. Aqui a condessa adquiriu uma vasta propriedade na Tijuca, onde o conde de Gestas dedicou-se a aclimatar morangos e enxertar damasqueiros, além do cultivo de café e da criação de gado leiteiro. D. Pedro e d. Leopoldina, que eram seus amigos, costumavam ir até a propriedade, onde comiam morangos frescos com creme batido.9

(2) Em 7 de dezembro de 1825, o advogado Diogo Soares da Silva de Bi-var escreveu10 para o Chalaça, secretário de d. Pedro, dando informações de que procedera conforme fora ordenado para a reunião das edificações e cocheiras da viscondessa de Santos, título de Domitila até outubro de 1826. A nova casa da favorita, para onde iria se mudar após regressar da Bahia, em abril de 1826, já estava sendo providenciada meses antes. Nota-se a preocupação de d. Pedro com tudo o que dizia respeito a Domitila, como as flores que comporiam o jardim da nova residência.

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Meu amor,

Desejo que me mande dizer como passou, assim como também a nossa Belinha. Eu aqui estou pronto para ir à festa dos Cavalei-ros de Cristo (1), e para a servir naquilo que estiver ao alcance

Deste seu amante fiel e constante

O Demonão

(1) A festa dos Cavaleiros de Cristo realizava-se na Capela Imperial (Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo) em 14 de setembro.

Meu amor,

Neste momento chego da cidade de dar audiência (1). Lá foi o homem (2); mas creio que teve algum aviso de algum amigo, pois falou tão submisso quanto outro dia atrevida e altivamente.

Remeto as pulseiras e estimarei que estejam a seu gosto, pois só assim ficará satisfeito

Este seu desvelado, constante, fiel, agradecido e verdadeiro amigo e amante

O Imperador

(1) As audiências e despachos ocorriam no Palácio de São Cristóvão, na Quinta da Boa Vista, residência do imperador, aos sábados, e no paço imperial, antigo palácio dos vice-reis, localizado na atual praça XV, às terças.

(2) Provável referência ao ex-marido de Domitila, Felício Pinto Coelho de Mendonça. Em carta para o governo austríaco, o barão de Mareschal informava em outubro de 182511 sobre um incidente de que teve conhecimento. Felício teria enviado para o ex-cunhado, Boaventura Delfim, uma carta falando mal da ex--mulher. D. Pedro tomou conhecimento dela e foi tirar satisfações com Felício, acabando por esbofeteá-lo.

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Meu amore meu encanto,

Vou saber em primeiro lugar da sua saúde, e da nossa Belinha. Ontem foi tal o sono que nem acabei de rezar, e por isso nada arranjei, e deixei para hoje, até porque nós ainda não podía-mos hoje...

Perguntei ao jardineiro pelas violetas, tinham morrido com a doença dela, pois não foram tratadas. Disse-lhe que as pulve-rizasse aonde as houvesse. Quanto à goiabada, mandei comprá--la para lha ofertar pois bem sabe o quanto lhe desejo adivinhar os pensamentos, quanto mais aquilo que eu sei por me ter dito que gosta.

Quanto à Chica (1), o Chalaça (2) não tinha ajustado como eu lhe tinha dito. Ordenei-lhe que de novo fosse e ajustasse tudo, pois era para coisa que me pertencia tão de perto e que pertencia a quem eu tanto estimava que tudo acharia pouco, e que despesas feitas em provento da mocidade, e de uma tal menina que eu tan-to estimo, não era nada, antes fazia muito prazer ante mais esta ocasião de lhe mostrar o meu afeto como quem é e se confessa e promete ser para o futuro

Seu amante fiel e constante

O Demonão

P. S.Hoje estou muito pachola, sinto não lhe poder ir aos cofres; mas amanhã será. Aí vão 50 laranjas das melhores.

(1) Francisca Pinto Coelho de Mendonça e Castro (1813-1833), filha de Do-mitila e Felício, casou-se com seu tio materno, José de Castro do Canto e Melo, em 1828 (anexo 4, p. 185). Faleceu em São Paulo antes de completar 20 anos.

Em outubro de 1825, d. Pedro deu ordens a seu secretário Francisco Gomes da Silva, apelidado de Chalaça (2), que realizasse em nome de Francisca um depó-sito de quatro contos de réis:

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para tudo render até ela se casar, ir lá ficando em depósito para que logo que complete o total de uma ação ficar com cinco ações e assim progressivamente até casar-se.12

Personagem controvertido de nossa história, Francisco Gomes da Silva nasceu em Lisboa em 22 de setembro de 1797 e faleceu na mesma cidade, em 30 de setembro de 1852. Veio para o Brasil junto com a corte e foi expulso do paço em 1819, segundo alguns por se envolver com uma dama de companhia. Foi um dos companheiros de d. Pedro na viagem para São Paulo em 1822 e testemunha do 7 de setembro. Em 1823, foi nomeado oficial maior da Secretaria dos Negó-cios do Império, e em 1825 passou a servir como secretário do Gabinete Parti-cular do imperador. Deixou o Brasil em 1830 por questões políticas. Sempre fiel a d. Pedro, mesmo após a morte deste continuou servindo a casa de Bragança, empregando-se no serviço da imperatriz d. Amélia e de sua filha, a princesa d. Maria Amélia.

Meu amor,

Soube agora que no banco não se paga aos menores sem procu-ração assinada pelo pai ou pela mãe, e assim mecê assine a pro-curação que o Chalaça lhe leva, que é a da Chiquinha.

De carteira, por ora, nada de novo. Aí remeto o modo por que deve assinar. Sou com todo o amor de mecê

Seu fiel, constante, desvelado, verdadeiro e agradecido amante

O Demonão

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Meu amor,

Quem ama com verdadeiro amor é franco e sincero, e não teme desavenças quando fala a verdade.

Hoje, meu amor, topei o Alferes Lobo com a mulher. As-suntei logo que lha devia participar antes que as inzonas (1) e as intrigas fervessem contra mim, e ao mesmo tempo protestar-lhe novamente minha fidelidade, dar-lhe minha palavra de honra, já por mim a mecê dada, que não quero nada de mais ninguém.

Perdoe se com isto a enfado; mas o meu amor é [rasgado] me manda fazer este protesto, ao qual jamais falharei. Aceita o coração amoroso

Deste seu amante, fiel e constante para sempre

O Demonão

P. S.Como lhe conheço seu gênio ciumento que prova amizade, eu lhe peço por todos os santos, pela vida da nossa Isabel, que mecê mande indagar se assim me comporto com ela ou com qualquer outra, porque estou certo que se os [que] indagarem forem verda-deiros, em mim se não achará mentiroso.

(1) Inzonas: mentiras, o mesmo que intrigas.D. Pedro faz uma defesa prévia contra um possível ataque de ciúmes de Do-

mitila (provavelmente por causa da mulher do mencionado alferes Lobo). Com culpa no cartório ou não, a longa lista de amantes, reais ou atribuídas, que o impe-rador manteve durante o relacionamento com Titília, é bem conhecida.

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Meu amor,

Eu não fui na casa nem do grande nem do pequeno Boaventura (1). Soube do homem porque mandei o Chalaça tirar a certidão do livro mestre da guarda de honra. Eu sou incapaz de faltar ao que prometo, de deixar de não cumprir minha palavra. Estou pronto a corresponder ao que lhe disseram esses desavergonados ou desavergonhados, pois nunca me acharás mentiroso. Tenho honra, não sou bandalho (2), e só o que digo é que aqui anda mão oculta que nos quer separar. Eu sou inacessível a intrigas, amo-a, jamais deixarei de amá-la, ainda que mecê vá para o inferno eu haveria [de] vê-la, e pela minha parte achará sempre constância à prova de sombra, assim [como] eu achasse da sua. Torno a di-zer [que] estou pronto a responder, pois jamais haverá quem fale mais verdade do que eu, e nunca dirás que é brincadeira uma coisa que eu souber para me desculpar como mecê disse, sabendo também aonde é e quem é ele esse feliz que é preferido a

Este seu fiel, triste e desconsolado amante que com lágrimas rega esta carta

O Demonão

(1) Boaventura Delfim Pereira, cunhado de Domitila. Essa discussão pode ter tido uma razão: ciúmes. Logo depois da chegada da família de Domitila ao Rio, d. Pedro engravidou a irmã dela, Maria Benedita. O filho deles, Rodrigo, nasceu em novembro de 1823, sendo assumido como filho de Boaventura, que começava a ganhar cargos e futuramente seria feito nobre com o título de barão de Sorocaba em 1826. Foi veador da Casa Imperial, comendador da Ordem de Cristo e supe-rintendente e administrador-geral das Fazendas e Quintas Imperiais, desde 21 de abril de 1824. Rodrigo Delfim Pereira casou-se com Carolina Bregaro, sobrinha de Paulo Emílio Bregaro, patrono dos carteiros brasileiros, que entregou os ofícios das Cortes de Lisboa e as cartas de d. Leopoldina e José Bonifácio para d. Pedro no dia 7 de setembro, na região do Ipiranga, em São Paulo. Segundo alguns his-toriadores, Carolina Bregaro teria sido amante do meio-irmão de seu marido, o imperador d. Pedro II.

(2) Pessoa desprezível, sem dignidade.

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Meu amor,

É próprio do homem de bem, quando conhece o mal que faz, pedir perdão, posto que seja qual for a sua hierarquia, porque a honra do ofensor e do ofendido assim o pedem. Eu conheço o mal que ontem fiz, e como honrado, e seu verdadeiro amigo, lhe peço perdão. Se o amor que temos um ao outro é verdadeiro, devemos perdoar suspeitas mal fundadas ou, por outra, ciúmes vagos sem fundamento. Quem ama de veras não pode deixar de ter estes, e para os curar serve o mesmo amor conjuntamente com o juízo.

Não lhe pareça, meu amor, que esta linguagem é da boca para fora ou filha da astúcia ou da velhacaria própria dos falsos amantes: mas não é. É filha do meu coração arrependido que todo se derrete em amor quando se lembra que de tão longe mecê veio, e que tanto tempo ausente se mostrou constante. Estes os votos

Deste seu amanteO Demonão

P. S.Apesar de lá estarmos sós, eu sempre lá vou esta noite para lhe mostrar em tudo que puder o meu constante amor.

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Meu amor,

A minha vista não é para olhar para as mulheres, e sinto infinito ser tão desgraçado que por mais que busque de todas as formas agradar-lhe sempre mecê está comigo indisposta. Em uma pala-vra, sou o ente mais infeliz que pode haver, pois não tenho hora que não seja em aflição, quer por negócios públicos quer por par-ticulares. Com as lágrimas nos olhos, me reputo desgraçado e tenho a desventura de ser julgado por mecê capaz de todo o mal pois julga que falto à minha palavra. Valha-me Deus. Valha-me Deus, e compadeça-se.

Deste seu infeliz amante, mas sempre cada vez mais fiel, constante, desvelado e agradecido amante

O Imperador

P. S.É a alma que fala aos olhos, são duas fontes, e a alegria fugiu de meu semblante enquanto esta noite mecê se não compadecer de mim.

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23. Carta de d. Pedro I para Domitila de Castro. Rio de Janeiro,

circa 1825. Hispanic Society of America, Nova York.

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Meu amor,

Remeto essas frutas da Alagoa de Freitas (1) a que chamam = Langonas (2). Comem-se, são doces e muito inocentes, não fa-zem mal algum. Remeto igualmente as flores que vinham na ban-deja que Padre Frei Leandro (3) trouxe, assim como pão de ló para a nossa Belinha. Não tendo mais nada que lhe oferecer, lhe oferece a sua vida.

Este seu constante, fiel, desvelado, verdadeiro e muito agra-decido amante do coração

O Imperador

P. S.Esta tarde eu vou ao Arsenal da Marinha, e à noite sairemos no carro novo se mecê quiser.O mesmo

(1) Alagoa de Freitas era uma expressão comum na época para designar o Jardim Botânico, criado por d. João VI nas imediações da lagoa Rodrigo de Freitas.

(2) É provável que d. Pedro esteja se referindo a uma fruta asiática chamada longan (Euphoria longana), parente da lichia, cuja safra ocorre entre novembro e janeiro. Maria Graham, que conheceu o Jardim Botânico em dezembro de 1822, refere-se a essa fruta como longona, “espécie de Litchi da China”. Além do fato de ambos errarem o nome da fruta, ou terem tido informação errada, chama a atenção o fato de d. Pedro ter destacado a palavra “Langona” e terminar a frase com “muito inocentes, não fazem mal algum”. Poderia ser uma brincadeira de duplo sentido, pois uma palavra bastante semelhante a essa, langonha, significa substância gosmenta, esperma. Só quem já comeu a fruta poderá compartilhar da brincadeira.

(3) Frei Leandro do Sacramento, primeiro diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, de 1824 a 1829. Sendo amigo da imperatriz d. Leopoldina, não seria di-fícil imaginar que d. Pedro tivesse desviado para a amante os presentes destinados à esposa, assim como anteriormente já havia repassado para Domitila rosas dadas a ele pela imperatriz.13

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24. Jardim Botânico, Rio de Janeiro.

Meu amor,Minha Titília do meu coração,

Já cá tenho o caixão em que vêm as guarnições de flores de penas (1) da Bahia.

À noite o levo para que, aberto à sua vista, mecê escolha aquelas que lhe agradar. Fique certa do prazer que tenho quando lhe faço dar provas do quanto me lembro de mecê, e do quanto a estimo. Em mim não há lisonja, é só amor e felicidade. Assim o afirma

Este seu fiel constante desvelado, agradecido e verdadeiro amante

O Imperador

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(1) Segundo o príncipe Maximiliano:

Em alguns conventos (em Salvador), as freiras fazem lindas flores com as penas das aves do país, tão notáveis pela variedade e diversidade de suas cores. Elas mostram esses ramos de flores aos estrangeiros que vêm visitar o Convento.14

Seria tentador colocar essa carta em 1826, após o regresso deles da Bahia, em abril, porém a carta seguinte, irmã desta, impede. D. Pedro oferece a Domitila uma flor cuja floração não ocorreria no período após o retorno.

Meu amor, minha Titília,

Remeto a chave, e profetizo que não se abrirá o caixão; pois o defeito é da fechadura.

Tenho o gosto de lhe ofertar esses ramos de Minhonette (1), que serão para mecê cá trazer à tarde quando vier com sua tia. Adeus, meu bem, e meu único pensamento até nos vermos, que lhe apertará a mão

Este seu desvelado agradecido, fiel, constante e verdadeiro amante do coração

O Imperador

(1) Planta de jardim (Reseda odorata), com floração entre novembro e fevereiro.

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