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    Francisco de Assis da Costa

    ATLAS HISTRICO DE CIDADES

    a cidade como objeto de investigao

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    A aplicao de novas TIC (Tecnologias da Informao e Comunicao) nas atividades de ensino e

    pesquisa em cincias sociais aplicadas, notabiliza-se por permitir acelerar e automatizar processos de

    recuperao, ordenao e representao de complexas e grandes quantidades de informao. Se

    por um lado possibilitam aos investigadores muito mais agilidade e tempo para pensar e analisar esta

    informao, por outro lado tambm influenciam o aparecimento de prticas investigativas extensiva-

    mente documentadas e distanciadas dos objetivos bsicos que caracterizam esta rea de estudo.

    Encontramos assim prticas que se caracterizam pela utilizao desmedida de informao, o uso

    descuidado das ferramentas grficas e um repertrio comparativo sem critrio que causam um espe-

    cial prejuzo quando a cidade o objeto de investigao. O debate sobre a utilizao das novas TIC

    dever, entre outras coisas, procurar impedir que as verdadeiras razes e objetivos que impulsionam

    os estudos sobre a cidade na rea passem a uma condio secundria.

    Sobre trs procedimentos de aproximao

    Em algumas escolas se ensina que a melhor maneira de ler um texto fazendo

    uma copia do texto; no uma fotocpia nem qualquer outro tipo automtico de

    reproduo mas atravs da copia frase a frase, palavra por palavra, tentando seguir

    a pista do escritor inclusive nas pausas exigidas pela respirao. Copiar inclusive a

    pausa causada pela emoo da idia... Este mesmo teria sido o entendimento

    daquele grupo de cartgrafos que, talvez pela sede de poder de um Imprio, pre-

    tenderam fazer um mapa perfeito do seu pas. Muito mais impulsionados por esta

    grandeza e no pela vontade de entender melhor aquele territrio, estes cartgrafos

    empenharam-se em desenhar, ou melhor, copiar a forma deste territrio em esca-

    las cada vez maiores: 1:10.000, 1:1000, 1:100 e 1:10, at que certo dia logra-

    ram aquilo que deveriam considerar a representao perfeita, ou seja, um mapa do

    territrio na escala 1:1.

    ... Naquele imprio, a arte da cartografia atingiu uma tal perfeio que o mapa

    duma s provncia ocupava toda uma cidade, e o mapa do imprio, toda uma

    provncia. Com o tempo, esses mapas desmedidos j no satisfaziam e os

    colgios de cartgrafos levantaram um mapa do imprio que tinha o tamanho

    do Imprio e coincidia ponto por ponto com ele. Menos apegadas ao estudo da

    cartografia, as geraes seguintes entenderam que esse extenso mapa era

    intil e no sem impiedade o entregaram s inclemncias do sol e dos invernos.

    Nos desertos do oeste subsistem despedaadas runas do mapa, habitadas

    por animais e por mendigos. Em todo o pas no resta outra relquia das disci-

    plinas geogrficas.

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    Neste caso, tomando livremente a histria que recolhe Borges de Viagens de Va-

    res Prudentes (MIRANDA, 1658), os Colgios de Cartgrafos do Imprio haviam

    copiado o territrio de forma obsessiva como se tratasse de um texto; parcelas,

    quadras, bairros, cidades eram como os equivalentes de letras, palavras, frases,

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    oraes. No sabemos das pausas para soltar a respirao contida, que evitariam

    imprecises no desenho, nem aquelas derivadas de repentinos acessos emotivos,

    que poderiam desvirtuar o sentido real da representao. Mas possvel que, de

    no ser pelo declnio daquele Imprio, o passo seguinte teria sido seguir represen-

    tando cada uma das transformaes de qualquer detalhe daquele territrio at o

    ponto em que seria impossvel diferenciar a importncia entre a representao e a

    coisa representada.

    Estes cartgrafos, ainda que acreditassem lograr uma aproximao cada vez

    maior, atravs da cpia cada vez mais perfeita da geometria do lugar, distanci-

    avam, numa proporo inversa, a capacidade destes mapas para explicar o

    territrio do Imprio. Algo que atualmente poderamos relacionar com uma figu-

    ra de excesso caracterstica daquilo que Marc Aug (1992) denomina

    sobremodernidade: a superabundncia espacial nos enfrenta a uma quantida-

    de imensurvel de informaes sobre o espao ao mesmo tempo em que reduz

    enormemente suas distncias atravs de sistemas de comunicao cada vez

    mais aperfeioados.

    oportuno lembrar aqui aquela gerao de artistas que, especialmente no perodo

    considerado de experimentao nas dcadas de 1960 a 1980, dedicava-se a foto-

    copiar atravs da eletrografia

    3

    a tudo e todos que encontrassem por diante: foto-

    grafias, desenhos, pinturas, objetos pessoais, insetos, mobilirio e at partes do

    prprio corpo eram submetidos a uma espcie de ritual de captura de uma luz

    esverdeada que se deslocava zumbindo lentamente sob um vidro transparente.

    Ainda mais: no era raro ver exposies

    onde apareciam fotocpias de objetos

    que cobriam os prprios objetos numa

    sala recoberta por sua prpria fotocpia.

    Estas montagens, que nos faziam perce-

    ber objetos a partir da relao destes

    objetos com as cpias de si mesmos, per-

    mitiam ver, apesar da proximidade extre-

    ma entre a representao e a coisa re-

    presentada, a enorme distncia entre

    uma coisa e outra.

    E se ao invs de representao grfica

    estivssemos tratando da memria,

    aquela que graas aos processos

    seletivos do indivduo so parcialmente

    esquecidas ou lembradas, sua cpia te-

    1. Copy-art. Desde o ponto de vista da arte, logra-

    vam que pensssemos sobre este tnue limite entre

    aquilo que poderamos considerar realidade um

    objeto - e a representao desta realidade uma

    fotocpia. Fotografia de Trans Art. Comissariado de

    Humberto Nilo. Universidad de Talca, Chile.

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    ria seguramente a marca de Funes. Esta outra descoberta de Borges como aqueles

    cartgrafos tambm construa mapas mas no estava interessado em cobrir um

    Imprio e sim todo o universo de sua imaginao.

    Duas ou trs vezes havia reconstrudo um dia inteiro, no havia jamais

    duvidado, mas cada reconstruo havia requerido um dia inteiro. [] De

    fato, Funes no apenas recordava cada folha de cada rvore de cada mon-

    te, mas tambm cada uma das vezes que a havia percebido ou imaginado.

    [] No apenas lhe custava compreender que o smbolo genrico co

    abarcava tantos indivduos dspares de diversos tamanhos e diversa forma;

    perturbava-lhe que o co das trs e catorze (visto de perfil) tivesse o mes-

    mo nome que o co das trs e quatro (visto de frente). [] Havia aprendido

    sem esforo o ingls, o francs, o portugus, o latim. Suspeito, contudo,

    que no era muito capaz de pensar. Pensar esquecer diferenas, gene-

    ralizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes no havia seno detalhes,

    quase imediatos.

    4

    Preso pela incapacidade de sntese e abstrao, Funes tem para a histria uma

    relao semelhante quela que os cartgrafos representam para a geografia.

    No s necessita do mesmo tempo da ocorrncia real para realizar sua descri-

    o, como os mapas que coincidem ponto a ponto com o que representam,

    como tambm retoma cada nova narrao a partir de uma nova condio hist-

    rica. Tanto assim que lhe impossvel ver no cachorro que olha de p o mesmo

    cachorro que olha sentado, incorporando a experincia de vida, assimilada en-

    tre um relato e outro, que lhe transforma e modifica a memria e o juzo que faz

    do cachorro. Encontrar uma verso que sintetize o significado deste cachorro

    impossvel porque o objeto deixa de s-lo no momento mesmo em que ganha o

    sentido de novo objeto. Desde esta perspectiva, qualquer investigao histrica

    que queira construir um saber, dever enfrentar-se a esta incapacidade de es-

    quecimento ou a esta outra figura de excesso que conforma a sobremodernidade

    que a superabundncia de acontecimentos do mundo contemporneo. Qual-

    quer resultado que queira ser representativo de algo mais que um relampejo da

    memria entrar no mbito das cogitaes e ficar sempre sob suspeita por-

    que, desde o ponto de vista da sobremodernidade, a dificuldade de pensar o

    tempo cada vez maior e se deve essencialmente a uma superabundncia de

    acontecimentos que dificultam a construo de um sentido para o passado

    recente (AUG 1992).

    A arte, como lhe prpria, vai por diante e graas a ela possvel entender,

    com mais facilidade, determinados fenmenos da realidade. Esta quantidade

    desmesurada de informao, presente nas duas imagens literrias ligadas por

    um lado compreenso do territrio e por outro construo de um objeto

    histrico, est fortemente presente no mundo contemporneo e diz respeito

    particularmente quelas disciplinas que pretendam estudar o meio e as socie-

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    dades urbanas mais alm de suas caractersticas fsicas.

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    A primeira, represen-

    tada por este mapeamento compulsivo do territrio, nos conduz a uma discus-

    so sobre a abordagem da dimenso estrutural da cidade enquanto a segunda,

    representada por uma quantidade desmesurada de informaes, nos leva a

    uma reflexo sobre o uso da informao na dimenso conceitual da cidade,

    particularmente quando estudamos sua histria.

    2. Transporte de mercadorias atravs da rede ferroviria na Frana 1878 e 1952. Atlas Histrico de Ciudades

    Europeas. Francia. (PINOL, 1996)

    Para fugir destes tipos de procedimentos nas cincias sociais aplicadas, que pode-

    ramos inserir na categoria do arquivo pelo arquivo e a representao pela repre-

    sentao, deveramos no perder de vista as aproximaes de tipo verificadoras e

    comparativas no sentido de vincular o dado documental com o objeto mesmo da

    disciplina a cidade e o seu tempo e como forma de compreender os processos

    urbanos locais como parte de um processo mais amplo da realidade urbana (regi-

    onal, territorial e global). Enquanto os cartgrafos se perdiam nos excessos de uma

    viso realista ingnua, onde o discurso cientfico seria um reflexo direto da realida-

    de, e Funes alimentava uma viso construtivista relativista, onde o discurso cient-

    fico produto de mltiplas vises do mundo, algumas comparaes aparentemen-

    te teis so encobertas pela urea da fora estatstica e da preciso das novas

    tecnologias da informao. Fazem parte da categoria das astcias da arte do

    fazer que, segundo Michel de Certeau (1991), so as que permitem criar novas

    realidades atravs de uma espcie de bricolagem cientfica. Este jogo, ainda quan-

    do formado por peas que, isoladamente so na maioria das vezes produto de um

    correto trabalho cientfico, revela certa desorientao, para no falar daquela as-

    tcia na hora de construir um discurso ou uma leitura interpretativa da informao.

    Basta, por exemplo, verificar alguns exemplos do uso comparativo de estatsticas

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    relativas a ndices de desenvolvimento humano de regies metropolitanas onde

    alguns bairros so comparados com cidades e at com pases. Esta comparao

    estatstica de diferentes ordens territoriais alm de no remeter a uma compreen-

    so das desigualdades sociais insinua uma espcie de impermeabilidade entre os

    grupos que conformam a cidade e compromete seriamente a idia de cidade que

    deveria prevalecer. Ora, no existe uma Blgica incrustada no tecido urbano de

    uma cidade como Salvador ou qualquer outra por mais prximos que sejam os

    ndices estatsticos, porque estamos tratando com realidades diferentes e escalas

    diferentes. Porque as condies em que cada parcela da cidade se desenvolve,

    enriquece ou empobrece, no so alheias quelas outras parcelas que apresentam

    um nvel inferior ou superior de organizao. Quando a cidade deixa de ser o objeto

    os dados estatsticos passam a ser um fim em si mesmos nas pesquisas.

    No outro extremo, mas trabalhando tambm a partir de dados rigorosos, podemos

    chegar a um tipo de sntese que no tem a fora sedutora dos algarismos e das

    estatsticas mas a de um carter subjetivo que preserva a essncia de um pensamento

    cientfico bem apresentado. No exemplo deste fotograma de um filme sovitico publi-

    cado na Revista AC ou Documentos de Actividad Contempornea do Grupo de Arquitec-

    tos y Tcnicos Catalanes para el Progreso de la Arquitectura Contempornea - GATCPAC

    (figura 3), publicada durante a Segunda Repblica Espanhola entre 1931 e 1937, uma

    simples imagem revela a referncia paradigmtica da nova arquitetura e do novo urba-

    nismo: luz, calor, energia, vigor e sade. Na aparente gratuidade da imagem, a luz

    direta dos raios solares e seus efeitos profilticos e estticos definem o novo ideal para

    a nova cidade do sculo XX. Enquanto que na aparente preciso e objetividade de um

    conjunto de dados estatsticos no reconhecemos mais que gratuita comparao de

    jornal sensacionalista.

    Sobre o ofcio de cientista

    A prudncia manda, portanto, rechaar tanto a

    viso realista ingnua de um discurso cientfico

    como produto direto da realidade - lembremos

    dos cartgrafos do Imprio assim como uma

    viso construtivista relativista onde o discurso ci-

    entfico alimenta-se de uma infinidade de vises

    do mundo, subdeterminadas pelo mundo e ori-

    entadas por interesses e estruturas prximas

    aquelas utilizadas por Funes. A alternativa, como

    aponta Pierre Bordieu (2001), seria um

    racionalismo realista onde o fundamental no

    3. O esprito novo da nova arquitetura

    e do novo urbanismo.

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    estaria no seguimento de normas explcitas da lgica mas sim no ofcio, no sen-

    tido prtico dos problemas. Nesta, a investigao seria uma prtica consuetudin-

    ria, de costumes, cuja aprendizagem se realizaria mediante o exemplo e contra

    uma viso ingenuamente idealizada que coloca a comunidade cientfica no reino

    encantado da razo.

    possvel, portanto, que muitas das equivocaes que levam a esta perda de

    capacidade de sntese ou de sentido, especialmente no referente ao estudo de

    nossas cidades, possam ser evitadas com a utilizao de processos de reconheci-

    mento do lugar. O lugar enquanto experincia, espao vivido, espao afetado,

    projeo do espao mental interior, onde a imagem, em geral, e a cartografia, em

    particular, so formas de aproximao e representao; uma proposta de geografia

    da memria que explora os estratos do espao em busca de lugares. Descobrir os

    significados outorgados e construir novos significados. (Des)construir a cartografia

    ou construir sobre a cartografia geomtrica uma cartografia do lugar.

    Em resumo, cada umas destas trs formas de ver o mundo e exemplificadas anteri-

    ormente poderiam corresponder respectivamente aos trs principais aspectos da

    condio de sobremodernidade que caracterizam a vida contempornea e por conse-

    guinte o trabalho do investigador: superabundncia espacial, superabundncia de

    acontecimentos e individualizao das referncias (AUG, 1992). Ou seja, o mapa

    dos Cartgrafos do Imprio que chega escala 1:1, a memria de Funes ou sua

    incapacidade de sntese e finalmente uma srie de comparaes que denunciam

    certa incapacidade de ver um mundo que ainda no aprendemos a olhar.

    Utilizao dos recursos grficos

    A utilizao de recursos grficos de apoio a projetos de pesquisas na rea das

    Cincias Sociais Aplicadas e mais especificamente para o estudo em Histria da

    Cidade e do Urbanismo, costuma ser relacionada de forma equivocada com a

    vinculao da imagem grfica a uma forma simplificada e superficial de represen-

    tao e no a de uma forma de construo do discurso. Em contraposio, a

    utilizao intensiva do texto e das estatsticas est vinculada a um discurso carrega-

    do, denso e as vezes erudito. Esta percepo est fundamentada na idia de que

    os elementos grficos correspondem a meras ilustraes de um discurso pr-exis-

    tente. Ou seja, uma forma de apresentao mais clara e agradvel de contedos e

    no uma ferramenta de anlise, interpretao e representao cientfica.

    A utilizao dos procedimentos grficos para realizao de snteses temticas, de

    carter comparativo ou no, esto destinadas a identificar nas caractersticas es-

    paciais das cidades, as resultantes dos processos qualitativos e quantitativos que

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    determinam e caracterizam sua evoluo urbana. Existe portanto uma diferena

    clara entre a simples ilustrao e a utilizao de recursos grficos como ferramenta

    de aproximao cidade: a utilizao do processo grfico e no a ilustrao, o

    que caracteriza este tipo de recurso grfico. Porque no processo de sntese grfi-

    ca onde sero organizadas e verificadas as hipteses da investigao. Procedimen-

    to que permite uma viso clara e objetiva das relaes entre as categorias conceituais

    e estruturais que do forma e sentido a cidade. O discurso pode ser construdo

    fundamentalmente a partir do recurso grfico ainda que, e em menor medida, o

    recurso grfico pode ser utilizado como forma de sintetizar um discurso j existente.

    Neste ltimo caso, o processo grfico utilizado para desmontar o discurso e

    reconstru-lo a partir de uma outra perspectiva que, em alguns casos, pode permitir

    revelaes no necessariamente abordadas originalmente pelo texto.

    Barcelona em princpios da segunda metade do sculo XIX. Este mapa temtico relaciona ndice de mortalidade,

    obras particulares de saneamento e a proposta do engenheiro Ildefonso Cerd para a abertura de trs vias sobre o

    tecido urbano original. A sobreposio grfica destas informaes possibilitou analisar, com ajuda dos grficos na

    parte inferior (sntese dos dados rea interna) e superior (sntese dos dados das reas externas), o impacto que

    desde o ponto de vista sanitrio teriam as intervenes propostas pelo engenheiro catalo. Elaborao prpria.

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    Neste sentido entendemos o que aqui denominamos Atlas histrico de cidades. O

    Atlas, tal como entendemos, tem sua origem nas primeiras vistas de cidades do

    sculo XVI, quando estavam destinados a criar uma imagem do mundo acorde com

    um nascente mercantilismo de propores nunca havidas. Reuniam mapas e ima-

    gens de cidades com o propsito de fomentar a ocupao de recm-descobertos

    parasos terrestres ou divulgar as riquezas e o poderio de antigas cidades europi-

    as. Longe do simples carter pitoresco, estas imagens serviam a um propsito claro

    e estavam construdas como discurso. O esprito enciclopdico e utilitarista do s-

    culo XVIII marcar uma mudana qualitativa neste olhar e alm de mapear de

    forma mais precisa a cidade, impulsionar o interesse pela dimenso menos vis-

    vel; aspectos demogrficos, mdicos, sociais, culturais e econmicos do lugar que

    no apareciam claramente nas representaes de cidades. Era necessrio mostrar

    mais explicitamente aquilo que se escondia por detrs das fachadas: enfermida-

    des, pobreza, violncia e todas aquelas variveis no necessariamente geomtri-

    cas. A partir de ento podemos considerar que se definiram os padres deste olhar e

    que a disseminao a grande escala de equipamentos e aplicaes informticas,

    nos ltimos 20 anos, aportaram somente uma maior capacidade de produzir e tratar

    informao. Para as Cincias Sociais Aplicadas estas ferramentas se fizeram espe-

    cialmente importante nos ltimos 10 anos. No Brasil os estudos de histria da

    cidade e do urbanismo passou a apresentar uma grande quantidade e variedade de

    monografias que se destacaram, especialmente, por uma valorizao da informa-

    o documental. Ordenao de sries iconogrficas, realizao de levantamentos

    fotogramtricos, digitalizao de todo tipo de documentos grficos, elaborao de

    infinidades de bases de dados, etc., apareceram como objetivos de projetos de

    investigao. Ou seja, que em relao aos contedos estvamos a caminho do

    relativismo de Funes e em relao a representao a caminho do realismo ingnuo

    dos cartgrafos do Imprio. Esta busca e organizao de informao no por si

    nefasta, mas no podemos considerar como um objetivo de pesquisa e sim como

    um instrumento a mais do processo de investigao. Devido um certo

    sobredimensionamento da importncia destas ferramentas, a representao grfi-

    ca resultante de alguns destes trabalhos no sugeriam um juzo, uma tese, uma

    generalizao, uma sntese ou enfim, um modelo. Encontramos, por exemplo, as

    infinitas sries de mapas temticos apresentados como resultados de longos e

    laboriosos trabalhos de investigao para elaborao de planos diretores de cida-

    des que lograram, ao contrrio do que deveramos esperar, distanciar nossa per-

    cepo da realidade histrico-social da cidade. Porque de um plano diretor preci-

    so antes de tudo que possamos ver o modelo proposto; um mapa de sntese que

    saliente os rasgos gerais que direcionam o plano e no 500 fragmentos deste

  • 27

    modelo em forma de 500 mapas. Qualquer professor de projeto de uma escola de

    arquitetura sabe que quando um aluno no tem um bom projeto o primeiro que faz

    tentar passar diretamente a explicar detalhes sem explicar o partido e as solu-

    es gerais. Utilizando os desenhos a grande escala que distanciam o olhar da

    lgica do conjunto ou um uso exagerado de informao grfica, sem uma cuidado-

    sa ateno nas diferentes escalas e nveis de interpretao, este indivduo entorpe-

    ce a leitura e esconde a ausncia de contedo. Sem esquecer que, enquanto os

    processos no automatizados so cada vez mais desconsiderados, uma espcie de

    carisma tecnolgico outorga a alguns trabalhos uma percepo generalizada de

    carter e rigor cientfico nem sempre merecido pelo simples fato de ter sido elabo-

    rado com computador.

    As perspectivas sinalizam a que estes erros de percepo sero cada vez mais

    freqentes. Em 2006 a quantidade em formato digital de informao produzida

    correspondia a trs milhes de vezes quantidade de informao contida em todos

    os livros produzidos at ento

    7

    . Em 2010 a previso de que este nmero seja 18

    milhes de vezes maior. Sintetizar e dar sentido a quantidades de informao prpri-

    as de um mundo sobremoderno, e no somente a capacidade de ordenao desta

    informao, o verdadeiro desafio que nos enfrentamos como investigadores.

    Enquanto, desde o ponto de vista das Tecnologias da Informao e Comunicao

    verificamos a necessidade de desenvolver tcnicas mais sofisticadas para transpor-

    tar, armazenar, proteger e replicar as informaes que so geradas cada dia

    8

    , des-

    de o ponto de vista da seletividade que interessa ao investigador significa que

    devemos desenvolver ferramentas e processos capazes de trabalhar estas informa-

    es sem perder de vista nossos propsitos especficos. Neste sentido, para os

    propsitos do Atlas Histrico de Cidades, faz-se necessria a capacidade de snte-

    se por sobre a disponibilidade ilimitada de informao, seja histrica ou geogrfica,

    sob o risco de no produzir nem histria nem geografia. A este domnio devemos

    somar uma condio de utilidade, que permita mover este saber atravs de sime-

    trias e comparaes essencialmente teis ao estudo das cidades. Finalmente, po-

    der controlar a distncia entre a experincia prtica real e as explicaes formais

    que resultam de uma postura hipcritica onde o essencial salvar as regras

    (BOURDIER, 2001).

    possvel que somente devamos admitir as vantagens do fazer menos para ter

    mais tempo sobre o que fazemos.

    9

    Francisco de Assis da Costa Doutor Arquiteto pela Universidad Politcnica de Catalua e pro-

    fessor Adjunto da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia.

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    Notas

    1

    Este texto retoma um pequeno artigo publicado pelo autor na sesso Drops da revista eletrnica Vitruvius em maro

    de 2005 e foi publicado na Espanha pela Associao de Pesquisadores e Estudantes Brasileiros na Catalunha.

    2

    Surez Miranda: Viagens de Vares Prudentes, livro quarto, cap. XIV, Lrida, 1658. Fragmento selecionado por Jorge

    Luis Borges, Do Rigor na Cincia, in Histria Universal da Infmia, traduo Flvio Jos Cardozo, Porto Alegre,

    Globo, 1978.

    3

    Denominao aparecida em 1980 na revista BT e devida ao crtico de arte frans Christian Rigal.

    4

    Borge Luis Borges: Funes o memorioso. Traduo de Marco Antonio Frangiotti. Vitruvius.

    5

    A utilizao aqui, destacando a falta de capacidade para simplificar, sintetizar ou abstrair, por suposto somente uma

    das muitas leituras possveis que se pode extrair livremente destes personagens do universo literrio de Jorge Luis

    Borges. No h pretenso maior que aquela de incorporar, atravs destes exemplos, algumas referncias funda-

    mentais para o entendimento da proposta de aproximao ao estudo da cidade.

    6

    Elaborao prpria a partir de: proposta de Ildefonso Cerd para reforma de Barcelona, datos sobre obras de

    saneamento recolhidos no Archivo Municipal de Barcelona e dados de mortalidade publicados em GUARDIA

    BASSOLS, Manuel. MONCLUS, Francisco Javier. OYON, Jos-Luis. (Dir.) Atlas histrico de ciudades europeas. Centro

    de Cultura Contempornea de Barcelona/Salvat Editores. Barcelona, 1994. pg.75.

    7

    Segundo um informe produzido pela consultora IDC para EMC Corporation titulado The Expanding Digital Universe: A

    Forecast of Worldwide Information Growth Through 2010. EMC uma empresa dedicada ao desenvolvimento e

    instalao de tecnologias para infra-estruturas de informao. EMC News Release. Acesso em 12/03/2007 http://

    www.emc.com/news/emc_releases/showRelease.jsp?id=4932&l=en&c=US

    8

    John Gantz, Chief Research Officer and Senior Vice President, IDC.

    9

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