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144 XII Estudos de Cinema e Audiovisual Socine O filme cult: seus modos de recepção e seus públicos - Mahomed Bamba O flme cult: seus modos de recepção e seus públicos 1 Mahomed Bamba (UFBA) 2 “Os velhos títulos foram dizimados, mas os novos se multiplicaram, proliferando em todas as literaturas e culturas modernas. Só nos resta inventar para cada um de nós uma biblioteca ideal de nossos clássicos” (Ítalo Calvino, in Por que ler os clássicos) Filme cult: gênero ou simples rótulo? O que diferencia um “flme clássico” de um “flme cult”? Que tipo de leitura institui o flme dito cult? Deixando de lado a “teoria ideal dos gêneros”, acreditamos que qualquer tentativa de resposta pragmática a essas questões passa necessariamente pelo estudo dos usos e das apropriações simbólicas das obras na esfera social. Se preferimos abordar estas questões pela perspectiva da espectatorialidade, é porque pensamos que a noção ou o rótulo “cult” tem a ver, em primeiro lugar, com uma forma particular de percepção e de leitura dos textos fílmicos e com posturas estéticas de parcelas dos públicos cinematográfcos. Sendo assim, o objetivo deste trabalho é, de um lado, discutir os dados textuais e semióticos que justifcam a existência de uma categoria fílmica denominada cult e, por outro lado, examinar as lógicas constitutivas de “comunidades de interpretação” que, com seus discursos e seus modos de leitura, participam de uma defnição pragmática dos flmes cult. Mesmo sendo ainda um conceito vago e subjetivo, os chamados flmes cult existem de fato graças à disposição estética e ao investimento simbólico de alguns cinéflos e públicos que cultuam determinadas obras por diversas razões. Em nosso estudo de casos,

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O filme cult:

seus modos de recepção e seus públicos1

Mahomed Bamba (UFBA)2

“Os velhos títulos foram dizimados, mas os novos se multiplicaram,

proliferando em todas as literaturas e culturas modernas. Só

nos resta inventar para cada um de nós uma biblioteca ideal

de nossos clássicos” (Ítalo Calvino, in Por que ler os clássicos)

Filme cult: gênero ou simples rótulo? O que diferencia um “filme clássico” de

um “filme cult”? Que tipo de leitura institui o filme dito cult? Deixando de lado a “teoria

ideal dos gêneros”, acreditamos que qualquer tentativa de resposta pragmática a essas

questões passa necessariamente pelo estudo dos usos e das apropriações simbólicas

das obras na esfera social. Se preferimos abordar estas questões pela perspectiva da

espectatorialidade, é porque pensamos que a noção ou o rótulo “cult” tem a ver, em

primeiro lugar, com uma forma particular de percepção e de leitura dos textos fílmicos

e com posturas estéticas de parcelas dos públicos cinematográficos. Sendo assim, o

objetivo deste trabalho é, de um lado, discutir os dados textuais e semióticos que justificam

a existência de uma categoria fílmica denominada cult e, por outro lado, examinar as

lógicas constitutivas de “comunidades de interpretação” que, com seus discursos e seus

modos de leitura, participam de uma definição pragmática dos filmes cult.

Mesmo sendo ainda um conceito vago e subjetivo, os chamados filmes cult existem

de fato graças à disposição estética e ao investimento simbólico de alguns cinéfilos e

públicos que cultuam determinadas obras por diversas razões. Em nosso estudo de casos,

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evitamos uma análise estrutural dos filmes declarados cult. Preferimos, ao contrário,

procurar entender as lógicas e os critérios que determinam a escolha de certos filmes

para serem exibidos em eventos cinematográficos e na programação de canais de TV

dedicados ao cinema cult. E, como os filmes cult são também objeto de um constante debate

estético entre os fãs e cinéfilos, o nosso interesse acabou se voltando prioritariamente

para essa “produtividade” verbal que é uma dimensão consubstancial da recepção e da

definição desta categoria fílmica particular e alternativa. Para isso, realizamos uma revisão

crítica dos discursos proferidos pelos diferentes protagonistas (mediadores culturais e

internautas-telespectadores) e deparamo-nos com duas modalidades discursivas distintas

na sua forma, mas complementares nas suas respectivas tentativas e ambições de definir

o conceito de“filme cult”. Por exemplo, enquanto as interações verbais sobre o “Tópico

Telecine Cult” (encontradas num fórum de discussão) se destacam por sua informalidade de

tom, sua argumentação solta e espontânea, o texto do material de divulgação da III Semana

do Film Cult de Natal e o livro organizado pelos idealizadores do evento se apresentam

como uma formação discursiva mais estruturada, mais didática e informativa (destinada

a produzir uma forma de conhecimento sobre o filme cult). Percebemos assim que eram

os modos de percepção, de leitura e de enunciação do juízo de gosto que determinavam,

em última instância, a existência desse quase gênero fílmico. Com isso, nossa intenção

neste trabalho foi repensar a recepção cinematográfica a partir dos modos de apropriação,

ressignificação e “requalificação estética” de que os filmes são sempre objeto ao longo

de sua vida enquanto obra. São esses usos sociais do cinema que completam aquilo que

Iser (1995, p. 5) chama de “trabalho do texto” e determinam a recepção de um filme como

sendo cult. Sendo assim, podemos afirmar que, diferentemente do gênero fílmico, o rótulo

cult nasce no espaço da leitura e da recepção.

Para uma definição textual e pragmática do filme cult

Poucas obras são criadas propositalmente para serem lidas como cult. É um

qualificativo que pode surpreendê-las ao longo da sua evolução e decorre de uma

comunicação singular que se estabelece entre o texto fílmico e os públicos. A leitura cult

pode ocorrer também contra a intencionalidade das instâncias responsáveis da criação

do filmes, isto é, a revelia daintentio auctoris.Ora, a importância deste fator contextual

não deve nos levar a desconsideraro peso de alguns dados textuais de ordem estilística,

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retórica e semiótica que intervêm, antecipam e determinam o processo que, na leitura

ou releitura, transforma um filme (consagrado ou não pela crítica especializada) em obra

cult. Como afirma Iser, acontece que “o próprio texto dá de maneira antecipada seu modo

de recepção e, com isso, libera um potencial de efeito cujas estruturas desencadeiam e

até controlam o processo de recepção”(ISER, 1995, p.5). É isso que Umberto Eco (1984)

demonstrou com a análise estrutural que dedicou ao filme Casablanca(Michael Curtiz,

1942). Para Eco, o sucesso deste filme através do tempo e junto a novas gerações de

cinéfilos e fãs não se explica pela qualidade estética e narrativa da obra.3 O entusiasmo

sempre renovado dos públicos diante de Casablanca se explica pela “orgia de arquétipos

sacrificiais” (ECO, 1984, p. 266) que o estrutura como obra intertextual. Casablanca, diz

Eco, “não é um filme, é muitos filmes, uma antologia. Feito quase ao acaso, provavelmente

fez-se sozinho, se não contra, pelo menos além da vontade de seus autores, e de seus

atores” (ECO, 1984, p. 266-268). Desde esta análise de Eco sobre este clássico do cinema,

sabemos doravante que pode existir uma lógica de estruturação discursiva, narrativa e

temática interna a um filme que provoca, ocasionalmente, um tipo particular de fascínio

e paixonite no momento da sua recepção pelos públicos. Aqui se encontra um princípio

de definição estruturalista e pragmática do filme cult: é uma obra que é atravessada por

uma intertextualidade delirante. Esta dimensão discursiva e enunciativa é perceptível e,

consequentemente, faz sentido só no processo de leitura do filme. Como Casablanca,

outros filmes4se tornaram “fenômenos dignos de veneração” não só pela maneira como

são construídos, mas principalmente pelos modos como ostentam e demonstram tal

construção ao espectador.

O que diferencia um “filme clássico” de um “filme cult”?

Passamos assim de uma concepção textual e estruturalista a uma compreensão

mais pragmática do filme cult. É nesta perspectiva que o ato de leitura e de interpretação

se torna uma dimensão fundamental na definição do conceito cult e marca sua diferença,

por exemplo, com uma outra categoria que lhe é próxima: o “filme clássico”. Ambos são

objetos estéticos de “retorno cíclico” e de “releitura”. Sobre “os clássicos” da literatura,

por exemplo, Ítalo Calvino dizia que são “aqueles livros dos quais, em geral, se deve

dizer ’Estou relendo...’e nunca ‘Estou lendo’...” (CALVINO, 2007, p. 9). Das 14 propostas e

definições que Ítalo Calvino dá para o “clássico”, destaca-se, além do fator da “antiguidade”

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da obra, a importância do tipo de leitura prática que se faz dela. Além de interessar

preferencialmente aos “grandes leitores”, a “releitura” dos clássicos é mais praticada pelos

adultos do que pelos jovens. Neste interesse pelas “obras clássicas” perfila-se também

uma lógica de veneração dos autores consagrados. Afirmar, por exemplo, que se está

relendo um livro, diz Calvino, é, na maioria dos casos, uma afirmação falaciosa, “hipócrita”

e, portanto, estratégica, na medida em que poupa da vergonha e da censura pública as

pessoas que nunca leram um livro famoso. Mas como “os velhos títulos” da literatura

mundial se perderam ou foram dizimados, Ítalo Calvino relativiza a obrigatoriedade de ler

os clássicos,reconhecendo que “só nos resta inventar para cada um de nós uma biblioteca

de nossos clássicos” (CALVINO, 2007, p. 16). Essta biblioteca pessoal pode ser abastecida

com obras do passado e do presente.

Como a literatura, o cinema também tem seus clássicos. Eles são objeto do mesmo

tipo de deferência e de veneração. Inclusive estão inscritos nos programas escolares. Se

há um paralelo entre as obras clássicas do cinema e da literatura, este concerne à atividade

de releitura. Num elã melancólico e saudosista, alguns espectadores e cinéfilos se voltam

para os clássicos cinematográficos não só por causa de suas qualidades estéticas, mas

também por causa da parcela de “verdade” do passado que encerram. Paralelamente

ao culto do “clássico” na literatura e no cinema, existe um culto por obras que não são

veneradas por suas qualidades, mas, ao contrário, pelas vicissitudes circunstanciais

que marcaram sua produção enquanto obra. Se alguns filmes cult, como Casablanca,

podem ser simultaneamente considerados como “clássicos” e “cult”, é porque podem ser

venerados por outras razões além de sua “antiguidade” ou classicismo. Um clássico pode

ser cult por fazer falar “algo no lugar do diretor”, por solicitar a atenção do espectador

sobre seus defeitos que são sublimados como qualidades no ato da leitura. Dali uma

modalidade particular de (re)leitura que, ao completar a experiência estética, transforma-

se num trabalho de interpretação, de classificação e de requalificação de algumas obras

fílmicas em objetos simbólicos particulares. Esse investimento afetivo ou emocional pode,

às vezes, desembocar no fenômeno fandom. Com seus próprios critérios, os aficionados

do filme cult formam assim sua pequena cinemateca com filmes que eles cultuam e

consideram como obras malditas, incompreendidas ou injustamente ignoradas pela crítica

e pelos públicos num determinado momento histórico.

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Que disposição estética consagra o filme dito cult?

Mesmo se os filmes cult “funcionam” a despeito das teorias estéticas e das teorias

filmográficas (ECO, 1984, p.268), o fenômeno de adoração que opera na sua recepção

não deixa de ser estudado por seus aspectos estéticos e sociológicos. Esses aspectos

revelam, por outro lado, a dimensão subjetiva e intersubjetiva que sustenta qualquer

experiência estética. Acredito que a descrição destes aspectos extra-fílmicos é tão

primordial quanto a análise da organização interna dos textos fílmicos para se chegar a

uma compreensão mais abrangente e fina da mudança e da variação de acepções que

marcam hoje o uso da noção de culto (no discurso da crítica especializada e na produção

da avaliação estética do grande público). É nesse sentido que o estudo dos usos sociais

dos filmes e dos casos de apropriação simbólica das obras fílmicas (de forma individual,

grupal ou ritualística) se revela de uma grande utilidade heurística na compreensão de

outras dimensões da espectatorialidade e da recepção cinematográfica. Como frisa bem

Laurent Jullier, o poder das “liberdades interpretativas” em alguns contextos é tamanho

que o autor acaba, cedo ou tarde, sendo privado de sua obra: “uma vez que se encontra

no espaço público, literalmente posta no mundo, a obra é um artefato que está submetido

à avaliação (estética) que só lhe concerne” (JULLIER, 2002, p.182, tradução nossa).

Aqui estão esboçadas algumas das inquietações teóricas que nortearam nosso

estudo de casos que concernem a dois contextos de exibição/recepção dos filmes cult: a

Semana do Filme Cult (de Natal, Rio Grande do Norte) e o canal de televisão Telecine Cult

(da rede de TV por assinatura Sky). Nossa intenção neste trabalho foi tentar relacionar essa

reflexão teórica com um estudo de casos que revelam as determinações dos modos de

leitura na instituição do que se convencionou chamar de cinema ou filme cult. Sendo assim,

situamo-nos numa perspectiva que procura conciliar os procedimentos metodológicos

indutivo e dedutivo na apreensão dos fenômenos da recepção cinematográfica.

Análise de casos

Escolhemos um evento cinematográfico e um canal de TV porque a exibição e

a recepção dos filmes cult nesses dois contextos correspondiam a lógicas divergentes.

Procuramos examinar, através da produção discursiva encontrada nesses espaços de

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recepção, um princípio lógico e ordenador que presidaà classificação dos filmes cult, bem

como uma consciência comum e compartilhada do que é cult para os frequentadores

desses ambientes. Parte desta produção discursiva foi rastreada nos comentários, nas

entrevistas na impressa e num livro editado pelos organizadores da Semana do Filme

Cult. No caso de Telecine Cult, nos interessamos pelo debate entre internautas no fórum

“Cinema em Cena”.5.

Semama do Filme Cult de Natal

A ideia de organizar uma sessão especial de exibição de filmes cult6 em Natal

nasceu de uma parceria entre um “jornalista-cinéfilo-colecionador” e um cineclube de Natal.

Sua pretensão confessa é “dar maior visibilidade” a obras que “ficaram restritas a poucas

pessoas”. É um dos raros encontros cinematográficos no Brasil e na região Nordeste

que está voltado exclusivamente para a exibição de filmes cult. Entre outras coisas, o

que chamou mais nossa atenção foi a dupla função endossada pelos organizadores:

além de mediadores, eles adotam uma postura de produtores culturais, no sentido de

disponibilizar obras, mas também de pensar conceitualmente o objeto filme cult. Essa

“produtividade cultural”7 culminou, no ano 2010, na organização e publicação de um

livro-catálogo, documento que traz resenhas críticas dos principais filmes cult da história

do cinema. O livro (MARQUES, 2010) foi escrito de forma colaborativa, contando com

a contribuição de jornalistas e acadêmicos no sentido de analisar determinadas obras

e trazer informações sobre as opções estilísticas, narrativas e temáticas de cineastas-

autores. Algumas análises trazem também dados contextuais e informações sobre os

modos de produção dos filmes escolhidos.

Na análise do material bibliográfico produzido pelos idealizadores da Semana do

Filme Cult de Natal –o livro 80 Cult Movies essenciais (MARQUES, 2010) –, pudemos

encontrar algumas características básicas destacadas por John Fiske (2008) na “economia

cultural do fandom”. Trata-se de um verdadeiro caso de produção de conhecimentos, por

parte de fãs aguerridos. Este conhecimento é posto à disposição de outros adoradores dos

filmes cult. Desde as primeiras páginas introdutórias do livro, os autores confessam sua

perplexidade diante da tarefa de definir o conceito cult: “No momento de organizar o projeto

100 Filmes Cult Fundamentais, uma dúvida chegou a nos inquietar: Afinal de contas, qual

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a definição para os filmes cult?” (MARQUES, 2010, p. 15). Esta aparente dificuldade foi, ao

contrário, uma motivação a mais para propor uma definição do filme cult que estivesse em

consonância com os objetivos de promover um evento exclusivamente voltado para esse

tipo de filmografia. Além das análises fílmicas, o livro avança três critérios para justificar a

seleção dos filmes analisados (um total de 80 filmes). Estes mesmos critérios, segundo os

autores, servem também de parâmetros consensuais para uma definição dos filmes cult:

1. Para ser considerado “filme cult”,o indicado deveria ter, necessariamente, um

número expressivo de “cultuadores”, não se limitando apenas ao seu país de

origem,muito menos ao circuito exibidor onde tenha feito fama.

2. O tempo também representa um dos fatores de maior importância na consideração

do filme cult, ou seja, dez, vinte anos após a primeira exibição ele ganha “director’s

cuts”, versões estendidas (“reduxes”) para cinema, não apenas destinados ao

circuito doméstico das locadoras ou tevês por assinatura.

3. Indispensáveis na formação do conceito, encontram-se ainda alguns ou diversos

episódios que justifiquem a consagração do cult perante seus seguidores, (caso

de fracassos monumentais de bilheteria). Como podemos ver, além do seu caráter

subjetivo e essencialista, os critérios aqui elencados destacam a importância do

fator tempo e o investimento simbólico dos “cultuadores” nessa empreitada de

requalificação semântica de um grupo de filmes. Estamos longe da lógica da teoria

dos gêneros literários ou cinematográficos, por exemplo.

Quando Telecine Classic vira Telecine Cult

No caso do Telecine Cult, preferimos um estudo da produtividade verbal

dos telespectadores-internautas a um estudo da programação propriamente dita.

O Telecine Cult ocupa um lugar particular na lógica de segmentação dos canais

e dos públicos da Rede Telecine.8 Diferentemente dos demais canais, ele visa

um público supostamente exigente em termos de gosto.9 A existência do Telecine

Cult se configura como um caso de uso estratégico do conceito cult no ambiente

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da TV por assinatura. Este uso do rótulo cult com finalidades comerciais tem

como consequência criar, às vezes, uma ambiguidadeentre o Telecine Cult e os

demais canais dedicados a outros gêneros de filme (tal como a confusão entre a

programação de Telecine Classic e de Telecine Cult, por exemplo). Na verdade,

houve uma transformação do antigo canal Telecine Classic em Telecine Cult.

Essa decisão repentina da rede Telecine gerou um curto-circuito no horizonte de

expectativa dos telespectadores e uma confusão nos filmes programados. Os

grandes clássicos do cinema passaram assim a ser exibidos juntos com filmes

com um viés mais “alternativo”.

Por outro lado, mesmo que a exibição televisiva dos filmes cult conduza

a uma experiência espectatorial individual, essa recepção doméstica não impede

a formação de uma verdadeira comunidade de interpretação com base numa

afinidade eletiva e num sentimento de identificação com um mesmo objeto

estético. Alguns telespectadores de Telecine Cult costumam se encontrar num

fórum de discussão para compartilhar suas impressões e opiniões a respeito

da programação oferecida na semana ou no mês pelo canal. A interação verbal

funciona não só como uma maneira de os internautas-telespectadores reforçarem

sua identidade com o canal: é uma forma de experiência intersubjetiva.

Revisamos os chats de 2005 a 2006. Alguns posts lembram as cartas dos

fãs de séries televisivas (parabenizando o canal), mas, globalmente, as interações

se concentram na confusão de gêneros constatada na programação. Sendo assim,

as discussões são mais focadas na tentativa de separar o que é “cult” e o que não o

é. A participação ativa e polêmica dos internautas no “Tópico: Telecine Cult”, abriga-

do no “Fórum Cinema em Cena/Na telinha/TVpaga”, confirma essa autoconsciência

estética de um grupo e de uma tribo que compartilham um objeto simbólico. Mas

todo o paradoxo do tópico em questão é o fato de ter sido criado por uma internauta

que não se reconhece totalmente na “mania” de rotular alguns filmes:

Acho que ainda não tem nenhum tópico relacionado ao novo

canal da rede Telecine, então...Seguinte, eu acho que o canal

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está ótimo, passando filmes excelentes e tudo mais. Mas que porra de nome é esse? “Cult” é uma parada elitista e nojenta, especialmente os comerciais do canal “Três em cada 10

pessoas vão gostar deste canal” ou mostrando fotos de Fritz Lang, Woody Allen e Ettore Scola pra mostra o que É cult. Esses rótulos são péssimos. É cinema e acabou. A diferença é que eu nao chamo explosoes e velozes e furiosos de cinema. Pra

MIM existe cinema BOM e cinema RUIM. Mas é claro que isso é muito subjetivo, pq muda de pessoa para pessoa. Aposto que pra muita gente, Vittorio DeSica é um saco. Fazer o quê. Anyway, sou nova aqui, entao se postei no fórum errado (deveria ser no de Televisão? nao sei, pq Telecine nao é programa) por favor transfiram o tópico.10

Diante de tal afirmação, a reação dos “verdadeiros” adoradores do filme

cult não tardou,confirmando assim o sentimento e o espírito de grupo entre

alguns telespectadores de Telecine Cult. Foi, sobretudo, a pergunta crucial

“Afinal, qual a definição de um filme cult?”, relançada por um outro internauta,

que serviu de estopim para que a interação verbal deslizasse para os meandros

de uma espécie de reflexão sobre o conceito “cult”. Enquanto uns confessavam

a dificuldade de definir um “conceito muito (tão) amplo e subjetivo”, outros se

contentavam em declarar que preferiam o “Cult ao Classic” ou que o Telecine

Cult era “o melhor Canal da NET”. Outros internautas questionavam o fato de

“alguns filmes da década de 80 que fizeram fama na sessão da tarde” estarem

passando no Telecine Cult.

A Semana do Filme Cult de Natal e o Telecine Cult são contextos de exibição

fílmica que se estruturam como práticas de recepção controlada e canalizada

pelas seleções e pela qualificação dos filmes antes de sua exibição,11mas também

pela produção de informações que completam a leitura desses filmes. Sendo

assim, a mostra e o canal de televisão podem ser considerados como práticas de

mediação que fomentam a formação de “comunidades de interpretação”.12 São

também lugares informais de consagração das obras. Entre as comunidades de

interpretação que se formam em torno dos dois contextos de exibição do filme

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cult, nota-se o mesmo tipo de preconceito e discriminação que faz com que

alguns grupos se autoclassificam ao mesmo tempo em que procuram classificar

determinados produtos culturais. Mesmo que o sistema de valores, nesse

trabalho de classificação, seja diferente das normas que regem a cultura oficial,

ele revela um habitus através do qual estas comunidades de interpretação

tentam se distinguir do resto da massa informe dos públicos cinematográficos.

Conclusão

Por fim, acreditamos que um estudo dos filmes cult enquanto gênero ou

subgênero fílmico deve começar pela definição dos tipos de relações que os públicos

e as comunidades de interpretação travam com os filmes num determinado momento

histórico. Desde sua fase de criação até o momento de se tornar objeto de culto ou

não, um filme é preso numa rede de leituras e interpretações divergentes (e, às vezes,

convergentes) no espaço social. Isso faz parte de suas vicissitudes enquanto obra.

As conclusões desta rápida análise dos dois casos corroboram a existência, no

fenômeno de filme cult, de muitos aspectos comportamentais que lembram a cultura

dos fãs, notadamente no que diz respeito à complementaridade e continuidade entre

adoração e “produtividade” para com determinados objetos culturais e simbólicos na

esfera da recepção. O estudo dos dois casos estudados demonstra uma diferença entre

as lógicas de seleção e de exibição dos filmes cult num evento cinematográfico e na

programação de uma TV. O teor da produção bibliográfica sobre o tema e as reações

e interações verbais dos internautas-fãs confirmam também a existência, no contexto

brasileiro, de uma cultura de cinefilia particular voltada para a apreciação exclusiva

de obras fílmicas que se apresentam como o rótulo “cult”. Só um estudo da recepção

por um viés sociológico, antropológico e empírico pode dizer se as “comunidades de

interpretação” encontradas aqui no contexto brasileiro se distinguem ou não, por alguns

aspectos idiossincráticos, dos outros públicos cinematográficos do resto do mundo no

que diz respeito à definição, apreciação e avaliação estética dos filmes cult.

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1. Trabalho apresentado no Seminário temático-Indústria e recepção cinematográfica e audiovisual; Sessão 1 (14º encontro-Socine-2010)

Page 12: 2ÀOPH cult seus modos de recepção e seus públicosmahomedbamba.com/site/wp-content/uploads/2017/12/009-1.pdf · No caso do Telecine Cult, preferimos um estudo da produtividade

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2. UFBA/PósCom, Professor adjunto I. E-mail: [email protected]

3. Filme que Eco considera como “modestíssimo” e “barroco” por causa de um acúmulo de elementos heteróclitos retirados do “repertório de já comprovado” (1984, p.264).

4. Cf.Staiger (2008).

5. Interações entre 2005 a 2006. Disponível em:<http://www.cinemaemcena.com.br/forum/forum_posts.asp?TID=9455>. Acesso em: 3 jul. 2011.

6. Cf. programação da 3ª edição no site do evento: <http://cineclubenatal.blogspot.com/2009/05/iii-semana-do-filme-cult.html>. Acesso em: 3 jul. 2011.

7. Usamos este conceito no sentido que tem na teoria Fandom de John Fiske, que afirma que os fãs, além de muito participativos na obra, são particularmente “produtivos”. Fiske classifica a “produtividade” espectatorial em três tipos: uma produtividade semiótica; uma produtividade enunciativa e, por fim, uma produtividade textual (FISKE, 2008, p.449-450).

8. Telecine é uma rede de cinco canais da TV por assinatura (das operadoras NET e Sky).

9. Esta preocupação com um público diferenciado, aliás, está também presente no Canal Brasil,que tem um dia e um horário específico para filmes nacionais ditos cult(“BRASIL CULT”), na sua programação.

10. Transcrição ipsislitteris do post. Disponível no site: <http://www.cinemaemcena.com.br/forum/forum_posts.asp?TID=9455>. Acesso em: 2 jul. 2011.

11. Por exemplo, além de Telecine Cult, a Rede Telecine oferece quatrooutros canais (Telecine Premium, Telecine Action,Telecine Light e Telecine Pipoca) “dedicados a diferentes gêneros de cinema”.

12. Entendidas como “sistemas e instituições de autoridade que geram, ao mesmo tempo, textos e leitores” (COMPAGNON, 1998). No entanto, o termo “comunidades de interpretação” pode se referir também a um grupo sujeitos que têm em comum o ato da leitura e da interpretação de um “produto” cultural enquanto texto.