40
3 A Comissão de Direitos Humanos 3.1. A Comissão e suas atribuições gerais Atendendo aos preceitos do artigo 68 da Carta da ONU 1 , o Conselho Econômico e Social (ECOSOC) organiza em 1946 uma comissão dedicada à promoção dos direitos humanos, batizando-a de Comissão de Direitos Humanos. O ECOSOC instruiu a nova comissão a desenvolver propostas para: a) a criação de uma carta internacional de direitos b) a promoção de convenções e declarações relativas a liberdades civis, o “status” da mulher, liberdade de informação, etc. c) a proteção de minorias d) a prevenção da discriminação no tocante à raça, sexo, língua ou religião. e) qualquer outro assunto relativo aos direitos humanos. A Comissão Sobre Direitos Humanos conta, hoje 2 , com representantes de 53 Estados, eleitos pela Assembléia Geral para mandatos de 3 anos que se reúnem anualmente por um período cinco ou seis semanas 3 . A Comissão encomendaria e examinaria estudos, elaborados geralmente por rapporteurs ou pelo Centro de Direitos Humanos 4 em Genebra, que constitui uma divisão do Secretariado da ONU. Além dessa e outras tarefas, a Comissão destinar-se-ia, principalmente, a investigar as 1 Artigo 68: “O Conselho Econômico e Social criará comissões para os assuntos econômicos e sociais e a proteção dos direitos do homem, assim como outras comissões que forem necessárias para o desempenho de suas funções”. 2 Após a expansão de 1992. 3 A escolha dos Estados-membros obedece a uma distribuição geográfica pré-definida, qual seja: 15 países africanos, 12 asiáticos, 11 latino-americanos e do Caribe, 5 da Europa do Leste e 10 da Europa ocidental e outros países. 4 Até 1982 chamado de Divisão para Direitos Humanos

3 A Comissão de Direitos Humanos - DBD PUC RIO · rascunho da Declaração sobre o Direito de Asilo completado pela Comissão por volta ... adotado pelo ECOSOC em 1956. Obrigava-se,

Embed Size (px)

Citation preview

3 A Comissão de Direitos Humanos

3.1. A Comissão e suas atribuições gerais

Atendendo aos preceitos do artigo 68 da Carta da ONU1, o Conselho Econômico

e Social (ECOSOC) organiza em 1946 uma comissão dedicada à promoção dos

direitos humanos, batizando-a de Comissão de Direitos Humanos.

O ECOSOC instruiu a nova comissão a desenvolver propostas para:

a) a criação de uma carta internacional de direitos

b) a promoção de convenções e declarações relativas a liberdades

civis, o “status” da mulher, liberdade de informação, etc.

c) a proteção de minorias

d) a prevenção da discriminação no tocante à raça, sexo, língua ou

religião.

e) qualquer outro assunto relativo aos direitos humanos.

A Comissão Sobre Direitos Humanos conta, hoje2, com representantes de 53

Estados, eleitos pela Assembléia Geral para mandatos de 3 anos que se reúnem

anualmente por um período cinco ou seis semanas3. A Comissão encomendaria e

examinaria estudos, elaborados geralmente por rapporteurs ou pelo Centro de

Direitos Humanos4 em Genebra, que constitui uma divisão do Secretariado da ONU.

Além dessa e outras tarefas, a Comissão destinar-se-ia, principalmente, a investigar as

1 Artigo 68: “O Conselho Econômico e Social criará comissões para os assuntos econômicos e sociais e a proteção dos direitos do homem, assim como outras comissões que forem necessárias para o desempenho de suas funções”. 2 Após a expansão de 1992. 3 A escolha dos Estados-membros obedece a uma distribuição geográfica pré-definida, qual seja: 15 países africanos, 12 asiáticos, 11 latino-americanos e do Caribe, 5 da Europa do Leste e 10 da Europa ocidental e outros países. 4 Até 1982 chamado de Divisão para Direitos Humanos

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

49

violações a direitos humanos e a receber e processar comunicações relacionadas às

mesmas.

A evolução dos trabalhos da Comissão Sobre Direitos Humanos costuma ser

dividida em três fases principais5: a de redação de normas gerais, de 1947 a 1954; a

de promoção dos valores (através de cursos, publicações, etc.), de 1955 a 1966; e a de

iniciativas para a proteção de direitos, a partir de 1967. As duas primeiras etapas

correspondem ao período chamado de “abstencionista”, já a terceira, que prossegue

no presente, constitui a fase “intervencionista”.

Em 1948, Eleanor Roosvelt, primeira presidente da Comissão de Direitos

Humanos, afirmou que a Comissão deveria ocupar-se principalmente em esboçar

convenções e documentos sobre temas específicos. De fato, nos seus primeiros anos,

a Comissão esteve a tal ponto ocupada com a elaboração dos Pactos Internacionais de

Direitos Humanos que não pôde, por exemplo, cuidar do esboço de uma convenção

sobre genocídio em 1948 ou considerar a questão da autodeterminação, conforme

solicitado pela Assembléia Geral em 1951. Para Phillip Alston: “ The Commission’s

effectiveness in preparing the first draft of the Covenants also came at the cost of its

non-involvement in the drafting of an important range of other human rights

instruments during the same period”6

Pode-se observar que a fase “abstencionista” deriva da relutância dos Estados em

reconhecer a competência da CDH para agir em casos concretos, e em aceitar a

criação de mecanismos destinados a avaliar e opinar sobre sua atuação doméstica.

Assim, na sua primeira sessão em 1947, a CDH procedeu a uma “autodenegação” de

sua competência ao afirmar: “A Comissão reconhece que não tem competência para

tomar qualquer medida a respeito de reclamações concernentes aos direitos

humanos”.

3.2. A Comissão e a elaboração de normas gerais

5 J.A.Lindgren Alves. Os Direitos Humanos como Tema Global. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994, p. 6. 6 Philip Alston, op. cit., pp. 131-132.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

50

Vale dizer que a fase “abstencionista” permitiu a elaboração de normas,

consubstanciadas em convenções, declarações e pactos. De fato, foi nesse período

que surgiu a Carta Internacional de Direitos Humanos, composta pela Declaração

Universal de Diretos Humanos (1948) e pelos Pactos Internacionais sobre Direitos

Civis e Políticos e sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966).

Um claro golpe a esse afinco e empenho da Comissão de Direitos Humanos na

redação de normas gerais foi dado pela relutância dos Estados Unidos, o mais

influente membro das Nações Unidas, em aderir aos diversos acordos internacionais,

inclusive os Pactos. Ainda assim, a Comissão conseguiu levar adiante o trabalho de

elaboração dos mesmos, completando-os em 1954. A partir de então, contudo, houve

um declínio nas tarefas de elaboração de normas da CDH, exceções sejam feitas ao

rascunho da Declaração sobre o Direito de Asilo completado pela Comissão por volta

de 1960 e ao trabalho de revisão e debate da Declaração sobre os Direitos da Criança

que foi finalmente adotada pela Assembléia Geral em1959.

O período de 1961 a 1976 representa uma fase em que a Comissão comportou-se

muito mais como um órgão de aconselhamento técnico para a Assembléia Geral, do

que propriamente como um mecanismo de elaboração e esboço de instrumentos

normativos. De fato, nesse lapso de tempo, a iniciativa na maioria dos casos recaía

sobre a própria Assembléia Geral, que muitas vezes atuava unilateralmente, como

quando da adoção do Protocolo Opcional ao Pacto de Direitos Civis e Políticos

(1966), em que a participação da CDH foi considerada desnecessária.7 Além disso,

mesmo quando a Comissão em tese atuava na elaboração de normas e tratados, quem,

na verdade, preparava o esboço inicial e por vezes fazia todo o trabalho era a Sub-

Comissão Sobre Prevenção de Discriminação e Proteção de Minorias.

A partir de 1977, a Comissão de Direitos Humanos novamente ganhou certo

protagonismo no papel de standard-setting. Nesse mesmo ano, a Assembléia

escolheu a Comissão como o foro propício para a elaboração do rascunho da

Convenção sobre a Tortura, que seria finalmente adotada em 1984. Da mesma forma,

coube à Comissão, por indicação do governo da Polônia em 1978, o trabalho de

elaboração do rascunho da Convenção sobre os Direitos da Criança que terminaria

7 Ibid., pp. 134-135.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

51

por ser adotada em 1989. É bem verdade, todavia, que a despeito desse crescimento

na autuação da CDH, ela estava longe de gozar de um monopólio na elaboração dos

rascunhos. Com efeito, a Assembléia Geral por diversas vezes avocou-se essa tarefa,

atuando quase que independentemente, por exemplo, no esboço do Segundo

Protocolo ao Pacto de Direitos Civis e Políticos, que objetivava a eliminação da pena

de morte e foi adotado em 1989, e na elaboração do Corpo de Princípios para a

Proteção de Todas as Pessoas Submetidas a Alguma Forma de Detenção, adotado em

1988.

3.3. A Comissão e a atividade promocional

A atividade promocional da Comissão de Direitos Humanos foi claramente

impulsionada por países como os Estados Unidos e o Reino Unido, que

consideravam-na uma boa alternativa ao papel de elaboração de normas gerais e

standard-setting, que tão veemente repeliam e boicotavam. Assim, em 1953, os

Estados Unidos lançam o chamado “plano de ação”, que englobava um sistema de

relatórios periódicos por parte dos países, uma série de estudos e um programa de

seminários, incluindo-se serviços de consultoria e aconselhamento (advisory

services).8

O sistema de relatórios periódicos proposto pelos Estados Unidos foi finalmente

adotado pelo ECOSOC em 1956. Obrigava-se, então, os países a submeterem um

relatório trienal descrevendo os desenvolvimentos e progressos alcançados durante os

três anos precedentes na área dos direitos humanos, bem como as medidas tomadas

para salvaguardar a liberdade humana. Após diversas discussões acerca de quem

deveria revisar os relatórios e diante da falta de substância dos mesmos, decidiu-se

abandonar o sistema em 1981.

Também a partir do “plano de ação” foi realizada uma série de seminários e

estudos na área dos direitos humanos sob os auspícios da CDH. É curioso notar,

8 Ibid., pp. 133 e 182.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

52

contudo, que o tema objeto dos mesmos não era escolhido pela Comissão e, sim, pelo

país-sede, assegurando assim um caráter abstrato e genérico, evitando a discussão de

temas polêmicos que pudessem causar embaraços a seus organizadores. A partir de

1987, mudou-se um pouco o enfoque, passando-se a privilegiar programas de

treinamento e capacitação na área dos direitos humanos, com a realização de cursos e

workshops em cidades como Assunção, Manilha, Moscou, Montevidéu e Nova Déli.

No tocante aos serviços de aconselhamento propostos pelos EUA em 1953, com

base na idéia de que as sociedades pré-democráticas solicitariam assistência ao

elaborar suas constituições e códigos penais e ao realizar eleições, pode-se dizer que

muito pouca aplicação prática tiveram no período de 1955 a 1980. No decorrer dos

anos 80, contudo, verificou-se um considerável aumento no número de solicitações de

assistência técnica das Nações Unidas, em países como Bolívia, Guatemala, Haiti,

Guiné, Uganda e Guiné Equatorial. Esse crescimento quantitativo não significou,

todavia, a garantia de efetividade das atividades de assistência. De fato, muitas

críticas foram feitas, por exemplo, a atuação da Comissão em Guiné Equatorial, onde

o aconselhamento e assistência fornecidos por mais de uma década não foram

capazes de assegurar o estabelecimento de uma democracia representativa ou a

criação de um quadro institucional capaz de promover o respeito aos direitos

humanos.9 Parece indicado fazer uma reavaliação acerca do modo como esses

programas de assistência e aconselhamento estão sendo implementados, bem como

acerca da plausibilidade e praticidade dos mesmos.

3.4. A Comissão e a proteção de direitos e respostas a violações

No início de suas atividades, a Comissão se autodenegou o poder de atuar com

base em queixas relativas a violações de direitos humanos, no que ficou conhecido

como doutrina de 1947. De fato, a resolução 75 (V) de 1947 previa que a Comissão

9 Ibid., pp. 186-187.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

53

seria simplesmente informada, de modo confidencial, de queixas recebidas10, sem ter

acesso à identidade dos atores envolvidos, ficando-lhe vedada toda sorte de ações

práticas no sentido de responder às violações. O objetivo alegado desse procedimento

era dar uma idéia do tipo de problemas e transgressões correntes no mundo. Para

Phillip Alston: “In any event, there is no question that this highly restrictive and

unproductive procedure failed to do justice to the concerns and hopes of the tens of

thousands who petitioned to the United Nations annually”.11

Tal abstencionismo tem suas justificativas nas posições adotadas pelos diversos

países. O bloco ocidental, por exemplo, não estava interessado no desenvolvimento

de procedimentos que autorizassem a realização de investigações mais aprofundadas

que pudessem futuramente lhe criar embaraços em alguns temas, como discriminação

racial (para os Estados Unidos, principalmente) ou práticas coloniais abusivas (para

países como Reino Unido, França e Bélgica, entre outros). No bloco soviético,

igualmente, temia-se que com a criação de mecanismos que quebrassem o princípio

da não-intervenção, assegurado no artigo 2º (7) da Carta das Nações Unidas, as

práticas estalinistas passassem a ser objeto de investigações discriminatórias e

acabassem por ensejar intervenções no âmbito doméstico do Estado.

Nos anos 60, uma série de fatores combinados levaria, finalmente, ao abandono

da doutrina de 1947. Em primeiro lugar, podemos citar a considerável mudança na

composição da organização, com a entrada de novos membros vindos do processo de

descolonização da África e da Ásia12. Em segundo lugar, vale destacar a criação da

Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial em 1965,

que contemplava no seu artigo 14 a possibilidade de submissão, por indivíduos ou

grupos, de reclamações em face de Estados que aceitassem o procedimento. Esse

procedimento serviu de precedente para que, no ano seguinte, se adotasse um

Protocolo Opcional ao Pacto Sobre Direitos Civis e Políticos que também autorizava

o encaminhamento de queixas aos Estados-parte.

10 Num período de 13 meses entre 1951 e 1952 a Comissão recebeu mais de 25.000 comunicações. 11 Philip Alston, op. cit., pp. 140-141. 12 O ECOSOC pulou de 18 membros em 1961 para 32 em 1966, 20 dos quais pertencentes ao Terceiro Mundo.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

54

Contudo, o mais importante desenvolvimento que definitivamente contribuiria

para a adoção de procedimentos de proteção a direitos no âmbito da Comissão de

Direitos Humanos, foi a decisão tomada pelos países do Terceiro Mundo e endossada

pelos países do Leste europeu, acerca da necessidade da criação de procedimentos

extraconvencionais de recebimento de comunicações, como forma efetiva de

combater as políticas colonialistas e o racismo, principalmente na África do Sul.

Diferentemente dos procedimentos convencionais, que obrigam apenas os Estados

contratantes de convenções específicas de direitos humanos, os procedimentos

extraconvencionais buscam vincular os membros das Nações Unidas, com base em

uma interpretação ampla dos objetivos de proteção aos direitos humanos da ONU e

do dever de cooperação dos Estados para alcançar tais objetivos.

Já em 1965, ao ser advertido pelo Comitê de Descolonização sobre comunicações

de torturas e maus tratos infligidos a prisioneiros políticos sul-africanos pelo Governo

aparteísta de Pretória, o ECOSOC decidiu recomendar à CDH a consideração

urgente do assunto. Um ano mais tarde, a resolução 1102 (XL) do próprio ECOSOC

autorizava a Comissão a considerar as violações de direitos humanos, com referência

expressa a questões como discriminação racial, segregação e apartheid, em quaisquer

países, mas principalmente em territórios coloniais ou dependentes. O caráter

restritivo da resolução acima foi suplantado pelo teor mais genérico da resolução

2144 (XXI) da Assembléia Geral, de 1966, que conclamava a CDH a considerar os

meios e caminhos necessários para interromper as violações de direitos humanos,

onde quer que elas ocorressem.

Todos esses desenvolvimentos podem ser considerados os movimentos

precursores do que, a partir de 1967, ficaria consagrado como o período

intervencionista da CDH.13

Ainda em 1967 o Conselho Econômico e Social adota a resolução 1235,

intitulada Questão das violações dos direitos humanos e liberdades fundamentais,

inclusive políticas de discriminação racial e de apartheid, em todos os países, com

referência especial aos países e territórios coloniais e dependentes. Desse modo, a

CDH levanta a barreira auto-imposta a sua competência diante de casos concretos de

13 J.A.Lindgren Alves, op. cit., p. 6.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

55

violação. Já em 1967, estabelece-se um Grupo Especial de Peritos sobre a situação

dos Direitos Humanos na África Austral. Em 1969, surge o Grupo Especial de Peritos

para investigar alegações de violações por Israel da Convenção de Genebra de 1949

nos territórios árabes ocupados. Em 1975, designa-se um Grupo de Trabalho Especial

para investigar sobre a situação de direitos humanos no Chile. Este foi o primeiro

caso de investigação ostensiva de situação específica não-atinente ao apartheid, ao

colonialismo ou à ocupação estrangeira, ampliando o escopo original da resolução

1235.

Faltava à CDH desenvolver método para considerar as queixas que, desde 1947,

recebia passivamente. Assim, após muita discussão, o ECOSOC aprovou em 27 de

maio de 1970 a resolução 1503, intitulada: Procedimento para lidar com

comunicações relativas a violações de direitos humanos e liberdades fundamentais.

A resolução 1503 autoriza a Comissão a investigar comunicações (queixas) que

“appear to reveal a consistent pattern of gross and reliably attested violations of

human rights”. Este mecanismo é extremamente cauteloso com as soberanias

nacionais. As deliberações são mantidas em sessões fechadas, sem acesso ao público

ou a observadores de qualquer espécie, havendo apenas o anúncio em sessão aberta

dos países que são objeto de consideração. A maior sanção prevista pela resolução

1503 consiste na publicidade, passando o caso à consideração em sessão ostensiva,

sob a 1235.

Muito embora estes mecanismos tenham gerado grandes esperanças quanto a uma

maior efetividade da Comissão na proteção a direitos e na resposta às violações aos

mesmos, os registros de sua primeira década de atuação mostraram-se profundamente

decepcionantes. De fato, regimes transgressores de direitos humanos como o de Idi

Amin em Uganda e o de Pol Pot no Camboja pouco protagonismo tiveram nas

discussões da Comissão.

Inúmeras críticas foram, então, formuladas relativas tanto à demora nas respostas

e à complexidade burocrática e procedimental, quanto à suposta preferência da

Comissão em proteger os opressores, mais do que as próprias vítimas.

Mais especificamente sobre o procedimento 1503, afirma J.A.Lindgren: “Saudada entusiasticamente, ao ser adotada, como uma iniciativa que criava o direito individual de petição às Nações Unidas, a resolução 1503 decepcionou os ativistas mais

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

56

ardorosos, que passaram a criticá-la por seus procedimentos indevassáveis, sua prática lenta e as considerações e cautelas políticas envolvidas em cada decisão”14.

3.4.1. O procedimento confidencial 1503

Em primeiro lugar, cumpre ressaltar que muito embora o procedimento 1503

assegure o direito de petição individual à Comissão de Direitos Humanos, ele não se

destina a uma proteção dos indivíduos, assegurando direitos de reparação ou

compensação. Na verdade, o procedimento se destina a identificar um padrão

consistente de violações graves, servindo as comunicações individuais simplesmente

como elementos de prova. Segundo Philip Alston: “an individual victim is but a piece

of evidence whose case might, if accompanied by a sufficient number of related cases,

spur the United Nations into action of some kind”.15

Aprovado pelo ECOSOC em 27 de maio de 1970, pela resolução 1503 (XLVIII),

o procedimento confidencial pode ser divido em distintas etapas.

Primeiramente, atua o chamado Grupo de Trabalho Sobre Comunicações, que no

âmbito da Sub-Comissão Sobre Prevenção de Discriminação e Proteção de Minorias,

procede a uma seleção das diversas comunicações recebidas, selecionando aquelas

que pareçam revelar um padrão consistente de violações graves, para

encaminhamento ao pleno da Sub-Comissão. A própria resolução prevê diversas

situações em que se deve rejeitar a comunicação, como, por exemplo, no caso de

faltarem provas substanciais da violação, na hipótese de haver manifestas motivações

políticas, ou, ainda, no caso de não se terem esgotado todas os recursos domésticos

possíveis.

Num segundo momento, a Sub-Comissão, formada no seu todo por 26

membros16, escolhidos de acordo com sua capacidade e técnica, embora mantenham

certos laços com seus países de origem, decidirá, em conjunto e por maioria simples,

ora encaminhar o país à Comissão, ora reconsiderá-lo no ano seguinte, ou, ainda,

simplesmente deixá-lo de fora do procedimento. Neste estágio, os governos

14 Ibid., p. 10. 15 Philip Alston, op. cit., p. 146.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

57

envolvidos são convidados a apresentar observações por escrito e a defender-se

perante a Comissão.

Uma vez na Comissão, o caso em questão passa à atenção do chamado Grupo de

Trabalho Sobre Situações, constituído em 1974 e composto de cinco membros, que

cuida da elaboração de recomendações à CDH sobre cada uma das situações em

exame.

Em seguida, caberá a Comissão decidir, no âmbito de suas sessões anuais, o tipo

de ação a ser seguida. Segundo o parágrafo 6º e 7º da resolução, poderá a Comissão:

a) manter o caso sob revisão, sendo mais provas reunidas até o ano seguinte, quando

o governo interessado será novamente convocado; b) mandar um enviado com a

missão de coletar informações in loco e relatá-las à Comissão; c) submeter a situação

a uma investigação por comitê ad hoc, a ser designado pela Comissão, e com a

autorização expressa do respectivo Estado, com o fim de buscar uma solução

amistosa; d) transferir o caso para o procedimento 123517, tornando-o público e

permitindo, então, um estudo mais completo pela Comissão e o envio de relatórios de

recomendações ao ECOSOC.

O parágrafo 8º da resolução 1503 explicitamente assegura que todas as ações

contempladas no âmbito da Subcomissão ou da Comissão permanecerão

confidenciais, “até que a Comissão possa decidir fazer recomendações ao Conselho

Econômico e Social”.

A partir de 1978 a CDH passou a anunciar em sessão pública os países que foram

objeto de escrutínio nas sessões fechadas, sem indicar, contudo, o teor e conteúdo das

deliberações. Esta novidade permitiu aferir com precisão o número de países que

foram objeto de análise sob o procedimento 1503. De 1978 a 1991, por exemplo, 39

Estados foram submetidos à investigação.

Apesar do inegável amplo alcance do procedimento em termos quantitativos, não

é possível dizer o mesmo quanto a sua efetividade. No caso de Uganda, por exemplo,

tendo a Comissão recebido informações acerca da morte de 75.000 pessoas sob o

16 Os 26 membros da Subcomissão obedecem à seguinte distribuição: 7 africanos, 5 asiáticos, 6 da Europa Ocidental, 5 latino-americanos e do Caribe e 3 da Europa Central e Oriental. 17 A primeira vez em que esta transferência foi feita foi no caso de Guiné Equatorial em 1979, onde o governo recusava-se a cooperar no âmbito do procedimento confidencial.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

58

regime de Idi Amin, muito pouco se fez de caráter prático para reverter tal situação.

De fato, a influência e o lobby exercido pelo referido dirigente, na época presidente

da Organização da Unidade Africana, entravaram qualquer resposta mais efetiva no

contexto da CDH. Somente em 1978, quatro anos após as primeiras comunicações, e

pouco antes da derrubada do regime por tropas da Tanzânia, a Comissão decidiu

mandar um enviado ao país.

Vale notar, outrossim, que o procedimento 1503 nunca foi firmemente aplicado a

alegações de violações de direitos econômicos, sociais e culturais, a despeito da

resolução 5 (XXXIII) de 1977 da CDH, que expressamente reconheceu a

aplicabilidade de tal mecanismo nesses casos.18

Mesmo no plano dos direitos civis e políticos, as repostas da Comissão ficaram

limitadas a apenas certo grupo de garantias, fazendo com que o elenco de países de

Terceiro Mundo submetidos a análise fosse desproporcionalmente superior ao

número de países desenvolvidos.

Conforme já comentado acima, muitas foram as críticas endereçadas ao

procedimento 1503 e ao seu caráter confidencial. Ian Guest, por exemplo, ficou

profundamente decepcionado com a demora e ineficácia do referido procedimento em

lidar com a questão dos desaparecimentos e as violações de direitos humanos em

geral durante o regime militar argentino. Tal autor chega a afirmar que: “1503 has

become truly dangerous to human rights – and it offers a useful refuge to repressive

regimes”19.

Diante das severas objeções feitas ao procedimento confidencial ao longo dos

anos, surgiram no início da década de 90 algumas propostas formuladas com o fim de

reformá-lo e revitalizá-lo. Dentre elas, Philip Alston destaca20: a redução do prazo

entre a comunicação e a análise do caso pela Comissão; a necessidade de votação

secreta no âmbito da Subcomissão e seu Grupo de Trabalho como forma de evitar

pressões de caráter político; uma participação mais ativa dos reclamantes durante o

procedimento, podendo fornecer informações adicionais e responder às negativas dos

18 Philip Alston, op. cit., p.151. 19 Ian Guest. Behind Disappearances: Argentina’s Dirty War against Human Rights and the United Nations, 1990, p. 441. 20 Philip Alston, op. cit., pp.154-155

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

59

governos; o estabelecimento de um prazo limite de 2 a 3 anos para a conclusão do

procedimento; e, obviamente, uma ampliação na transparência do mesmo, com a

publicação de estatísticas sobre os caso tratados, dando detalhes acerca dos resultados

obtidos e, ao cabo de um prazo a ser definido, a abertura total dos registros

confidencias.

No plano prático, porém, muito pouco foi feito no sentido de reformular o

procedimento 1503. Hoje, embora continue a funcionar, em geral para situações que

geram menor mobilização internacional, o procedimento em questão parece estar

fadado à obsolescência diante da proliferação de mecanismos de monitoramento

ostensivos.

Por fim, vale ressaltar que a despeito de suas fragilidades, o procedimento 1503

também legou ao regime de direitos humanos alguns avanços. Primeiramente,

acostumou os Estados com a idéia de terem que se defender diante de comunicações

feitas, colocando em xeque as falácias acerca da intangibilidade da jurisdição

doméstica. Contribui, igualmente, para expor a Comissão e Subcomissão ao mundo

real das violações de direitos humanos. Finalmente, representou um inovador

mecanismo extraconvencional de proteção aos direitos humanos. Para Cançado

Trindade: “A significação do procedimento da resolução 1503 (XLVIII) (...) parece residir, sobretudo, no fato de ter“institucionalizado” e aperfeiçoado a prática do tratamento de petições independentemente do requisito de ratificação dos Pactos e a aceitação do direito de petição individual ali consagrado”21

3.4.2. O procedimento 1235

Aprovado pelo ECOSOC em 6 de junho de 1967, o procedimento 1235 atribui à

Comissão de Direitos Humanos e a seu órgão subsidiário, a Subcomissão para a

Prevenção da Discriminação e Proteção de Minorias, a competência para “examinar

as violações graves de direitos humanos e liberdades fundamentais em todos os

países”. Nesse contexto, poderia a CDH “realizar um estudo aprofundado das

21 Antonio Augusto Cançado Trindade. O Esgotamento dos Recursos Internos no Direito Internacional. Editora Universidade de Brasília, 1984, p. 187.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

60

situações que revelem um padrão sistemático de violações de direitos humanos (...) e

relatá-lo, com recomendações ao Conselho”.

As origens imediatas do procedimento 1235 residem na luta contra o racismo em

geral e contra o apartheid em particular. Assim, o primeiro instrumento ostensivo

criado pela CDH foi o Grupo Especial de Peritos sobre a Situação dos Direitos

Humanos na África Austral em 1967. Este ficou encarregado de investigar sobre

torturas e maus tratos de prisioneiros na África do Sul. Em pouco tempo, o mandato

original foi ampliado para alcançar igualmente a Namíbia, a Rodésia do Sul (atual

Zimbábue) e as, então, colônias portuguesas. Impedido de entrar nos territórios

jurisdicionados, o grupo limitou-se a realizar suas investigações através de

depoimentos de exilados, militantes de movimentos de libertação nacionais,

organizações governamentais e ONG’s, entre outras fontes disponíveis.

Dois anos mais tarde, em 1969, a CDH estabeleceu um segundo Grupo Especial

de Peritos, que composto pelos mesmos integrantes do primeiro, destinava-se a

investigar alegações de violações por Israel da Convenção de Genebra de 1949 sobre

o tratamento de civis em tempos de guerra, nos territórios árabes ocupados após a

Guerra dos Seis Dias. Israel não cooperou com o grupo, que igualmente a seu

predecessor também ficou impedido de realizar investigações in situ. Em 1970, dada

a criação pela Assembléia Geral do Comitê Especial sobre as Práticas Israelenses nos

territórios ocupados, o grupo teve seu mandato encerrado.

Na linha evolutiva do procedimento 1235, tem enorme destaque o Grupo de

Trabalho Especial sobre a Situação dos Direitos Humanos no Chile, estabelecido pela

resolução 8 (XXXI) da CDH, de 27 de fevereiro de 1975. Este grupo, composto por

cinco membros, destinava-se a investigar a situação dos direitos humanos no país

“com base em testemunhos orais e escritos, a serem recolhidos de todas as fontes

pertinentes, e numa visita ao Chile”. Esta visita não pôde ser realizada até 1978,

quando o governo chileno finalmente permitiu a entrada do Grupo de Trabalho.

Tendo tido sua missão reconhecida pela Assembléia Geral, o Grupo foi dissolvido em

20 de dezembro de 1978, sendo designado um relator especial para sucedê-lo e

acompanhar a evolução da situação no país.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

61

O precedente do caso chileno é particularmente relevante por representar o

primeiro mecanismo de controle ostensivo de situação específica não atinente ao

apartheid, ao colonialismo ou à ocupação estrangeira, e sim a violações severas de

direitos civis e políticos em âmbito nacional.

Nas palavras de Philip Alston: “In principle at least, the door has finally been

opened, albeit only a fraction, to permit the effective use of 1235 in virtually any

situation, provided only that the political will could be mustered”22

3.4.2.1. Grupos ou Relatores de Investigação por Países (geográficos)

Seguindo o exemplo chileno, a Comissão estabeleceu, nos primeiros anos da

década de 80 Relatores Especiais, Representantes e Enviados Especiais para vários

países como Bolívia (1981), El Salvador (1981), Guatemala (1982), Irã (1984) e

Afeganistão (1984). Estes Grupos ou Relatores de Investigação Geográficos têm

incumbência de acompanhar a evolução de determinadas situações nacionais, tanto

em contato direto com as autoridades do governo envolvido, se forem cooperativas,

quanto indiretamente, em consultas com ONG’s, movimentos de oposição legais ou

ilegais e cidadãos no exílio. Inaugurava-se, assim, um importante caminho em

direção ao aperfeiçoamento dos mecanismos de controle ostensivo, num processo que

se expandiu na década seguinte.

Sobre os órgãos de investigação geográfica, é importante notar que apesar de suas

contribuições inegáveis, tem sido alvo de críticas tanto de Estados-alvos quanto de

ativistas autenticamente devotados aos direitos humanos, por padecer de um caráter

inevitavelmente seletivo, que se presta a manipulações políticas. De fato, diz-se que

os membros escolhidos carecem de imparcialidade, sendo muitas vezes de países cuja

posição é manifestamente crítica aos Estados sob investigação. Critérios como

competência e especialidade são geralmente negligenciados no momento da

indicação, diferentemente do que ocorre em outros órgãos como a Organização

Internacional do Trabalho23. Critica-se, de outro lado, o fato de muitas vezes o país-

22 Philip Alston, op. cit., p.158. 23 As escolhas geralmente recaem sobre diplomatas, não necessariamente entendidos em direitos humanos ou conhecedores das realidades sociais e culturais em que se manifestam as violações.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

62

alvo dos procedimentos ser consultado acerca das indicações, o que poderia

comprometer a objetividade e o distanciamento dos escolhidos.

Vale observar, outrossim, que o número de relatores especiais estabelecidos é

consideravelmente inferior ao número de países submetidos a discussão na CDH sob

o procedimento 1235. Muitas vezes, a mera indicação de preocupação ou a ameaça de

uma resolução prontificam os países a cooperar. Da mesma forma, a adoção de uma

resolução pela Comissão não significa necessariamente que um procedimento

especial será criado, pode-se optar por fazer uma simples declaração em relação a

alguma situação específica.

É passível de nota, igualmente, que o procedimento 1235 teve, principalmente

após 1979, um amplo alcance geográfico, atingindo países de diversos continentes,

inclusive comunistas e aliados das grandes potências. Isto não significa, todavia, que

tenha havido um equilíbrio espacial nas investigações, ou que se tenham deixado de

lado as pressões políticas. De fato, somente dois países do leste europeu foram objeto

de escrutínio, Polônia e Romênia, a despeito dos inegáveis abusos de direitos

humanos praticados na região. Na Europa ocidental, nenhum país teve que prestar

contas à CDH, nem mesmo a Turquia, que durante os anos 80 foi objeto de severas

críticas no Conselho Europeu por suas violações a direitos humanos.

Devido ao peso político e econômico que detém, grandes potências como China,

Rússia, Estados Unidos, França e Reino Unido e, até mesmo, potências regionais

como Índia e Brasil, sempre gozaram de certa imunidade no âmbito da Comissão. De

outro lado, a solidariedade regional assegurou que diversas nações africanas e

asiáticas ficassem de fora do alcance da CDH. Para Philip Alston: “ (…) it remains true

that double standards have prevailed and that many countries which have been thoroughly

deserving of scrutiny have been intentionally overlooked ”24

Finalmente, vale notar que a Comissão tende a agir somente quando há provas

documentadas e consistentes de violações maciças de direitos humanos. A simples

supressão da democracia, ou a mera violação de direitos econômicos, sociais e

culturais não costumam ensejar o estabelecimento de quaisquer procedimentos

especiais. Além disso, o procedimento 1235 não está preparado para agir em casos

24 Philip Alston, op. cit., p. 164.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

63

urgentes, como mecanismo de reparação ou interrupção de violações específicas.

Falta-lhe a celeridade necessária, perdida em longos debates acerca do

estabelecimento ou não de procedimentos especiais, ou pelo caráter anual das

reuniões da Comissão.

3.4.2.2. Grupos ou Relatores de Investigação por Temas Específicos (temáticos)

Uma última etapa na clara evolução dos mecanismos de controle de violações

de direitos humanos no âmbito da CDH, parece ter sido dado pelo estabelecimento de

Grupos ou Relatores de Investigação por Temas Específicos. Estes recebem a

atribuição de monitorar em todo o mundo, de forma não-seletiva, a observância de

normas atinentes a determinados temas. O primeiro mecanismo desse tipo foi o

Grupo de Trabalho sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários, estabelecido

em 1980, ao qual se seguiriam vários outros.

“Vencidas as resistências iniciais ao seu estabelecimento e funcionamento, os Relatores Especiais e Grupos de Trabalho temáticos constituem hoje instrumentos regulares do trabalho de proteção dos direitos humanos das Nações Unidas, não se registrando mais, salvo raras exceções, gestos de rejeição ou recusas expressas para o fornecimento dos esclarecimentos por eles solicitados com base no princípio da não-intervenção”.25 Em 19 de fevereiro de 1980, a Comissão de Direitos Humanos aprovou, por

consenso, a criação do Grupo de Trabalho Sobre Desaparecimentos Forçados ou

Involuntários, surgido em resposta a uma série de desaparecimentos ocorridos por

conivência ou ação de governos na Argentina, Chile e Uruguai, entre outros, e

destinado a “examinar questões concernentes ao desaparecimento forçado ou

involuntário de pessoas:”. Para tanto, o grupo ficava autorizado a “buscar e receber

informações de governos, organizações intergovernamentais, organizações

humanitárias e outras fontes confiáveis”. Por fim, o grupo ficava instado a “reagir de

maneira efetiva diante das informações que lhe cheguem e a realizar seu trabalho com

discrição”.

25 J. A. Lindgren Alves, op. cit., p. 19.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

64

Criado inicialmente para funcionar por um ano, o Grupo de Trabalho teve seu

mandato renovado regularmente, tornando-se, na prática, um mecanismo

semipermanente, que se reúne três vezes ao ano.

O chamado “procedimento de ações urgentes” constitui uma novidade importante

deste mecanismo em relação aos grupos ou relatores geográficos. Este instrumento

permite ao grupo responder a comunicações que pareçam requerer uma atuação

imediata.

Anualmente, o grupo fornece à CDH relatórios no quais relaciona as consultas

enviadas, as respostas obtidas, os casos esclarecidos e os casos pendentes, mas

evitando transparecer um julgamento sobre as situações.

Já na sua primeira década de atuação, o Grupo de Trabalho analisou cerca de 19

mil casos, sendo que em cerca de dez por cento dos mesmos as respostas

governamentais ora levaram ao paradeiro das pessoas desaparecidas, ora ajudaram a

esclarecer o sucedido.

Assim como no caso dos grupos geográficos, o Grupo Sobre Desaparecimentos

Forçados serviu de precedente para o futuro estabelecimento de outros mecanismos

de investigação temáticos.

Já em 1982, foi criada a figura do relator Especial Sobre Execuções Sumárias ou

Arbitrárias, em resposta à notoriedade de execuções em massa em países como

Libéria e Suriname e a uma ferrenha campanha da Anistia Internacional. Com seu

mandato continuamente renovado, o Relator Especial também faz parte do

instrumental semipermanente de acompanhamento dos direitos humanos pela ONU.

Hoje, esse mecanismo conta igualmente com o chamando “procedimento de ações

urgentes”, com vistas a evitar, sobretudo, a consumação de execuções previsíveis. No

decorrer de seu trabalho, pode o relator solicitar, conforme o caso, ora a suspensão da

execução de penas de morte judicialmente impostas e esclarecimentos sobre as

salvaguardas existentes, ora uma proteção policial a pessoas ameaçadas, ou, ainda,

informações acerca das investigações e medidas tomadas para a apuração de

responsabilidade e punição dos culpados.

Vale mencionar, outrossim, como marco da evolução dos mecanismos de controle

“temático” a figura do Relator Especial sobre a Tortura, criado em 13 de março de

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

65

1985. Este tem como objetivo primordial investigar denúncias específicas sobre

torturas e procurar evitar sua ocorrência ou repetição em casos determinados.

Assegura-se também ao Relator a possibilidade de adotar “medidas urgentes” com o

fim de socorrer as possíveis vítimas. Diferentemente do Comitê sobre a Tortura, o

Relator Especial, não sendo constituído por um instrumento jurídico, pode na prática

atuar em relação a qualquer Estado, sendo esta, aliás, uma das vantagens principais

dos procedimentos de proteção extraconvencional26 sobre os mecanismos

convencionais.

Seguiram-se à criação desses mecanismos temáticos precursores vários outros,

para monitorar diversos temas como: intolerância religiosa, venda de crianças e

prostituição infantil, detenções arbitrárias e uso de mercenários como meio de

violação de direitos humanos e de impedir o exercício do direito de autodeterminação

dos povos.

De um modo geral, os grupos e relatores temáticos têm um mandato comum no

sentido de estudar e investigar os fenômenos relevantes ao assunto de sua

competência e responder de modo efetivo às alegações recebidas.

Para o bom cumprimento de suas atribuições os mecanismos temáticos dispõem

de valiosos instrumentos de pressão. Primeiramente, podem requerer informações e

esclarecimentos dos governos, buscando dessa forma esclarecer as circunstâncias e

peculiaridades de cada caso recebido e intimidar a prática de novas violações. Em

segundo lugar, pode o grupo ou relator solicitar a adoção de “medidas urgentes”

destinadas a interromper ou evitar a consumação de uma violação específica. Outro

recurso possível é a realização de visitas in situ, importante meio para a obtenção de

informações de primeira mão e para o estabelecimento de contatos com parentes,

testemunhas, ONG’s e autoridades, entre outros27. Por fim, os grupos ou relatores

temáticos elaboram relatórios anuais de suas atividades onde fazem conclusões e

26 O termo extraconvencional, apesar de inexato (a Carta da ONU é convenção internacional) é utilizado justamente para enfatizar a diferença entre os procedimentos que nascem de convenções específicas de direitos humanos e aqueles que derivam de dispositivos genéricos da Carta. 27 Para M.T. Kamminga: “all procedures appear to have had a healthy disregard for formality and to have employed a wider range of sources than officially permitted”, citado em Philip Alston, op. cit., p. 177.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

66

recomendações específicas e os repassam à Comissão, que pode e deve deliberar a

partir deles.

Certamente, uma primeira vantagem estrutural da abordagem temática reside no

fato de combinar a objetividade de uma investigação global sobre determinado tipo

de violação com a capacidade de lidar com violações reais e específicas sofridas por

indivíduos concretos.

Pode-se dizer, ainda, que o estabelecimento de mecanismos temáticos não suscita

tantas discussões e é mais facilmente conseguido. Com efeito, por seu caráter

universal e não-seletivo, são encarados como elementos construtivos da cooperação

determinada no artigo 56 da Carta da ONU, para a promoção universal do respeito e

da observância dos direitos humanos. Segundo Patrick Flood: “(...) here the

politically explosive atmosphere generated by debate over establishing a country-

specific procedure is absent”.28

Diferentemente, durante as negociações para a criação de um mecanismo

geográfico, os Estados-alvo comportam-se como se estivessem num tribunal de

acusação, alegando serem vítimas de manobras políticas e preconceitos culturais.

Nesse contexto é comum igualmente a atuação de grupos regionais e lobbies como

forma de bloquear a aprovação dos procedimentos.

A.H. Robertson e J.G. Merrills reconhecem também diversas vantagens nos

procedimentos temáticos29, quais sejam: um maior alcance geográfico; a

possibilidade de investigar violações em países que gozam de popularidade política

nas Nações Unidas e a certeza da existência de certos temas que por sua natureza se

encaixam melhor numa investigação de alcance global, como a escravidão e as

migrações em massa, por exemplo.

Com o passar do tempo e a criação de novos procedimentos de proteção aos

direitos humanos, é importante notar uma crescente disposição dos membros das

Nações Unidas para com o emprego de mecanismos de persuasão multilaterais, que

atuam em nome da própria comunidade internacional. De fato, no início, eles nem

existiam e depois só passaram a ser admitidos em bases confidenciais (procedimento

28 Patrick J. Flood, op. cit., p.126. 29 Ibid., p. 125.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

67

1503). Aos poucos ganharam maior publicidade (avanço do procedimento 1235) e,

finalmente, acabariam por ser aceitos de modo amplo e regular, primeiro sob a forma

dos mecanismos geográficos de proteção e, posteriormente, marcando a continuidade

da evolução, sob a forma dos mecanismos de controle temáticos. Todos estes

instrumentos foram gradualmente consagrando e fortalecendo o conceito e a prática

da responsabilidade internacional dos Estados para com a comunidade internacional,

na área dos direitos humanos. Por fim, a criação do posto de Alto Comissário das

Nações Unidas para Direitos Humanos em 199330 constitui a mais nova inovação do

regime com vistas ao aperfeiçoamento e a uma maior efetividade na proteção aos

direitos humanos.

3.5. O Alto Comissário das Nações Unidas sobre Direitos Humanos

Muito embora não constitua um dos mecanismos de proteção à disposição da

Comissão em Genebra, vale discorrer brevemente acerca da figura do Alto

Comissário das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, sem dúvida o mais recente e

notável desenvolvimento dentro do regime de direitos humanos da ONU. Apesar de

ser considerado uma grande novidade, o seu processo de criação remonta à década de

50. De fato, foi em 1952 quando pela primeira vez se falou na criação do referido

posto. A proposta inicial foi lançada pelo Uruguai e não tendo provocado maiores

adesões foi novamente apresentada em 1965 pela Costa Rica.31 Em ambos os casos o

maior obstáculo à sua aprovação foi imposto pela oposição ferrenha da União

Soviética, que alegava temer a criação de uma autoridade supranacional autorizada a

interferir em assuntos supostamente de competência doméstica. Parece que pesou

igualmente na posição soviética o temor de que o Alto Comissário, como encarregado

na promoção dos valores expressos na Declaração Universal de 1948, terminasse por

centrar boa parte de sua atenção em abusos cometidos em países comunistas. A

30 Cargo criado por consenso através da resolução 48/141 da Assembléia Geral, em 20 de dezembro de 1993, seguindo recomendação feita durante a Conferência Mundial de Direitos Humanos em Viena, em junho daquele mesmo ano.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

68

URSS pôde contar também em sua oposição com várias nações recém-descolonizadas

que viam na proposta em debate claras intenções imperialistas.

Em 1977, relançou-se novamente o projeto na Assembléia Geral, sob a iniciativa

de Estados Unidos, Costa Rica e Suécia. Mais uma vez, e a despeito de todos os

avanços conseguidos até o momento no regime de direitos humanos da ONU, a União

Soviética opôs-se à medida, alegando agora serem suficientes os procedimentos já em

vigor (1235 e 1503), não sendo necessários quaisquer outros meios que pudessem

comprometer ainda mais a soberania nacional.

A despeito de novas tentavas apresentadas na década de 80, foi somente com o

fim da Guerra Fria e da intransigência soviética, e com a superação do temor

imperialista pelos países não-alinhados, que a proposta para a criação do posto de

Alto Comissário sobre Direitos Humanos pôde ser aprovada. Assim, na própria

Conferência Mundial Sobre os Direitos Humanos, realizada em Viena em junho de

1993, a proposta ganhou ares de prioridade32 e foi incluída no programa de ação da

Convenção, que recomendava explicitamente: “a consideração prioritária pela

Assembléia Geral da questão do estabelecimento de um Alto Comissário para os

Direitos Humanos”.

Então, no bojo da XLVIII Sessão da Assembléia Geral em dezembro de 1993, e

não sem antes ensejar algumas discussões acaloradas, foi finalmente aprovada, por

resolução consensual (nº 48/141), a proposta para a criação do referido cargo.

O Alto Comissário deveria, segundo redação da própria resolução, ser uma pessoa

íntegra e de reputação imaculada, que, além de conhecedor da área, deveria

desempenhar suas funções de modo imparcial, objetivo, não-seletivo e eficaz. A

nomeação do mesmo, para um mandato de quatro anos, renováveis por igual período,

caberia ao Secretário Geral. Percebe-se pelo teor da resolução que o novo cargo não

deveria, de per si, representar ameaça às soberanias dos Estados, ou constrangimentos

para governos legítimos, que procurassem assegurar os direitos humanos de seus

cidadãos.

31 Patrick J. Flood, op. cit., p.119. 32 Principalmente através da ação dos Estados Unidos, que pressionou pelo apoio à proposta.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

69

Em 1994, Boutros Boutros Ghali nomeia o equatoriano José Ayala Lasso, ex-

chanceler em seu país, para a função. Certamente, com esta escolha buscava-se

ampliar o apoio dos países em desenvolvimento, onde se temia que a nova função

pudesse ser usada como forma de pressão em temas de direitos civis e políticos.Com

efeito, durante o exercício da função, Ayala Lasso optou por uma atuação

conciliatória, evitando entrar em choque com qualquer Estado, tendo como marco de

sua gestão a quiet diplomacy.

É função do Alto Comissário coordenar os programas de proteção, promoção,

educação e informação do regime de direitos humanos do sistema ONU, buscando

sempre o aperfeiçoamento e fortalecimento dos mesmos, com vistas a ampliar o grau

de efetividade e eficiência de todo o regime.

Para desempenhar suas funções, o Alto Comissário tem a autoridade para

estabelecer missões de campo e fact finding, bem como utilizar meios de negociação,

conciliação e pressão, já desenvolvidos anteriormente e largamente empregados pelos

procedimentos de controle geográfico e temático, com a vantagem de poder atuar

sobre qualquer tema em qualquer país. O novo posto passa a ter controle direto,

igualmente, sobre os recursos humanos e financeiros do Centro de Direitos Humanos

em Genebra.

Como exemplos de realização de missões de campo vale citar, a titulo de

ilustração, a pioneira em Ruanda, e outras que se seguiram, também em áreas de

conflito, como Colômbia, El Salvador, Burundi e Camboja.

Após a renúncia de Ayala Lasso para retornar ao cenário político de seu país,

coube a Koffi Annan nomear a ex-presidente da Irlanda Mary Robinson para o

exercício da função. Durante a sua gestão, Robinson foi muito mais ativa na proteção

aos direitos humanos do que havia sido seu predecessor. De fato, segundo David

Forsythe: “Ms. Robinson was so assertive that she raised questions about whether

her activism was matched by enough diplomatic acumen”33.

Por fim, cumpre notar que a própria disposição dos Estados em aceitar a

concentração das funções de coordenação, seja no âmbito diplomático, orçamentário,

operacional ou de pessoal, nas mãos de um único funcionário internacional,

33 David P. Forsythe, op. cit., p.65.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

70

representa outro forte indício do maior comprometimento dos países com a idéia de

responsabilidade perante a comunidade internacional em matéria de direitos

humanos.

3.6. Um enfoque da teoria de regimes sobre a evolução dos mecanismos de proteção aos direitos humanos 3.6.1. Definição e características do regime

Segundo Philip Alston, o regime de direitos humanos: “consists of those

international norms, processes, and international arrangements, as well as the activities of

domestic and international pressure groups, that are directly related to promoting respect for

human rights”.34

Jack Donnelly caracteriza o regime de direitos humanos como a strong

promotional regime, por contar com normas coerentes e largamente aceitas, sem

dispor, contudo, de um sistema de monitoramento eficiente ou de um processo de

tomada de decisões vinculante. Este autor afirma que um regime promocional exige

um baixo nível de comprometimento por parte dos Estados, o qual deve aumentar

consideravelmente quando pretende passar-se para um implementation ou

enforcement regime. Nos termos de Donnelly: “(…) enforcement activities involve international decision making and the stronger forms of international monitoring. International implementation activities include weaker monitoring procedures, policy coordination and some form of information exchange. Promotional activities may involve international information exchange, promotion or assistance, and perhaps even weak monitoring of international guidelines.”35 A contribuição dada pelos novos mecanismos extraconvencionais de proteção (os

temáticos principalmente) ao regime de direitos humanos das Nações Unidas parece

34 Philip Alston, op. cit., p. 1 35 Jack Donnelly. International Human Rights: a Regime Analysis. International Organization. v.40, n.3, summer, 1986, pp. 604-605.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

71

inserir-se justamente na tentativa de criação de sistemas de monitoramento mais

eficientes e na passagem a atividades de implementation.

Estes procedimentos especiais teriam representado um reforço à aquiescência com

o regime, por estabelecerem instrumentos de monitoramento e coleta de dados

apolíticos e não-seletivos “for managing compliance”.36

A origem do estabelecimento do regime de direitos humanos das Nações Unidas,

conforme já exposto no capítulo anterior, reside no fato de as nações buscarem evitar

a repetição das agruras e do sofrimento à pessoa humana ocorridos durante a Segunda

Guerra Mundial. Contudo, vale notar que a ONU é composta de Estados, que são os

principais sujeitos às obrigações dos direitos humanos internacionais e também os

maiores transgressores. Assim, é compreensível que esses Estados não se

preocupassem com o estabelecimento de mecanismos de enforcement eficientes que

pudessem criar-lhes embaraços, mas simplesmente com a criação de normas de

caráter geral e abstrato desprovidas de caráter cogente.

Mesmo no plano dos direitos humanos, os Estados não esquecem o caráter

predominantemente anárquico do sistema internacional, onde prevalece a noção de

self-help e a busca pela maximização dos ganhos, não apenas em termos absolutos,

mas igualmente em termos relativos. Assim, para muitos, a inclusão e o avanço na

proteção aos direitos humanos responde às necessidades de alguns Estados em

desmoralizar e deslegitimar certos governos rivais37. Tal pensamento pode inclusive

ser verificado nos primeiros anos da Guerra Fria, quando as propostas na Comissão

de Direitos Humanos representavam basicamente tentativas de um bloco em

comprometer a reputação e a posição internacional de países do bloco rival, através

da ênfase em direitos que sabidamente não gozavam de proteção ampla nesses países.

Os Estados Unidos, por exemplo, insistiam em exaltar o respeito aos direitos civis e

políticos, enquanto os países socialistas, em contrapartida, clamavam pelo fim da

discriminação racial. Da mesma forma, conforme já apresentado acima, diversas

tentativas em criar novos procedimentos de proteção aos direitos humanos (como o

posto de Alto Comissário Sobre Direitos Humanos) foram entravados pela firme

36 Abram Chayes & Antonia Handler Chayes, op. cit., parte 2. 37 Weiss et al., op. cit., p. 210.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

72

oposição de países socialistas, bem como de países do Terceiro Mundo, temerosos de

que com isso pudesse se abrir um grave precedente para uma ingerência contínua e

ilimitada na cidadela da soberania.

Uma maior preocupação com os direitos humanos pode igualmente ser o

resultado de pressões e constrangimentos externos. De Alemanha e Japão, por

exemplo, na posição de candidatos a um assento permanente no Conselho de

Segurança, não se pode esperar senão uma postura respeitosa e coerente com os

direitos humanos. Para o fim do regime de segregação racial na África do Sul

certamente somaram-se aos movimentos e contexto nacionais, as pressões exercidas

no âmbito internacional, com grande destaque para a atuação da Comissão de Direitos

Humanos. Aliás, vale dizer que boa parte dos procedimentos convencionais e

extraconvencionais do regime de direitos humanos da ONU tem no temor à exposição

pública, inegavelmente uma importante forma de pressão, sua maior força.

Outro importante motivo para o avanço dos sistemas de proteção aos direitos

humanos pode ser encontrado na correlação, para muitos indiscutível, entre o respeito

aos direitos e garantias individuais e a estabilidade e paz internacionais. Para tanto,

conforme já afirmado na parte inicial deste trabalho, costuma-se sublinhar a quase

inexistência de guerras entre países democráticos, ou a menor propensão para ataques

externos quando se vive um clima de paz e tranqüilidade internamente.38 Assim, em

países como El Salvador, afirmou-se a necessidade de consagrar previamente o

respeito aos direitos humanos como forma de alcançar a paz.39

Por fim, é certo que em determinados casos o respeito aos direitos humanos pode

derivar de uma preocupação legítima dos países com a dignidade humana.40 Nestas

hipóteses, o que se têm é a profusão de uma solidariedade moral na comunidade

internacional, independentemente de nacionalidades ou fronteiras, contrariando boa

parte dos preceitos realistas que prevêem a atuação dos Estados com o único objetivo

de maximizar seu poder (“interesses definidos em termos de poder41”). A notável

política de Jimmy Carter para com os direitos humanos, por exemplo, parece

38 Ibid., p. 210. 39 Para o conceito de paz democrática, ver capítulo 4, item 4.8. 40 Weiss et al., op. cit., p.211

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

73

embasar-se numa vontade genuína de ver ao menos o Hemisfério Ocidental em

consonância com os direitos individuais fundamentais.

Em contrapartida, a administração Eisenhower apenas usou os direitos humanos

como instrumento de luta e pressão contra o bloco socialista, claramente

caracterizando uma concepção realista da proteção aos direitos humanos.

Então, conforme visto, várias são as razões que podem impulsionar os Estados a

aceitarem e respeitarem os direitos humanos, bem como a integrarem o seu regime.

Em estreita correlação com as motivações acima apresentadas, muitas são as teorias

formuladas para explicar o surgimento, a permanência e a evolução dos regimes em

relações internacionais. Cumpre identificar aquela que mais adequadamente explique

os recentes desenvolvimentos procedimentais dentro da Comissão de Direitos

Humanos, especificamente os grupos de trabalho temáticos, e melhor sirva para

avaliar seus impactos no regime de direitos humanos da ONU.

3.6.2. Três perspectivas teóricas

Peter Hass (1993) identifica três grandes perspectivas teóricas no plano dos

regimes42. A primeira, acorde com a posição neoliberal e chamada de “teoria baseada

no interesse”, afirma que os Estados, mesmo num ambiente anárquico, podem

cooperar com o fim de realizar interesses comuns. Nesta perspectiva os Estados são

atores racionais e egoístas que se preocupam apenas com seus ganhos (em termos

absolutos). Em suma, os regimes ajudariam os Estados a coordenar seus

comportamentos com o fim de evitar coletivamente resultados que individualmente

seriam subótimos. Os Estados teriam interesse em manter o regime mesmo não

estando mais presentes os motivos que lhe deram causa. É marcante nesta teoria o

fato das preferências e identidades dos atores serem dadas de forma exógena,

presumindo-as alheias a políticas estatais, bem como à ação de instituições. É parte

41 Este constitui um dos seis princípios do realismo político consagrados por Hans Morgenthau em Politics Among Nations. 42 Arild Underdal. The Study of International Regimes. Journal of Peace Research, v.32, n.1, 1995, p. 117.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

74

importante desta corrente a teoria funcional desenvolvida por Robert Keohane43, pela

qual os regimes reduziriam os custos de transação e informação, facilitando a

cooperação. Como exemplo marcante desta linha teórica temos a teoria dos jogos em

que sobressai o “dilema do prisioneiro”, que para Keohane é representativo de boa

parte do comportamento dos Estados em relações internacionais.44

A teoria realista, também chamada de “teoria baseada no poder” considera o

poder tão importante na cooperação quanto no conflito. Segundo ela, a distribuição

dos recursos de poder entre os atores em jogo determina tanto a perspectiva de

surgimento de regimes eficazes e duradouros, como a natureza do próprio regime a

ser criado. Diferentemente da teoria anterior, os realistas estão preocupados com

ganhos relativos, considerados em face dos ganhos obtidos pelos demais atores. Nesta

perspectiva se destaca a teoria da estabilidade hegemônica45, que identifica num

poder hegemônico o caráter de estrutura constrangedora em direção à cooperação.

Vale mencionar neste contexto a perspectiva da “Guerra dos Sexos” desenvolvida por

Krasner46 (em seu power-oriented research program) em que, diferentemente da

teoria proposta por Keohane, há mais de um ponto de equilíbrio, mais de um modo de

satisfazer-se o ótimo de Pareto, inviabilizando a cooperação a partir de ajustamento

mútuo. Na verdade, nesse exemplo formulado por Krasner, as preferências dos atores

em relação ao ponto de equilíbrio a ser buscado são conflitantes. Segundo o autor, o

papel de coordenador caberá ao poder, ensejando não um ajustamento mútuo e, sim, o

ajustamento de um ator às preferências do outro.

Por fim, a “teoria cognitiva” de regimes defende que a cooperação não pode ser

explicada sem referência à ideologia, aos valores dos atores e ao conhecimento.

Ressaltando a importância do aprendizado, as teorias cognitivas identificam o caráter

dinâmico da realidade, o que ajuda a explicar a evolução dos regimes. “Cognitivists

43 Robert Keohane. Cooperation and International Regimes. In:__After Hegemony: Cooperation and Discord in the World Political Economy. Princeton University Press, 1984. 44 Ibid., p. 68. 45 Teoria primeiro desenvolvida por Charles Kindleberger em The World In Depression 1929-1939.The Penguin Press, 1973. 46 Stephen Krasner. Global Communications and National Power: Life on the Pareto Frontier. World Politics, n.43, 1991, p. 336-366.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

75

argue that learning and, in somewhat different fashion, ideology, affect international

rules and cooperation by showing the merit (or futility) of certain lines of action”47.

A grande crítica que a teoria cognitiva faz às teorias racionalistas diz respeito ao

fato de elas tratarem os interesses dos Estados como dados externamente.

“Cognitivists pose a simple, yet profound question: can interests in an issue area be

unambiguously deduced from power and situational constraints?”48

Segundo a divisão proposta por Hasenclever et al.,49 é possível distinguir entre

cognitivistas fracos e cognitivistas fortes. Os primeiros têm por base a investigação

dos processos de formação de interesses e preferências que precedem a tomada de

decisões racionais.50

Os cognitivistas fortes vão além em sua considerações e propõem mudanças mais

profundas. Combatem a noção dos Estados como “utility-maximizers”, e propõe outra

que os coloca com “role-players”. As normas e instituições não se limitariam a um

caráter regulador, teriam igualmente um caráter constitutivo, moldando os atores.

Assim, os regimes não são o resultado de escolhas racionais de Estados pré-

existentes. Estes últimos é que, na verdade, dependeriam de instituições sociais

anteriores, como soberania, diplomacia e direito internacional, para poder exercer sua

racionalidade. Em suma, as normas constituiriam um mundo de conhecimento

comum, uma “web of meaning” (Neufeld, 1993), a partir da qual poderia se

interpretar e entender a ação dos demais atores, e propor respostas às mesmas. “The

behavioral regularities observed in the social world – human practices, in other

words – constitute and are constitutive of this ‘web of meaning’ ”51

Mark Neufeld reforça o caráter constitutivo dos entendimentos intersubjetivos: “the relationship between the ‘intersubjective meanings’ which make up the ‘web of

meaning’ and human practices is not one of correlation, where ‘intersubjective

47 Stephan Haggard & Beth Simmons. Theories of International Regimes. International Organization, v.41, n.3, summer 1987, p.510. 48 Ibid., pp. 512-513. 49 Andreas Hasenclever; Peter Mayer; Volker Rittberger. Theories of International Regimes. Cambridge University Press, 1997, pp.137-138. 50 Vale esclarecer que fraqueza e força aqui nada tem a ver com a qualidade dos argumentos em que se baseiam as teorias, são termos que designam simplesmente maior proximidade ou afastamento das teorias racionalistas. 51 Nayef H. Samhat. International Regimes as Political Community. Millennium Journal of International Studies, v.26, n.2, 1997, p. 360.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

76

meanings’ serve as an ‘intervening variable’ in a causal sequence. Rather, the ‘intersubjective meanings’ are constitutive of those practices.”52

3.6.3. A teoria escolhida

Sabendo que se procura uma base teórica capaz de explicar a evolução dos

procedimentos de investigação da Comissão de Direitos Humanos, bem como o

fortalecimento do próprio regime, não parece muito indicado adotar teorias que

defendam respostas atemporais por parte dos Estados, como é o caso das teorias

racionalistas (neorealistas e neoliberais). Para estas, os Estados racionais sempre se

comportariam da mesma forma diante de certas condições, desprezando-se os

processos intrínsecos de formação de interesses e preferências, importando apenas os

constrangimentos externos para explicar as mudanças (teorias estruturais).

Assim, parece mais indicado recorrer à vertente cognitiva da teoria de regimes

para embasar o presente estudo. É certo, todavia, que em se tratando especificamente

do regime de direitos humanos, ainda é difícil reconhecer nas suas normas um caráter

constitutivo, capaz de moldar e formar a identidade dos Estados. Ademais, a despeito

de todos os progressos alcançados nos últimos cinqüenta anos e por mais que na

última década tenha se reconhecido os direitos humanos como tema de interesse

global (no âmbito da 2ª Conferência Mundial em Viena), fica difícil enxergar nos

Estados um caráter de “role-players”, em que eles não se preocupariam com seus

interesses e objetivos individuais no momento de decidir o curso de ação a ser

seguido e, sim, apenas com o papel e as inerentes obrigações que a sociedade (de

Estados) lhes atribui.

Na verdade, no plano dos direitos humanos ainda é sensível o caráter de “utility-

maximizers”. Ainda que haja genuínas preocupações com o avanço dos direitos

humanos na política externa de determinados países, não se exclui a existência de

interesses individuais que paralelamente procura-se atender. No caso da

administração Carter e a sua política de vinculação dos direitos humanos à política

externa americana, por exemplo, paralelamente às pressões pela ampliação da

52 Mark Neufeld. The Restructuring of International Relations Theory. Cambridge University Press, 1995, p. 77.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

77

proteção a direitos, buscava-se atender aos anseios da sempre influente opinião

pública americana.

Assim, o ideal é empregar uma teoria que permita tanto explicar mudanças,

mesmo na ausência de transformações estruturais sensíveis, quanto incluir certos

conceitos das teorias racionalistas, bastante caros, ainda, à realidade atual do regime

de direitos humanos das Nações Unidas.

Sobressai, então, a teoria cognitiva fraca, que nas palavras de Hasenclever et al.:

“may be used to fill – frequently admitted – gaps in rational explanations of

international regimes”.53

Arild Underdal, igualmente, afirma em artigo de 1995 que o fato de duas

proposições teóricas serem diferentes, não significa que elas são incompatíveis. Diz o

autor: “Any theory predicting or explaining the formation of these inputs (preferences

and beliefs) would neither challenge nor corroborate game theory itself: it would

simply be a theory about something else, and should be evaluated as such”54

Então, já sob uma ótima cognitiva, vale notar que a definição tradicional de

regimes apresentada por Krasner 55 deve ser acrescida de um elemento intersubjetivo,

qual seja: os “principled and shared understandings”, propostos por Kratochwil e

Ruggie em 1986.

Com efeito, para os cognitivistas fracos os significados intersubjetivamente

compartilhados são essenciais tanto para explicar a formação dos regimes quanto o

seu desempenho. “(...) a minimum of collective understanding concerning the issue at stake is supposed to be a necessary condition for the choice of a substantive body of rule. Otherwise convergent expectations among independent actors in an international issue-area would be impossible, and cooperation would be doomed to failure.”56

3.6.4. Características da Teoria Cognitiva Fraca

53 Hasenclever et al., op. cit., p. 216. 54 Arild Underdal, loc. cit. 55 “Princípios explícitos ou implícitos, normas, regras e processos de tomada de decisões em torno dos quais as expectativas dos atores convergem em determinada área das relações internacionais”. 56 Hasenclever et al., op. cit., p.141.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

78

3.6.4.1. As idéias

Em sua essência o cognitivismo vai de encontro a duas premissas dos

racionalistas. De um lado, não mais seria possível explicar o comportamento dos

Estados a partir de interesses egoísticos dados, sem referência às idéias. De outro,

defende-se que mudanças nos interesses podem resultar de mudanças nas crenças dos

atores.

De fato, parece razoável que variações nas crenças normativas e causais alterem

interesses e provoquem mudanças de comportamento. As crenças normativas dizem

respeito às concepções de certo e errado, justo e injusto. No caso da escravidão, por

exemplo, durante milhares de anos pouco se debateu sua adequação com os valores

humanos. Foi somente no século XX, após muita discussão e com uma mudança

marcante nas concepções do que era certo e errado, que se decidiu reconhecer o

caráter indispensável da liberdade para a realização da dignidade humana. No tocante

à descolonização deu-se um fenômeno parecido. Não foi uma alteração na balança de

poder ou nas utilidades econômicas do imperialismo que desencadearam o

movimento, na verdade houve uma mudança nas idéias de legitimidade e

ilegitimidade nas regras.57 O que antes era aceito e inclusive incentivado como forma

de garantir uma certa posição na comunidade internacional passou a ser visto como

um meio de ação ilegítimo. O colonialismo seria definitivamente posto em xeque

com a consagração do direito de autodeterminação na Carta Internacional de Direitos.

As crenças causais se referem às relações de causa e efeito. É evidente que

alterações nestas crenças provocarão variações nos cursos de ação a serem adotados

para alcançar determinados objetivos. “Ideas serve the purpose of guiding behavior

(...) by stipulating causal patterns or by providing compelling ethical or moral

motivations for action” (Goldstein & Keohane, 1993)58

57 Robert H. Jackson. The weight of Ideas in Decolonization: Normative Change in International Relations. In: Goldstein and Keohane (Eds.), 1993, p. 130. 58 Hasenclever et al., op. cit., p. 143.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

79

Na concepção de Keohane e Goldstein desenvolvida em 199359, as idéias ganham

maior importância do que nas teorias funcionalistas tradicionais, atuando como

variáveis explicativas (explanatory variables), importantes para se entenderem

mudanças no comportamento dos Estados. Vale notar, contudo, que esses autores

condicionam a utilidade das idéias à ocorrência paralela de mudanças em interesses

materiais ou relações de poder.60

Dentro dessa linha de explanatory variables, Keohane e Goldstein atribuem às

idéias alguns papeis segundo os quais elas influenciariam o comportamento dos

Estados. Em primeiro lugar, elas funcionariam como road maps, ou seja, ajudam os

Estados a escolher entre diversos objetivos, considerando aqueles que melhor se

adeqüem às suas crenças normativas e suas noções de certo e errado, justo e injusto.

Em seguida, as crenças causais (relações de causa e efeito) ajudarão os atores a

definir quais os meios mais indicados para alcançar tais objetivos. Assim, sob está

ótica, fica mais fácil entender diferentes escolhas e diferenças no comportamento,

mesmo em condições materiais similares (como no caso dos processos de

descolonização).

Em segundo lugar, em resposta a uma das grandes críticas feitas ao

funcionalismo61, que diz respeito ao fato de ele negligenciar a possibilidade de existir

mais de um ponto de equilíbrio possível, Keohane e Goldestein propõem a noção de

idéias como focal points, ajudando a definir soluções aceitáveis para problemas de

ação coletiva. Isto poderia aplicar-se à guerra dos sexos proposta por Krasner, com a

diferença de que não mais o poder funcionaria como elemento coordenador e sim as

idéias, que uma vez compartilhadas, ajudariam na cooperação.62

Vale observar, por fim, que para o cognitivismo fraco, a afirmação do papel das

idéias como indutoras de mudanças de comportamento nos Estados não é um fim em

si mesmo, mas atende à necessidade maior de explicar a criação e transformação de

regimes, a partir de um processo de aprendizado (learning cooperation).

59 Judith Goldstein & Robert Keohane. Ideas and Foreign Policy: An Analytical Framework. In: Goldstein and Keohane (Eds.). Ideas and Foreign Policy: Beliefs, Institutions and Political Change. Cornell University Press, 1993 60 Hasenclever et al., loc. cit. 61 Funcionalismo usado aqui para referir-se à teoria de regimes desenvolvida por Keohane, conforme denominação empregada por Hasenclever et al., op. cit.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

80

3.6.4.2. O aprendizado

Quando as idéias efetivamente induzem uma mudança de comportamento

podemos falar em aprendizado. Segundo a concepção de Joseph Nye63, pode haver

um aprendizado simples, em que os objetivos permanecem inalterados, havendo

mudança apenas nos instrumentos ou estratégias propostos para alcançá-los e um

aprendizado complexo em que se redefine o conteúdo mesmo dos interesses

nacionais. Ernst Hass64 chama a primeira categoria proposta por Nye de adaptação e

apenas à segunda confere o caráter de aprendizado.

Vale notar que o aprendizado proposto pelos cognitivistas difere daquela noção

apresentada pelos racionalistas em que os Estados reagiriam a mudanças estruturais

com mudanças comportamentais. Nesse caso as informações novas e o aprendizado

feito a partir das mesmas dizem respeito apenas a mudanças estruturais no ambiente

em que atuam os atores. Não há qualquer preocupação com o modo como os

interesses são redefinidos.

Um claro exemplo de aprendizado sob a ótica cognitiva pode ser encontrado nas

relações entre os Estados Unidos e a União Soviética no período da Guerra Fria.

Diante do conhecimento do poderio de destruição dos armamentos nucleares e da

impossibilidade de proteger de modo efetivo suas populações, as duas potências

entenderam ou aprenderam a necessidade de passar do unilateralismo para uma

posição mais cooperativa, ao menos no tocante às estratégias de segurança e controle

de conflito.65

No caso dos direitos humanos, a certeza da necessidade de evitar-se a repetição

dos abusos da Segunda Guerra Mundial chamou a atenção para a criação de um

sistema de garantias, até então largamente entravado pela resistência dos Estados.

Com o decorrer do tempo, a crescente imbricação dos mesmos com conceitos como

democracia e paz e a pressão exercida por novos membros do Terceiro Mundo em

62 Hasenclever et al., op. cit., p. 144. 63 Joseph Nye. Nuclear Learning and U.S. – Soviet Security Regimes. International Organization, v.42, 1987, p. 371-402. 64 Ernst Hass. When Knowledge is Power. University of California Press, 1990.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

81

relação a temas sensíveis como discriminação racial e autodeterminação ensejaram o

abandono pela Comissão de uma posição abstencionista e limitada à elaboração de

normas, e a adoção de um perfil mais ativo, desenvolvendo inclusive mecanismos

extraconvencionais de proteção. Por fim, a recente consagração dos direitos humanos

como tema global, na Conferência de Viena, tende a promover não apenas um

comportamento crescentemente conciliatório com os órgãos de controle, mas também

uma maior observância dos preceitos legais, deixando de lado as velhas garantias da

cidadela da soberania. Exemplo desse novo comportamento é a crescente cooperação

dos Estados com os procedimentos de controle temáticos, respondendo às demandas e

aceitando missões de investigação in situ. Igualmente, a aceitação da criação do posto

de Alto Comissário sobre Direitos Humanos parece ser indicador claro do aumento da

disposição dos Estados em ver sua soberania reduzida em nome de uma maior

proteção nos direitos e garantias individuais. Cumpre notar que essas mudanças no

comportamento dos Estados vis-à-vis os direitos humanos deve-se muito mais a

transformações no âmbito das crenças e idéias do que a alterações estruturais

marcantes.

No tocante ao aprendizado, vale comentar a posição de George Modelski66. Este

autor defende que os Estados estão num processo de aprendizado acerca dos

compromissos com os direitos humanos, principalmente no tocante aos direitos civis

e políticos e a democracia. Na linha daquilo que Immanuel Kant propusera no século

XVIII, haveria uma tendência natural à expansão das democracias liberais a partir do

aprendizado dos Estados acerca dos benefícios da mesma para assegurar a dignidade

humana e a paz internacional. Em termos quantitativos é inegável a expansão das

democracias ocorridas nas últimas décadas. Sabe-se, contudo, que em muitos casos a

mera realização de eleições não é garantia de proteção a direitos, configurando o que

se convencionou chamar de democracias não-liberais. Igualmente, em muitos Estados

recém democratizados, o enfrentamento de crises econômicas foi suficiente para

abalar a confiança nos princípios democráticos, levando, em alguns casos, à

restauração de certas formas de autoritarismo.

65 Hasenclever et al., op. cit., p. 147. 66 George Modelski. Is World Politics Evolutionary Learning? International Organization, v.44, 1990, p. 1-24.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

82

A despeito das dúvidas que esses fatos possam suscitar acerca do efetivo

aprendizado da importância dos direitos civis e políticos, é inegável, hoje, a

consagração do entendimento de que os direitos humanos são interdependentes e

indivisíveis (diferentemente da visão adotada na Carta Internacional de Direitos),

cabendo aos direitos civis e políticos importante papel na consecução do

desenvolvimento, limitando-se, assim, a restrição desses direitos em nome do

progresso econômico, prática largamente adotada em tempos pregressos.

Ainda sobre o papel do conhecimento na teoria cognitiva, vale dizer que assim

como ele é importante para alterar o comportamento dos Estados em direção a

posições mais cooperativas e conciliatórias, ele também pode ter o efeito contrário.

De fato, novos conhecimentos adquiridos, capazes de abalar crenças anteriores sobre

as quais se erigia um sistema de cooperação podem ser decisivos para o

desmoronamento do referido sistema. Recentemente, por exemplo, novos estudos que

apontaram para uma recomposição gradativa da camada de ozônio podem

desestimular os Estados a cumprirem metas já acordadas no tocante à emissão de

gases poluentes.

Igualmente, a simples aquisição de novas informações e novos conhecimentos

não induz obrigatoriamente para mudanças comportamentais significativas. Tudo

dependerá da qualidade e quantidade das informações novas, bem como da força e

transcendência das crenças anteriores. Para Nye: “new information affects prior

beliefs, but its reception and interpretation are also affected by those prior beliefs”67

É curioso notar, outrossim, que segundo a teoria cognitiva fraca a relação de

causalidade entre conhecimentos compartilhados e regime não se limita apenas ao

caráter indutor do primeiro para a formação do segundo. Ocorre também o que

Krasner68 define como feed-back. Por este processo, o regime uma vez constituído

também age sobre as crenças dos atores, contribuindo para desenvolver o próprio

aprendizado que originalmente lhe deu causa e ensejando, inclusive, redefinições de

67 Joseph Nye, op. cit., p. 379. 68 Stephen Krasner. Regimes and The Limits of Realism: Regimes as Autonomous Variables. In: Krasner (ed.). International Regimes. Cornell University Press, 1983, p.361.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

83

interesses. “By stabilizing actor’s mutual expectations in an issue-area regimes can

reshape their perceived self-interest”69

70 É também inerente à teoria cognitiva a noção de Estados como uncertainty

reducers.71 Os Estados buscariam crescentes informações e conhecimentos antes de

fazer escolhas e tomar decisões, principalmente em assuntos pouco familiares. Vale

notar que a incerteza defendida pelas teorias cognitivas difere das teorias

contratualistas, onde a preocupação é com o desconhecimento do comportamento e

interesses dos demais atores. Nesses casos, os regimes funcionariam como redutores

de incertezas e facilitariam a cooperação. Por fim, a tese desenvolvida por Young

(“véu da incerteza”) considera a incerteza dos tomadores de decisão em relação ao o

que melhor atende a seus interesses um fator que aumenta as perspectivas de

cooperação, enquanto os cognitivistas fracos associam a redução da incerteza, graças

à atuação de comunidades epistêmicas, a maiores níveis de cooperação. A relação

entre cooperação e incerteza é então apresentada quase que de formas opostas.

No tocante às comunidades epistêmicas, vale notar que muito embora elas tenham

papel importante dentro da teoria cognitiva fraca, principalmente na redução das

incertezas dos Estados, no âmbito dos direitos humanos sua atuação tem pouca

69 Hasenclever et al., op. cit., p.148. 70 Ibid., p. 155. 71 Ibid., pp.140-141.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

84

relevância. De fato, se uma das premissas para a atuação dessas comunidades

privadas é a existência de consenso entre os especialistas, no caso dos direitos

humanos, esse consenso fica muitas vezes comprometido, dado o caráter

predominantemente moral do conhecimento a ser adquirido e transmitido. Não resta

dúvida que é muito mais fácil garantir um apoio consensual em torno de idéias

cientificamente comprovadas, como, por exemplo, a questão do aquecimento global e

sua correlação direta com a emissão de gases poluentes, do que em relação a idéias

que refletem um argumento moral, muito mais difícil de comprovar, como é o caso da

aplicabilidade dos direitos humanos universais em qualquer cultura e situação. “It is difficult to achieve a broad consensus about human rights among private networks

because one is dealing more with morality than with science. Without agreement about benefits from human rights, the consensus among governments on human rights and public policy will remain thin and incomplete”.72

3.6.4.3. Principled Issue Networks

Ainda dentro de um cognitivismo fraco, certos autores como Kathryn Sikkink73

destacam a atuação de “principled issue networks”. Estas redes caracterizar-se-iam

pelo compartilhamento de valores e de crenças normativas, atuando em âmbito

transnacional, contribuindo muitas vezes para reconsiderações acerca dos alcances e

limites da soberania.

Nesse âmbito, ganha força a atuação de redes de organizações não-

governamentais que ajudam na promoção e popularização de certos direitos e

oferecem um canal aberto para queixas e demandas de populações marginadas dos

foros de decisão.

É sintomático o crescimento do número desses atores não-estatais nas últimas

décadas. Se em 1958 totalizavam 38, em 1970 esse número pulou para 103, chegando

a 275 em 1990.74

A participação das ONG’s foi decisiva, por exemplo, para a afirmação do caráter

universal dos direitos humanos durante a Conferência Mundial de Viena em 1993.

72 Weiss et al., op. cit., p.221. 73 Kathryn Sikkink. Human Rights, Principled Issue Networks, and Sovereignty in Latin America. International Organization, v.47, n.3, 1993, p. 411-442.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

85

Nesta conferência, 1004 ONG’s foram convidadas para tomar parte dos

procedimentos oficiais e exerceram grande influência sobre os governos, muitos dos

quais estavam, a princípio, reticentes. 75

Da mesma forma, também tiveram papel de destaque durante as negociações na

Assembléia Geral que levariam ao estabelecimento do posto de Alto Comissário das

Nações Unidas para Direitos Humanos em 1994.76 Por fim, alguns documentos como

a Declaração sobre Minorias e a Declaração sobre os Povos Indígenas surgiram a

partir do esforço de ONG’s, muito embora, é claro, a aprovação dos mesmos tenha

dependido da votação dos Estados.77

A influência e a relevância destas redes transnacionais ficam evidenciadas na

reiterada tentativa de diversos Estados em negar-lhes o status de membro consultivo

às reuniões da Comissão de Direitos Humanos. Em 1991, por exemplo, Cuba e alguns

Estados árabes impediram a Human Rights Watch de obter o seu status consultivo via

ECOSOC, certamente temerosos do impacto negativo que eventuais documentos a

seu respeito a serem circulados por referida organização pudessem provocar.78

Vale destacar, contudo, que cada vez mais a atuação de grupos como Greenpeace,

World Wildlife Fund e Anistia Internacional ocorre verdadeiramente numa dimensão

transnacional. Isto reflete, além de uma maior capacitação institucional dessas redes,

uma crescente aceitação da comunidade internacional em face dos princípios que elas

tentam promover. Contrariamente, caso essas atividades tivessem que ser realizadas

por atores estatais, eles certamente não escapariam às acusações de intervencionismo.

Especificamente no tocante aos direitos humanos, pode-se dizer que a atuação de

ONG’s como Anistia Internacional, Human Rights Watch e The International

Commission of Jurists, entre outras, tem sido marcante dentro do regime das Nações

Unidas. “If human rights NGOs had been absent at the UN during the world

74 Ibid., p. 418. 75 Felice D. Gaer. Reality Check: Human Rights NGOs Confront Governments at the UN. In: Thomas Weiss; Leon Gordenker (Eds.). NGOs, the United Nations, and GlobalGovernance. Lynne Renner, 1996, p.60. 76 Nayef H. Samhat, op. cit., p. 374. 77 Weiss et al., op. cit., p. 216. 78 Ibid., p. 215.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

86

organization’s first forty-five years, it is unlikely that the record would be as good as

it is.”79

Por fim, vale ressaltar que o aparecimento e crescente atuação dessas redes

transnacionais (principled issue networks) refletem o que alguns autores como

Ronnie Lipschutz descrevem como o surgimento de um tipo de sociedade civil

global.80

3.6.5. Conclusão

Em suma, a grande contribuição da teoria cognitiva fraca de regimes reside no

fato de elucidar os processos de formação de interesses e preferências, não mais os

considerando como dados externamente. Para tanto, essa teoria valeu-se de certas

noções como conhecimento (crenças normativas e causais), aprendizado e principled

issue networks para formular suas diretrizes. Com a introdução das idéias e do

elemento cognitivo passou a reconhecer-se o caráter variável dos interesses dos

Estados e, conseqüentemente, de seu comportamento, independentemente de

alterações estruturais. Se no âmbito do presente trabalho o que se busca é justamente

entender como se deu a evolução nos procedimentos da Comissão e no próprio

regime de direitos humanos das Nações Unidas, nada mais adequado do que

empregar um arcabouço teórico afim com tais objetivos. Vale notar, outrossim, que

por limitar-se a introduzir novos elementos às teorias racionalistas, ou “preencher as

lacunas” dessas teorias, na linguagem de Rittberger, a teoria cognitiva fraca permite

conciliar as idéias com o caráter de utility-maximizers dos Estados.

No plano dos direitos humanos, fica latente que muitas vezes um maior

comprometimento dos Estados com os direitos humanos internacionais, bem como

uma maior abertura aos mecanismos de investigação e controle não deriva do caráter

altruísta dos mesmos ou de uma moralidade transnacional genuína. O que ocorre é

que novas idéias consagradas com o fim da Guerra Fria, como a universalidade dos

direitos humanos e o reconhecimento da legitimidade da proteção internacional,

79 Ibid., p. 216. 80 Ronnie Lipschutz, Reconstructing World Politics: The Emergence of Global Civil Society. Millennium, v.21, n.3, 1992.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA

87

influenciam o processo de formação de interesses e terminam por ensejar

comportamentos mais ajustados com esses direitos. Os Estados não renunciam a seus

interesses, continuam a persegui-los, só que devidamente reformulados pelo

aprendizado feito em face dos novos conceitos e idéias.

Assim, a partir desse aprendizado, Estados mais afeitos à cooperação com

instrumentos de controle e menos hostis à ingerência internacional sobre assuntos

domésticos permitiram a consagração de novos procedimentos de investigação no

âmbito da Comissão de Direitos Humanos, como o Grupo de Trabalho Sobre

Detenções Arbitrárias, mais amplo nos seu escopo geográfico e incisivo no seu

método de trabalho, do que outros mecanismos extraconvencionais que lhe

precederam.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0210271/CA