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a SEVERA e a MADRAGOA

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a SEVERA e a MADRAGOA

A Severa com a sua guitarra de cravelhas de madeira, numa aguarela de Alberto Souza

Foi a Madragoa fundamental para a história do Fado, não podendo a Junta de Freguesia de Santos-o-Velho,

nesta nova fase da transição administrativa que se avizinha, deixar de assinalar, como um dos seus últimos actos,

a evocação do nascimento de Maria Severa.

A colocação de uma lápide comemorativa do seu nascimento na Rua Vicente Borga, antiga Rua da Madragoa,

confirma a importância deste bairro histórico na génese do Fado, relevo este confirmado posteriormente por muitos outros fadistas que aqui nasceram, moraram ou cantaram.

É importante para a freguesia, e para a cidade, lembrar o significado da Madragoa para esta forma de expressão musical,

colocando-a obrigatoriamente na Rota do Fado lisboeta.

A memória da mítica Severa com a colocação de uma lápide no local do seu nascimento, marca o início da evocação

de outros grandes símbolos do Fado, que ao longo dos tempos têm cantado na ou a Madragoa.

Luís Monteiro • Presidente da Junta de Freguesia de Santos-o-Velho

Maria Severa segundo Roque Gameiro

A Severa e a Madragoa • 3

Maria Severa Onofriana foi baptizada em 12 de setembro de 1820 na Paróquia dos Anjos, razão pela qual há quem refira que ela terá nascido na Mouraria, onde de facto, na Rua do Capelão, viveu parte da sua vida, e onde faleceu.

Conforme escreveu Francisco Santana na Revista Municipal nº 7 de 1984, devido, ou não, às deficientes condições e ao local onde se deu o parto, a Severa “devia dar poucas garantias de sobrevivência ao nascer, pelo que lhe terá sido administrado o baptismo nessa ocasião e, sub conditione, de novo, na igreja, um mês e tal depois”.

Não havendo pois absoluta certeza ou registo do local exacto do nascimento da mítica fadista, há no entanto referências claras que indicam que ele se deu em 26 de julho na Madragoa, na então Rua da Madragoa, actual Vicente Borga, onde a mãe tinha uma taberna. A data do nascimento é a que consta no registo do seu posterior baptismo em setembro.

Pinto de Carvalho (Tinop) em “História do Fado”, de 1903, indica que “após investigações algo trabalhosas e demoradas, conseguimos, enfim, tirar a limpo a vida acidentada desta meio-soprano dos conservatórios do vício. ...Maria Severa – assim se chamava ela – não era cigana como propalou a lenda, mas nascera na Madragoa. Sua mãe, a Barbuda, tinha uma das três tabernas que então havia naquela rua (então Rua da Madragoa), e alcunhavam-na assim, porque possuía tanta barba,

A primeira cantadora que conquistou fóros de celebridade foi Maria Severa, ...a primeira que melhor nos veiu dizer, mediante os apaixonados acentos da triste canção todo o encanto invencível, toda a graça amaviosa, toda a grandeza pathética, da mais bella, mais tyrannica e mais absorvente das paixões humanas – o Amor.

Pinto de Carvalho (Tinop) • Ilustração Portuguesa nº 51, de 1907

a SEVERA e a MADRAGOA

4 • A Severa e a Madragoa

que a obrigava a cortá-la frequentemente e a encobri-la com um lenço. Ali, en plein cabaret, a Severa batia o fado com o Manozinho, o mais antigo fadista do sítio, e com o Mesquita, um fadistão que andara embarcado”.

Rui Vieira Nery em “Para uma história do fado”, de 2004, citando Miguel Queriol, jovem boémio do círculo íntimo do Conde de Vimioso e contemporâneo de Severa, refere que os seus testemunhos assim como os de Camilo Castelo Branco “são, à sua maneira, preciosos”. Menciona que “por volta de 1840, para o autor (Queriol) e para muitos dos seus companheiros da alta sociedade lisboeta, apesar de se tratar de frequentadores habituais da boémia da capital, o fado trazido assim pela Severa das tabernas da Madragoa para o palácio de Conde de Vimioso, era uma novidade”. Trata-se de um testemunho significativo do papel deste sítio da cidade para a génese e desenvolvimento do fado.

Carlos Gomes em “Do Mocambo à Madragoa: a Lisboa de outras eras...”, caracte-rizando este sítio da cidade, diz que “a vizinhança mantém a proximidade que caracteriza os bairros piscatórios e, bem no centro do bairro, na taberna que foi da Maria Barbuda e onde nasceu Maria Honofriana Severa, a fadista que se tornou uma lenda do fado, ...”.

Entre várias outras referências, em “Por amor de Lisboa – visitar Lisboa” de José António Guarriaran, de 2012, escreve que “nos bairros da Lisboa profunda, marinheira e desgarrada onde pôde nascer o fado... nas casas, tabernas e locais, ...nalguns deles cantou a mítica Severa, que chegou a viver na Rua da Madragoa. Mas essa é outra história.” Também na Wikipédia (março de 2013) na biografia de Maria Severa, se refere que “viveu grande parte da sua curta vida na Mouraria, mas o seu nascimento ter-se-á dado na Madragoa, na Rua Vicente Borga (antiga Rua da Madragoa), esquina com a Travessa dos Inglesinhos”.

A. Victor Machado em “Ídolos do Fado”, ed. 1937, reafirma que “Maria Severa, que não era cigana como a lenda propalara, mas sim nascida na Madragoa”. A sua ligação a este sítio da cidade é confirmada pela APAF, Associação Portuguesa dos Amigos do Fado, que na exposição ícono-bibliográfica que realizou em 1996 sobre “Severa ou a mitologia do fado”, refere na sua biografia que “viveu na Madragoa onde a mãe tinha uma taberna”.

A Severa e a Madragoa • 5

Tendo sido ouvidos individual e separadamente, os testemunhos de moradores antigos, particularmente varinas e fadistas, é curioso que, sem excepção, todos tinham ouvido dizer que a Severa nascera na Madragoa, a maioria referindo que na taberna de sua mãe na Rua Vicente Borga, não sabendo ao certo a sua localização exacta, atendendo a que o número de tabernas nesta rua foi muito elevado até meados do passado século, sucedendo-se o fecho de umas à abertura noutro local de outras.

Houve no entanto testemunhos mais precisos, como os de Celeste Santos, antiga arrasta e varina nascida na Madragoa em cerca de 1930, afirmando claramente que a taberna da mãe da Severa era no edifício de esquina da Travessa das Inglesinhas, 14 com a Vicente Borga, 33 a 35, e que ela tinha nascido no nº 33.

Também Olívia Santos, nascida na Madragoa em 1922, na Rua Vicente Borga, lavadeira no Lavadouro Público das Francesinhas, afirmou claramente que foi no nº 33 da Rua Vicente Borga que a Severa nasceu, pois foi isso que lhe disseram os seus antepassados.

Julieta Reis, fadista profissional nascida em 1935 e moradora na Rua das Madres, trabalhou vários anos no Solar da Madragoa na Rua das Trinas, referiu que nos meios fadistas era conhecida essa origem da Severa. Informação idêntica à de Ana Rosa Martins, Arlete Luzes, Alice Silva, Sara Reis ou Josefina Rolão, todas ouvidas separadamente.

Para as histórias do fado, dos seus intérpretes, das suas músicas e letras, sobretudo da 1ª metade do séc. XIX e décadas seguintes, foi muito importante a transmissão oral passada de geração em geração. Era baseada em tradições que circulavam na chamada lisboa histórica próxima dos vários cais do Tejo, como o de Santos à Madragoa, e, particularmente, no seio da comunidade fadista.

Também para o melhor conhecimento da vida da Severa, para além dos objecti-vos registos oficiais das suas certidões de baptismo e óbito, são fundamentais os relatos dos seus contemporâneos, por mais ou menos romanceados que sejam. Igualmente o é essa transmissão oral de gerações sobre os seus primeiros passos, na transição do 1.º para o 2.º quartel de oitocentos.

De facto, como também foi dito por outras madragoenses, sempre ouviram dizer no sítio que a Severa saiu ainda miúda da Madragoa, tendo mesmo Celeste Santos referido que ela por aqui andou até aos 8 anos.

Esta última informação é interessante e casa-se bem com o que Tinop refere no seu livro, pois é natural que a “Barbuda” tenha tido a sua taberna na Rua da Madragoa até aos 8 anos de vida da Severa, onde ela, ainda miúda, aprendeu as artes do fado com o Manozinho (o mais antigo fadista do sítio como foi atrás referido) e com o embarcadiço Mesquita.

6 • A Severa e a Madragoa

Citando Tinop, Eduardo Sucena em “Lisboa, o fado e os fadistas”, de 1992, refere ainda que a Severa teve também na Madragoa outro companheiro de fado, que seria pouco mais velho que ela, “o Manuel Botas, então ainda rapazote”.

Também por essa altura, segundo Alberto Pimentel em “A triste canção do sul”, de 1904, outro fadista cantava a Madragoa, o José Norberto, conhecido como o “saloio de Campolide”, confirmando assim este bairro como um berço importante do apa-recimento do fado, um ambiente propício para a aprendizagem da jovem Severa.

No entanto estes e outros fadistas que se ouviam nessa época na Madragoa, um pouco mais velhos que Maria Severa, nunca tiveram a sua projecção na história do fado. Talvez para isso contribuísse também aquilo que dizia o seu contemporâneo Luís Augusto Palmeirim, citado por Sucena, que ela se “comprazia em subjugar os seus admiradores pela suavidade da sua voz de meio-soprano, ...pelas dolências e melancolias do (seu) fado”.

Há outras referências sobre a fadista que indicam que depois do seu nascimento na Rua Vicente Borga e antes da sua fixação até final da sua vida na Rua do Capelão, terá morado noutros sítios da cidade. Em 1831 habitava na Rua Direita da Graça, escrevendo-se também que viveu com sua mãe no Pátio do Carrasco, ao Limoeiro, e na Travessa do Poço da Cidade, no Bairro Alto.

É pois redutora a ideia variadas vezes difundida, que a mítica fadista nasceu, morou e faleceu confinada a um bairro da cidade. O nascimento e morte de Maria Severa nos bem característicos e antigos bairros da Madragoa e da Mouraria, não só os une na história da cidade, como também na história do fado e da sua génese.

Pela importância que a Madragoa teve na primeira fase da vida da Severa, é pois bem merecida a colocação de uma lápide evocativa da fadista naquele que foi, segundo a tradição, o local do seu nascimento. É igualmente significativo que a homenagem que a cidade lhe presta, seja feita por quem melhor a pode representar: o Município de Lisboa e a Junta de Freguesia de Santos-o-Velho.

A taberna da antiga Rua da Madragoa

O núcleo antigo da Madragoa, localizado a norte da Rua da Esperança e do Paço Real de Santos, foi confinado entre este arruamento e outras propriedades, como as então cercas dos conventos do sítio, tendo-se formado ainda no séc. XVI e sofrido crescente densificação, designadamente após o terramoto de 1755. É pois quinhentista o traçado da Rua da Madragoa, já registada numa planta datável de cerca de 1585 existente na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

A Severa e a Madragoa • 7

Conforme a Obra Municipal nº 24888, referente à história do edifício da Rua da Madragoa (actual Rua Vicente Borga), nº 33 a 35 dobrando para a Travessa das Inglesinhas nº 14, não foi no entanto encontrada documentação anterior a 1876, muito embora a data da construção do imóvel aí existente fosse bem anterior. Em abril de 1881 foi aprovado para o local um projecto de remodelação profunda em parte do lote. Com uma licença de construção para 6 meses, tratou-se, de um “Projecto da reconstrucção, em virtude da intimação da ex.ma Camara, de parte do prédio de João Duarte sito na rua de Vicente Borga nº 31 a 37, freguesia de Santos-o-Velho”, submetido à Câmara Municipal de Lisboa para aprovação no mês anterior, em março de 1881.

Trata-se de um prédio urbano pertencente a um único proprietário, constituído por 2 edifícios anexos, possivelmente construídos em épocas diversas, onde no espaço do piso térreo do actual nº 33, um fogo T2, existiria antes de 1881 a taberna que em 1820 era de Ana Gertrudes, a “Barbuda”, mãe de Severa.

De facto, conforme os desenhos do projecto de 1881, os 2 vãos hoje existentes para a Rua Vicente Borga, a porta nº 33 e o outro na extrema do prédio mais perto da Travessa do Pasteleiro, substituíram os 3 anteriores mais estreitos.

Estes 3 vãos primitivos, bem visíveis a tracejado no projecto, seriam os da janela e da porta pertencentes à taberna, e ainda o da porta de acesso aos 2 pisos superio-res, a que se acedia, muito provavelmente, através de uma “escada de tiro”, como era usual neste tipo de edifícios de frente estreita. Ainda existem actualmente na Madragoa antiga variados exemplares com este tipo de escada.

^ A tracejado está o edifício como era no tempo da Severa. A janela e a porta da esquerda seriam as da taberna da Barbuda.

8 • A Severa e a Madragoa

Nos tempos de Ana Gertrudes e da Severa, os pisos superiores, portanto os 1.º e 2.ºandares desta parte do prédio urbano, tinham 3 janelas de peito cada, com dimensões contidas, e não as 2 hoje existentes, bem maiores em largura e altura.

As obras profundas de 1881 conduziram a uma nova configuração da fachada, com a sua passagem dos 9 para os 6 vãos, tendo sido mudado o uso do piso térreo para habitação.

Foi alterado assim o espaço comercial que anterior-mente teria sido a taberna, passando a fazer-se o acesso aos pisos superiores de todo o prédio, incluindo os fogos virados à Travessa das Inglesinhas, apenas pela porta nº 35 da Rua Vicente Borga e não como acontecia no tempo da Severa, através de 2 portas.

Pelo nº 14 da Travessa das Inglesinhas apenas se acede ao estabelecimento, hoje devoluto, que em 1996 deixou de ser o “estabelecimento de vinhos e petiscos” pertencente a António Carlos Oliveira, também então conhecido na Madragoa como a taberna da Tia Cristina.

Essa área perto do cruzamento entre a Vicente Borga e as Inglesinhas sem-pre foi muito movimentado em termos de vida urbana, pois à tasca da Barbuda no séc. XIX, complementada certamente com outros pequenos estabelecimentos comerciais, juntou-se no século seguinte a tasca da Tia Cristina no 14 da Travessa das Inglesinhas, na esquina de cima à tasca da Tia Beatriz, e em frente desta ao sapateiro que por muitos anos aí existiu, hoje transformado em mini-mercado.

Aliás a antiga Rua da Madragoa, Vicente Borga a partir de 1863, se por volta de 1820, segundo várias descrições do sítio, tinha outras 2 tabernas para além da da mãe da Severa, o seu número foi crescendo até à 1ª metade do séc. XX, sendo muito recente a extinção da última sobrevivente neste arruamento, já no presente século, a bem conhecida e característica taberna do João Carvoeiro, frente à Tra-vessa das Isabéis.

Assim, face à importância deste local da Vicente Borga nº 33 e 35, ele merece ser salientado e lembrado na história da Madragoa e da cidade, não só por ter sido o local da existência de uma das primeiras tabernas do sítio onde se terá batido e cantado o fado, como, segundo todas as referências colhidas, por nele ter nascido a mítica fadista Maria Severa Onofriana.

^ O edifício da Rua Vicente Borga, 33 a 35, na actualidade, tal como ficou depois das obras de 1881

José Silva Carvalho

FICHA TÉCNICA

Edição Câmara Municipal de Lisboa / Junta de Freguesia de Santos-o-Velho • Título A Severa e a Madragoa • Texto José Silva Carvalho • Concepção gráfica Laura Lourenço - IM • Impressão e acabamento Imprensa Municipal • Tiragem 250 exemplares • Ano 2013