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8/3/2019 3-A Morte Por Jejuy Entre Os Guarani Do Sudoeste Brasileiro - Miguel Vicente Foti
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Revista de Estudos e Pesquisas, FUNAI, Braslia, v.1, n.2, p.45-72, dez. 2004
Resumo: Entre os povos Kaiow e Nhandewa, o chamadojejuvy maisque a simples traduo de auto-enforcamento. Trata-se de um modo
cultural de morrer, relacionado ao modo de ser, s concepes que cercama produo da identidade e a convivncia. Em si mesmo contradio emato, levada ao limite agonstico e neutralizada. As violncias associadasao contato intertnico ameaam o tekoha, o lugar social onde se realiza omodo de ser. Parte das famlias encontra-se fragmentada, empobrecida econfinada em reservas. Isto pe em jogo uma carga exagerada decontradies e conflitos, dos quais o aumento exagerado do nmero decasos, seu aspecto de suicdio, representa uma expresso.
Palavras-chave: Cultura. Contradio. Expresso. Tekoha. Jejuvy.Suicdio.
A morte por jejuvy entre os Guaranido sudoeste brasileiro
Miguel Vicente Foti1
Introduo
O suicdio, entre os povos Kaiow e Nhandewa, temdespertado interesse dos antroplogos, nas ltimas dcadas, desde
que os surtos comearam a ser notados e noticiados. O ato suicida,
a formajejuvy e tudo o que ela expressa, entretanto, ainda no
receberam suficiente ateno. Acreditamos que isto poderia ajudar
na compreenso daquilo que se transformou numa epidemia, em
certas aldeias e perodos.O problema do suicdio reside no nmero de casos, nmero
que indica a presena de uma morbidade bastante severa, resultado
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das condies de vida coletiva. As dimenses do problema ainda
no foram convenientemente levadas em conta, nos organismos
que prestam assistncia. Por mais informaes que se traga sobreo fenmeno, ou que se avance na sua descrio, o mais importante
a sensibilidade para o drama que ele representa. Ao visar o campo
da sade indgena, este comentrio de carter antropolgico pretende
justificar o desenvolvimento de uma prtica interventiva, apoiando
sua organizao num programa de ao, aberto intersetorialidade.
Dados gerais sobre os Guarani do Brasil
Os povos Guarani habitavam secularmente as vastas
extenses de florestas midas, cortadas pelos rios da Bacia Platina,
embora alguns grupos tenham chegado ao litoral atlntico e regio
amaznica. Os estudiosos estimam em at quatro milhes apopulao Guarani poca da chegada dos europeus. Com a
desorganizao provocada pela presena jesutica, a escravizao
pelos portugueses e as modernas frentes de expanso extrativista
e depois agro-pastoril, e sob o impacto de inmeras guerras e
epidemias, houve um avanado processo de etnocdio e assimilao.
A resistncia cultural, contudo, a despeito de certas aparncias,
sempre foi e continua sendo um fato surpreendente, como
surpreendente o nvel de agresso a que continuam submetidos at
hoje violncia fsica e moral, possvel dizer com exatido.
Resistncia e violncia so as marcas da existncia dos Guarani do
Brasil, alm de uma relao com a sociedade nacional que como
um jogo, feito de expectativas mtuas distorcidas. Os Guarani, hoje,
so quase quarenta mil, ainda o maior grupo nativo brasileiro, sendo
trs os principais sub-conjuntos, separados geograficamente e/ou
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por diferenas de dialeto. No sul, os Guarani Mby; no litoral leste
e sudeste, os Guarani Nhandewa, que se auto-denominam
simplesmente guarani, tambm presentes no sul do Mato Grossodo Sul; ainda no sul do Mato Grosso do Sul predominante o terceiro
grupo: o dos Kaiow, aparentados com os Pai-Tavyter do Paraguai.
Os Kaiow eram os ocupantes da Serra do Amambai, estendendo-
se a regies que abrangiam os rios Dourados, Iguatemi e Apa. At
meados do sculo XX, mantiveram-se arredios, tendo sempre
resistido, de maneira hostil, ao contato com os estrangeiros.
Hoje, Kaiow e "Guaranis" (Nhandewa) misturam suas
unidades macro-familiares ou familiares menores, na maioria das
dezoito aldeias e nas oito reservas, em que foram "confinados"
(Brand, 2001)2 , desde meados da dcada de 1910, confinamento
que aumentou com a expanso de Dourados, Amambai e pequenas
cidades, no perodo desenvolvimentista e ditatorial. Famlias mistas
e indivduos soltos tambm so freqentes. A populao atual de
26.836 pessoas, a maior parte Kaiow; das vinte e seis reas, em
apenas sete, Porto Lindo, Cerrito, Piraju, Potrero Guasu, Arroio
Cora, Sete Cerros e Paraguassu, predominam os Guarani
Nhandewa. Especialmente relevante a presena de pequenos
grupos, fora das reas reconhecidas, apegados ao antigo territrio
e modo de ocupao: so os "ndios de fazenda", expresso que
abriga uma distoro evidente. So grupos resistentes que continuam
compelidos pela fora, como no passado, a deixarem o seu territrio
(um problema indigesto, mas que preciso enfrentar).
A floresta praticamente desapareceu dessa poro do MatoGrosso do Sul, o que se v predominar uma terra arrasada:
vastides tomadas pela soja e pela pecuria extensiva, espaos
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degradados e reas urbanas precrias. O que restou de florestas
na maior parte da regio, necessita urgentemente ser regularizado
como domnio da Unio, e servir tanto preservao ambientalquanto ao "usufruto exclusivo" (regrado, assistido) das comunidades
indgenas. Uma reviso da poltica fundiria indgena na regio
tarefa de Estado urgente. A agricultura familiar, o aluguel da fora
de trabalho nas fazendas, o emprego direto nos rgos e
organizaes assistenciais so as atividades que sustentam
precariamente a aquisio dos bens materiais. Em menor escala, apecuria rstica, a caa, a pesca, o artesanato, a mendicncia e as
doaes assistenciais. A agricultura familiar a atividade mais
importante, necessitando, evidentemente, ser objeto de um apoio
mais amplo. Faltam alternativas ocupacionais culturalmente
ajustadas, interessantes, prazeirosas e teis. No espao que lhes
sobrou, as famlias j no podem se "espalhar" como se"espalhavam" antes, mantendo a proximidade dos parentes, a lgica
do he'yi3 ou unidade macro-familiar, nem visitarem-se ou guerrear
como o faziam antes, provocando deslocamentos e reacomodaes;
mas persiste o padro atomizado de ocupao do espao, gerando
a falsa impresso de uma ausncia de padro. Tampouco vivel,
na maioria dos casos, a proximidade dos he'yi, em conjuntos tambmmarcados pelo ideal agntico (patridescendncia), autonomia das
individualidades familiares e pessoais e realizao de princpios de
moral coletiva: as aldeias ou tekoha. Mas a tendncia no se rompe,
sendo um reflexo de concepes sociais e csmicas bem marcadas.
A inviabilizao dos tekoha, pelo modo como o territrio lhes
foi tomado pelos brancos, a perda da memria do que eram, a
interdio do acesso aos ambientes propcios para sua localizao,
segundo todos os caciques que pudemos entrevistar, representam a
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maior ameaa que j conheceram. quase impossvel qualificar o
clima de desespero quando o assunto esse, contrastando com a
imagem de um Guarani tpico, que raramente perde a serenidade.''Por qu isto est acontecendo conosco'' parece ser a pergunta
que fica no ar. Segundo um entrevistado, aps uma avaliao sagaz
de causas e conseqncias, perder-se do tekoha " pior do que
desaparecer". No raro o discurso apocalptico. Certa feita, um
Guarani considerado metio (filho de pai branco e criado em
fazenda), chorou cerca de meia hora diante de nosso gravador,dizendo apenas "ajuda ns".
Dados sobre a sociedade e a cultura
A sociedade Guarani representa um equacionamento
particularmente curioso da convivncia humana, uma maneira deunir separando. Atomizada, como se uma fora centrfuga afastasse
as famlias, e uma outra as conduzisse ao centro do mundo, ela
responde funcionalmente necessidade de produzir pessoas
consagradas existncia "verdadeira", associadas aosNhandejari,
"donos" espirituais da natureza, cujo nmero chega a cento e oitenta,
segundo relatos. Sociedade a ser realizada numa outra terra, sem opeso do corpo, desapegada de instituies mundanas, flexvel em
sua forma, ela tem apenas na chefia familiar o seu elemento central
de ordem. Contra o Estado e sem nfase na arquitetura das relaes
sociais, ela uma sociedade que associa antes de mais nada homens
e deuses, que promove o homem-deus, dominada por um ethos
individualista e guerreiro, pelo destino de morrer e se elevar docho, mas tambm pela espera paciente, daqueles muitos que vivem
mais de cem anos. Adaptvel, acomodada s circunstncias, ela
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produz nos mais desavisados a falsa expectativa de encontrar um
mundo aculturado. A idia de aculturao tem justificado, ao longo
do tempo, o logro territorial, e sustentado uma relao eivada deequvocos e violncias de toda espcie. A pecha de aculturado, o
complexo de imagens correspondentes, equivale a colocar os ndios
numa condio infra-humana. a base da violncia moral a que j
nos referimos acima, praticada pelos brancos do entorno, mesmo
os que querem ajudar, incluindo as autoridades brasileiras.
por ocasio dos rituais religiosos (vitais-religiosos) que a
vida social aparece, vibrante e plena de sentido, quem os presencia
muda seu olhar sobre os guarani. A presso aculturativa, contudo,
existe e representa um risco, sobretudo diante das dificuldades de
reproduo da vida ritual, risco de no ser nada, alm de uma
mercadoria barata, de uma "conscincia infeliz", de ver-se como
pobre e primitivo, num mundo cercado de brancos. No horizonte
do guarani, portanto, deve figurar o isolamento em condies
dignas (um contato administrado), conjugado, conforme os
diferentes casos individuais e graus de insero na sociedade
envolvente, com a perspectiva da cidadania nacional plena. Isto
possvel na conscincia guarani; manifestam, especialmente, o
desejo de absorver o poder da tcnica civilizada, incluindo a escritae, simultaneamente, manter o vnculo comunidade religiosa
tradicional, aquilo que eles tm de mais guarani: uma ontologia
prpria e um sentimento prprio do divino. Como sobrevivero
aos choques que isto pode provocar, no se pode saber. O que
precisam para existir, materialmente e moralmente, para manter a
integridade de povos, que o Brasil lhes devolva as 116 reas(CIMI,2001) recentemente tomadas de seus pais e avs, cada uma
com alguns milhares de hectares, talvez o maior embuste da histria
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do contato. Toda assistncia, se for apenas eficiente, gera o paradoxo
de contribuir para um status-quo fundirio que a base dos principais
problemas. Todos os atos assistenciais precisam, de alguma maneira,levar apoio concreto causa territorial.
A Ogapysy a instituio principal e mais estvel, uma casa
como a que habitavam no passado, onde se funde vida comum e
religio. Apesar de ser ogajekutu, fincada ou beira-cho e servir
para o uso comum, ela abriga o espao etreo, prpria para o
Jeroky, a dana sagrada. Ogapysy quer dizer casa ampla sem
esteios centrais, embora se possa buscar uma imagem profunda,
uterina, do seu significado, seguindo a pista da etimologia (ga casa,
py interior, sy me, esposa do pai). Ela abriga tambm os "objetos":
instrumentos musicais e de culto, insgnias, como o chiru, de
transmio secular, o que hoje, por si s, justificaria a sua presena.
Neste espao pontifica o Nhamoi, o vov, tambm chamado
Nhanderu, nosso pai, e seus assessores, Yvyraija.
Deve ser lembrado que essas palavras Guarani so conotadas
de maneira a referirem-se tambm aos entes csmicos, divindades
mximas e mensageiros. Dizem com freqncia " pesssoa tambm"
para referirem-se natureza dos entes. A contigidade entre osmundos: dos seres hbridos, ou infra-naturais, da natureza vegetal e
animal, dos homens e da sociedade, do lado de c de uma Grande
gua, e os mundos: das pessoas divinas, dos donos e dos grandes
deuses, do lado de l, um trao importante da cosmologia Guarani.
Esta contiguidade permite aos homens afastarem-se dos primeiros
ou frequentarem os segundos, mesmo que apenas tocando-os, como canto, a dana e o estado de aguyje (gratido, virtude), este o
seu objetivo maior. O lugar, que aprenderam a traduzir por cu, na
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verdade fica ao lado, apesar da existncia do cu empreo, ou cu
deste "mundo de c". Chega-se a ele pela morte natural (os suicidas
precisam ser adequadamente encaminhados), ou pelo estado deleveza obtido pelo cntico, pela dana e por prescries que incluem
uma alimentao prpria, semelhante a uma elevao. Os deuses
no pisam na terra, no rito religioso no vm "espritos", os homens
vo ao estado divino, caminhando, graas a um cosmo horizontal
contguo. H um transpasse, digamos assim, j que os deuses
esto em toda parte (espelham-se em tudo), quando o contato ativado pela pintura, enfeites e invocaes. Certos pssaros
circulam entre os domnios; dois pssaros (moki gwyra),
pousados nos ombros das crianas, garantem o nascimento e
manuteno da integridade do ayvu, a alma-palavra. preciso
cuidar para que no se espantem, provocando doenas, vcios e
suicdio.
Os Nhanderu, quando acumulam autoridade domstica,
sobretudo nos casos de grande nmero de parentes e agregados,
tambm so chamados de caciques, termo que conforme o contexto
se aplica somente autoridade domstico-poltica. ONhanderu
o detentor do discurso tico, o revelador de cnticos, o provocador
das danas sagradas, o conselheiro e aquele que exerce os misteres
da medicina. ainda e principalmente o reprodutor da palavra, da
lngua,Nhe'e, bela, sagrada,por, marangatu, que mais que um
atributo da alma, a prpria alma, o ayvu. ONhanderu tambm
sabedor das tcnicas que chamamos de magia e das manobras e
frmulas do "xamanismo". Nem todos, nunca demais lembrar,
esto igualmente inclinados ou conduzidos a todas essas atividades.
O importante que so atividades vitais para a sobrevivncia moral
e manuteno do equilbrio psico-social e sua ausncia traz, com
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intensidade, o mal-estar, a "sickness". H casos em que as
mencionadas atividades cabem s mulheres, Nhandesy, nossa
me. Um ponto importante a ressaltar que a feitiaria no toonipresente na comunicao mgica quanto se supe. Ela um ato
de magia que implica a conseqncia de um feito, coisa-feita, ou
quid malignum, como diz o professor Egon Schaden, mas o seu
papel mais o de participar de um sistema explicativo, alm de
mover alianas e inimizades. Essas ltimas chamam a ateno de
quem quer que se aproxime das famlias nas aldeias, sendo possvelsupor que exeram um papel semelhante, s vezes to violento,
quanto as guerras do passado, promovendo a tendncia ao status-
quo atomizado, "minimalista", como dizem alguns antroplogos
(Castro, 1986).
O fenmeno jejuvy entre os Kaiowa e Nhandewa
O jejuvy est por trs do enigma representado pela onda de
suicdios, recentemente constatada entre esses dois povos. A palavra
pode ser traduzida por aperto na garganta, sufocao. Tpico, entre
os ndios de lngua Guarani, da faixa meridional do Mato Grosso do
Sul, ele consiste de imediato em tomar uma corda e com ela enforcar-se, primeira vista, intempestivamente. O uso do veneno, com o
qual se atinge igualmente a garganta, tambm ocorre, mas
raramente. Durante o ano de 2002, ano do maior nmero de casos
j registrado (56), (Coloma, 2003), no se observou o emprego de
nenhum outro mtodo, o que implica a tendncia a um ''padro''
bastante rgido. Bastante antigo tambm: h cinco sculos o jesutaRuiz de Montoya j fazia referncia a enforcamentos entre esses
ndios. Conforme as estatsticas, praticam ojejuvy pessoas jovens,
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independentemente do sexo ou statusmatrimonial, raramente outras
pessoas (v. grfico anexo). O lugar que escolhem para amarrar a
corda geralmente baixo, abaixo mesmo do pescoo, o que indicauma grande dose de fora de vontade, de determinao. Os vivos,
que conviviam com os autores, no conseguem encontrar em sua
histria de vida razes que no sejam dramas comuns,
frequentemente questes consideradas banais, insuficientes para
justificar um suicdio. Nossos informantes Guarani guardam uma
expresso algo misteriosa, de quem sabe o essencial. Como disseum jovem, compenetradamente: "eles4 so assim". Entre outras
coisas, iremos tomar isso ao p da letra, levando em considerao
a relao da morte com o ser, em sua concepo e maneira de ser,
ao invs de aceitar o enigma como tal. OJejuvy um ato complexo,
um ato individual, individualizante, mas que obedece a uma forte
motivao cultural, um exemplo da marca do coletivo5 na experinciamais ntima dos indivduos, mesmo tratando-se, por hiptese, de um
ato anti-social, em volta do qual se observa muita dor e consternao.
No limite, ele afirma a maneira de ser, por exemplo, na atitude
kiriri, silenciosa, mas por outro lado implica, como veremos, a
negao do ser em seu fundamento, segundo uma compreenso
particular.6
Em todos os casos observados, o jejuvy aconteceu sem
alarde, s vezes o ator comenta seu desejo com um amigo, mas
raramente, entre os que o fazem, algum consuma o ato. Um
nhanderu observa: "quando fala no faz", cremos que porque a
emoo do suicida lhe escaparia. Ela estaria no carter circunspecto
do ato, altamente expressivo, mas sob a condio de expressar,
antes de tudo, somente para quem o pratica. Caso contrrio ojejuvy
no afirmaria to dramaticamente a existncia individual, como o
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faz, e o faz atravs de uma negao extrema. Corroborando esta
afirmao devem ser lembrados os cantores Guaiaki (Guarani do
''chaco'' paraguaio), a homologia dojejuvy, como est sendodescrito, com o canto dos homens,7 analisado por Pierre Clastres
(Clastres, 1979).
A presena de um forte stress, um alto grau de tenso, ou
mesmo o horror, so ingredientes que compem determinados atos
expressivos coletivos, conforme os antroplogos j registraram. Aps
o ato, so como que digeridos pelas coletividades, junto com os
efeitos que vieram a proporcionar. Isso ocorre com ojejuvy, entre
os povos Guarani que o praticam, mas a diferenciao se faz
necessria. Numa situao em que as mazelas do contato no se
faziam presentes, legtima a hiptese de ser o ato muito mais uma
possibilidade, vez por outra confirmada, o suficiente para garantir
seu poder sgnico. Hoje, fatores condicionantes externos provocamum aumento exagerado do nmero de ocorrncias concretas. No
nmero atual de suicdios, praticados sob o signo dojejuvy, em
determinados lugares, reside a gravidade do suicdio Guarani e a
justificao do apoio devido pelos brancos. Importante deixar claro
que o carter "exagerado" do nmero de casos afirmado pelos
intrpretes indgenas, em depoimentos colhidos em campo. No normal nas comunidades de lngua Guarani do Mato Grosso do Sul,
e em nenhum lugar haveria de ser.
Antecede o jejuvy um estado psquico conhecido como
nhemyr, em que a morte entra como uma espcie de fascnio, de
desafio. Imolar-se tem valor, por mais estranho que nos parea. Os
motivos que, em si mesmos, no levariam a uma negao de sentido
vida, pelo menos suficientemente forte para levar a uma ao
suicida, mesmos os motivos mais prosicos, podem levar aonhemyr.
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A sim, como acabam revelando os informantes, levam deciso
de morrer. Conforme depoimento recolhido, quem est acometido
"j vai pensando em.... (gesto de torcer e puxar a corda em voltado pescoo)". "No tristeza, nem depresso", adverte-nos outro
depoente, embora no encontre palavras, em portugus, para dizer
o que seja. Com todos acontece o mesmo, quando tentam, no
vo alm de apontar para casos concretos, relacionados a
frustraes na vida amorosa. Neste particular, deve-se notar que
os jovens desenvolveram sentimentos em torno do 'namoro' queno conheciam seus ascendentes, sentimentos que administram
mal, com excessiva sinceridade e arrebatamento. A chegada do
''amor'' na aldeia, isto , de um individualismo sentimental que no
conheciam, um fator precipitante considervel, se levada em
conta sua associao com conquista, posse, perda e sofrimento.
Sua mitologia trgica combina com o peso que tem, para o Guarani,o desejo de morte. Somente o desgosto amoroso, entretanto, no
levaria ningum a se matar; se no provocasse aquele sentimento
Guarani de atrao pela morte, aquela morte que combina, entre
outros contrrios-complementares, abatimento e triunfo da vontade
individual, atravs de um ato cuja morfologia expressa uma rebeldia
de carter extremo, inclusive de cunho lgico. Frustraes emoutros planos, abalos emocionais em geral, tambm podem levar
ao nhemyr.8 Pareceu-nos tratar-se de um estado em que o desejo
de morte e uma opinio teimosa se combinam, o sujeito fica
Orekojohu, "como que encantado", consigo mesmo. Um estado
em que se acrescenta ao "problema" precipitante, individual, uma
difusa aspirao transcendncia. Tal aspirao j foi percebidapelos estudiosos como uma marca da maneira de ser Guarani,
manifestando-se no canto e na dana.
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As explicaes obtidas sobre o nhemyr falam de uma
espcie de chamado aojejuvy. Neste ponto, aparece aquilo que
prprio do suicdio enquanto tal: a contradio, a nosso ver, o n doenigma. O que dizer de um ato que rene um matador ativo e uma
vtima passiva no mesmo ator? A atrao pela transcendncia,
realizao de uma maneira de ser, contraditoriamente, passaria pela
negao radical da pessoa e da associao mundana com outros
homens, negao simultnea da alma e da palavra.
O que se observou acerca da morfologia do jejuvy
caracteriza-o como um significante poderoso, de negao daquilo
que os antroplogos costumam traduzir por alma-palavra, o ayvu,
fundamento constitutivo da pessoa, cuja morada a garganta.
bem conhecida dos pesquisadores, p.e. Meli (1995), a nfase
Guarani na verticalidade e na fala, ao conceberem o ser dos homens,
oNhe'e, idia que condensa a de entidade humana e divina. Falar e
manter-se ereto so os atributos do ayvu, a alma, ou alma-palavra.
Em tese, isto que matam, invertendo seu fluxo. Nunca houve
sangue nesses suicdios, "poluio", no jargo antropolgico.
Tampouco h gestos de desespero, a manchar o ato ou os funerais.
A auto-destruio completa deve ser a expresso limpa de
contradies superlativas. De um lado o suicida mata a alma,
passando pela maior das dores que um Guarani pode conceber, do
outro mantm-se humano e Guarani, um homem-deus, sexo
enrijecido, de vontade desafiadora, o que lhe garante a serenidade,
mesmo no desespero.
Nossa hiptese interpretativa parte da constatao de que oato em si abriga uma dialtica complexa que o toma de alto a baixo.
O auto-extermnio pode ser conseqncia da perda da f, ou do
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gosto pela vida, por exemplo, mas tambm pode ser um gesto de
confiana, ou desejo de viver de novo. s tentar defini-lo em
abstrato para se esbarrar na contradio. Entre os no-ndios, aprpria existncia de um grupo de suicdios que reflete o
desregramento social, enquanto outro reflete o excessivo regramento,
conforme Durkheim (1982), j reflete uma contradio profunda.
Negao do ser, do sentido da vida, auto-destruio (completa, no
caso em questo), mas que tambm pode ser uma reao que
afirma o ser num mundo verdadeiro, repe o sentido, preserva apessoa, num lugar em que a dor e o desapontamento com a vida
adulta esto ausentes. Importante considerar um ser que quer ser
outro, que "" em devir, " l". Uma superao ontolgica,
semelhante boa morte dos tupi, morte nas mos do inimigo, o
jagar (Castro, 1986), metfora canibal da assimilao entre um eu
e um outro, no mais se oferece ao jovem como possibilidade.Conhecendo as condies gerais em que vivem estes dois povos,
possvel compreender porque o "ser" Guarani pode tornar-se uma
experincia dolorosa, opathos, gerado pela violncia do contato
intertnico. Os ndios acentuam o lato ativo da contradio suicida
(cmulo da contradio, mas mesmo assim submetida aos modos
culturais), aquele em que o suicida o matador, num mundo sem ooutro a constituir o si mesmo, onde no h mais caadores, inimigos
e jagares. Um matador consciente, ao mesmo tempo vtima
inconsciente. O ato trai uma viso de mundo e do ser bem delineada,
sustentada numa ontologia especial e coerente com ela. Aqui
importante lembrar que se trata, por outro lado, de um fenmeno
sensvel s condies de reproduo da vida coletiva, hoje marcadaspelo conflito intertnico, especialmente a quantidade de casos, o
que fundamenta uma tomada de posio interventiva.
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Tanto ojejuvy quanto o nhemyr so temas mencionados
nas histrias contadas, isto , na mitologia. Assim, so lembrados,
ganhando existncia, ou, mais exatamente, existncia cultural. Damesma maneira, devem ser "lembrados" metaforicamente os
pensamentos inconscientes associados.Japeusa, o caranguejo,
ficou assim depois de praticar o jejuvy, arrependido por ter
envenenado sua irm Yrasema. Kwarahy, o sol, pede me uma
flor amarela. Diante da negativa, fica nhemyr (Garcia, 2001). O
mesmo estado experimentado pela filha do meio deNhaneRamoi Papa, o heri criador. Muitos ritos tematizam o ir, o ir-se,
deixar-se ir, eles aparecem como motivos recorrentes no canto e
na dana, expressos em sua morfologia, na atitude dos cantores
danarinos. Alguns ainda falam da existncia, no passado, dos
kandire, que se tornaram to leves que se foram. O oguata,
caminhar, seguir, migrar, deslocar-se, era uma instituio central,uma das solues centrais para a vida social. Hoje encontra-se
limitado, praticamente recalcado, pelo mesmo contexto de
confinamento que condiciona o incremento dessas "idas"
individuais, antes do tempo.
O matar-se pela garganta, assim como o sentimento que
provoca o desejo de faz-lo, fazem parte da cultura sentimental, ao
mesmo tempo em que so repelidos com fora pelos vivos. As
sociedades reagem sua maneira aos atos anti-sociais, praticados,
contudo, ao seu estilo. A pesquisa que fizemos revelou que os Guarani,
os quais na esfera privada processam idealmente o jejuvy de uma
certa maneira, como outras mortes, quando lidam com o nmero de
casos no grupo, diante da publicidade, estigmatizam o ato, encaram
como doena, banem para os crculos do mal. Consideram o suicdio
contagioso, inclusive para os Guarani de longe, no que concordam
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os estudos sobre suicdio, em geral (May, 1980). Hoje mobilizam-se
precariamente e pedem ajuda.
No temos a medida exata do nmero de tentativas de suicdio,
os relatos so poucos, em vista da quantidade de consumaes. O
ter cogitado, sentido o desejo, a ideao, entretanto, nos foi relatado
com tamanha freqncia que nos fez suspeitar da existncia de
algo prvio s condies epidmicas, algo arraigado, isto , de que
jejuvy no a simples traduo de auto-enforcamento, mas um
ato de linguagem com ricos contedos sociais e inconscientes.
A reao da sociedade se d de vrios modos. O suicdio
associado ao feitio, moh, ou conseqncia de um canto danado,
de carter propiciatrio, chamado kotyhu, ou de uma perturbao
csmica, o arapoju, signo que o especialista nhanderu l nas cores
do crepsculo (e clama por condies de enfrentar, atravs dosseus trabalhos, as oraes, nhembo'e), signo de desarranjo grave,
subverses iminentes e doenas. Uma segunda alma, alma telrica
(Ferreira,2001), animal, alma do corpo, angu ( ku), mais
perigosa que os outros fantasmas, quando de um suicida, podendo
levar outros a se matar, seu corpo mais poluente. Um grande
bruxo, conhecido de alguns colegas pesquisadores, aponta o consumode bebidas alcolicas como causa dos suicdios, para em seguida
defender a maneira tradicional de beber e mostrar o novo bebedor-
suicida como um degenerado9. O suicdio, quando no pode ser
recalcado e escondido, algo que causa reaes emocionalizadas,
pelo muito que coloca em jogo. Muitos ndios situam-no entre as
mazelas do contato com os brancos, junto com toda sorte dedesgraas, e apontam para o suicdio, na hora de fazer cobrana s
autoridades no mundo dos brancos. Uma das preocupaes mais
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importantes dos Guarani com o fluxo e o caminho da "alma".
Neste aspecto, o correto e o bom so negados ao suicida.
Confirmadamente, a alma do suicida se evade pelo nus. O suicdiotambm interpretado como culminao de uma srie de doenas:
oryryi, osusu, tremores (doenas do arco-ris), hajyjeapa, heo'
o', espcie de cimbra, ataques com perda dos sentidos (doenas
do cerro), e doenas psicolgicas, descritas como estados de esprito
intensificados: kyhyje (medo), h'eseve (teimosia),pochy (raiva),
mytue'yn (desassossego), ma'andu, nhemotin (desgosto,contrariedade), doenas que os nhanderu curam. Imborau um
estado prximo ao nhemyr, de que falvamos acima, a traduo
que fazem para o portugus "perturbado", ou "anda de l pr c".
Quando algum fica desse jeito preciso cuidado, "se no falar,
faz". O imborau"pega nos outros".Nhandeta'i o remdio aplicado
pelo nhanderu ou nhandesy, "remdio dela"10 , um arbusto. Aaplicao bem se poderia qualificar de aoite simblico, o que no
quer dizer que no doa, tampouco implica negligenciar as eventuais
propriedades qumicas do arbusto. Para tirar o imborau, bate-se
com ele 3 vezes por dia.
Ojejuvy, pelo que expressa, pode ser apreendido como ato
de linguagem, ele significa. A maneira como expressa o "ser Guarani",
ou a identidade, se preferirmos, define-se pela afirmao daquilo
que tem sido visto como um de seus traos marcantes: o de elevar
a vontade individual por sobre os determinismos, enfrentar a lei e o
destino (Clastres,1979). Assemelha-se tambm a um ato de bravura,
como o que recorrente entre jovens, prximos ao incio da condio
de adultos. Desafios como sufocar-se, ou beber muito alcool de
uma s vez, at cair, so do modo de ser, Kaiow e jovem, o gostar
de desafios, uma espcie de herosmo trgico. Tais atitudes
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irrompem at mesmo nas brincadeiras infantis, segundo depoimento
de uma enfermeira ndia, da aldeia Panambi. Os parentes sentem
dor e consternao, mas consideram tal morte no rol da mortesnormais. Costumam dizer "pendurou-se", ou ento "caiu na corda",
inimboju. O ato, por hiptese, comportaria uma semntica bsica,
seria signo11 de um forte impulso anti-social, tpico do Guarani, signo
de um individualismo radical, j notado pelos estudiosos. Cabe
lembrar aqui a noo de "recusa ativa da sociedade", utilizada por
Hlne Clastres (1978).
A independncia que se concede ao indivduo, j notada por
Schaden (1974), o prprio feitio da organizao social, baseada no
que se poderia chamar individuaes familiares, as concepes
pedaggicas, acerca da pr-existncia da pessoa adulta na criana,
as prticas cotidianas em geral, tudo leva a encarar a supresso da
prpria vida como direito, questo de foro ntimo. O "individualismo"
Guarani sugerido pela maior parte da literatura. importante notar,
como nos mostra Chamorro (op.cit.), os Guarani preocupados, eles
mesmos, com o "ser", "filsofos da floresta", como j foi notado.
Autores como Viveiros de Castro (op.cit.) e Levcovitz (1998), falam
dos "seres do devir", indicando um movimento para fora "deste"
mundo. Sobre o ser individual Guarani, o que merece ser frisado
que ele existe sombra de uma individualidade paradigmtica, que
ocupa um outro mundo, isto tambm decisivo para entender por
que dispem da vida com facilidade incomum. Os Guarani tm seus
iguais "do lado de l". No admitem associar sua existncia dor,
ao sofrimento, disputa dentro dos grupos e morte. Essas so
como que coisas indignas, que retiram o brilho da existncia. Vivem
para um grande eu, quem deve frequentar o mundo dos deuses,
atravs do canto e da dana. Caso isto no ocorra, a existncia
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perde o sentido. Deve estar a a razo de serem to pacatos, pelo
menos os tavyter (ou Kaiow), como j notaram os etngrafos,
havendo os que reagem ao infortnio do desassossego comexasperao auto-destrutiva.
O suicida carrega um carisma, isto , sustenta traos de
conduta que so os de um Guarani tpico: alm de intempestivo,
insubmisso, teimoso, de opinio caprichosa e inconformado com a
condio de pessoa encarnada. "Eles so assim", reafirma uma
jovem indgena, agente de sade: "no fazem nada de pouco", "
oito ou oitenta". Pequenas contrariedades podem fazer a vida perder
o sentido e provocar a necessidade de repor o sentido, o do grande
eu, o fascnio de uma existncia sem males, pedra de toque da
religio Guarani. Tais constataes remetem formao da pessoa,
especialmente ao momento em que mais pesa o "ser Guarani", ao
incio da idade adulta. Propositadamente, j que a pesquisa noteve escopo para isso, deixamos de apontar diferenas entre Kaoiwa
e Nhandewa. Elas existem na lngua e em muitas atitudes, mas
nenhuma foi encontrada que afetasse o nosso objeto.
O "individualismo" tambm se patenteia no tipo de organizao
social, na qual o chefe desempenha o papel de uma espcie de
indivduo pblico, que precisa "estar l", para que os outros existam
como verdadeiros indivduos, ele quem move a histria. Sahlins
(1990) mostra um fenmeno parecido entre diversos povos, ao se
referir histria herica. Os indivduos Guarani formam a sociedade
por justaposio, sob o modelo dado por um indivduo livre e sua
vida familiar exemplar. Deve ser notado que a diviso scio-sexual
das tarefas e a qualificao dos gneros, no levam preeminncia
masculina. A subordinao (tanto na poltica quanto na metafsica
ou na gramtica) profundamente recusada, ela parece ofender o
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Guarani. Hoje, a mistura das chefias, com enfraquecimento de
muitas delas, o empoderamento exgeno de alguns, com a
conseqente subordinao de outros, est a lhes roubar um de seuspontos de referncia para pensar em si prprios.
Neste ponto necessrio reportarmo-nos ao outro lado do
jejuvy. Em funo da violncia do contato com o mundo dos
brancos, ele pode ser lido como uma reao auto-destrutiva, com
um aumento acentuado de freqncia. O nmero de casos pe em
relevo o seu aspecto negativo, de jejuka, suicdio pura e
simplesmente, apontando para a negao de uma maneira de ser
no Guarani, maneira de ser modificada, sob influncia dos brancos.
A anlise do fato, portanto, enfatizamos, deve partir do discernimento
entre as razes dojejuvy e as razes do aumento do nmero de
casos, em determinados lugares e pocas. Ambas as ordens de
fatores se confundem no mesmo ato. A separao terica dasproblemticas se faz necessria, contudo, no somente para o
entendimento do ato significante, mas tambm para a tomada de
posio diante dos fatos significados. As atuais condies de vida
material e moral, negativas, diramos mesmo, ameaadoras em
relao maneira de ser (incluindo a organizao social e suas
bases territoriais) condicionam a repetio mais freqente dojejuvy.Isto faz dele um problema de sade coletiva, no nmero de suicdios
est implicado um aumento no clima de desespero, alm de uma
carga anormal de dor e consternao.
Concluso
A existncia dojejuvy e seus componentes constituem-se a
pr-condio para o fenmeno do suicdio, embora no seja a
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responsvel pela escala em que ocorre hoje, isto o que estamos
querendo afirmar. Por outro lado, os demais fatores associados, de
per si, no seriam suicidognicos. Abuso do lcool, crises amorosas,separaes, mudanas, ou mesmo os grandes problemas coletivos,
como aqueles relacionados ao espao e autoridade poltica, afetam
outros povos, s vezes com igual intensidade, sem que impliquem
picos de suicdio. Entre os Guarani diferente, os mesmos fatores
se tornam condicionantes dos picos epidmicos, ou mesmo simples
precipitantes do ato. Isto se deve existncia de uma condioanterior: o jejuvy.
A fora expressiva do ato, envolvida na supresso de uma
vida individual, tal que o habilita a processar significaes em
diversos nveis, incluindo os pequenos dramas individuais e a histria
do grupo. Ele tornou-se smbolo ativo da violncia do contato com
os brancos e das atuais caractersticas da existncia material emoral do povo. O suicdio, nos atuais patamares, significa o desgosto,
a humilhao, a penria, o mal-estar coletivo, sem deixar de ser,
sob um outro ngulo, a forma da resistncia, a vitria da vontade
individual. Coisas que o suicida no sabe, mas faz acontecer, ao
sentir vontade de calar-se. No mais possvel construir a pessoa
como antigamente: o inimigo, componente bsico da identidade, nomais se encontra disposio. Uma espcie de cilada se apresenta:
o eu identificado ao outro, ao inimigo matador, necessita preencher
sozinho ambos os papis; por outro lado, a atrao pelo mundo dos
indivduos-ilhas, a seduo das msicas, roupas e Bblias, coloca
uma alternativa para a qual poucos esto preparados, o que os jovens
brancos conhecem como "realizao".
O ato, como tantos outros, significativo para indivduos mas,
como estes, possui uma dimenso inconsciente e coletiva, que o
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que se procura qualificar, ao se visar a significao. O processo
coletivo de comunicao, conforme postulamos nas cincias sociais,
impe significados que os indivduos "no sabem", embora "faam"coisas em razo deles, ou como j dissemos, suas atitudes sejam
"atravessadas" por eles. preciso considerar o fenmeno por este
aspecto e procurar os componentes da significao em sua
amplitude.
Os brancos ficam atnitos. Entre a maioria, a oportunidade
de desfilar preconceitos nunca perdida. Curioso que todos acham
que sabem, "no fundo" o que est acontecendo, mesmo sem ter
investigado. O suicdio uma morbidade, uma sociopatia, numa
sociedade moralmente agredida, de difcil confrontao com as
diferenas culturais, ou semnticas. tambm uma provocao,
uma ameaa de nonsense misturado a dor, que afeta
emocionalmente quem se confronta com ele. A pr-noo de que o
suicida apenas uma vtima de si mesmo, devendo existir uma
tragdia individual por trs, nunca abandona as opinies. Seu eixo
est na sepervalorizao da intensionalidade, do indivduo consciente.
Reaes violentas, de desprezo, tambm foram notadas entre os
brancos. Destaca-se a atitude irresponsvel, de lidar, ou permitir
que se lide, com tais mortes, nos meios de comunicao. O suicdio
tem se mostrado contagioso, independentemente de tudo o que j
se disse.
O alto nmero de suicdios, entre jovens de um pequeno povo
indgena, coloca em relevo um mal-estar coletivo certamente
profundo, chamando a ateno para a necessidade de intervir nosseus fatores. motivo suficientemente forte para justificar uma
mudana de inclinao no tipo de interveno em sade que vem
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sendo realizado com os Guarani do MS. O foco da interveno
atualmente concentra-se na doena e em sua preveno, com xito
crescente. Um problema da magnitude do suicdio pede uma atenovoltada igualmente para as condies de vida e a promoo do
bem- estar coletivo. Este seria o eixo de um programa de preveno,
gerado na rea do atendimento sade indgena, objetivando os
surtos suicidas, um programa multidirecionado. semelhana dos
Distritos Sanitrios, em sua filosofia de origem, deveria ser agregador,
dos diferentes nveis de interveno, das diferentes agnciasinterventoras. A interveno no problema tambm diz respeito
rea da educao, da poltica fundiria, da defesa dos direitos, de
promoo do esporte e das tcnicas. Todos estes setores devem
ser chamados responsabilidade, as aes construdas e trabalhadas
intersetorialmente. Um programa de ao tambm, do mesmo modo
que os Distritos Sanitrios Especiais Indgenas, em tese, devecolocar disposio dos assistidos os meios, materiais e
organizacionais, para atuarem, eles prprios, na base dos problemas.
Estas consideraes, em base antropolgica, no pretenderam
entrar nas questes que dizem respeito montagem de um trabalho
interventivo. Isto deve ser feito nos marcos do sistema de ateno
sade dos ndios, no bojo de um programa de ao. Quiseram
apenas fornecer certos subsdios para o entendimento do problema,
que se pretende sejam teis na delimitao do objeto da interveno,
definio de propsitos e avaliao de mtodos.
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Anexo
Casos de suicdio entre Kaoiw e Nhandewa, por ano.12
2000 2001 2002 2003
43 41 55 53
Estrutura relativa da mortalidade no DSEI MS (dos casosacumulados entre 2000 e 2003)
- Mortalidade por violncia contra si mesmo: 9,83%
- Mortalidade por violncia contra os outros: 9,07%
- Mortalidade por outras causas (excludas violncias):
81,15%
Estrutura relativa da mortalidade por suicdio por ano, e por sexo,
no DSEI MS
2000 2001 2002 2003
Masculino 65,1% 61,0% 63,0% 67,9%
Feminino 34,9% 39,0% 37,0% 32,1%
Segundo comparao com dados internacionais, o suicdiono sexo feminino apresenta um elevado excesso de casos.
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Estrutura relativa da mortalidade por suicdio entre 2000 e 2003, e
por faixas etrias
- Maior 30 anos: 11,41%
- Entre 20 e 30 anos: 33,15%
- Menor 20 anos: 55,43%
Notas
1 Mestre em Antropologia.Consultor UNESCO para a Fundao Nacional de Sade-MS.
2O trabalho do Dr. Antnio Brand constitui-se referncia obrigatria para oconhecimento da realidade Guarani, incluindo o tema do suicdio, especialmenteuma reviso da literatura (Brand, 1997). Sobre o tema do suicdio indgena emgeral, ver May(1980).
3A organizao econmica e social dos Guarani tratada por Almeida (2001)leitura necessria para quem trabalha com assistncia, ou quer se introduzir nocampo dos estudos Guarani.
4Freqentemente, um Guarani, capaz de falar a um pesquisador branco, refere-seaos seus "patrcios" dizendo "eles". Quando perguntado, a propsito, sobreporque perigoso guardar veneno na aldeia, a resposta freqente : "eles" bebem.
5Consideramos que o peso do coletivo traduz-se nas diferentes linguagens, comas quais so tecidas as "teias de significado", na expresso de Geertz (1978), queamarram os homens vida em comum. Adiante, abordaremos o suicdio pelo seucarter sgnico.
6Autores como Azevedo (1987) e Coutinho (1995) tambm relacionam o suicdio crise na maneira de ser, a primeira enfatiza a "ansiedade e a incapacidade de daruma resposta questo de sua identidade", para Coutinho preciso considerarum trip formado pelo j mencionado "confinamento", pela "misria materialdele decorrente e inviabilizao do modo-de-ser Guarani".
7A ss, ao p de uma pequena fogueira, um canto que no chega a pronunciar, masapenas sugerir palavras, um rito em que o caador se furta, solenemente, presena do companheiro, que tambm canta acol.
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8Em Chamorro (1998) l-se: "Nhemyr a ira que bate em retirada. o estado denimo caracterstico das pessoas que reprimem uma forte emoo de ira, tornando-se passivas. Paulito (Nhanderu da aldeia do Panambizinho, recentemente falecido)
confirma o que outros rezadores disseram sobre o suicdio. Eles o interpretamcomo uma crise do nome. A criana, no sendo iniciada no bom costume Guarani, algum que carece de algo essencial para viver: o enfeite. No sendo enfeitadas,"so como milho bichado, no serve mais para semente". Entre os Arawet,Viveiros de Castro constatou que nhemyr cognato de clera.
9Por amostra, o que temos at agora aponta para 56% de casos em que haviaconsumo regular e 40% em que o suicida estava alcoolizado. A persistir a tendnciada amostra, numa escala maior de coleta, ver-se- afastada a hiptese de uma
relao causal entre suicdio e alcoolismo. Considerando-se a alta prevalncia dadependncia alcolica, da ordem de 50% na populao adulta, pela amostra,chega a ser maior o nmero de casos de suicdio entre os que no bebem. Oconsumo de lcool antes do ato pode ser encarado como um precipitante imediato,entre outros possveis.
10Referncia aos j mencionados "donos", kaja'a, no caso, uma espcie de sereia,que habita as guas das lagas, tema sobre a qual circulam histrias.
11Possui caractersticas dos trs tipos de signo, delineados pela cincia semitica: ndice e cone, potentes pela forma do ato, e smbolo, considerada a relao dofenmeno suicdio com seu contexto social-histrico (Santaella,2000).
12Dado do Distrito Sanitrio Especial Indgena do Mato Grosso do Sul, FundaoNacional de Sade
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