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28 3 A situação dos leigos antes e no Vaticano II Sempre será necessário um retorno para compreendermos melhor tudo o que realizamos no decorrer de nossa história. O que pretendemos, num primeiro momento, é procurar o significado da palavra “leigo” e ver como acontece a sua compreensão, no decorrer da história que se inicia com a missão dos apóstolos e avança até o Concílio Vaticano II. Num segundo momento, o esforço se dirige ao estudo da própria Igreja a partir do Concílio para, a partir dela, compreender a nova proposta para a vida do leigo na Igreja e no mundo. 3.1. O leigo na história anterior ao Vaticano II 3.1.1. A definição do leigo Nas últimas décadas, aconteceram grandes mudanças e significativas propostas, para continuarmos nossa caminhada eclesial e amadurecimento sobre a identidade cristã dos leigos. Podemos, aqui, fazer uma pequena retomada, como luz para o seguimento de Jesus Cristo e testemunho coerente com a fé que professamos. Essa retomada nos conduzirá, por um momento, à Igreja doméstica do início do Cristianismo. Os primeiros cristãos não são seres isolados, que se relacionam com a divindade ou com um fundador de uma nova religião, pois, desde sua origem, formam uma comunidade. O que percebemos é a presença de múltiplos fiéis, tanto abastados, como pobres que oferecem suas casas para que se realizem os encontros dessas primeiras comunidades, unidas pela fé e testemunho cristão. O termo “leigo”, propriamente dito, não existe, no Novo Testamento 60 , essa 60 Podemos conferir aqui, ALMEIDA, J., Uma abordagem histórica, Leigos em que? São Paulo: Paulinas, 2006. p. 19 – O autor se fundamenta na obra de LA POTTERIE, I. de. L’ origine et lê sens primicif du mot laïc. Segundo Lanne, o primeira menção do termo “leigo” da era cristã está em papirode Berlim do primeiro século ( B. 1053 III. In: PRESIGKE, F. Wörterbuch zum Neuen Testament. 5. Verl 1958. Cf. LANNE, E. Lê laïcat dans L’Églesi ancienne. In: JEANNERET E., Ministères et laïcat, Taizé, Lês Presses de Taizé, 1964, p. 107, n.7. Mais do que documentar as

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3 A situação dos leigos antes e no Vaticano II

Sempre será necessário um retorno para compreendermos melhor tudo o que

realizamos no decorrer de nossa história. O que pretendemos, num primeiro

momento, é procurar o significado da palavra “leigo” e ver como acontece a sua

compreensão, no decorrer da história que se inicia com a missão dos apóstolos e

avança até o Concílio Vaticano II.

Num segundo momento, o esforço se dirige ao estudo da própria Igreja a

partir do Concílio para, a partir dela, compreender a nova proposta para a vida do

leigo na Igreja e no mundo.

3.1. O leigo na história anterior ao Vaticano II

3.1.1. A definição do leigo

Nas últimas décadas, aconteceram grandes mudanças e significativas

propostas, para continuarmos nossa caminhada eclesial e amadurecimento sobre a

identidade cristã dos leigos. Podemos, aqui, fazer uma pequena retomada, como

luz para o seguimento de Jesus Cristo e testemunho coerente com a fé que

professamos. Essa retomada nos conduzirá, por um momento, à Igreja doméstica

do início do Cristianismo.

Os primeiros cristãos não são seres isolados, que se relacionam com a

divindade ou com um fundador de uma nova religião, pois, desde sua origem,

formam uma comunidade. O que percebemos é a presença de múltiplos fiéis, tanto

abastados, como pobres que oferecem suas casas para que se realizem os

encontros dessas primeiras comunidades, unidas pela fé e testemunho cristão. O

termo “leigo”, propriamente dito, não existe, no Novo Testamento60, essa

60 Podemos conferir aqui, ALMEIDA, J., Uma abordagem histórica, Leigos em que? São Paulo: Paulinas, 2006. p. 19 – O autor se fundamenta na obra de LA POTTERIE, I. de. L’ origine et lê sens primicif du mot laïc. Segundo Lanne, o primeira menção do termo “leigo” da era cristã está em papirode Berlim do primeiro século ( B. 1053 III. In: PRESIGKE, F. Wörterbuch zum Neuen Testament. 5. Verl 1958. Cf. LANNE, E. Lê laïcat dans L’Églesi ancienne. In: JEANNERET E., Ministères et laïcat, Taizé, Lês Presses de Taizé, 1964, p. 107, n.7. Mais do que documentar as

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comunidade está unida pelos laços de fraternidade, e cada um deve colocar a

serviço do outro a graça que gratuitamente recebeu (cf. 1Pd 4, 10; Gl 5, 23; 6,1

ss).

A graça ou carismas são dons, ao mesmo tempo pessoais e comunitários,

que devem ser colocados a serviço dos outros. Encontramos, na Bíblia,

especificamente, na carta de São Paulo aos Coríntios do capítulo doze ao

quatorze, capítulos consagrados ao bom uso dos “carismas”. “Carisma” é uma

palavra tipicamente paulina (aparece 14 vezes, nas cartas de Paulo, e só uma vez

no resto do Novo Testamento) que, num sentido mais amplo, designa qualquer

graça “Karis”, ou dom concedido por Deus, independente do posto que a pessoa

ocupe dento da comunidade eclesial.

O testemunho dos escritos neo-testamentário nos revelam que as primeiras

comunidades cristãs conheciam de modo especial esses dons do Espírito. Nessa

carta, Paulo enumera diferentes tipos de “carismas”; no entanto, ele deixa bem

claro que, apesar dessa diversidade, todos são dados pelo mesmo Espírito. Nesse

sentido, cada um dos que creem possuem o Espírito e, portanto, de diversos

modos e medidas recebem esses carismas. O que se torna fundamental é que

estejam sempre a serviço do bem comum. Avançando em nossa reflexão, existem

serviços e ministérios que, na realidade, são formas específicas que esses carismas

tomam em sua dimensão social e comunitária, sendo importantes à vida e à

missão da Igreja. Dizem respeito ao lugar (cf. At 1,25), ou à parte (Cf. 1Pd 5,3)

que alguns recebem em virtude da missão recebida, que, por sua própria natureza,

está ligada a um carisma particular. Esses ministérios dão-se, na comunidade, são

da comunidade, existem para a comunidade. Alguns são simplesmente ministros

(Cf. 1Cor 4,1; 3,6; 6,4)61, outros presidem (Cf. Rm 12,8; 1Rs 5,12); existem

comunidades que os chamam de guias (Cf. Hb 13,7. 17.24), em outras áreas

sobressaem como epíscopos (Cf. Fl 1,1), em outras como presbíteros (Cf. Tt 1,5);

às vezes os dois últimos se equivalem (Cf At 20, 17. 28), são conhecidos também

categorias distintas – e opostas – no interior do Povo de Deus, o Novo Testamento nos coloca em contato com a comunidade, a Igreja que se define por sua relação com Deus ou com Cristo. Os membros dessa comunidade são todos chamados e eleitos, santos, discípulos, mas, principalmente irmãos, pois formam uma fraternidade. Fraternidade era o nome dado às pessoas unidas na mesma fé. 61 De sua palavra e de sua graça – Cf. RODRIGUES, E. R. Ministério dos Leigos na Igreja. Aparecida: Santuário, 2000,p. 55.

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como pastores. Essa lista iria longe e talvez até não conseguisse abarcar todos os

serviços e ministérios que estão presentes na Igreja do Novo Testamento62.

3.1.1.1. O significado da palavra “laikós”

Vamos, aqui, recapitular dados muito antigos da tradição, inscritos, no

próprio termo leigo, conservando na memória dois traços dessa definição. O leigo

membro do “laós”, isto é, Povo de Deus. O “laikós” é um membro do “laós”,

que é todo o povo cristão. Trata-se, aqui, de um conceito positivo, comentado de

maneira explícita, no Novo Testamento sobre o sacerdócio real deste povo

consagrado a Deus63: “Vós sois a raça eleita, a comunidade sacerdotal do rei, a

nação santa, o povo que Deus adquiriu para si” (1Pd 2,9). O que notamos ao

refletir com Bruno Forte, é que o termo “Laikós” não aparece, no Novo

Testamento, aqueles que se integram, nas primeiras comunidades cristãs são

chamados de “santos” e “eleitos” e acima de tudo de, “irmãos”. 64 Nos escritos

cristãos antigos, o uso do termo é raríssimo65, a expressão vai ser usada no

decorrer da história do laicato, para indicar o povo, enquanto distinto dos

sacerdotes ligados oficialmente ao culto. Porém, é, no ambiente latino, que a partir

do séc. III o termo “laikós”, vai aparecer ao lado do termo “plebeius”, que

continuará a determinar o leigo até a Idade Média. Nesse período, vai se

introduzindo ao termo, o sentido de “laicus”, já fixado por Tertuliano, aqui, o

termo já ganha a conotação de cristão que não pertence ao clero66.

Percebemos que, na história, o termo vai se evidenciando com duas

conotações. Assim, podemos chamar essas conotações, respectivamente, como

parte integrante de dois polos, que seriam o “comunitário” e o “ministerial ou

hierárquico”. Toda a história do laicato cristão e sua prática vão encontrar grande

conotação e abrangente significado, nas articulações desses dois polos. Para

compreendermos melhor tais conotações, evidenciaremos a partir das colocações

62 Cf. ALMEIDA, A. J. Uma abordagem histórica..p. 21-22. 63 Cf. SESBOÜÉ, B. Não Tenham Medo, os ministérios na Igreja hoje. São Paulo: Paulus, 1998, p. 116. 64 Cf. FORTE, B. A missão dos Leigos. São Paulo: Paulinas, 1987, nº 2.1, p. 21. 65 Segundo a pesquisa realizada por Bruno Forte, em sua obra já citada anteriormente, o termo acha-se, na Carta de Clemente Romano aos coríntios (40,6), in Clemente de Alexandria (Stromata 3,12; 90;1;5, 6, 33,3; Pedagogo 3,10; 83,2 nas edições GCS e in Origenes In Jeremias Homilia 11,3), como também na Carta de Clemente a Tiago nas Pseudo-Clementinas 5,5. 66 Cf. FORTE, B. A missão dos leigos, pp. 21-22.

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de Bruno Forte: a fase do Novo Testamento; a fase pré-constantiniana; a fase de

cristandade; e a fase época moderna e contemporânea67.

3.1.1.2. Fase do Novo Testamento

Anteriormente, tivemos a oportunidade de constatar que o termo laikós

ainda se encontra ausente, no Novo Testamento, porém, vamos abordar neste

momento, a dupla realidade que o termo conota68. Já, no Antigo Testamento, por

força da eleição divina e da Aliança, Israel é eleito e estabelece uma Aliança com

Yahveh como povo de Deus (cf. Dt 29,12; Lv 26,12), povo santo, a ele

consagrado, por ele separado (cf. Ex 19,6), sua propriedade (cf. Ex 19,5), seu

rebanho (cf. Sl 80,2), sua vinha (cf. Is 5, 1-7), seu filho (cf. Ex 4,22), “reino de

sacerdotes” (cf. Ex 19,6), povo mediador e testemunha para outros povos (cf. Is

44,8). Israel é o povo (hebraico ‘am, grego laós); os outros são nações

estrangeiras, os gentios (hebraico goiim, grego étne). Como Israel é infiel à

Aliança, os Profetas vão conclamá-lo ao arrependimento e à conversão para que,

mudando o coração, voltem a ser povo de Deus, não já, no presente, mas povo à

espera de uma nova e eterna aliança realizada pelo Messias, da qual nascerá um

novo povo (cf. Is 10,10); um povo santo, aberto para todos os povos, sobre o qual

o Senhor irá derramar o seu Espírito69.

Essa Nova Aliança70, esperada e prometida, é totalmente realizada em e por

Cristo, pela vontade do Pai, na ação do Espírito Santo. Os fiéis em Cristo são

definitivamente regenerados pela semente incorruptível da Palavra de Deus viva e

eterna (cf. 1Pd 1,23), constituem a “raça eleita”, o sacerdócio régio, a nação santa.

O novo povo que Deus vai proclamar as obras maravilhosas dele; eles que em

tempos não eram povo, agora, ao invés são o “povo de Deus” (cf. 1Pd 2, 9-10; LG

9).

67 Cf. Ibid., p. 22. 68 Cf. Ibid., p. 23. 69 Todas essas citações foram retiradas da pesquisa que Bruno Forte realiza em sua obra. Confira em FORTE, B. A Missão dos Leigos..p. 23. 70 O projeto de Deus apresentado em At 2, 42-47; chega como ideal da comunidade: é na comunhão da Nova Aliança, que a vida se realiza como testemunho de Jesus ressuscitado. A partilha de todos os bens, a oração, no templo e nas casas e a comunhão fraterna são normas que vão de encontro com a concepção da época. As casas vão substituindo os templos, mostrando assim, que foi transferida para a família a herança da tradição antiga, simbolizada no templo; agora o espaço simples e alegre, onde se desenvolve a vida que será implantada a morada, a tenda de Deus – Cf. RODRIGUES, E. R. Ministério dos Leigos na Igreja, à luz do Novo Testamento, Aparecida: Santuário, 2000, p. 51-52.

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O que apresentamos, nesta reflexão, é a novidade desse povo ter sido

convocado pelo Pai por meio de Cristo e constituído pela efusão do Espírito

Santo: Jesus recebe, na carne, o Espírito de Deus, inaugurando nele e na história a

nova criação.

O homem Jesus é concebido por obra do Espírito Santo (cf. Mt 1,20; Lc 1,

35); sobre ele desce o Espírito Santo, no batismo do Jordão (cf. Mc 1,10); é

repleto do Espírito Santo que o ungiu para anunciar a boa nova aos pobres (cf.

1Pd 2, 9-10; LG 9).

O Novo Testamento nos apresenta a identidade desse novo povo de Deus,

um povo consagrado pela unção do Espírito Santo. A Igreja incorpora cada fiel a

Cristo por meio do batismo e também da eucaristia, edificando o Corpo de Cristo,

a Igreja. No âmbito desse povo que é todo consagrado, sacerdotal, o Espírito é que

suscita uma variedade de ministérios e de carismas71, assim, podemos afirmar que

todo o cristão é carismático, isto é, carisma aqui quer dar uma conotação de

consagração, em vista de uma missão própria e distinta na Igreja e no mundo.

Diante disso, compreendemos que entre esses dons existe uma unidade profunda

em relação ao amor que é suscitado pelo único Espírito. Essa dimensão

pneumatológica se insere, na regulamentação apostólico-ministerial, no serviço da

Igreja. O que pretendemos colocar, em destaque, não é tanto a distinção entre

esses carismas e ministérios, mas sim, a tensão existente entre um povo que é todo

consagrado, ungido pelo Espírito, e o mundo em que toda a vontade de Deus se

realiza e manifesta72.

Para encerrarmos esse ponto, queremos dar uma ênfase ao verdadeiro

sentido de testemunho cristão73, já presente nas primeiras comunidades. O

71 O Concílio Vaticano II vai dizer – Os leigos, diz-nos o Concílio, tornados participantes da função sacerdotal, profética e real de Cristo, assumem, na Igreja e no mundo, sua parte naquilo que é a missão de todo o povo de Deus. Exercem concretamente seu apostolado, despendendo-se pela evangelização e pela santificação dos homens; a mesma coisa se dá quando se esforçam para introduzir na ordem temporal o espírito evangélico e quando trabalham para o seu progresso, de tal modo que, nesse domínio, sua ação dê mais claramente testemunho de Cristo e sirva à salvação dos homens. Sendo próprio do estado dos leigos viver no meio do mundo e da coisa profana, eles são chamados por Deus para exercerem seu apostolado no mundo à maneira de fermento, por causa do vigor de seu espírito cristão – cf. AA2. 72 Cf. FORTE, B. A Missão... p. 26. 73 O nascimento das comunidades cristãs acontece, nas casas lugar onde se desenvolve a vida, onde brota o Espírito de partilha, da comunhão e da oração. Porém, esse fato não ocorre somente nas sinagogas e entre os judeus, mas também entre os gentios. Junto com a comunidade, nasce também a necessidade de ministros, para servir, anunciando o Evangelho de Jesus tanto para judeus como para gregos. Nessa trajetória terão que enfrentar os perigos, a perseguição e até mesmo a morte, isto é, faz-se necessário o verdadeiro testemunho – Cf. RODRIGUES, E. R.

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testemunho mais claro e convincente, da experiência vivida na fé, é a entrega

incondicional de si mesmo ao Deus revelado em Jesus Cristo, entrega que pode

levar até ao derramamento de sangue. Podemos citar, aqui, o testemunho

luminoso de Estevão, aproximadamente no ano35, que morre apedrejado em

Jerusalém, sob o olhar de Saulo (Cf. At 7,59), testemunho esse que será seguido

por outros homens e mulheres, em toda a história por meio dos mártires cristãos74.

3.1.1.3. Fase constantiniana

Continuamos nossa análise, a partir de Bruno Forte, com a intenção de

apresentar uma base histórica, para assim compreender qual o verdadeiro sentido

do testemunho cristão. Nos primeiros cristãos encontramos o maior realce da

unidade do povo de Deus, no que diz respeito à dialética, povo de Deus e mundo.

A Igreja se realiza, na história, e vai se revelando como fermento e também como

alternativa. Existe, nesta fase, dentro da civilização greco-romana uma crise de

rejeição75. Dentro dessa realidade, os cristãos vão percebendo claramente a

novidade que sua experiência de fé representa e, ao mesmo tempo, a tensão

existente, proveniente da dificuldade de realizar plenamente suas convicções de fé

no quotidiano.

O sentido escatológico é conservado vivo pelo sangue dos mártires cristãos

e, por sua vez, alimenta a coragem do martírio76. Aqui, a preocupação é de dar

ênfase ao verdadeiro testemunho vivido intensamente por esses cristãos, que doam

até a própria vida para trazerem ao mundo a novidade cristã; não existe ainda,

nesta fase, a preocupação de distinguir os cargos existentes em seu

desenvolvimento interior, mais sim, de dar testemunho de fé através até do

Ministério dos Leigos na Igreja, À luz do Novo Testamento, Editora Santuário, Aparecida, 2000, p. 49-50. 74 ALMEIDA, A. J. Uma abordagem histórica, p. 37. 75 Cf. FORTE, B. A missão... p. 27ss. A igreja projeta-se na História, mostrando-se como fermento e como alternativa: a civilização greco-romana vive em seu confronto uma crise de rejeição. Por outro lado, os cristãos percebem claramente a novidade de sua própria experiência e a tensão em vista de uma plena realização da mesma; o sentido da escatologia é conservado vivo pelo sangue dos mártires, e, por sua vez, alimenta a coragem do martírio. Compreende-se, por isso, como a preocupação seja mais aquela de destacar a novidade cristã, do que aquela de distinguir ou contrapor no seu interior. O polo comunitário, por conseguinte, é o mais notado. 76 Observamos que a maior preocupação, aqui, é destacar a novidade cristã, mais do que distinguir o seu interior, notamos um polo comunitário se definindo em suas estruturas. É uma época quando a organização hierárquica está se definindo, o que vai sempre permanecer viva é uma variedade de ministérios e carismas.

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martírio77. Isso não quer dizer que a Igreja dos mártires ignore a tensão

proveniente das articulações internas de seu interior, mas o polo comunitário tem

aqui maior destaque. Nessa fase, porém, enquanto a organização hierárquica vai

se afirmando, permanece viva e atuante uma variedade de ministérios e carismas.

Os mais antigos tituli romanos levam os nomes desses leigos que acolhem

outros cristãos em suas casas78. A ação individual e comunitária de leigas e leigos

vai desempenhando, em seus primeiros passos, importante papel, na conversão de

judeus e pagãos no começo do cristianismo79. Foi, provavelmente, desse modo,

com essas realizações que durante os dois primeiros séculos, o cristianismo foi

conquistando a maior parte de seus fiéis. Os cristãos antigos sabiam o que

infelizmente esqueceram os cristãos modernos: “Os cristãos fazem-se, não

nascem feitos”80. “Ouvi isso, vós também, leigos, Igreja eleita de Deus. Porque o

Povo de outrora já era chamado povo de Deus e nação santa. Mas vós sois a

Igreja de Deus santa e consagrada, inscrita no céu, o sacerdócio real, a nação

santa, o povo adquirido”81. Nesse sentido, o termo “leigo” tem o significado de

consagrado, santificado, faz parte e é membro do sacerdócio real82. Esse estatuto

de santificação repousa no batismo, aqui à imagem de Cristo, a unção do batizado

faz dele um “cristão”. Percebemos, assim, que o batismo é o fundamento da

iniciação cristã, e também, de todos os sacramentos da vida cristã, dos quais

vivem e se alimentam todos os crentes83.

77 Cf. FORTE, B. A missão... pp 26-27. 78 Destacamos, aqui, o titulus Clementis ou, semelhante, as catacumbas de Domitila e Priscila, senhoras de posse que ofereceram os terrenos adjacentes ou abaixo de suas vilas, para o sepultamento dos difuntoas cristãos – não só os mártires – indicamos para este aprofundamento como sugere Antônio Almeida os documentos de Tertuliano que fala das área sepulturarum, Ad Scapulam, 3; Apologeticum 39, 5-6; cf. ALMEIDA, A. J. Uma abordagem histórica, Leigos em que? P. 31-32. 79 Igualmente é conhecido de todos que a ideia cristã se propagou pelas vias consulares não só graças ao zelo dos bispos e sacerdotes, mas também pela obras doas magistrados civis, dos soldados e também dos cidadãos comum. Muitos e milhares de crentes, há pouco aportados à fé, dos quais hoje se ignoram os nomes, animados pelo desejo ardentíssimo de difundir a nova religião por eles abraçada, procuraram preparar-lhe a estrada, de modo que, depois de cerca de cem anos, o nome e as virtudes cristãs já tinham atingido todos os centros mais importantes do Império Romano – Almeida cita em sua obra e pesquisa histórica o Documento de Pio XII, Evangelli praecones,7 – Cf. ALMEIDA, A. J. Uma abordagem histórica, Leigos em que? Paulinas, São Paulo, 2006, p. 31-32. 80 Cf. Tertuliano Apologeticum, 27 in ALMEIDA, A. J. Uma abordagem histórica.. p. 31-32. 81 Constitutions apostoliques II, 26, I; SC 320,p. 235 in ALMEIDA, Uma abordagem histórica..p. 31-32 82 Cf. SESBOÜÉ, B. Não Tenham Medo! Os ministérios da Igreja hoje... p. 116. 83 Cf. Ibid., p. 116.

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Não obstante, o dom da santidade batismal é também uma vocação, um

chamado à santidade pessoal, nesse sentido, todo o povo de Deus é um povo

santo84. Com certeza, nesses longos séculos de perseguições e também de

clandestinidade (do séc I ao IV), leigas e leigos desenvolveram considerável

trabalho catequético e apologético. Podemos pensar no filósofo Justino85, em sua

I Apologia n. 67, vai dizer que o povo responde ao Presidente da assembleia

durante a celebração eucarística86.

Percebemos uma mudança de foco, no que diz respeito à posição do leigo,

na assembleia, de maneira semelhante, encontramos distinção entre leigo e

sacerdote também em Orígenes87, começa surgir uma distinção significativa, e

porque não dizer negativa, na realidade dos leigos, pois, no contexto cúltico, os

leigos aparecem em último lugar. Vamos percebendo que, no séc III, os Laikós já

não têm o mesmo valor. A partir desse século, encontramos uma Igreja já muito

bem estruturada e integrada ao Império Romano. Começa, aqui, a valorização da

tríade Bispo, presbíteros e diáconos, as Igrejas locais são, no século III,

organismos vivos e autossuficientes, já dotadas de serviços específicos

indispensáveis para sua realização. No interior de cada comunidade local, aos

poucos, vão se distinguindo ordo e plebe, isto é, clérigos e leigos88.

Encontramos, na obra de Pe. Almeida, uma abordagem histórica

significativa, para a assimilação dessas questões, ele vai dizer que coube a

Tertuliano89, nos primeiros anos do século III, dar o sentido técnico de leigo como

aquele que não é sacerdote, aqui os leigos são assimilados à plebs (o povo, a

84 Cf. Ibid., p. 116. 85 Justino nasceu em Flávia Neapolis, na Palestina – I Apologia I, I – provavelmente nos primeiros anos do século, e morreu em Roma, mártir, sob Rústico, prefeito chefe de polícia de Roma entre 163 e167, ele próprio se autodenominava Samaritano – Justino Diálogo, 120,3 – que abre uma escola em Roma, onde escreve suas apologias, dirigidas ao Imperador Antônio Pio (138-161), e o Diálogo com Trifão, a mais antiga Apologia conservada, contra os hebreus. Envolto em seu manto de filósofo – Diálogo, 1,9 – Justino foi o primeiro cristão a usar as categorias aristotélicas para dizer a mensagem cristã, na tentativa de conciliar fé e razão – cf. ALMEIDA, A. Uma abordagem histórica ... p. 33. 86 Cf. SESBÜÉ, B. Não Tenhais Medo! p. 27 87 Cf. Sobre Jeremias, Homilia, 11,3. In SESBÜÉ, B. Não tenhais medo! p. 27. 88 Cf. ALMEIDA, A. J. Uma abordagem histórica... p. 42. 89 Tetuliano, o mais importante e original dos escritores latinos, tirando Agostinho de Hipona, nasceu por volta de 155, em Cartago filho de pagãos. Formou-se como jurista, e exerceu a advocacia em Roma. Converte-se ao cristianismo por volta de 193, e estabeleceu-se em Cartago, pondo a sua erudição ao serviço da fé. A partir de 207, passou ao montanismo, e permaneceu separado da Igreja até a morte ocorrida por volta de 222. De temperamento violento e enérgico, todos os seus escritos são polêmicos. Esse temperamento é impressionado pelo testemunho dos mártires, que o levou à conversão, isso permite compreender sua passagem pelo montanismo – cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Tertuliano. Acessado em 05 de ago de 2008.

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plebe) são distintos dos bispos, sacerdotes e diáconos, em geral, colocando aqui o

clero, como os chefes e pastores, colocações essas, que perdurarão ao longo dos

próximos séculos90. Nossa abordagem teve como objetivo apresentar uma

caminhada histórica, porém, sintética, do povo de Deus durante esse árduo

período.

3.1.1.4. Fase da cristandade

A intenção colocada, neste item, é apenas um fundo histórico como caminho

e direção, no que diz respeito ao significado da palavra “leigo”, e suas

conotações, no decorrer desse processo histórico. Começa a se perder, nessa fase,

o sentido escatológico da realização da Igreja, no mundo, visto que a assimilação

da Igreja ao Império introduz uma situação de assentamento e também, de

segurança; em seguida, a entrada em massa dos povos bárbaros, na comunidade

eclesial, leva a uma diminuição do fervor na fé91. Começa, aqui, uma nova relação

dialética, porém, desta vez o questionamento é mais no interior da Igreja. Nessa

fase, desenvolve-se uma visão de vida espiritual separada e distinta das

realizações mundanas. Essa distância entre essas duas categorias irá crescendo por

diversos fatores: os clérigos irão, apresentando-se diante da sociedade, como os

depositários do poder e também da cultura92.

Esse processo se realiza por meio de uma assimilação de proximidade entre

os clérigos, uma distância automaticamente aparece como resposta a esse

processo, distanciando os leigos como cristãos de segunda categoria93. Nesse

ponto manifesta-se a relação dualista citada anteriormente: de um lado espirituais,

os monges e o clero; do outro lado, os carnais, todos os outros, os leigos. Os

primeiros são concebidos como evangélicos; os outros, os leigos, estão

comprometidos com as ocupações mundanas94.

Avançando ainda mais, observamos mudanças significativas entre essas

distinções categoriais; um está totalmente ligado ao serviço divino e tem uma

90 Cf. ALMEIDA, A. J. Uma abordagem histórica.., p. 42-43. 91 Cf. FORTE, B. A Missão dos leigos... p. 30. 92 Cf. Ibid., p. 30. 93 Cf. Ibid., p. 31. 94 Cf. Bruno Forte faz, nesta obra, uma excelente abordagem sobre esta questão, que se torna a meu ver, fundamental para entendermos as dificuldades que ainda encontramos entre essas duas distinções e categorias de cristãos – Cf.FORTE, B. A missão dos leigos. São Paulo: Paulinas, 1987, p. 32-35.

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especial dedicação aos momentos oracionais, afastando-se gradativamente, de

todo o barulho, seja interior ou exterior, que as realidades temporais exigem. Do

outro lado, deparamo-nos com o laos, os leigos, a estes é permitido adquirir bens

temporais, casar, cultivar a terra, trabalhar como juízes, defender as próprias

causas, pagar dízimo, enfim, se ocupar das coisas de seu tempo. Dessa forma, os

leigos podem se salvar, isso se, todavia, evitarem os vícios e viverem fazendo o

bem95. Esses passam, dessa forma, a serem excluídos de toda a atividade de ordem

sagrada. Realizados pela hierarquia, a prevalência do polo hierárquico irá

contribuir para o empobrecimento da realidade positiva do laicato, no sentido de

empobrecer com isso a visão dos carismas e ministérios vividos com tanta

intensidade na Igreja dos mártires96.

Nossa pretensão não é absolutamente dar destaque a essas questões numa

perspectiva negativa, o que pretendemos, nessa abordagem, é encontrar luzes, na

história passada, para continuar o caminho na história futura. O foco é o olhar, no

horizonte, encontrando, nele, respostas para o verdadeiro significado da palavra

Laikós. Temos consciência de estarmos, numa situação evolutiva, no que diz

respeito às questões aqui apresentadas; ao mesmo tempo, percebemos que só o

futuro nos permitirá dar mais tarde as devidas definições. Mas, desde já,

precisamos ver o mais de perto possível o que realmente está em jogo “os sinais

dos tempos”. Buscando assim, como, na Igreja Primitiva, o discernimento para

que possamos entender o que o Espírito diz hoje à Igreja de Jesus Cristo97.

3.1.1.5. Fase moderna e contemporânea

A Idade moderna começa a ser reconhecida particularmente por sua

diversidade diante da Idade Média, ou seja, pela suas tendências de desfazer,

95 Cf. Ibid., p. 30-35. 96Aqui os carismas e ministérios começam a ser absorvidos e institucionalizados pelo monaquismo, nascido como fenômeno laical; se é verdade que ao imperador e aos nobres se reconhece certo carisma de intervenção nos negócios eclesiásticos, isso porém, é visto numa perspectiva clericalizante, que desconhece a autonomia e o valor das realidades terrenas – Cf. FORTE, B. A missão dos Leigos e leigas, p. 33. 97 Estamos, na presença de um novo modo de passagem do grupo de todos para o grupo de alguns através da emergência de um novo polo. Sem voltarmos aos vários precedentes de tal processo, na história, parece que o paralelo mais próximo é a maneira pela qual Paulo justifica e sustem os ministros locais de suas comunidades, numa época na qual ainda não de falava de ordenação e na qual o fundamento desses ministérios era o relacionamento que eles mantinham com o Apóstolo – Cf. SESBOÜÉ, B. Não Tenhais Medo!, p. 147. (cf. 1Ts 5,12; 1Cor 16,15-16).

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desagregar e dispersar como: subjetivismo e individualismo, nacionalismo,

laicismo e secularização98.

O mundo e suas realizações humanas começam, nessa fase a se afirmar

autonomamente, independente das realizações e colocações da Igreja, começa

aqui a se revelar virtualidades positivas e valores próprios. Assim, surge uma forte

reação, já iniciada na reforma tridentina. “Ela constitui-se numa autêntica

mobilização geral da comunidade eclesial, com o objetivo de tornar consciente da

própria fé as massas dos fiéis, para defendê-los dos erros e formá-los nas

riquezas do mistério cristão” 99.

Nessa fase também, Pe. Almeida, com sua pesquisa histórica, remete-nos

para o fim do séc. XIV e o início do séc. XVI, uma confluência de fatores

conduzirá a uma nova valorização do ser humano. O Humanismo100 é um

movimento nascido, na Itália, que, aos poucos vai se espalhando por toda a

Europa. As profundas mudanças de paradigma dessa fase levarão o laicato a um

interesse maior pelas irmandades e as ordens terceiras medievais101, ao mesmo

tempo, aumentam a participação dos leigos com uma nova visão de mundo.

O humanismo começa agora a falar também pela voz dos leigos; o leigo

poeta, o leigo escritor102, nessa mesma fase, irá surgindo organizações leigas, que

de forma caritativa103 se organizam.

98 Cf. FORTE, B. A missão dos leigos 2ª ed., Paulina, São Paulo, pp. 33-34. – Bruno forte vai afirmar, nesta obra, que à dissolução da síntese religiosa e política, com a Reforma e o nascimento dos estados nacionais, junta-se a afirmação da novas autonomias nos confrontos da esfera religiosa. 99 FORTE, B. Missão dos leigos... p. 34 100 Cf. ALMEIDA, J. A. Leigos em que? Uma abordagem histórica, Paulinas, São Paulo, 2006, pp 155-156. - O Humanismo pretende revalorizar a pessoa humana e a atividade do homem em todos os setores da vida, operando uma reapropriação, dos antigos na literatura, na arte, no pensamento, e rompendo com as formas de vida medievais e com a rigidez especulativa da escolástica. O humanismo em seu aspecto especulativo e conteudístico é uma valorização do humanitas; sob o aspecto histórico-filosófico. Como em todos os fenômenos históricos, no humanismo também há um momento de ruptura e um momento de continuidade. Nesse sentido, o humanismo se mantém o fundamental filão cristão medieval, cujos motivos humanos, temporais, seculares são recuperados renovados nos séculos XIV e XV. 101Cf. FORTE, B. Missão dos Leigos, p. 34-35 – Segundo Bruno Forte, estas irmandades e ordens já haviam alinhado os oratórios e as Companhias do Divino Amor (1497). Os montepios (século XIV), as Fraternitates da Devotio Moderna (nos Países Baixos), em seguida irão juntar-se as companhias ou escolas da Doutrina Cristã (Milão 1536), as Congregações Marianas (santo Inácio de Loyola), os oratórios (são Felipe Néri), etc. Contemporaneamente inicia-se a promoção da presença feminina e ativa das mulheres, graças às congregações femininas orientadas para obras sociais. 102 Cf. ALMEIDA, J. A. Leigos em que? P. 157 – O aretino Francisco Petrarca (1304-1374), que passa vários anos na cidade papal de Avinhão, é o mestre do humanismo. Ele vê nos studis humanitates um instrumento eficaz e uma força espiritual para impulsionar uma nova cultura e

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Porém, cabe reconhecer que, nesse florescimento de organizações e

personalidades, existe, sim, uma efusão carismática autêntica, aqui, os carismas

leigos alcançam um despertar maravilhoso. Devemos, ao mesmo tempo, levar em

consideração que esse novo tipo de relacionamento da Igreja, com o mundo da

idade moderna será realizado mais, na perspectiva de uma nova alternativa, do

que propriamente um novo diálogo, visto que a tendência ainda é construir novas

estruturas que ocupem lugar, na societas christiniana; o que ainda pretende se

edificar é verdadeiro e próprio do mundo católico, ainda se mantém a visão da

Igreja como sociedade perfeita, contraposta ao mundo não católico104.

A volta às fontes iniciadas no século XX, com o movimento bíblico,

patrístico, litúrgico e ecumênico, o crescimento do laicato, as atribuladas guerras

mundiais, as próprias transformações que tudo isso implicou e o surgir de uma

realidade secular, provocam uma mudança de consciência por parte das

comunidades eclesiais.

Porém, é durante o século XX que uma nova solução começa a amadurecer

para o problema Igreja-mundo, isso tudo em conexão significativa com uma

renovada percepção de uma nova experiência dentro da mesma Igreja.

Recuperam-se, nessa fase, os aspectos da eclesiologia, esquecidos até então, como

consequência do jurisdicismo que muito tempo predominou no passado. Nessa

fase, também, descobre-se a Igreja em sua relação com a Trindade105, sua

profundidade cristológica, pneumatológica e sacramental, volta-se agora a pensar,

na relação da Igreja com o mundo; não propondo alternativas que concorram com

as estruturas seculares. Nesse sentido, a Igreja se posiciona como levedura e

fermento ao serviço da família humana106.

Nesse contexto, também a reflexão e a práxis relativa ao laicato atingem

uma dimensão de profunda renovação, aqui se recupera progressivamente o polo

comunitário da realidade eclesial, assim, as várias organizações leigas enveredam,

uma nova concepção de vida. Retorna à Antiguidade clássica, de um lado, para criticar a Idade Média e, de outro lado, para inaugurar a construção das linhas ideológicas da modernidade. 103 Cf. FORTE, B. Leigos em que? pp. 34-35 – Como por exemplo: As Conferências de São Vicente de Paulo, fundada por Frederico Ozanam. 104 Cf. FORTE, B. A Missão dos leigos, p. 35. 105 A renovação eclesiológica – inspirando-se principalmente na Teologia dos Padres e da Escolástica, recupar a dimensão pneumatológica e cristológica da realidade eclesial, floresce e desenvolve, com força impressionante, a teologia da Igreja como Corpo Místico de Cristo – pense-se ,a obra de É Mersch, Lê Corps mystique du Christ, Ètudes de theologie histórique,Paris Bruxelas, 1936, 2 vols. 106 Cf. FORTE, B. A missão dos leigos, p. 36.

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no trabalho de conscientização, abrindo-se ainda mais ao ensinamento do

magistério. Ensinamento esse que se torna pertinente para a compreensão da

consagração do mundo, ou seja, sua santificação107. Dessa forma, a história vem

interrogar a Igreja, não só na maneira como ela se apresenta no mundo, mas

significativamente como ela realiza a reflexão sobre si mesma. É sob o impacto

desse desafio que emergem as ideias de Igreja como sacramento, como povo de

Deus e, finalmente, Igreja como comunhão de pessoas e de Igrejas108.

Não podemos passar por esses questionamentos sem a colaboração de Yves

Congar, que ao analisar o problema da Iglesia, situa sua perspectiva dentro da

eclesiologia total em que aparece também a santidade leiga. Ele nos apresenta que

o Evangelho ensina que a situação do cristão embora seja uma situação de

oposição ao mundo, ao mesmo tempo, os fiéis são chamados a viver no mundo.

Tudo está articulado: a vida presente com a vida eterna. Entendemos, aqui, a

proposta de Nosso Senhor Jesus Cristo109.

Ele se entrega e se coloca a serviço das coisas deste mundo, mas sempre em

vista do Reino de Deus. O Evangelho de Mateus em suas primeiras páginas nos

introduz à missão de Jesus, e os capítulos seguintes narram a sua luta para a

apresentação das propostas dessa Boa Nova, ou seja, uma nova maneira de se

posicionar no mundo. É claro que o Evangelho nos revela a primazia efetiva ao

serviço do Reino e do reinado de Deus, como maneira de os cristãos levarem no

mundo sua vida de obediência Àquele em quem depositam sua fé. Nenhum texto

diz mais claramente isso do que a Oração Apostólica (cf. João 17, 6-19).

Encontramos, nessa oração, o significado dos discípulos de Jesus, ao mesmo

tempo em que não são do mundo, estão totalmente no mundo110. Nessa análise,

Yves Congar vai aprofundar essas questões, ressaltando que os cristãos não são do

mundo justamente por serem escolhidos pelo Pai, e chamados por Ele, tendo

recebido e guardado a palavra, pertencem a Jesus Cristo, nesse sentido, estão no

mundo, são o povo de Deus e corpo de Cristo. Entretanto, Jesus não pede que

sejam retirados do mundo, mas que aí permaneçam e lhes confia uma missão a seu

respeito (cf. Jo 15, ss).

107 Cf. Ibid., p. 36. 108 CF. FORTE, B. A Igreja Ícone da Trindade. São Paulo: Loyola, 2005, p.15. 109 Cf. CONGAR, J. M. Y. Os Leigos na Igreja, escalões para uma teologia do laicato, São Paulo: Herder, 1966, p. 587. 110 Cf. Ibid., p. 588.

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São Paulo tem uma visão positiva sobre a situação e destino do mundo

tomado como cosmos: ele deve ser inteiramente submetido a Deus, pois tudo é

vosso, vós sois de Cristo, Cristo é de Deus (Cf. 1Cor 3.23). Não quer dizer,

expressamente, que essa tarefa de submeter tudo a Deus caiba somente aos fiéis,

acima de tudo, é resultante do poder de Cristo exercendo-se até o fim da História.

Dentro dessa ótica, podemos compreender que os fiéis relacionam todas as

coisas a Cristo, usando-as para o bem e com ação de graças; servindo-se

legitimamente dos bens do mundo, o que é também uma virtude recomendada, no

saber gerir seus negócios e sua casa. Não encontramos, pois, nos escritos

apostólicos conselhos de abandono das atividades do mundo. Mas, encontramos

conselhos de que os fiéis devem exercer essas atividades temporais e nelas

distinguir-se para promover o Reino de Deus. Vivendo franca e lealmente no

mundo, os cristãos são cidadãos de outra cidade celeste (Cf. Fl 3,20); esta vida

levada neste tempo da história, na carne, deve ser vivida na esperança de uma vida

melhor, de cujas garantias já gozam111.

Com essa reflexão, podemos concluir com Yves Congar, que é a partir da

vontade de Deus que se deve compreender a condição do cristão no mundo,

porque, é essa a sua vontade. Ele, ao mesmo tempo em que tira o fiel do mundo

para fazê-lo Cidadão de sua Cidade, não tira de suas ações, no mundo, mas lhes

impõe a trabalhar. Deus dirige um apelo, que não arranca os seus para fora do

mundo, e é exatamente por esse mesmo apelo, que os constitui seu Povo; visível

através de seu amor, na fé e na solidariedade. Este povo começa a existir na

pessoa de nosso patriarca na fé Abraão, pai dos crentes: “Sai de teu país, de tua

família e da casa de teu pai” (Cf. Gn 12,1).

Aquele que deixa de responder a esse chamado de Deus não está apto para

viver a dimensão do Reino de Deus. Porém, nem todos são chamados a trabalhar

da mesma forma, mas todos devem responder ao mesmo chamado, exatamente

onde estão. Jesus compreende muito bem isso, e não retira nem o centurião de seu

comando, nem Nicodemos e José de Arimatéia de sua posição honrosa, nem o

povo que o escutava de sua condição. Ele manda o paralítico, a mulher acusada de

adultério, a Samaritana para suas casas112.

111 Cf. Ibid., p. 590. 112 Cf. Ibid., p. 622.

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São Paulo vai declarar que indiferente de comer, beber ou abster-se, casar

ou permanecer celibatários, todos são convidados a permanecerem em seu estado

anterior à conversão. É evidente que os apóstolos não mudaram a organização da

vida daqueles que ao assimilarem suas palavras transformaram-se em fiéis. Mas,

também é certo que, pela força de sua pregação e testemunhos, foram retirados da

dominação do mundo e responderam ao chamado de Deus, e depois, convertidos

foram recolocados, no mesmo mundo, marcados com a tarefa e vocação de seguir

a vontade de Deus exatamente onde estão. Sendo assim, de certa forma, tira-lhes

do mundo com uma mão e dá-o com a outra, como tarefa e dever113. É certo que o

cristão possui uma visão do mundo e realiza sua obra em condições bem

diferentes do homem que ignora o Deus vivo. Finalizando, repetimos São Paulo

quando escreve: “Tudo é vosso, mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus” (Cf.

1Cor 3, 22).

3.2. Concílio Vaticano II

Estamos, sem dúvida, diante do mais importante acontecimento eclesial do

século XX114. Concílio eminentemente pastoral, o Vaticano II teve a pretensão de

ser sinal e compromisso de renovação e abertura. Optando mais pela presença do

que a palavra. A postura nitidamente pastoral marcou seu desenvolvimento,

notabilizando-se por uma nova abertura em relação aos leigos. Nosso foco de

pesquisa é a situação do laicato, na América Latina, por isso, continuaremos por

esse caminho.

Esse Concílio representa um momento particularmente significativo da

autoconsciência eclesial. De certa forma, é o ponto de chegada de várias correntes

de ideias e também movimentos de renovação que vieram amadurecendo, desde o

fim do século dezenove115. Porém, para que possamos ver a Igreja em sua

variedade de membros, na perspectiva do Vaticano II, precisamos ter bem claro o

que está formulado, na Lumem Gentium, onde a Igreja reflete sobre si mesma116.

113 Cf. Ibid., p.623. 114 Cf. AMEIDA, A. J. Teologia dos ministérios não ordenados na América Latina, São Paulo: Loyola, 1989, p.16. 115 Ibid., p. 17. 116 O cap. I fala do mistério da Igreja, o cap. II, descreve o Povo de Deus em Geral, e o cap. V, sobre a vocação universal à santidade na Igreja, nos oferecem copiosos elementos complementares com surpreendentes dimensões de riquíssimas perspectivas espirituais para os leigos. Pois a palavra <leigo>, tal como é entendida no cap. IV do documento conciliar, já é uma especificação

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No Concílio a Igreja volta-se para si mesma, e ao mesmo tempo, volta-se

para o mundo. Nesse sentido, a Lumem Gentium, constituição dogmática, e a

Gaudium et Spes, como constituição pastoral, estruturam toda a construção

teológica e pastoral do Vaticano II e, como consequência, abrem para uma leitura

mais adequada de sua enorme produção magisterial117.

3.2.1. A Igreja mistério

Desde seu início, O Concílio Vaticano II se caracteriza como Concílio da

Igreja: “O Concílio seja um Concílio ‘de Eclesia’ e se articule em duas partes:

Eclésia ad intra – de Eclesia ad extra118. O que é a Igreja? O que a Igreja faz?

Esses são os pontos principais em redor dos quais devem dispor todas as questões

desse Concílio119. Toda a arquitetura do Concílio é apresentada de forma simples

e sólida. Como já dissemos, seus dois pilares se encontram, na constituição

Lumem Gentium sobre a Igreja e na constituição Gaudium et Spes sobre a Igreja

no mundo contemporâneo. A primeira irá voltar-se para a Igreja em si mesma,

porém, realizando com grande esforço, a explorar sua dimensão de mistério. A

segunda irá dar mais ênfase, no que diz respeito a sua realização no mundo120.

Não pretendemos esgotar aqui essa articulação entre “ad extra” e “ad intra”, mas

de outro termo mais amplo e geral: o de <cristão>, o de <fiel>, de <membro do Povo de Deus>. Antes de alguém ser considerado na Igreja ou <leigo> ou <diácono> ou <presbítero> ou <bispo> ou mesmo <papa> deve ele ser visto como <cristão> ou <membro do Povo de Deus>. Essa é a condição básica, a matéria-prima,o elemento comum, o mais importante, a própria razão de ser do plano divino com relação à criatura humana. E aí, nesse fundamento comum, reside propriamente a grandeza, a dignidade, a novidade trazida por Cristo. Sem isso, nada seríamos embora fôssemos papas, bispos, presbíteros, diáconos ou leigos. <Um é o Povo eleito de Deus> - Cf. KLOPPENBURG, B. A Eclesiologa do Vaticano II, Petrópolis: Vozes, 1971, p. 238. 117 O Concílio Vaticano II não é apenas letra, mas também Espírito, e o intérprete deve estar atento a essas duas dimensões para captar, em todo seu alcance a riqueza do contributo conciliar. O espírito conciliar acha-se, porém, de fato, objetivado, nos textos, conciliares e é a esses textos, sobretudo à medida que aumenta a distância entre a sua produção e a sua leitura, que se deve interrogar quando se quer conhecer o pensamento do Concílio, a menos que se queira ceder a veleidades interpretativas – Cf. ALMEIDA A. J. Teologia dos ministérios não-ordenados na América Latina. São Paulo: Loyola, 1989,p. 17. 118 Intervenção do Cardeal L. J. Suenes na 33ª Congregação Geral, 4 de Dezembro de 1962: Acta Synodália I, IV, p. 223. Apud ALMEDA, J. A. Teologia dos ministérios ... p. 16-17. 119 Intervenção do Cardeal G. B. Monini: Acta Synodália, I, IV, p. 292. Apud ALMEDA, J. A. Teologia dos ministérios ... p. 16-17. 120 Concílio da Igreja, o Vaticano II foi um evento eclesial, uma experiência de comunhão e de ação de graças (o Concílio foi celebrado), na qual, sob a ação do Espírito Santo, toda a Igreja se pôs a escuta da Palavra de Deus, para redescobrir-se a si mesma diante das expectativas dos homens de nosso tempo – Cf. FORTE, B. A Igreja ícone da Trindade, Loyola, São Paulo, p. 16.

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percebemos ser pertinente, neste momento, uma reflexão mais detalhada sobre

essa questão121.

O capítulo primeiro da Lumem Gentium apresenta-nos a comunhão do Pai,

pelo Filho, no Espírito para nós, como esse mistério. Dela, brota a comunhão

entre nós. Essa comunhão é apresentada como modelo para a Igreja. No segundo

capítulo, trata do Povo de Deus, povo de batizados, em que todos recebem a

mesma graça para viver a condição cristã, comum a todos. Esse ponto representa

uma mudança total da situação dos leigos, porque os coloca na mesma vocação e

missão dos outros estados de vida dentro da Igreja, e ainda vai trabalhar

especificidades deles no capítulo quatro122.

Na Igreja Povo de Deus, Corpo de Cristo, Templo do Espírito Santo, todos

fazem tudo, mas não da mesma maneira. Nessa realidade, cada cristão vai

naturalmente assumindo a única missão da Igreja, a partir de seus dons, de sua

vocação pessoal, que se realiza eventualmente em um ministério particular. Nesse

sentido, a diversidade de formas e modalidades de apropriação individual da única

missão da Igreja irá sempre corresponder à diversidade de carismas, serviços e

ministérios de que o Povo de Deus é dotado123. Quando assimilamos e

compreendemos a Igreja como mistério, ou seja, sacramento de salvação,

colocamos automaticamente em destaque a ação conjunta de todos os cristãos. É

por meio de todos nós que a intervenção gratuita de Deus em Jesus Cristo é

acolhida, manifestada e se coloca a serviço do mundo124.

Compreendemos então que mistério, sacramento e ministério, estão ligados

um ao outro, ao mesmo tempo em que são interiores um ao outro. Em Jesus,

realizou-se a plenitude do mistério de Deus, Ele é o Servidor, é Ele quem associa

a si homens e mulheres para serem seus discípulos e seus servidores, e tudo isso

se realiza, na ação do Espírito Santo que se doa, e quando é recebido transforma

os homens e mulheres em verdadeiros servidores. O mistério da Igreja a partir do

momento que é acolhido pelos homens torna-se ministério por parte das pessoas.

O ministério, assim, é confiado à responsabilidade de todos aqueles que o

recebem, e a partir disso, vivem solidariamente uns com os outros, de acordo com 121 Para isto iremos dialogar com PE. José Almeida, que aprofundou essas questões em sua Tese de Doutorado em Teologia, na Universidade Gregoriana em Roma. – Cf. ALMEIDA, A., J., Teologia dos Ministérios não-ordenados na América Latina, Loyola, São Paulo, 1989, p. 5. 122 Cf. ALMEIDA, A. J. Teologia dos ministérios ... p. 5. 123 Cf. Ibid., p. 173. 124 Cf. Ibid., p. 174.

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a graça recebida por cada um125. Quando falamos de Igreja como sacramento

universal de salvação, falamos ao mesmo tempo de “ministério da Igreja”,

podemos então, nessa reflexão, superar a oposição entre vida interna da Igreja e

presença no mundo. A expressão “ministério da Igreja” coloca num mesmo

patamar, em um único dinamismo, a vida interna da Igreja e sua missão no

mundo.

Seguindo essa linha de reflexão, percebemos também, que não tem mais

sentido distinguir enquanto ministérios os que se situam “ad intra” e “ad extra”.

A Igreja toda, e todos na Igreja estão a serviço da mesma missão, estão a serviço

do único desígnio de salvação, aqui não existem fronteiras Igreja-mundo, mas

sim, as misteriosas fronteiras Reino-anti-Reino126.

Finalmente, para a compreensão da superação entre “ad extra” e “ad

intra”, assimilamos a dimensão globalizante que atinge a Igreja-sacramento da

salvação, percebemos também não ser mais possível separar a Igreja funcionária

de si mesma e para si mesma da Igreja que age separadamente no mundo. Agora,

quanto mais a Igreja for assumida e vivida como sacramento da salvação, mais

essas oposições vão perdendo sua razão de ser127.

No Novo Testamento e também nos primeiros séculos do cristianismo, essas

questões eram mais definidas e esclarecidas. A totalidade do Povo de Deus foi

resgatada, no Concílio Vaticano II, como também a abertura para uma

compreensão de que esse mesmo Povo vive uma dialética com o mundo,

superando a separação entre “ad intra” como cristãos que se dedicam às coisas

espirituais, e “ad extra” como cristãos dedicados às coisas temporais128.

A igreja é apresentada, no capítulo I da Lumem Gentium: “De Ecclesiae

mysterio”, e logo nos permite perceber as estâncias da renovação eclesiológica do

século XX, inclinada a reencontrar a dimensão interior e sobrenatural da Igreja.

Ao mesmo tempo, percebemos, por meio dos movimentos de renovação, uma

inclinação a ler, na história, o fruto da iniciativa trinitária, que é a comunhão

eclesial. O que percebemos, nesse ponto da reflexão, é que, no mistério eclesial

125 Cf. Ibid., p. 174. 126 Cf. ALMEIDA, A. J. Teologia dos ministérios ..., p. 175. 127 Cf. Ibid., p. 175 128 Cf. Ibid., p. 182.

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129, um frescor de profundidade, na relação do mundo, já que a dimensão trinitária

traz à consciência que o cristão é, na verdade, um ser que se relaciona na história,

e não um mero ser da história130.

Como já tivemos ocasião de notar, ao examinar o processo de formação da

Igreja, o anúncio cristão, quando inteiramente acolhido, é gerador de uma

Koinonia, que pode ser realizada e experimentada, já, na formação das primeiras

comunidades cristãs. Notamos ser mediadora de comunhão também, na sua

dimensão mistérica, porque possibilita a participação na comunhão trinitária131.

Entendemos, aqui, a Igreja como a essência de sua forma empírica, ela vive,

por isso, das dinâmicas e do dinamismo da koinõnia. A partir disso,

compreendemos a comunhão como uma realidade relacional132. Todo o agir entre

nós e a Trindade é comunicado pela ótica da fé, que vai se apresentar como um

elemento que, entre nós, constitui-se juntamente com outros elementos de

anúncio, o que se denomina como Tradição; essa tradição, aqui apresentada, é que

possibilita que os sujeitos envolvidos participem de uma realidade coletiva que os

precede e os supera133. Percebemos com essas colocações, que a razão humana

dificilmente consegue perceber, porque para Deus não interessa salvar os homens

de forma singular, cada um por si, diretamente e sem intermediários, ou então

imediatamente e sem instituições sociais, sem religião organizada, sem meios

visíveis e sem nenhuma ligação a um povo ou a uma comunidade134. Não deve ter

sido nada fácil para Pedro, que mesmo depois de Pentecostes, como um judeu

habituado a ver sempre ligada a salvação à pertença de um povo, chegar

finalmente a esta conclusão: “Agora compreendo que Deus não faz distinção de

pessoas, mas que todo aquele que o teme e prática o bem lhe é agradável, seja de

que povo for” (Cf. At 10,34).

Acrescentamos às palavras de Pedro, o que diz o Concílio Vaticano II, na

constituição dogmática Lumem Gentium: “Aprouve a Deus santificar e salvar os

129 No “mistério eclesial” se supera simultaneamente o visibilismo da Contra-Reforma e se recupera a dimensão histórica da Igreja “no tempo”, situada entre sua origem na missão divina e seu acabamento na Glória de Deus, tudo em todos – Cf FORTE,B. A Igreja ícone...p. 18. 130 Cf. FORTE, B. A Igreja ícone da Trindade, p. 18-19. 131 Cf. DIANICH, S, e NOCETI, S. Tratado sobre a Igreja. Aparecida: Santuário, 2007,, p. 460. 132 Encontramos, neste Tratado sobre a Igreja a compreensão de que a Igreja não pode ser pensada e explicada a não ser articulando o pessoal e o comunitário. Ela é uma dinâmica relacional “numeramente única”, além de ser princípio de unificação – Cf. Ibid., p. 460. 133 Cf. DIANICH, S. e NOCETI, S. op. cit., p. 460-461. 134 Cf. KLOPPENBURG, B. op, cit., p. 19.

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homens não singularmente, sem nenhuma conexão uns com os outros, mas

constituí-los num povo que o conhecesse na verdade e santamente o servisse”135.

A Lumem Gentium nos apresenta a Igreja como sendo mistério que se manifesta a

partir da sua fundação, é anunciadora e instauradora do Reino de Deus na história

dos homens. Esse mesmo princípio será repetido no Concílio em outro

documento: “Como Deus não criou o homem para viverem isoladamente, mas

para formarem uma união social, assim também lhe aprouve santificar e salvar

os homens não individualmente, excluindo qualquer conexão mútua, mas

constituí-los em um povo”136.

Percebemos que o Concílio fundamenta sua afirmação sobre dois

importantes argumentos: a natureza social ou comunitária do ser humano, e a

vontade positiva de Deus, ou seja, o plano divino137. Por isso, desde o início da

história da salvação, Deus escolheu os homens não como indivíduos somente, mas

como membros de uma comunidade138. Essa índole comunitária é aperfeiçoada e

consumada por obra do Espírito Santo em Jesus de Nazaré. Primogênito entre

muitos irmãos, depois de sua morte e ressurreição, pela ação do mesmo Espírito,

instituiu entre todos aqueles que o recebe pela fé, uma nova comunhão fraternal,

em seu corpo que é a Igreja139.

Portando, na expressão, “a Igreja como mistério” as colocações do Concílio

querem explicitar que a Igreja é uma realidade divina transcendente e salvífica

visivelmente presente entre os homens: na parte externa e visível da Igreja, ao

mesmo tempo, esconde-se e revela sua realidade divina e humana140. A Trindade,

fonte e imagem exemplar de Igreja, é a própria meta141. “Nascida do Pai, pelo

Filho, no Espírito, a comunhão eclesial deve, no Espírito e através do Filho,

voltar ao Pai, até o dia em que tudo seja submetido ao Filho e este ao Pai tudo

confie, para que Deus seja Tudo em todos”142.

Esta “mystica comunio”, cristológica e pneumatologicamente têm sua

expressão maior social e historicamente, como realização última no Povo de Deus.

Percebemos que essa “mystica comunio” encontra, no Povo de Deus, a nova e 135 Cf. LG 9 a/24 136 Cf. GS 32 a/297. 137 Cf. KLOPPENBURG, B. op. cit., p. 20. 138 Ibid., p. 20. 139 Cf. GS 32/297 ss. 140 Cf. KLOPPENBURG, B. op. cit., p. 21. 141 FORTE, B. A Igreja ícone da Trindade, p. 23. 142 Ibid., p. 23.

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definitiva Aliança. Em Jesus Cristo, sua expressão como “socialis communio” se

define, a noção de Povo de Deus que, na constituição dogmática Lumem Gentium,

segue à do Mistério da Igreja, exprime assim a dimensão histórica da Igreja, uma

Igreja situada “inter tempora”, ou seja, entre as divinas missões do Filho e do

Espírito, que lhe deram - e continuamente vão lhe dando - origem, em vista da

consumação escatológica, quando Deus será tudo em todos143.

O Concílio abre sua Constituição dogmática sobre a Igreja com as palavras

Lumem Gentium, mas, essa luz dos povos não é a Igreja: Lumem gentium cum sit

Christus, a luz dos povos é Cristo! Dessa forma, podemos perceber que desde

suas primeiras palavras, o Concílio Vaticano II quer dar-nos uma perspectiva

totalmente cristocêntrica e a Igreja é relativa ao Cristo, ao Espírito Santo, e ao

Reino. Só podemos compreender essa dimensão mistérica da Igreja, relacionando-

a com Cristo, O Senhor Glorificado! A Igreja vive de Cristo144! Pela força do

Espírito Santo.

3.2.2. Igreja e ministérios

A comunidade cristã organiza-se para continuar em sua caminhada histórica

sempre fiel ao projeto de Deus. Uma comunidade que procura discernimento por

meio dos acontecimentos, e assim, vai descobrindo qual o melhor caminho a

seguir145·.

Observamos, também, que a Igreja procede do dom da Comunhão que une

entre si os fiéis com um forte laço de fé. Formando uma comunidade unida, na fé,

eles vivem uma nova vida em Cristo, fortemente unidos entre si, formando, assim,

um organismo vivo “o Corpo de Cristo”. Essa profundidade da existência da

Igreja tem sua dimensão ontológica e o que de mais profundo existe, na Igreja,

está vivo, na interioridade das pessoas, que se exprime em seu relacionamento

cotidiano146. Pretendemos aqui colocar em destaque que é por necessidade

143 Cf. ALMEIDA, A. J. Teologia dos ministérios não-ordenados. p. 18. 144 Cf. KLOPPENBURG, B. op. cit., p. 25. 145 Cf. RODRIGUES, E. R. Ministérios dos leigos na Igreja à luz do Novo Testamento. Aparecida: Santuário, 2001, p. 53. 146 Podemos observar que, quanto mais, essa rede de relacionamento interior e interpessoal chega ao nível da expressão pela palavra e pelos fatos, transformando-se em presença operosa de um sujeito coletivo no âmago da história dos homens, tanto mais o evento interior adquire um corpo visível, com formas precisas e determinadas de agregação social, que se constitui por meio de estruturas bem ajustadas, constante e tendente à estabilidade – Cf. DIANICH, Severino; NOCETI, Serena, op. cit., p. 615.

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intrínseca que a experiência dessa comunidade de fé conduz à necessidade de uma

institucionalização.

Sem esse natural processo de institucionalização, a Igreja permaneceria

misteriosamente escondida, na interioridade dos fiéis, sendo assim, não

significaria tanto para a sociedade, como para o conjunto das realizações e da vida

humana em si147. Os processos de institucionalização dos componentes mais vitais

são inevitáveis e necessários para que se realize em continuidade com a missão, e

também, com total fidelidade ao mandato original. Uma Igreja que nasce da fé;

tanto é real que muitos aspectos institucionais das comunidades cristãs,

começando pelos sacramentos, somente pela fé são aceitos na Igreja como

autêntica verdade do Senhor148.

Uma Igreja que professa sua fé em Cristo, em continuidade com a missão

dos apóstolos de dar continuidade à obra iniciada em Jesus, de encarnar em suas

vidas os seus feitos e os ensinamentos, dos quais estes são testemunhas vivas.

Sendo assim, a prática de Jesus deve ser o eixo em torno do qual deve girar toda

sua organização e experiência de vida cristã149.

Exatamente, por isso, não podemos falar adequadamente de carismas e

ministérios sem nos referirmos à apostolicidade da Igreja, como também, não

podemos deixar de nos referir ao papel fundamental dos Apóstolos, porque não é

possível falar de ministérios sem um adequado discurso cristológico (sobre a

missão-ministério de Jesus Cristo)150.

O livro do Ato dos Apóstolos apresenta um quadro sugestivo das duas

forças propulsoras do movimento cristão: o Espírito e a Palavra. Essas duas forças

estabelecem a coesão entre os fiéis e, ao mesmo tempo, capacita-nos para a

perfeita comunicação da mensagem da salvação, mensagem essa que é entendida

147 Cf. DIANICH, S. e NOCETI, S. op. cit., p.616. 148 Cf. Ibid., p. 679. 149 Cf. RODRIGUES, E. R. op. cit., p. 39. 150 Nesta linha, “a partir do Vaicano II, e também fora da teologia católica e, mais precisamente, no âmbito do Conselho Ecumênico das Igrejas, consolidou-se muito a doutrina que vê nos Apóstolos e na apostolicidade um duplo papel emblemático: um, genérico, que se difunde em toda a Igreja (missão, apostolado, empenho doutrinal, de conservação e progresso na fé, serviços, ministérios e carismas...); outro específico, que, por sucessão especial, passa a somente a alguns, os ‘chefes’, os’presidentes’ na Igreja... Permanece firme, de qualquer maneira, a convicção que apostolicidade diga algo de essencial -, algo de universal,que diz respeito e a todos: o caráter de toda a realidade que qualifica a vida e a obra da Igreja (autoridade, ministérios, serviços, sacramentos, missão etc.) deve evidenciar o ‘regime de encarnação’, o ‘Espírito’ ainda ligado à carne, justamente porque Espírito de Cristo – Cf. ALMEIDA, A., J., Teologia dos ministérios não-ordenados na América Latina, São Paulo: Loyola, 1989, p. 185.

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por todos os povos, pois ela corresponde diretamente ao anseio do homem pela

união definitiva com Deus151.

É evidente que não estamos falando aqui da palavra retórica, ou de

demagogia alienante que geralmente estamos acostumados a ouvir. Estamos, sim,

falando da dimensão profética da Palavra de Deus apresentada por Lucas, palavra

que desvenda a realidade escondida atrás de ideologias que procuram manter o

povo na exploração e na opressão152. Pelo exercício da função profética e de

denúncia contra qualquer violação da paz, da solidariedade e da justiça, e também

pelo esforço pela construção, na unidade visível entre as igrejas, com o serviço do

anúncio do “evangelho da paz” e da recapitulação de “tudo em Cristo”, a igreja de

Cristo se coloca a serviço da unidade do gênero humano, segundo o projeto de

Deus153.

Nesse sentido, essa unidade da Igreja prefigura, prepara e antecipa a unidade

da família humana, aqui, a Igreja se torna sinal evidente de uma Koinonia, que

não significa anular as particularidades, mas sim, comunhão de convivência das

diferenças consideradas como riquezas do patrimônio comum154. É, nessa

realidade vital e ontológica, que vai se configurando a formação desse novo Povo

de Deus, povo cristão, povo formado por seres vivos que participam da mesma

vida de Deus e do Espírito155. Isso é o que significa primeiramente o sacramento

do Batismo água e Espírito, que é a porta de entrada da Igreja156; a Confirmação,

que é um sacramento pessoal que fortalece cada cristão e, ao mesmo tempo,

comunica o Espírito Santo (cf. At 8,16); e a Fração do pão, que é o sacramento da

vida (cf. At 2,42).

Uma das mais belas imagens de Igreja apresentada, no Novo Testamento,

que recebe muita admiração dos fiéis, é aquela da construção da casa, ou de um

nobre edifício, que tem como propósito o encontro do homem com Deus; essa é a

casa e o templo na cidade dos homens. Quando, finalmente, o Reino alcançar sua

plenitude, uma nova cidade virá de Deus para que, nela, resplandeça a plenitude

da paz. Na Jerusalém do céu, não precisamos de templo algum. Mas, enquanto

151 Cf. A Palavra profética (At 2, 2-4), In: RODRIGUES, E. R. op. cit., p. 41. 152 Cf. RODRIGUES, E. R. op. cit., p. 42. 153 Cf. DIANICH S. e NOCETI, S. op, cit., p. 477. 154 Cf. Ibid., p. 477 155 Cf. At 9, 31 – Este povo é povo novo, que vive a vida dos filhos de Deus dentro de cada um de seus membros. 156 Cf. Mencionada várias vezes em At 2, 37-38.

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estivermos aqui, na terra, ainda precisamos de um templo. Jesus anuncia a Pedro

quando este acabara de fazer sua profissão de fé, que a ele seriam dadas as chaves

para a porta do Reino.

É evidente que Jesus não pensava em um edifício sagrado, e sim, na

comunidade de seus discípulos, e a pensou edificada sobre uma rocha, capaz de

resistir a qualquer ataque e até a morte. A Igreja teria, assim, para Jesus a

qualidade de indefectibilidade, pois, ele haveria de fundá-la e sustentá-la sobre o

apóstolo, aquele a quem o Pai inspira a profissão de fé: indefectível,

essencialmente, porque capaz, pela graça divina, de proclamar para sempre a

verdade da revelação. Indefectível, infalível e apostólica157, essas são as três

características que Jesus desejou para a comunidade e seus discípulos. Nessa

ótica, o povo de Deus tem seus líderes (Cf. At 1,8-12), os apóstolos têm seus

colaboradores (Cf. At 8,5), desta Igreja só podemos falar teologicamente a partir

da Ressurreição e de Pentecostes158. Ela é, essencialmente, um acontecimento do

Espírito, que primeiro ressuscita Jesus dentre os mortos, transforma-lhe toda a sua

existência, de carnal para a existência espiritual, ou seja, pneumática (Cf. At 5,42;

14,17), e depois, desceu sobre os Doze para fazê-los Apóstolos, fundadores de

comunidades eclesiais (Cf. At 3,15). É o Espírito que anima uma forma específica

de organização eclesial159.

A partir disso, podemos pensar a Igreja como um templo, porque é a Palavra

de Deus que congrega os fiéis, a Igreja é animada pelo Espírito Santo, e o Espírito

Santo também que conduz os que creem para a verdadeira fé, e os fiéis se enchem

de vida se tornando homens novos, membros do Corpo de Cristo, e assim, com

Ele e como Ele se tornam filhos no único Filho. Como filhos de Deus, no Filho

157 DIANICH, S e NOCETI, S. op. cit., p. 478. 158 O termo grego “pentecostes” significa cinquenta. No calendário judaico designa a festa celebrada cinquenta dias após a Páscoa. A princípio, a festa agrícola da colheita do Trigo (Ex 23,16), que foi, a partir do Exílio da Babilônia, no séc. V a.C., “historicizada”: de celebração de um evento agrícola, que se repetia a cada ano, foi transformada em celebração de um evento único e central, a Aliança do Sinai. No séc. III a.C. , havia uma festa de renovação da Aliança, que parece corresponder justamente a essa festa de Pentecostes (1Cor 16,8). Essa festa comemora o dom da Lei no Sinai: celebrando a Aliança, permitia-se renová-la. Para Lucas, essa aliança teve como marco principal o anúncio do Espírito Santo a Maria de poder trazer ao mundo o Filho de Deus feito homem, para anunciar o Reino de Deus a todas as nações, sendo Ele próprio Verbo que se fez carne no meio do Povo (Lc 1,26ss). O segundo momento como consumação de toda a Tradição foi a vinda do Espírito Santo em Pentecostes, que transformou homens fracos em fortes anunciadores da Igreja de Jesus Cristo (At 2ss) – Cf. RODRIGUES, E. R., Ministério dos leigos na Igreja, Santuário, Aparecida, 2001, p. 42. 159 Cf. RODRIGUES, E. R. op. cit., p. 46.

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são, então, enriquecidos pelos dons do mesmo Espírito, e assim, também pelo

Espírito Santo são santificados160.

Em uma comunidade onde todos se sentem irmãos, se sentem e são, porque

estamos falando, aqui, de pessoas que se deixam mover pelo Espírito Santo, no

respeito à vida que se torna sagrado, portanto, nessa comunidade, não pode haver

individualismo, nem mentira, nem idolatria, nem dominação, nem capitalismo,

etc.161. Sendo assim, aquele que se deixar seduzir por forças que geram o pecado e

a morte, exclui-se, morre para a comunidade, porque rejeitou a força do Espírito

Santo (cf. At 5, 1-4).

Essa comunidade de fiéis se enche de vida pelo dom da santidade que lhe é

concedido a todos aqueles que participam, na fé, recebendo, também, cada um o

seu carisma particular, uma comunidade que nasce da Palavra de Deus é santa e

carismática162. Por isso, a diversidade de dons e carismas é obra do Espírito Santo

que age nessa diversidade e aponta para os inúmeros ministérios e para as diversas

funções das mulheres e homens da Igreja. Essa variedade de carismas é que

enriquece a participação de todos os cristãos, nas suas comunidades, oferecendo,

assim, mais espaço e com a participação de todos, realizando ao máximo seu

potencial, porém, sem violentar a unidade, pois todos os dons possuem a mesma

fonte: o Espírito Santo de Deus163.

Assim, a comunidade de fiéis repleta de vida e chamada pelo Pai está

reunida em torno de Jesus e é vivificada pelo Espírito Santo. Os fiéis agora olham

a cidade dos homens como lugar de oferecimento de si mesmos, em busca do

encontro com Deus, formando, assim, comunidades múltiplas e diversificadas,

onde se realizam e constituem o único corpo de Cristo, e o único templo do

Espírito Santo, se sentem construídos, na fé, sobre a força da mesma Palavra,

testemunhada pelos apóstolos164. Enfim, essa comunidade, finalmente, é o lugar, o

local, onde se celebra a liturgia da vida, e, ao mesmo tempo, celebra a liturgia dos

160 Cf. DIANICH, S e NOCETI, S. op. cit., p. 478-479. 161 Cf. RODRIGUES, E. R. op. cit., p. 50. 162 Os carismas são dons que procedem do Espírito Santo. Ter carismas é possuir dons extraordinários como falar em línguas (At 2, 4.8-11), publicando as maravilhas de Deus (At 2, 15-21); profetizar (At 11, 27 s), conhecer, entender e falar das escrituras, doutores (At 13,1s); pregar o Evangelho (At 6,8ss); realizar milagres (At, 6,8) e ter visões (At 7,55) – Cf. RODRIGUES, op. cit.,, p. 53. 163 Cf. RODRIGUES, R. E. op. cit., p. 54. 164 Cf. DIANICH, S. e NOCETI, S. op. cit., p. 479.

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sacramentos: o edifício espiritual, que está unificado por um sacerdócio santo, que

oferece ao Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo, sacrifícios espirituais.

Depois de toda essa reflexão, chegamos à compreensão da Igreja como um

Povo Sacerdotal, que tem a missão de criar um relacionamento fecundo entre o

mundo e Deus, oferecendo a Deus para isso, a própria existência e as próprias

obras165.

3.2.3. Luz dos Povos – Lumen Gentium

Para podermos compreender toda a amplitude e riqueza da noção que o

Concílio Vaticano II nos oferece no que diz respeito ao leigo na Igreja, temos que

ler e meditar a Constituição Dogmática Lumem Gentium, que tanto valoriza os

leigos. O capítulo I apresenta-nos uma reflexão sobre o mistério da Igreja, o

capítulo II descreve o Povo de Deus em geral, parte fundamental foi colocar isso

antes de se falar, na hierarquia, no capítulo III, o capítulo IV volta a falar do leigo

e o capítulo V apresenta-nos uma reflexão sobre a vocação universal para a

santidade da Igreja. Este capítulo apresenta, também, elementos complementares

com dimensões riquíssimas para uma perspectiva espiritual para os leigos. Visto

que o termo “leigo”, no capítulo quatro, já é apresentado, no documento conciliar,

com uma especificação mais ampla e geral; ele é apresentado como “cristão”, e

também como, “fiel”, membro do “Povo de Deus”166.

Desta forma, antes de alguém ser considerado, na Igreja ou “leigo”, ou

“diácono”, ou “presbítero”, ou “bispo”, ou mesmo “papa”, deve ser visto, acima

de tudo, como “cristão”, membro do Povo de Deus. Encontramos, aqui, a

condição básica, a matéria-prima, a própria razão de ser do plano divino com

relação à pessoa humana. Está contida aqui, neste fundamento comum, a

grandeza, a dignidade da novidade trazida por Jesus Cristo.

É muito importante compreendermos bem essas questões, para assim

trabalharmos a Igreja proposta, no Concílio Vaticano II, uma Igreja que se realiza

com variedades de membros em vista de um único objetivo, ou seja, a salvação de

todo o Povo de Deus. Por isso, o capítulo que fala da hierarquia vem apenas em

terceiro lugar. Por esse mesmo motivo, os componentes da hierarquia (papa,

165 Cf. Ibid., p 479-480. 166 Cf. KLOPPENBURG, B. op. cit., p. 238-239.

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bispos, presbíteros, diáconos) são apresentados também, como “servidores do

Povo de Deus”167. Aqui, frei Boaventura vai dizer que eles não são os donos da

Igreja, da diocese, ou da paróquia. Insiste também que o documento retoma

sempre as palavras “serviço”, “ministério”, “diaconia”, quando se refere à ação

dos membros da hierarquia, insinua que, nesse ponto, o Concílio Vaticano II

deseja corrigir uma perspectiva nada evangélica que infelizmente estávamos

habituados devido à tradição equivocada de muitos séculos: da hierarquia como

poder168.

Nessa visão equivocada, estamos acostumados a imaginar a Igreja como

uma pirâmide, ou seja, papas, bispos, sacerdotes, que presidem, ensinam e

santificam, governam com autoridade e poder; na base, encontra-se o povo

cristão, passivo e receptivo, em que parece ocupar um lugar nitidamente inferior e

secundário. Estamos diante de um grande equívoco; contra esse tipo de

clericalismo triunfalista, reagiu o Concílio com muita vivacidade, mostrando,

inclusive, que o poder hierárquico é apenas algo transitório, que pertence ao

tempo da peregrinação terrestre. Na Igreja celeste, no estado definitivo, a

hierarquia, aqui, já não terá mais razão de ser, visto que os eleitos já terão chegado

à perfeita unidade em Cristo. O ministério da hierarquia é uma situação

passageira, o Povo de Deus é um estado permanente169.

Essas colocações foram feitas pelo Bispo de Bruges (Bélgica), Dom Emílio

De Smedt, já, na primeira Sessão do Concílio em um memorável discurso

pronunciado, na Aula Conciliar no dia 1/12/62 (31ª Congregação Geral)170. Ele

também irá afirmar que devemos também tomar cuidado ao nos referirmos sobre a

Igreja para não cair, no hierarquismo. O que deve sempre prevalecer é a visão de

Igreja como Povo de Deus, a essa Esposa do Verbo, a esse Sacrário do Espírito

santo, a qual a hierarquia deve prestar seus humildes serviços, para que Ela

chegue à idade perfeita que é a Plenitude de Cristo171.

O Concílio propõe uma nova ótica para a posição do cristão enquanto leigo

na Igreja. E, nessa mesma perspectiva, deve-se ver a posição do cristão como

hierarca na Igreja. O fundo deverá ser sempre o mesmo, uma condição de

167 Cf. Ibid., 239 168 Cf. Ibid., 239. 169 Cf. Ibid., 239. 170 Cf. Ibid., 239. 171 Cf. Ibid., p. 240.

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absoluta igualdade. Uns e outros deverão ser sempre igualmente fiéis, igualmente

cristãos, igualmente membros do Povo de Deus, templos do Espírito Santo,

configurados com Cristo, vivendo com Ele, por Ele, e n’ Ele. É somente a partir

desse ponto que as diferenças começam:

Para apascentar e aumentar sempre o Povo de Deus, Cristo Senhor instituiu na Sua Igreja uma variedade de ministérios que tendem ao bem de todo o Corpo. Pois os ministros que são revestidos do sagrado poder servem a seus irmãos para que todos os que formam o Povo de Deus e, portanto gozam da verdadeira dignidade cristã, aspirando livre e ordenadamente ao mesmo fim, cheguem à salvação172.

Como diz a Lumem Gentium, não somente os hierarcas, também os leigos

são testemunhas de Cristo, instituídos como tais para essa função. Esse

documento Conciliar insiste, muitas vezes, nessa questão, e não vai deixar de fora

o apostolado exercido, na realidade matrimonial e familiar pelos leigos.

Lá existe o exercício e a escola insigne do apostolado dos leigos, onde a religião cristã invade toda a instituição da vida e dia a dia mais e mais a transforma. Lá os cônjuges têm uma vocação própria, para que sejam mutuamente e para seus filhos testemunhas da fé e do amor de Cristo. A Família cristã proclama em alta voz tanto as presentes virtudes do Reino de Deus quanto a esperança da vida feliz. Assim, pelo testemunho argúi o mundo de pecado e ilumina aqueles que procuram a verdade173.

Notamos174que em todos estes textos, o Concílio insiste, nas virtudes

teologais da fé, esperança e caridade. Destacando aqui a virtude da esperança, que

é a virtude básica, que se encontra nos dias de hoje bastante esquecida. O mundo,

hoje, encontra-se dominado por sentimentos negativos, como: angústia, medo,

desespero, e muitos outros, diante dessa realidade a virtude da esperança se torna

imprescindível175. Por tudo isso, os leigos devem ser, nos dias de hoje,

testemunhas vivas da esperança cristã, eles devem dar razões de sua esperança em

tudo o que realizam176, e não devem ocultá-la no mais íntimo de sua alma, e sim,

172 LG 18. 173 LG 35. 174 Refletimos com Frei Boaventura Kloppenburg, professor de teologia dogmática desde 1951, redator da Revista Eclesiástica Brasileira desde 1953, consultor da Comissão Teológica pré-conciliar, perito na Comissão Teológica do Concílio Vaticano II, cronistas das atividades conciliares, dono de um dos mais ricos arquivos particulares sobre o último Concílio e autor de grande número de artigos teológicos quase sempre encontrados nos documentos do Concílio Vaticano II. São essas credenciais que o habilitam para apresentar-nos às grandes linhas da Eclesiologia do Vaticano II, que foi um Concílio essencialmente eclesiológico. 175 Cf. Ibid., p. 247. 176 Cf. LG 10.

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exprimi-las nas estruturas da vida secular177, e assim, a família cristã poderá

proclamar em alta voz a esperança da vida feliz realizada a partir da fé178. Agindo

dessa forma, destacar-se-ão daqueles que se encontram desesperados, dos que se

encontram torturados pela vida daí, esses se sentirão atraídos para viverem a

mesma vida feliz, na fé, esperança e caridade. E isso é o apostolado, assim, serão

os leigos luz no mundo e sal na terra179.

Imbuídos dessa concepção cristã, no mundo, os leigos poderão iniciar o seu

apostolado mais específico, que é o da animação, visto aqui a partir da anima

(espírito). Essa ação se manifesta, no interior do ser e do existir, de dentro para

fora, o esforço de informar com o Espírito cristão a mente e os costumes, as leis e

as instituições sociais ou comunitárias. Isso é o apostolado da restauração da

ordem temporal180. O apostolado da animação é descrito, no último parágrafo do

capítulo IV da Lumem Gentium, especificamente no número 38:

Cada leigo individualmente deve ser perante o mundo uma testemunha da ressurreição e vida do Senhor Jesus e sinal do Deus vivo. Todos juntos e cada um na medida de suas possibilidades devem alimentar o mundo com frutos espirituais. Devem difundir no mundo aquele espírito pelo qual são animados os pobres, os mansos e os pacíficos que o Senhor no Evangelho proclamou bem-aventurados. Numa palavra “o que a alma é no corpo”, isto seja no mundo os cristãos181.

Logo, nos primeiros capítulos, a Lumem Gentium traz como proposta de

mudanças, na visão sobre o leigo, dentro de um contexto de igual dignidade de

todos os cristãos, e a participação também dos leigos, no tríplice munus de Cristo.

O leigo é, agora, apresentado, antes de tudo, como fiel e membro do Povo de

Deus, incorporado, pelo batismo, em Cristo e na Igreja182, a partir desses

pressupostos básicos, surge a visão de sua real especificidade: “Por vocação

própria, compete aos leigos procurar o Reino de Deus tratando das realidades

temporais e ordenando-as segundo Deus”183.

Porém, no capítulo II, mais especificamente, no número doze, fala-se

também da participação geral na missão profética de Cristo. Nesse ponto, o

documento conciliar fará uma exposição sumária acerca do senso de fé no povo

177 Cf. LG 35. 178 Cf. LG 35. 179 Cf. KLOPPENBURG, B. op. cit., p. 247. 180 Cf. Ibid., p. 251. 181 Cf. Ibid., p. 253. 182 Cf. DIANICH, S. e NOCETI, S. op. cit., p. 503. 183 LG 31.

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cristão. Nesse parágrafo, ensina o Concílio, o senso de fé é executado e sustentado

pelo Espírito Santo e não pelo ensinamento do Magistério Eclesiástico, em todos,

desde os bispos até o último dos fiéis leigos184.

É ainda por essa mesma ação divina que cada pessoa fiel recebe a palavra de

Deus, apega-se a ela, penetrando, no mais profundo do seu ser, e, assim procura

aplicá-la, na vida cotidiana, no seu dia-a-dia. Em tudo isso, a ação magisterial da

Igreja tem apenas a função de dirigir ou orientar, doutrina semelhante é proposta,

no mesmo documento, no número dezenove, quando diz que os Apóstolos, ao

pregarem por toda parte o Evangelho, “aceito pelos ouvintes por obra do Espírito

Santo”, congregam a Igreja universal185.

Cristo deu também aos leigos a graça da palavra, sempre com o fim de

torná-los participantes mais aptos de seu múnus profético186. Nesse contexto, o

documento conciliar não explica o que se deve entender por “graça da palavra”,

mas por estar imediatamente ligado ao senso de fé, remete-nos ao número doze do

capítulo II que, logo após falar do senso de fé, expõe a doutrina do Concílio, no

que diz respeito aos carismas do Espírito Santo ao Povo cristão187. O texto é

bastante claro quando explicita o seguinte:

Não é apenas através dos sacramentos e dos ministérios que o Espírito Santo santifica e conduz o Povo de Deus e o orna de virtudes, mas repartindo seus dons “a cada um com lhe apraz (cf. 1 Cor 12,11)”, distribui também entre os fiéis de qualquer ordem graças especiais. Por elas os tornam aptos e prontos a tomarem sobre si os vários trabalhos e ofícios que contribuem para a renovação e o maior incremento da Igreja, segundo estas palavras: “A cada um é dada a manifestação do Espírito para a utilidade comum (cf. 1Cor 12,7)”.

Esse texto conciliar distingue entre a ação do Espírito Santo através dos

sacramentos e ministérios e a ação do Espírito Santo através dos carismas. O que

podemos perceber a partir da reflexão deste texto é que pode haver também ação

divina fora dos sacramentos e dos ministérios. O Espírito Santo não está ligado

somente a um determinado grupo de pessoas188.

Quando falamos de carismas, somos tentados a ver neles somente os dons

extraordinários, como: dom das línguas, de curar, de fazer milagres, etc. Na carta

184 Cf. KLOPPENBURG, B. op. cit., p. 248. 185 Cf. Ibid., p. 248 186 Cf. LG 35-88. 187 Cf. KLOPPENBURG, B. op. cit., p. 248-249. 188 Cf. Ibid., p. 249.

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de São Paulo aos Romanos, percebemos que ele conheceu carismas um tanto

espetaculares, ele também fala em sua carta sobre o dom de expor as mais altas

verdades religiosas, e de apresentar o ensino sobre Jesus Cristo (carisma ou graça

da palavra); fala do carisma da fé, da pregação, da exortação, da consolação, do

serviço, do discernimento dos espíritos, de assistência aos necessitados, de

administração e de direção da Igreja, etc. (cf. Rm 12; 1Cor 12).

Percebemos, nessa carta, que aos olhos de Paulo, a Igreja de Cristo não é

apenas uma organização administrativa, mas sim, antes de tudo, um vivo conjunto

de dons, carismas e serviços189. Nessa mesma linha, continua a reflexão

apresentada na Lumem Gentium: “Estes carismas quer eminentes, quer mais

simples e mais amplamente difundidos, devem ser recebidos com gratidão e

consolação, pois que são perfeitamente acomodados e úteis as necessidades da

Igreja”190 . Os dons extraordinários, todavia, não devem ser temerariamente

pedidos, nem deles deve presunçosamente ser esperado frutos de obras

apostólicas. “A eles em especial cabe não extinguir o Espírito, mas provar todas

as coisas e ficar com o que é bom ”(Cf. 1Tes 5,12; 19-21).

O Documento vai lembrar, mais a frente, como devem proceder os pastores

diante dos carismas dos fiéis: “reconhecer os carismas dos fiéis”191, sendo assim,

aos presbíteros recomenda o Concílio, que reconheçam com alegria e também

incentivem, com entusiasmo, todas as formas de carismas dos leigos, desde os

mais modestos até os mais elevados.

A partir dessas colocações, podemos compreender que a “graça da palavra”,

com que Cristo muniu os leigos é para que pudessem participar com facilidade de

sua missão profética, e também, para que a força do Evangelho brilhasse e se

manifestasse mais na vida cotidiana, familiar e social192. É, pois, um dom especial

do Espírito Santo, que nunca faltará a quem de coração sincero se dedicar ao

apostolado do testemunho193. Numa palavra, ’o que a alma é no corpo, isto sejam

no mundo os cristãos’194.

189 Cf. Ibid., p. 249. 190 Cf. LG 28. 191 CF. LG 30. 192 Cf. KLOPPENBURG, B. op. cit., p. 249. 193 Ibid. p. 249. 194 Ibid. p. 249.

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3.3. Conclusão

Fizemos um rápido retorno às colocações do Concílio Vaticano II; nossa

intenção foi analisar juntamente com outros teólogos as riquezas que ainda estão

contidas nos documentos desse concílio. No que diz respeito ao laicato, que é o

foco de nossa pesquisa, procuramos observar a situação do laicato na Igreja e no

mundo.

Para isso, destacamos o Concílio Vaticano II como o Concílio da Igreja, ou

seja, ‘de Ecclesia’, que se articula em duas partes: ad intra – e ad extra. O que

buscamos aqui foi procurar entender o que é a Igreja, o que ela faz? Em busca

dessa resposta, analisamos a Igreja como Mistério, e também a Igreja e os

ministérios, com isso, compreendemos, então, que mistério, sacramento e

ministério estão ligados um ao outro, ao mesmo tempo em que são interiores um

ao outro.

Explicitando de forma mais clara, em Jesus Cristo, realizou-se a plenitude

do mistério de Deus. Nada mais está oculto, tudo está revelado, Ele é o Servidor, é

Ele quem associa a si homens e mulheres para serem seus discípulos e seus

servidores, e tudo isso se realiza, na ação do Espírito Santo, que se doa, e quando

esse é recebido, aceito e compreendido transforma os homens em verdadeiros

servidores. Aqui, nesse ponto, o mistério da Igreja, quando acolhido pelas

pessoas, torna-se então ministério por parte destes.

O ministério, então, é confiado à responsabilidade de todos que o recebem e

acolhem. Os homens e mulheres agora são capazes de viver solidariamente uns

com os outros, de acordo com a graça recebida. Quando falamos de Igreja,

“sacramento universal de salvação”, dizemos, ao mesmo tempo, de “ministério da

Igreja”. Portanto, a expressão, “ministério da Igreja” coloca num mesmo patamar,

em um único dinamismo, a vida interna da Igreja e sua missão no mundo.

Avançamos nessa reflexão para compreender que, diante disso, não

podemos mais separar a ação de alguns que se dedicam à vida interna da Igreja,

daqueles que se encarregam de ser presença cristã, no mundo, por meio do

testemunho de vida. A igreja toda, e todos, na Igreja, estão a serviço da mesma

missão, aqui já não existem mais fronteiras Igreja-mundo, mas sim, a misteriosa

fronteira Reino-anti-Reino.

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Percebemos, também, o verdadeiro sentido de Igreja e ministérios, uma

Igreja, que professa sua fé em Jesus Cristo, em continuidade com a missão dos

apóstolos. Qual a missão dos Apóstolos? É a de dar continuidade à obra iniciada

em Jesus, e também de encarnar em suas vidas os feitos e os ensinamentos do

Nazareno, dos quais estes se tornam testemunhas vivas, como afirma Paulo: “Já

não sou eu quem vive, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20).

Compreendemos que não podemos falar adequadamente de carismas e

ministérios sem nos referirmos à apostolicidade da Igreja, ao mesmo tempo, que

não podemos deixar de nos referir ao papel fundamental dos Apóstolos,

justamente porque não é possível falar de ministérios sem um adequado discurso

cristológico (sobre a missão-ministério de Jesus Cristo).

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