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3. Da ditadura militar ao neoliberalismo:
o poder e a violência na recente história da Baixada
3.1. A recente história política
A reestruturação política feita pela ditadura militar no poder local da Baixada ao longo de
20 anos teve como principal objetivo suprimir, enfraquecer ou cooptar as formas de oposição
política que existiam ou viessem a surgir. Cassações de prefeitos e vereadores, fechamento e
ocupação de câmaras e prefeituras, imposição de interventores e pressão para o ingresso no
partido governista foram estratégias empregadas ao longo desse período. Se inicialmente os
próprios comandantes militares envolviam-se nesse processo, posteriormente as novas
configurações do poder local passarão a operar os mecanismos de perpetuação da nova
geopolítica regional.
Nova Iguaçu, oitava cidade brasileira em número de habitantes, se tornará, já em 1966, o
símbolo da interferência militar na Baixada. Naquele ano, após a renúncia do prefeito e do seu
Vice, ambos por motivos pessoais, assumiu a prefeitura José Lima, presidente da câmara. Depois
de 41 dias, foi nomeado interventor federal, Joaquim de Freitas, que ficou até o término legal do
mandato. Após novas eleições, assumiu, em 1967, o prefeito Ari Schiavo (MDB), que, 6 meses
depois, enquanto participava de um simpósio na Alemanha, foi afastado pela câmara. Esse
incidente, além de revelar os primeiros efeitos do Decreto-Lei nº 201, do ex-presidente Castelo
Branco, que permitia a cassação sumária de prefeitos pelas câmaras, a partir de denúncias de
corrupção e malversação de verbas públicas, tornava claro o modo militar de governar. Durante
toda a noite anterior à cassação, os vereadores da cidade permaneceram na 1ª Companhia de
106
Polícia do Exército, cujo comandante, capitão José Ribamar Zamith, articulava pessoalmente o
processo de afastamento. Dos 19 vereadores, 18 votaram seguindo o combinado com o capitão1.
Tudo estaria resolvido naquele “termômetro político do País”, com seus 1.700.000
habitantes e 450 mil eleitores, se quase um ano depois o ex-vice prefeito e então prefeito Antônio
Joaquim Machado não passasse a ser acusado de corrupção por causa das operações comandadas
pelo seu próprio filho dentro da prefeitura. Tentando se manter no cargo, o prefeito acusado
ingressará na Arena e aceitará a tutela administrativa dos militares. A manobra, porém, resulta
num fiasco, pois, após a exoneração coletiva de todo o seu gabinete e a certeza da nomeação do
professor Rui Queirós, que mantinha estreitas ligações com os militares, para uma espécie de
supersecretaria responsável pela composição do novo gabinete, todos os vereadores tornaram-se
seus opositores. Pouco adiantou, também, o esforço do então governador Jeremias Fontes para
evitar a desmoralização da cassação de um prefeito governamentista. No dia 17 de outubro de
1968, a câmara impedia Antônio Machado de permanecer à frente do Executivo. Assumia o
cargo o presidente do Legislativo, Nagi Amalwi2 .
A situação que surgia era confusa. A constituição anterior previa que na vacância do
prefeito e vice prefeito o presidente da câmara assumiria, mas o Decreto-Lei 201 não era claro.
Jorge de Lima e Darcílio Ayres, deputados da Arena com base na cidade, e mesmo o presidente
municipal desse partido, José Haddad, eram favoráveis à intervenção. Seus apelos eram
reforçados pelas declarações do então secretário do Interior e Justiça, deputado Paulo Pfeill, que
no dia seguinte à cassação manifestava-se contrário às fórmulas democráticas, considerando
perigosa a saída de Joaquim Machado, pois novas eleições só trariam benefício “às forças anti-
revolucionárias interessadas num debate de temas políticos controvertidos, para conturbar
1 Jornal do Brasil, 16/8/1967.2 Diário de Notícias, 13/10/1968; Jornal do Brasil, 15/10/1968 e Correio da Manhã, 18/10/1968.
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ainda mais o tenso panorama nacional”. Concluía suas declarações dizendo que mais valia um
prefeito corrupto, porém tutelado, do que um adversário no poder em vésperas de eleição3.
Em fevereiro de 1969, a vacância seria solucionada com a nomeação de Rui Queirós
como Interventor no município. Assim, de 1963 a 1969, em seis anos portanto, Nova Iguaçu
conheceu oito chefes do Executivo: dois interventores, dois presidentes da câmara, dois prefeitos
eleitos e dois vice prefeitos. Ao final do período, a descontinuidade administrativa e o casuísmo
das leis eram tão gritantes que a população sequer conseguia entender as questões políticas,
quanto mais interferir. Além disso, o MDB, partido que tinha a maioria dos vereadores, passava a
ser a minoria4. Rui Queirós irá concluir o mandato em 1972 e, na sua mensagem do 1º de maio de
1970, deixava nítida a sua posição como interventor. Ao justificar por que o governo militar
ainda não podia entregar ao operário iguaçuano o poder de decidir o seu destino, ele compara a
cidade a um jardim onde “o mato daninho terá que ser arrancado pela raiz, para que não
sobreviva com a primeira chuva. A vegetação mais daninha e cheia de parasitas foi arrancada
deste solo abençoado; entretanto, o jardim terá que ser observado, podado, desinfetado e
cuidado para que na vegetação que ficou, possamos ter a certeza de que não existe mais perigo
para a beleza de nossos dias e a tranqüilidade de nosso espírito.(...) E este jardineiro zeloso e
devotado são as nossas Forças Aramadas”5.
Já na vizinha cidade de São João de Meriti, a interferência militar ocorreu de modo
diferente, porém não menos eficaz. Se a primeira cassação do prefeito José Amorim, em 27 de
março de 1968, parecia ser uma manobra do vice-presidente do MDB local, o deputado federal
Ário Teodoro, para conter a ascensão eleitoral desse seu confrade6, a segunda, quase dois anos
depois, trará a marca inconfundível da ditadura. Mesmo tendo Amorim se transferido para a
3 Última Hora, 14/10/1968.4 Jornal do Brasil, 2/2/1969.5 Diário de Notícias, 3/5/1970.6 Jornal do Brasil, 7/4/1968.
108
Arena, a prefeitura e a câmara foram submetidas a um Inquérito Policial Militar instaurado pelas
autoridades da Vila Militar. Ao final do inquérito, os prédios das respectivas instituições foram
ocupados pelo pelotão do Grupo de Escola de Artilharia do Exército, o prefeito e 11 vereadores
tiveram seus mandatos cassados e seus direitos políticos suspensos por 10 anos. Em julho de
1970, era empossado como interventor federal na Prefeitura de São João de Meriti João Batista
Lubanco7.
A terceira pedra no tabuleiro político da Baixada também seria movimentada naquele
denso ano de 1970. Apesar de bem menos expressiva quando comparada às demais cidades da
Baixada, Nilópolis viria a ser a peça chave na nova configuração política. A transformação de um
deputado estadual de Nilópolis, em porta-voz do capitão José Ribamar Zamith, nos comentários
da Vila Militar sobre a política na região, já prenunciava a estratégia que seria adotada. Assim,
quando da cassação do prefeito João Cardoso, em fevereiro daquele ano, não será surpresa
encontrarmos na primeira-secretaria da câmara e como depoente principal contra o prefeito dois
primos-irmãos de Jorge David – respectivamente, Miguel Abraão e Aniz Abraão David8.
Iniciava-se, portanto, a conjunção entre poder militar, poder familiar e contravenção que tornará
Nilópolis o modelo mais acabado de controle político no período militar.
A última, mas não menos importante cidade, Duque de Caxias, não demandou os mesmos
esforços empregados pelos militares nas demais. A Lei 5.449, de 4 de junho de 1968 a
transformaria em Área de Segurança Nacional9, tendo em vista a presença em seu território de
uma rodovia interestadual e uma refinaria de petróleo consideradas estratégicas. Perdendo o
direito de eleger seu prefeito, Caxias terá inicialmente como interventor o general Carlos de
Medeiros10, primeiro na lista dos nomeados que se sucederão até 1985.
7 Jornal do Brasil, 21/1/1970 e 9/7/1970.8 Correio da Manhã. 6/2/19709 BELOCH, 1986: 42.10 O Jornal, 9/11/1972
109
Após esses primeiros anos de ditadura militar, a Baixada que se preparava para as eleições
de 1972 era bem diferente daquela que, em 1968, era responsável pela apreensão reinante na Vila
Militar e que fazia alguns comandantes defenderem uma intervenção branca11. Em Nova Iguaçu,
dois ex-interventores, Joaquim de Freitas e João Lubanco, ganhariam as eleições. Mesmo que o
vice, Lubanco, assumisse a Prefeitura, dois anos depois, após a renúncia de Freitas, tudo
transcorreria na mais perfeita ordem12. Em Nilópolis, Simão Sessim se tornará Prefeito, tendo na
presidência da câmara seu primo Miguel Abraão David13. Enquanto Caxias prosseguia com seus
nomeados, São João de Meriti se destacava pela eleição do único prefeito da oposição na região,
Denoziro Afonso, que, três anos depois, se veria às voltas com o Conselho de Contas dos
Municípios e com a possibilidade de intervenção14. As eleições de 1976 produziriam algumas
alterações no mapa eleitoral, mas confirmavam o situacionismo e a nova estrutura política
dominante na região. O ex-interventor Rui Queirós assume agora a Prefeitura de Nova Iguaçu por
meio do voto. Porém, diferentemente daquele que ajudava as forças armadas a arrancar o “mato
daninho” da Baixada, Queirós, desde o início da sua administração, se vê envolvido em
acusações do seu vice, Rubem Peixoto, quanto à contratação indevida de 4 mil funcionários para
a prefeitura, e o esquema de corrupção montado na Companhia de Desenvolvimento de Nova
Iguaçu (Codeni) pelo deputado federal Darcílio Ayres e seu irmão Fábio Raunheitti15.
Se por um lado, em 1976, os Abraão David amargariam sua primeira grande derrota não
elegendo Nelson Abraão, pela Arena, para prefeito de Nilópolis, por outro lado, do clã emergia
uma nova liderança que passaria a operar a fusão entre a polícia e a contravenção de forma
inusitada. O banqueiro do jogo do bicho Aniz Abraão David, o Anísio, já havia demostrado suas
capacidades empreendedoras. Arrancara a Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis do 2º grupo
11 Jornal do Brasil, 7/4/1968.12 O Globo, 2/2/1975.13 Jornal do Brasil, 9/3/1976.14 O Globo, 16/9/1976.15 O Globo, 28/9/1979.
110
das escolas de samba do Rio, onde apresentava enredos de exaltação à revolução militar e à
Arena, e financiará com milhões de cruzeiros sua consagração na vitória de 1977, no 1º grupo,
com a celebração do jogo do bicho no enredo “Sonhar com Rei dá Leão”, sob a direção do
carnavalesco Joãozinho Trinta. Engajava-se agora sem qualquer comedimento, na política, para
eleger seus primos Simão Sessim e Jorge David, que se tornariam, respectivamente, deputado
federal e estadual, o primeiro com quase 50 mil votos e o segundo tornando-se líder do PDS16 na
assembléia legislativa. Além disso, num gesto de retribuição, apoiou a candidatura vitoriosa do
delegado Péricles Gonçalves, pelo PMDB, que anos antes recebera elogios das associações
comerciais da região pela sua “guerra vencida contra o banditismo”17.
O que se percebe nesses anos de interferência militar na política local é a produção de um
rearranjo dos mecanismos de poder anteriores. Se no passado as máquinas clientelísticas
partidárias estabeleciam um controle direto sobre a Secretaria de Segurança na nomeação dos
delegados e, conseqüentemente, no controle das atividades ilegais (contravenção, lenocínio,
jogatina, violência), agora, a ditadura militar assumiria para si esse controle. Contudo, a
interferência direta na cassação de oposicionistas vai cedendo lugar à mediação construída pela
concessão da ilegalidade e dos mecanismos de repressão aos grupos vinculados ao situacionismo.
Há, portanto, uma retomada, em outras bases, dos mecanismos que no pré-1964 tinham
consagrado figuras como Amaral Peixoto, Getúlio de Moura e Tenório Cavalcanti. A diferença,
porém, estava na administração militarizada desses mecanismos, com destaque, sobretudo, para a
atuação da polícia militar, algo que será melhor analisado no capítulo seguinte.
A drenagem militar, inicialmente incontestável, visando ao saneamento do pântano
político da Baixada sofrerá, contudo, um processo de desfiguração e resistência.
Aproximadamente um ano e meio antes de ser seqüestrado por um grupo paramilitar, que o levou
16 Partido Social Democrático, sigla adotada pela antiga Arena após a reforma partidária de 1979.17 As informações sobre Aniz Abraão David, aqui apresentadas, foram extraídas de Jornal do Brasil, 17/1/1981.
111
para a Vila Militar, onde foi torturado18, o bispo de Nova Iguaçu, D. Adriano Hypólito, declarava
que, salvo exceções, a imagem dos políticos da região era marcada pela mediocridade,
incapacidade, puxa-saquismo e primarismo19. Três anos depois, em outubro de 1978, moradores
de 34 associações de bairros entregavam ao representante do prefeito os memoriais com os vários
problemas dos bairros20. No início do ano seguinte, a Polícia Militar e o DOPS seriam chamadas a
dissolver a manifestação de vereadores, deputados e populares a favor de eleições diretas no
município de Duque de Caxias21. Meses depois, cerca de 2.500 pessoas mobilizadas pela
Federação das Associações de Bairros de Nova Iguaçu, o MAB, fariam uma assembléia exigindo
do prefeito prestação de contas e audiências públicas22. Já em 1981, o MAB organizaria uma
caminhada até a prefeitura para entregar uma carta aberta da população denunciando a situação
de calamidade do serviço público. Porém, naquele ano, a situação era bem diferente. Várias
ameaças de explosão de bombas, casos de espancamento, violações de correspondência e visitas
com interrogatórios estranhos passaram a atingir as principais lideranças tanto dos movimentos
de bairros como da Igreja Católica. Em vários desses casos, um autodenominado Comando Delta
assumia a responsabilidade23.
A intervenção militar no poder local da Baixada chegava, assim, ao seu fim, radicalizando
algumas das suas principais práticas, o terrorismo e a ilegalidade. Voltavam-se contra os setores
sociais que pela primeira vez, ao longo de duas décadas, se insubordinavam frente o aparato de
dominação montado para esfacelar as oposições e instalar seus aliados à frente das máquinas
clientelísticas e dos mecanismos ilegais de obtenção de recursos. Nessa transição, o que estava
18 O Paskin, 14/4 a 20/4/1983. 19 O Pontual, 18/4/1975.20 Jornal do Brasil, 15/10/1978.21
Jornal do Brasil, 30/3/1979. 22 Jornal do Brasil, 16/7/1979.23 NERY, 1981.
112
em jogo para os militares não era tanto a perpetuação da sua tutela mas a continuidade dos
mecanismos que haviam montado.
As eleições de 1982, apesar dos muitos casuísmo implantados na legislação a fim de
garantir a continuidade do situacionismo, acabou se revelando uma grande surpresa. No caso da
Baixada, a municipalização das eleições como efeito do voto vinculado acabou se revelando uma
falácia. Obrigado a votar na mesma legenda partidária para todos os cargos, o eleitor da Baixada
não se definiu a partir do voto para o Executivo local. O que ficou conhecido como “fenômeno
Brizola” realizou, na verdade, uma estadualização das eleições. Dispostos a eleger Leonel Brizola
governador, aproximadamente 50% do eleitorado da Baixada resolveu também votar nos demais
candidatos do Partido Democrático Trabalhista (PDT)24. A “onda brizolista” que iniciava seu
espraiamento na região não encontraria, contudo, uma planície totalmente desimpedida para o seu
desenvolvimento. Se por um lado ela elegeria vereadores e prefeitos totalmente desconhecidos,
por outro se depararia com os limites impostos pelos anos de trabalho político do período militar.
O impacto do brizolismo se fez sentir mais forte nas câmaras municipais. Em Nova
Iguaçu, dos 33 vereadores, 15 seriam do PDT; ficando o PMDB chaguista e o PDS empatados
com 825. Em São João de Meriti, o PDT teria a maioria, com 12 Vereadores num total de 2226. A
mesma maioria pedetista será repetida em Duque de Caxias e Nilópolis27. Já para os cargos
majoritários, a vitória seria relativa. Se com Paulo Leone e Manuel Valência Opasso, o PDT
conquistaria as prefeituras, respectivamente, de Nova Iguaçu e São João de Meriti, o mesmo não
ocorreria nas outras duas. No caso de Nilópolis, Miguel Abraão, pelo PDS, perpetuaria o clã dos
Abraão David, enquanto na ainda Área de Segurança Nacional de Caxias a ditadura articulava,
embora tardiamente, a restruturação política que promovera nos demais municípios. A escolha,
24 O Globo, 21/11/1982.25 O Globo, 13/1/1983.26 Jornal do Brasil, 2/1/1983.27 O Globo, 21/11/1982.
113
em maio de 1982, de Hydekel de Freitas para prefeito biônico conclui o desenlace estratégico
após a era dos coronéis interventores. Genro de Tenório Cavalcante, ele havia iniciado sua vida
política em 1963 pelo extinto Partido Republicano. Após o golpe de 1964, abrigou-se na Arena,
de onde conquistou o prestígio dos militares28. Construía-se, assim, o elo entre o regime e o poder
local, perpetuando, sob novas bases, o velho esquema tenorista.
O voto brizolista elegeu candidatos bastante desconhecidos dos meios de comunicação ou
da vida política. Nomes como “Pedro Tatu” e “Luís da Cadeira de Rodas” juntavam-se aos do
cantor Agnaldo Timóteo ou do cacique Mário Juruna, numa listagem pouco clara quanto às
vinculações político-ideológicas. Para Francisco Amaral, ex-deputado estadual derrotado na
tentativa de se tornar deputado federal pelo PMDB, a vitória dos pedetistas refletia a maior
proximidade que o partido teve dos anseios populares29. Ficava patente o caráter oposicionista.
Tanto o advogado trabalhista Paulo Leone como o funcionário público Manoel Valência se
elegeram com propostas voltadas para as áreas sociais como saúde, educação e saneamento; e a
simples origem social e política de ambos evidenciava o grau da ruptura com a estrutura de poder
até então vigente. Após o hiato autoritário, a população da Baixada retomava sua poderosa
votação no trabalhismo. Brizola simbolizava o resgate de um passado de esperanças e
expectativas em torno de mudanças e reformas sociais.
A grande ausência, porém, ocorria no campo tido como mais à esquerda. O Partido dos
Trabalhadores (PT), com sua militância nos movimentos sociais e relações com setores
progressistas da Igreja Católica voltados para as Comunidades Eclesiais de Base e pastorais
sociais30, só conseguiria eleger um vereador por Nova Iguaçu. Contudo, se no campo eleitoral
esse conjunto de forças apresentou-se tão débil, o mesmo não se pode dizer da mobilização
28 VIEIRA, 1989. 29 O Globo, 21/11/1982.30 Como bispos que se destacavam nesse modelo de igreja, tínhamos D. Adriano Hypólito, da diocese de Nova Iguaçu, e D. Mauro Morelli, da diocese de Duque de Caxias e São João de Meriti, criada em 1981.
114
popular e reivindicatória que passariam a desenvolver. Os anos 80 conhecerão o surgimento de
um poderoso movimento social que, além da rede de comunidades católicas, terá nas federações
de associações de bairros suas faces institucionais mais visíveis. O Movimento de Amigos de
Bairros (MAB), de Nova Iguaçu; o Movimento de União de Bairros (MUB), de Duque de Caxias,
e a Associação de Bairros e Moradores (ABM), de São João de Meriti, passariam a articular um
conjunto crescente de associações de bairros em torno de demandas sociais voltadas, sobretudo,
para a obtenção dos equipamentos públicos urbanos. Dois anos após as eleições, essas três
federações já organizavam uma passeata do Centro do Rio de Janeiro até o palácio Guanabara,
com duas mil pessoas, a fim de cobrar do governador Leonel Brizola tudo o que ele deveria
aplicar, dos recursos enviados pelo governo federal ao estado, no saneamento básico da região31.
Em meados dos anos 80, a federação de Nova Iguaçu agrupava 170 associações, e a de Caxias,
100, revelando uma mobilização popular sem precedente na história da região. Quanto a Igreja
Católica, a diocese de Nova Iguaçu consolidava o seu modelo pastoral com forte envolvimento
nas questões sociais. Já a diocese de Duque de Caxias e São João de Meriti iniciava sua
organização em torno de comunidades e pastorais populares, muito embora tivesse conhecido na
Paróquia do Pilar um importante precedente desse modelo de Igreja32.
As atitudes do brizolismo frente a esse crescente movimento social, no entanto,
revelaram-se dúbias. Ao lado das declarações de Brizola em defesa do povo trabalhador da
região, do reconhecimento do abandono do poder público e do caráter predatório da iniciativa
privada, desenvolvia-se uma prática cooptativa das lideranças locais emergentes, a aliança com
setores por demais ligados aos persistentes modelos de dominação local e as velhas estratégias
eleitoreiras e clientelísticas, que tiveram na distribuição espacial e na obtenção de vagas dos
Cieps o seu ponto culminante. Contudo, apesar dessas contradições, a “onda brizolista” 31 Jornal do Brasil, 20/11/1984. 32 Sobre as transformações pastorais que ocorreram na Paróquia do Pilar, os movimentos sociais e a atuação política de seus membros, ver ALVES, 1991.
115
prosseguia seu caminho na Baixada. Deixando de ser Área de Segurança Nacional, Duque de
Caxias elegeria como prefeito, pelo PDT, Juberlan de Oliveira, em 1985. Essa vitória retardatária
não conseguia, apesar de tudo, ocultar a profunda crise vivenciada pelo partido nas prefeituras
conquistadas anteriormente. Naquele mesmo ano, Leonel Brizola havia decretado intervenção em
São João de Meriti, afastando o prefeito Manoel Valência Opasso, expulso do PDT semanas
antes, acusado de corrupção33. Paulo Leone, por sua vez, enfrentava as mesmas acusações dentro
do partido, numa crise que já mobilizava as associações de moradores em passeatas pelas ruas. A
derrota de Darcy Ribeiro ao governo do estado, em 1986, expressará, portanto, não só os efeitos
do plano cruzado ou da estratégia de campanha de Moreira Franco (PMDB), que escolheu o
iguaçuano Francisco Amaral para ser seu vice. Nela estão também presentes as desilusões das
promessas não cumpridas, as contradições frente às reivindicações populares e o descrédito
provocado pela corrupção dos prefeitos pedetistas. O fracasso das administrações de Juberlan, em
Caxias, e José Cláudio, em São João de Meriti, além da nomeação, em 1988, do vice-governador
Francisco Amaral como interventor em Nova Iguaçu e o conseqüente afastamento de Leone
consumariam a decadência brizolista.
As eleições municipais de 1988 demonstrarão que apesar da crise o PDT ainda conseguia
manter alguns espaços na Baixada. O número de vereadores pedetistas na região diminuiria, mas
a permanência à frente da prefeitura de Nova Iguaçu, com Aluísio Gama, expressava sua
capacidade de resistência. Em Nilópolis, os Abraão David prosseguiam com sua máquina,
elegendo Jorge David prefeito. Em Duque de Caxias, o Hydekel ex-biônico transforma-se em
prefeito eleito pelo voto, confirmando a eficiente estratégia dos militares. Já o Partido dos
Trabalhadores continuava limitado pela ausência de coeficiente eleitoral para eleger seus
33 Jornal do Brasil, 31/8/1985.
116
candidatos. Além do deputado estadual Ernani Coelho, eleito em 1986, só conseguiu ampliar de
um para dois o número de vereadores na Baixada, ambos em Nova Iguaçu.
A eleição de Leonel Brizola mais uma vez ao governo do estado do Rio de Janeiro, em
1990, dará novo fôlego ao PDT na Baixada. A vitória de Altamir Gomes para o Executivo em
Nova Iguaçu e a de Manoel Rosa em Nilópolis exemplificam isso nas eleições de 1992. No caso
de Altamir, apesar do favoritismo de Fábio Raunheitti (PTB), legítimo exemplar dos esquemas da
ditadura militar, e da falta de apoio de Aluísio Gama, afastado do cargo para tratamento médico,
sua vitória apertada estabeleceria a terceira gestão consecutiva do partido na cidade. Já com
Manoel Rosa, o Neca, a surpresa ganhava conotação de ruptura. A derrota de Miguel Abraão
David (PFL), além de inusitada, produzia uma rachadura significativa no bloco do poder local.
Mesmo que na sua origem política Neca tenha vindo do clã dos Abraão David, o fato era que a
criatura superava o criador, fragilizando a dominação estabelecida.
Em Caxias, porém, o esquema que se desdobrava a partir de Hydekel prosseguia.
Deixando a prefeitura para se tornar Senador na vaga de Afonso Arinos, do PFL, terá no seu vice,
José Carlos Lacerda, uma estratégia de ampliação e diversificação do seu poder. Lacerda, que
havia crescido como político de oposição durante o regime militar, estabelecia, assim, alianças
para o seu futuro na Baixada. Ambos apoiariam Moacir do Carmo como candidato a prefeito nas
eleições seguintes, investindo numa relação mais eleitoreira do que política, pois Moacir
resguardava um passado de médico respeitado e ex-prefeito que além dos votos lhe davam
razoável autonomia. Seu opositor, Messias Soares, já não tinha as mesmas credenciais. Tendo
sido eleito deputado federal Constituinte, foi apontado como aquele que mais faltou às sessões.
Questionado, afirmou que preferia ser despachante das bases a ficar de conversa fiada no
plenário34. Seu ingresso no PDT e sua candidatura ocorriam ao mesmo tempo que iniciava um 34
VIEIRA, 1989.
117
processo de esfacelamento no interior do partido. Naquele momento, não só nos municípios da
Baixada, o brizolismo e sua face partidária começavam a se deparar com a formação do que
posteriormente seria conhecido como “banda podre”. No desespero de se agarrar ao poder que lhe
fugia, após tão promissoras experiências, as deficiências éticas e a promiscuidade com a estrutura
anterior de poder começavam a gerar seus resultados. A vitória de Moacir do Carmo mergulhará
o partido numa crise que se prolonga.
Fechando o quadro do poder local na Baixada nesse início da década de 90, temos a
eleição de Adilmar Arcênio dos Santos, o Mica, pelo PMDB, para a prefeitura de São João de
Meriti, interrompendo as chances do brizolismo/PDT se restabelecer na cidade. O início da
década, porém, assistirá a um novo rearranjo da geopolítica na região. As emancipações de três
ex-distritos de Nova Iguaçu – Belford Roxo, Queimados e Japeri – possibilitariam a
redistribuição do poder entre grupos que vinham se consolidando. Os três novos prefeitos não
fugiriam às antigas estruturas de clientelismo da região e nenhum se elegeria pelo PDT.
Recordando, porém, os tempos da implantação de novas empresas políticas na Baixada, tão bem
exemplificados na figura de Tenório Cavalcante, um entre os novos prefeitos eleitos será acusado
de reeditar o recurso à violência como modo de se fazer política. Trata-se de Jorge Júlio Costa
dos Santos, o Joca.
Elegendo-se com 65% dos votos de Belford Roxo, Joca terá pesando sobre si duras
acusações. Para os jornais e o povo não era desconhecida a sua trajetória. Trabalhando como
carroceiro, fez carreira assaltando caminhões de carga e abastecendo com os produtos roubados
de comerciantes locais que o apoiavam em troca de proteção. A prisão em 1989, do grupo de
extermínio formado por “Jorginho da Farmácia”, Cosminho, Djalminha, Saul e Do Boi, acusado
pela chacina do bairro Shangrilá, deixaria evidentes as suas ligações com os esquemas de
execuções. Contudo, jamais foi condenado, resultando infrutíferas as denúncias telefônicas à
118
Central de Denúncias do Departamento Geral de Polícia que confirmavam seu envolvimento.
Durante a campanha, fez funcionar sua máquina de caridade, montada enquanto era vereador, em
Nova Iguaçu. Distribuía bolsas de comida, brinquedos, serviços gratuitos de saúde e ensino e
transformaria o local conhecido como Piscina do Joca no seu grande centro social. Na disputa
eleitoral, seu principal opositor, Laerte Bastos, do PDT, que encabeçava a “Aliança pela vida”,
afirmava receber cartas e telefonemas anônimos com ameaças de morte, tendo kombis
depredadas e assessores agredidos. Por conta das suas prerrogativas de deputado federal, Laerte
conseguiria, junto ao governador, quatro seguranças permanentes ao seu lado. A mesma sorte não
teria o comerciante Gil Marques, dono de um botequim, no bairro de Maringá, que foi
assassinado com vários tiros porque, segundo as apurações do jornalista, se recusou a usar da sua
influência local a favor da candidatura de Joca35. Entre os prefeitos dos recém-emancipados
municípios da Baixada, Joca, porém, não estaria sozinho quanto às acusações de uso da violência.
Carlos Moraes, em Japeri, anos depois, agrediria a socos e coronhadas o vereador Darley
Gonçalves Braga (PL), ameaçando-o de morte caso persistisse nas críticas ao aumento da taxa de
alvará36.
Enquanto as reconfigurações do poder na Baixada prosseguiam, outros mecanismos do
poder local sofriam restrições. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), criada para analisar
acusações feitas contra a Comissão de Orçamento do Congresso, encontraria, em Nova Iguaçu,
uma das figuras chaves do esquema de derrame de subvenções sociais. O deputado federal pelo
PTB Fábio Raunheitti havia obtido US$ 19,5 milhões para 10 entidades ligas da Sociedade de
Ensino Superior de Nova Iguaçu (SESNI), criadas por ele e dirigidas por seus parentes. As
principais irregularidades diziam respeito à ausência de documentos comprobatórios dos gastos e
à não prestação de contas dos resultados das aplicações financeiras realizadas com os recursos37. 35 Sobre Joca, ver: O Globo, 8/7/1992 e Jornal do Brasil, 13/10/1992.36 O Dia (Baixada), 16/7/1995: 3.37 Jornal do Brasil, 5/12/1993.
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Meses depois, o deputado teria o seu mandato parlamentar cassado pela câmara dos deputados,
que tomou a decisão com base nos indícios de enriquecimento ilícito e conduta incompatível com
o decoro parlamentar38.
Raunheitti inaugurava, portanto, uma nova fase dos esquemas de poder na região. Na base
do seu sistema de dominação não estavam as fortunas adquiridas por meios ilegais (contravenção,
jogatina, lenocínio, grilagem de terras) e preservadas como bens pessoais. Nem tampouco, fiava-
se nas relações com setores militares, com aparatos de execuções. Ele operava um esquema que
retirava milhões dos cofres públicos na esfera federal e aplicava-os em instituições de ensino e de
saúde, cujo caráter social era incontestável. Se não fosse a CPI, iniciada quase que por acaso a
partir de acusações criminais que incidiam sobre um economista ligado à Comissão de
Orçamento, Raunheitti permaneceria, insuspeito, a operar esse fabuloso escoadouro privado dos
recursos públicos.
Já em Duque de Caxias, ao invés de inovar, a exemplo de Raunheitti, na forma de
construir sua carreira, José Camilo Zito dos Santos, o Zito, seria identificado por testemunha e
pelo Ministério Público como alguém que preferia investir no velho binômio clientelismo e
violência. Havia estabelecido sua base política no bairro de Dr. Laureano e nos demais bairros
vizinhos. Eleito vereador, passou a compartilhar dos mecanismos do poder quando se tornou
presidente da câmara, durante a administração Moacir do Carmo. Em 1994, elegia-se deputado
estadual, pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Na época, já havia estruturado
um serviço social com 94 empregados para resolver problemas da população, algo significativo,
embora pequeno, se comparado às 60 consultas médicas diárias, à central de ambulâncias com
três veículos e 35 saídas diárias e o curso de datilografia para 190 alunos, existentes em 199539. A
imunidade parlamentar do novo mandato o livraria da terceira prisão relacionada à mesma
38 O Dia (Baixada), 20/4/1994: 3.39 O Dia (Baixada), 16/7/1995: 3.
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acusação. O inquérito que apurava o assassinato do subsecretário de Serviço Público de Caxias,
Ary Vieira Martins, em agosto de 1993, reunia indícios suficientes para que a Justiça solicitasse
sua detenção. A principal testemunha do caso, o guarda municipal Sidnei Tavares, afirmou em
seu depoimento que a causa do crime seria a briga entre Zito e Ary pelo uso das máquinas da
prefeitura. Sidnei Tavares, em outro depoimento, inocentaria Zito, mas, em 1995, voltaria a
confirmar as acusações alegando que a mudança no segundo depoimento ocorrera por causa de
ameaças e promessas de vantagens financeiras feitas por Zito. Dessa última vez, Sidnei, além do
assassinato de Ary, atribuiria a Zito mais duas mortes40.
No início dos anos 90, o final da década brizolista na Baixada era acompanhada pela
rápida estruturação de um outro conjunto de forças, aglutinadas agora pela legenda do PSDB.
Repetindo a história sob a forma de tragédia, a nova legenda passaria a se calcar nas mesmas
práticas que, 60 anos antes, haviam consolidado Tenório Cavalcante e a UDN na região. No caso
do PSDB, suas duas peças chaves, no tabuleiro da Baixada, eram Joca e Zito. Com Joca, apesar
de ele ser do Partido Liberal (PL), a relação era pessoal e direta, formalizando-se na coligação
que tinha em Ricardo Gaspar (PSDB) o vice-prefeito. Com Zito, ela era mais orgânica e
institucional. Após ser eleito presidente do PSDB no dia em que Ary Vieira Martins era
sepultado, todo o poder de articulação lhe foi garantido, sem falar na migração maciça para o seu
partido de membros do PDT, derrotados pela vitória da candidatura de Messias Soares para
prefeito, em 199241. Personalismo, clientelismo e violência ressurgiam, assim, com toda a sua
capacidade de convencimento e imposição. A diferença entre o PSDB e a UDN de Tenório
estava, contudo, no fato de esse último ter sido um partido, embora conservador, de oposição.
Qualquer pessoa que visse as dezenas de outdoors espalhados por Caxias, tendo Fernando
Henrique Cardoso, candidato do PSDB à Presidência da República, Marcello Alencar, candidato
40 O Dia (Baixada), 2/10/1995: 3.41 MOREIRA, 1996: 186.
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a governador, e Zito, a deputado estadual, abraçados, compreenderia essa diferença.
Compreenderia ainda mais a profunda tristeza de Zito ao ser pela segunda vez preso, em
decorrência da acusação de assassinato de Ary Martins, quando esperava no Aeroporto
Internacional do Rio de Janeiro a chegada de Fernando Henrique Cardoso, que por ele seria
conduzido ao palanque do comício a ser realizado em Caxias. O sofrimento, porém, duraria
pouco. Minutos depois, lá estavam, em carne e osso, os três personagens dos outdoors, a falar
para o povo caxiense. Dias depois, seriam transformados em legítimos representantes do povo 42.
Após a primeira metade dos anos 90, conviviam na Baixada diferentes projetos políticos
que se aproximavam tanto pelo clientelismo como pelas formas ilegais de ação: os Abraão David,
com a eficiente fusão da contravenção com o carnaval e com o clientelismo político; o grupo
comandado por Raunheitti, distribuindo vagas em escolas e creches, e oferecendo consultas e
operações médicas gratuitas, tudo financiado pelas irregulares subvenções sociais do Congresso;
Zito e Joca, combinando favor e medo, numa reedição moderna e situacionista do “homem da
capa preta”. O brizolismo sobrevivia, embora muito mais como estratégia eleitoral e política de
um prefeito, o Neca, em Nilópolis, do que como força política de resistência. A grande
fragilidade ficava por conta do Partido dos Trabalhadores, movimentos socais e CEBs, ainda com
seu único vereador na Baixada, por Nova Iguaçu, sem os dois deputados estaduais que não se
reelegeram e sem a mesma força mobilizadora dos anos 80. A crise desse setor, visível no
desgaste produzido pelas disputas internas de poder, tanto nas federações de associações de
bairros como no próprio partido, produziria, por sua vez, a consciência do limite e da fragilidade
frente aos mecanismos de dominação política existentes. Quanto à Igreja Católica, às voltas com
a reação conservadora, visível, sobretudo, no fortalecimento do pentecostalismo do movimento
carismático, restava a ela a reformulação de práticas e de comportamentos políticos. O fim das
42 Ibid., 186-187.
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quase três décadas de presença de D. Adriano Hypólito à frente da diocese e sua substituição por
D. Werner Seibenbrock, revelariam as dimensões mais profundas das mudanças que ocorriam.
O momento de baixa dos setores mais à esquerda no espectro político da Baixada ocorria
ao mesmo tempo em que se consolidava o atual projeto neoliberal, a partir das cinzas do
brizolismo expiatório. As eleições municipais de 1996 aproximavam-se e, com elas, novas
mudanças no cenário político. Definida como a nova fronteira econômica e política do estado do
Rio de Janeiro, a Baixada Fluminense se tornará cada vez mais estratégica para a economia
política do poder. Frente ao esgotamento econômico e social da cidade do Rio de Janeiro, a
região passará a ser tratada como novo pólo de desenvolvimento. Sua violência, agora distante
dos meios de comunicação que, por sua vez, se voltavam para as favelas e Zona Sul cariocas, e
seus quase 3 milhões de consumidores e 2 milhões de eleitores contribuíam bastante para essa
perspectiva. Por trás dessa visão, moviam-se os dois grandes nomes de sustentação do
neoliberalismo no estado, Marcello Alencar (PSDB) e César Maia (PFL), ambos ex-pedetistas.
O assassinato de Joca, em junho de 1995, tenha ele sido crime político, queima de arquivo
ou latrocínio, retardou o projeto de Marcello Alencar, mas não foi suficiente para impedi-lo.
Embora o vice, Ricardo Gaspar, não pudesse assumir a Prefeitura e Mair Rosa, presidente da
câmara empossado, representasse a oposição em Belford Roxo, as articulações prosseguiriam,
seja com o deputado Estadual Renado de Jesus (PSDB), com seus 60 sacolões43 e sua distribuição
diária de bolsas de alimentação, seja, após as eleições, nos acordos com a nova prefeita, Maria
Lúcia Santos (PPB), que se elegeu graças à ajuda do falecido marido. A sua frase de campanha
não precisava de nada mais: “Maria Lúcia é Joca”. Em Duque de Caxias, Zito, beneficiado pelo
projeto “Baixada Viva” e pelas obras de despoluição da baía de Guanabara, ambos do governo
estadual, colocará seu nome, de forma estratégica, como alternativa viável à perpetuação do 43
Mercados que vendem alimentos, sobretudo verduras, frutas e legumes.
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domínio de Hydekel, com quem disputou o segundo turno e venceu. Seus principais aliados
foram o prefeito anterior, Moacir do Carmo, que pôs à sua disposição a máquina da prefeitura, e
Alexandre Cardoso, deputado federal do Partido Socialista Brasileiro, que havia saído candidato
pela aliança das forças de esquerda (PT, PDT, PC do B, PC e PSB), mas que, no segundo turno,
desistindo do projeto de ocupar o espaço mais à esquerda no município e de redimir-se das
acusações de ser um dos donos de clínica de saúde envolvido em denúncias do Conselho
Comunitário de Saúde44, resolveu fazer campanha para Zito, a quem, até o primeiro turno, fizera
duras críticas. Outra importante vitória do projeto neoliberal marcellista ocorreria, igualmente,
em Nova Iguaçu. Seu ex-Secretário Especial para a Baixada Fluminense, Nelson Bornier,
realizaria uma poderosa campanha que, além de contar com uma coligação com mais de dez
partidos, tinha no seu vice, Eduardo Gonçalves (PTB), o elo indispensável com o setor dominante
local. Eduardo é sobrinho de Fábio Raunheitti. Seu principal cabo eleitoral, no entanto, era o
próprio prefeito. Altamir Gomes (PDT), com mais de seis meses de atraso no pagamento dos
funcionários públicos, setores como educação, saúde e coleta de lixo completamente
desmontados e pesadas acusações de corrupção, contribuiu com Bornier ao fornecer o pano de
fundo ideal para os projetos que Marcello prometia para a região caso seu candidato vencesse, o
que ocorreu no primeiro turno. Assim, o PSDB passaria a ter o controle direto dos dois
municípios mais populosos da Baixada, com quase 1 milhão de eleitores; sem contar as relações
com os 200 mil eleitores de Belford Roxo.
A vitória de Azair Ramos para a Prefeitura de Queimados e de Antônio de Carvalho para
a de São João de Meriti significaria, embora em menor dimensão, a vitória da outra face do
neoliberalismo. Eleitos pelo PFL, ambos terão em César Maia o grande referencial de campanha
e de projetos administrativos. Enquanto Queimados prossegue na ampliação do seu distrito
44 Mercados que vendem alimentos, sobretudo verduras, frutas e legumes.
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industrial à base de isenções fiscais, São João de Meriti sonha com o seu “Meriti Cidade”, isto é,
uma reprodução em suas terras das obras de embelezamento e urbanização com as quais Cesar
Maia elegeu seu sucessor na cidade do Rio.
Por ter feito seu sucessor, Neca, em Nilópolis, prorrogou a total exclusão do PDT à frente
das municipalidades da Baixada para outro momento. A surpresa viria, porém, dos quatro
vereadores que o PT faria. Os dois eleitos em Nova Iguaçu, o primeiro em Duque de Caxias e o
primeiro em São João de Meriti expressavam, sobretudo no caso dos dois últimos, o resultado de
políticas acertadas de aliança que superaram o fantasma do nunca alcançado coeficiente eleitoral.
Em Nova Iguaçu, onde lançou candidato próprio à Prefeitura, o PT reproduziu a façanha do PT
carioca. Artur Messias, com seus 17,3% dos votos, chegou perto daquilo que Chico Alencar
conseguiu no Rio, 18,9%45.
Afora os assassinatos, tentativas e ameaças de morte e agressões físicas tradicionalmente
presentes nos processos eleitorais da Baixada46, as eleições de 1996 desenham um importante
quadro para se pensar o futuro da região. Destacando-se Marcello Alencar e seus três aliados,
Zito, Bournier e Maria Lúcia, um poderoso projeto vem recobrir a velha e atualmente tão
desmistificada Baixada Fluminense.
As configurações da história política recente da Baixada demonstram a vinculação da
estrutura do poder local, sobretudo sua face político-partidária, com os diferentes projetos que se
sucederam. O interregno brizolista e pedetista, secionados pelo governo Moreira Franco e sua
ligação com setores do período ditatorial e da fase pré-ditaduta, não conseguiu recuperar a
tradição oposicionista e contestadora do trabalhismo, anteriormente vivenciada na região. O
modelo neoliberal que se anuncia, resgatando a velha forma de relação com o poder local, aponta
para a persistência e eficácia de um projeto político calcado no clientelismo e no terror, 45
Jornal do Brasil, 17/11/1996.46 Sobre os principais casos que ocorreram nas eleições de 1996, ver O Dia, 28/9/1996: 4A.
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transmudados, via processos eleitorais, em identidade popular e reconhecimento democrático.
Esse ponto servirá de fundo na construção do capítulo seguinte, no qual serão demonstradas, de
forma mais detalhada, as ligações entre o poder local e a violência na Baixada.
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