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A QUESTAO DA POPULAÇIlO NO CENTRO HISTORICO DE SALVADOR * No bojo da expansão e correspondente descentraliz~ cão urbana de Salvador, processo este que se inte~ sificou muito a partir da industrialização basica mente centrada no Recôncavo e, de modo especial,na sua Região Metropolitana, algo de próprio aconte ceu exatamente no Centro Histórico da cidade ou p~ 10 menos, na parte mais importante dele. Uma parcela menor das camadas proletárias da pop~ lacão que, na cidade, iam sendo engolidas, arrast~ das e desalojadas no trânsito das instalações do comércio e do capital industrial urbano, ou mesmo oriundas de outras procedências como o interior do estado ou de estados vizinhos - uma parcela de im portância numérica proporcionalmente menor do que a correspondente aos novos e maciços contingentes que se dirigiam às periferias à medida que a cida de e seus arredores iam sendo industrializando ao invés de buscar as periferias urbanas voltou-se ~ xatamente para o núcleo do Centro Histórico, mais precisamente para o conjunto de ruas que formam a * O presente artigo constitui um tópico de um li vro que está sendo preparado pelo autor acerca das transformações históricas ocorridas em Salva dor, encaradas pelos prismas econômico, espacial e cultural. ** Técnico em planejamento ;pesquisador do Mestra- do em Arquitetura e Urbanismo da FAUFBa.

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  • A QUESTAO DA POPULAIlO NO CENTRO

    HISTORICO DE SALVADOR *

    No bojo da expanso e correspondente descentraliz~co urbana de Salvador, processo este que se inte~sificou muito a partir da industrializao basicamente centrada no Recncavo e, de modo especial,nasua Regio Metropolitana, algo de prprio aconteceu exatamente no Centro Histrico da cidade ou p~10 menos, na parte mais importante dele.

    Uma parcela menor das camadas proletrias da pop~laco que, na cidade, iam sendo engolidas, arrast~das e desalojadas no trnsito das instalaes docomrcio e do capital industrial urbano, ou mesmooriundas de outras procedncias como o interior doestado ou de estados vizinhos - uma parcela de importncia numrica proporcionalmente menor do quea correspondente aos novos e macios contingentesque se dirigiam s periferias medida que a cidade e seus arredores iam sendo industrializando aoinvs de buscar as periferias urbanas voltou-se ~xatamente para o ncleo do Centro Histrico, maisprecisamente para o conjunto de ruas que formam a

    * O presente artigo constitui um tpico de um livro que est sendo preparado pelo autor acercadas transformaes histricas ocorridas em Salvador, encaradas pelos prismas econmico, espaciale cultural.

    ** Tcnico em planejamento ;pesquisador do Mestra-do em Arquitetura e Urbanismo da FAUFBa.

  • S, o Terreiro de Jesus, o Maciel, o Pelourinho eo Taboo. vindo estabelecer-se ali as franjas doexrcito industrial de reserva: pequenos e arruinados artifices, prostitutas e parcelas do lumpen,autnomos e biscate~ros, operrios e desempreqados,etc., formaram paulatinamente o "novo" ambiente s~cial do Centro Histrico. Faz-se excesso de ruascornoas que constituem o bairro de Santo Antnio ,essencialmente ocupadas por antigas familias pro -prietrias cujos imveis, em melhor estado de conservao e de uso mais estabilizado, tiveram suasposses retidas no seio das mesmas familias atravsde geraes sucessivas.

    No miolo do velho Centro aconteceram algumas "ino-vaes" de certa forma recentes. Aqui, com efeito,houve e ainda h a destinao de alguns edificiosdo Pelourinho e do Maciel para acomodarem serviosgovernamentais, de outros que passaram a servir ao"fomento do turismo" e de outros mais para fins comerciais, hoteleiros e at bancrios - vale dizer,em funo de um diminuto e questionvel movimentede beneficiamento da rea tomada cornoum todo. Masesse processo no s no seguiu adiante, pe10 menosnos termos de volumes macios e siqnificativos queeram esperados pelas hostes governamentais nos inicios da dcada de 70 (antes da prolongada recessoeconmica) corno, ao que tudo indica, possivelmenteno seguir, se se pode julg-lo tentandoatraves-sar e ultrapassar, pela anlise, a sintomatologiaprpria - no a dos discursos oficiais e dos proj~tos tcnicos igualmente ofic~ais, mas a que dadapor leis e processos estruturais concretos. A cri

  • se econmica de um lado, novas reas vazadas de outro (a custos de implantao menores, em face deuma imensa elasticidade da oferta de terrenos cominfra-estrutura doada pelo Estado, no dorso dasavenidas de vale e de outros "vetores de expanso"da cidade), imensas cargas de custos e gastos dereposio de outro ainda e, o que pior, j sem acorrespondncia de um retorno econmico alturaem horizonte previsivel, foram algumas causas quepraticamente desaceleraram o processo de "moderni-zao" do Centro Histrico, fizeram-lhe e fazem-noainda perecer e parecer, a cada dia e hora quepa~sa sempre mais, como uma cidade recm saida de umvigoroso bombardeio areo - talvez digna de ter como encomenda uma espcie de Plano Marshall " modada casa" - e permitiram, ao fim e ao cabo, a ocupao do locus pelos segmentos populares citadosrnaisatrs.

    Se no somos ingnuos, por compreendermos as incl~naes e determinaes do capital em reproduo, aponto de pensar que ao Estado interessa resgatar amemria tal como ela deve de fato ser considerada- a percepo e a compreenso do trajeto scio-cultural de um povo, atravs de toda forma de regis -tro, como tomada de conscincia para a defesa dque inestimvel no presente e o traado do seufuturo, ao invs do uso meramente mercantil das r~feridas formas de registro - e se, correspondente-mente a isto, soubermos compreender qual a verdadeira inteno, por mais que o discurso e os docu-mentos oficiais o dissimulem, do capital quando seprope a "restaurar" prdios antigos, conseguimos,

  • alis com pouco esforo, perceber que a criao deum rgo restaurador do Centro Histrico - sobretudo tendo acontecido, como foi o caso, na perspect!va de boom degustada pelas lideranas oficiaisba!anas no bojo do expansionismo do "Milagre Brasile!ro" (1968/1973) - no tinha e nem podia ter outropropsito seno restaurar predios histricos paraadapt-los a uma "modernizao" econmica que eraesperada e que no veio. E que no veio, dichosea de paso, ora por conta da larga recesso econmica, ora por conta do esvaziamento estruturalmen-te determinado no Centro em todo o transcurso dosculo XX. Mas, se viesse, o mais certo que osprdios restaurados se destinariam todos a novase crescentes instalaes comerciais, bancrias, hoteleiras, etc. Como a crise e a "emigrao" do comrcio aconteceram, deixando na rasteira a decadncia generalizada do Centro, o rgo restaurador t~ve de arquivar seus p'ropsitos, digamos, estrutu -rais, encobertos pelos discursos, e teve tambm dese defrontar com a dura realidade de se ver sem umvintm para levar a efeito as to propaladas "res-tauraes". Ora, o capital, como sabido, desdemuito j no se d mais ao hbito de alimentar osdevaneios artisticos e culturais de artistas e intelectuais, e por isso, medida que o investimen-to (que o que interessa) se tornou, no Centro, delucratividade no minimo duvidosa, deixou de se interessar pela "memria". O que dita as regras enormas, de comportamento dos agenciadores, especul~dores, tecnocratas e investidores tambm, comosabemos, o sensus cornmunis, todavia esta maneira~undana de pensar e de agir no , ao nivel deles-

  • pelo menos deles! - to tola a ponto de por em risco os interesses em questo. Para os que insistemnum idealismo senil e a toda prova lhes oferecemoso tropeGo de uma questo atual: por que se gastoutanto num projeto mediocre para a Orla Maritima deSalvador e nem um so cruzado no Centro Histricoque, apesar de tudo, acaba de ser eleitoUNESCO "monumento mundial"?

    De fato: desaparecido o leit-motiv econmico, nadaficou, e o discurso, que falava da "importncia darestituio da memria", despiu-se e revelou o seucarter verdadeiramente dissimulador. O Institutodo Patrimnio ArtisticQ e Cultural (IPAC) do Estado no existe para mais nada, esta , como nos dizo bom poeta, a dura "revelao dos nossos dias".Isso acabou dando espao ao prprio IPAC - o quevem sendo reiterado por quase todos os seus suces-sivos dirigentes - para sugerir-se como um "intransigente defensor do direito de permanncia da pop~lao do Centro no local". Outro discurso. Seriaexcelente experincia ver se o discurso seria pelomenos to comodamente mantido se alguma coisa par~cida com um quadro de Dali acontecesse: se um cicIo de expanso econmica (cujas leis so, at omomento, completamente invisiveis) reaparecesse derepente no Centro, se o capital por ele passasse ase interessar, se o Estado, dotando de recursos rapidamente os rgos, desse a infalivel ordem para"restaurar" os prdios a fim de adapt-Ios "s novas condies de progresso do Centro, etc., etc."

    Mas, por mais paradoxal que possa parecer, se alg~ma coisa de valiosa, em termos de acervo arquitet

  • nico e cultural, existe ainda l no Centro, deve-se este "repasse histrico" exata e exclusivamentea essas pobres e exploradas (ao extremo e por todos os lados) populaes que habitam o Centro. N0fra este o quadro e fosse outra a perspectiva econmica de pcupa (necessariamente rentvel) dosprdios daguele sitio e a populao pobre do Centro j teria sido expelida dali, por bem ou ou~trance, vale salientar: ela e o discurso da "suadefesa", do "seu direito", etc. Por no ter acon-tecido nada disso que os segmentos lumpen, osmal remunerados e os proletarizados da rea em g~ral no so expulsos de imediato. Entre a "renovao" sempre desejada e esperada e a expulso necessria e igualmente esperada e desejada ocorre, infelizmente para os proprietrios de prdios e ospotenciais investidores, um enorme obstculo critico e um incalculvel espao de tempo, imbroglio eintervalo que os deixa irritadios e ansiosos eque so, de resto, en passant, muito bem aproveitados via elevados e densos aluguis (pagos por aquelas pop~laes que habitam os prdios), como alte~nativa de uso econmico de pardieiros at que al -ternativas melhores - como o turismo e -uma revita-lizao completa sempre e reiteradamente esperada-venham a acontecer. Mas aqui a perspectiva no a-ponta nenhum indicio promissor, e nem adianta qu~rer "forar a barra" e pretender romper com o compromisso dialtico que existe entre as leis econ-micas e sociais, que possue certa esfera de maturao, e a capacidade de interveno consciente e o~ganizada dos homens que, ao fim e ao cabo, modifi-cam as referidas leis. Neste trnsito dialtico

  • nao existe lugar para o livre arbtrio tomista, embora exista para um outro tipo de ao. Com efei-to, se a recesso econmica do pais for dobrada, seo Polo petroquimico for ampliado e se a cidad~ sobtais impulsos, ampliar o seu crescimento e a cor-respondente descentralizao, nada indica que oprocesso volte a percorrer o Centro, mas tudo sug~re que a expanso urbana de Salvador siga as trilhas j fincadas das avenidas de vale, da orla, dailha de Itaparica, etc. - o que s tende a isolarmais ainda o Centro Histrico de Salvador.

    Ora, enquanto o "inquilino" tem de, necessariamen-te, permanecer, alguma coisa tem de ser feita comele, at mesmo para assegurar a sua permanncia l~crativa e sem qualquer retorno, por parte dos pr~prietrios, em termos de reposio dos prdios: emprimeiro lugar cumpre us-Io economicamente, e emsegundo o rgo especializado (ou os rgos que sejulgam especializados), cobrindo este espao deuma prtica "humanista" ao extremo, deve propor epraticar uma poltica paternalista com ele - o quenao evita que esse mesmo habitante receba, no outro lado das espduas, a sempre presente e duravergasta dos que ali esto "para manter a ordem eos (bons) costumes". O assistencialismo tem duploe eficaz endereo: mantem, enquanto necessrio, apopulao pagando aluguis e, ao mesmo tempo, de-sarma-a ideolgica e organizativamente para ofere-cer resistncia quando tiver de ceder o lugar. Anica coisa que parece dispor-se em favor da perm~nncia da populao a impossibilidade de se vislumbrar uma saida econmica global para o Centro.

  • Quanto ao paternalismo, ele se expressa de diver-sas maneiras. O IPAC, para realizar esta forma de"atuao comunitria", chegou a criar, ele pro-prio, roubando a iniciativa ou o espao de outrosrgos governamentais, escolas, creches, posto desade, etc. Por outro lado tem cobrado, no querespeita aos seus prdios, aluguis irrisrios, semesquecer que, no raras vezes, tem coberto as des-pesas dos seus inquilinos com gua, luz, etc. Parase ter uma idia da dimenso desta politica, atcerca de dois anos atrs mais de 70% do oramentodo rgo, proveniente do tesouro estadual, eramdestinados cobertura de gastos com pessoal, material de consumo e permanente das escolas, creches,posto de sade, etc., recursos esses que eram desviados, obviamente, de uma destinao mais ineren-te s suas finalidades: o restauro. Mas, mesmo r~correndo descentralizao destes servios - comoparece estar acontecendo agora - , o paternalismopode persistir sob a forma, sempre reproduzida, decooptao da populao local, tentada, repetidasvezes, atravs do atrelamento da associao de mo-radores. Houve um diretor do rgo que todas steras-feiras, numa hora determinada, ia "despachar" com a diretoria da associao, esquecendo-seque entre um rgo do Estado e uma entidade da sociedade no existe lugar para esse tipo de espedi-ente administrativo direto e estritamente oficial.

    Esses prdios esto fisicamente to depreciados(muitos deles em rulnas) que o valor de um imveldesses desproporcionalmente menor do que o do so10 sobre o qual se assenta. Mas como j no exis-

  • tem motivos econmicos mais decisivos para evitaro arruinamento dos edifcios, ou seja, para preseEv-los, a soluo encontrada pelos proprietriospara o oportuno aproveitamento econmico deles (eaqui a ao estatal dos rgos de preservao sopode refletir este rol de interesses) foi e a recorrncia e o uso potenciado do aluguel dos mesmosnessas mesmas condies de depreciao e habitali-dade (??) e, antes que nos esqueamos, da mais pl~na promiscuidade. A soluo prtica encontrada a ocupao de cada prdio por at dezenas de fam!lias ou pessoas amontoadas umas sobre as outras,c~jos aluguis, somados, oferecem rendimento muitoalm das condies de habitabilidade (o termo sotem sentido vocabular!) oferecidas ou, para sermosmais claros, dos custos de reposio que na verda-de no existem. so prdios da Santa Casa de Misericrdia, de algumas ordena da Igreja e de algumasfamlias abastadas, tradicionais e, por certo,cri~ts, da velha Salvador, que so mantidos dessa forma, e aqui se aplica, mais do que nunca ou do queem outro lugar qualquer, o princpio: abusus nontollit usum.

    Estas so a razo e a ao principais da tolern -cia, com respeito a essas populaes, no miolo doCentro Histrico nas condies de desenvolvimentoeconmico e urbano em todas as conjunturas recen-tes, atuais e imediatamente perceptveis frente,no s a olho n, como pensamos ter demonstrado.

  • Histrico' de Salvador?" in DEBATES/CENPES (Ce!!tro de projetos e Estudos), Salvador, 1985.

    o desenvolvimento urbano industrial de Salvadorcr!ou, na sua RM, um exrcito industrial de reserva ,do qual uma pequena parcela foi alojar-se, ao cabode dcadas, no centro histrico. So biscateiros,prostitutas, serni-empregados, etc. Esta parcelado EIR habita os casares que constituem o acervoarquitetnico do centro, pagando uma massa de alu-guis muito grande que mantm, sem retorno (custosde reposio), os prdios, e isto porque o esvaziamento estrutural e conjuntural (crise) do centrono oferece aos proprietrios alternativa de usomais rentvel dos prdios. Esta necessidade induzo rgo restaurador a uma poltica assistencialis-ta, pelo menos at que se vislumbre um padro "mo-derno" de ocupao que tenderia a desalojar a referida populao do centro histrico.