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POLlTIZAÇÃO E UTOPIA NO DISCURSO SOBRE O URBANO o artigo busca caracterizar os tra- ços principais do discurso cientffico sobre o espaço urbano, tanto o in- fluenciado pelo positivismo quanto o que se vinculou à dialética. Este dis- curso acha-se, hoje, dissolvido entre diversas disciplinas, incapaz de lim- par seu entulho conceitual e criar novas categorias adequadas, quer para a realidade atual, quer para a realidade histórica ou para sua ex- tensão em direção ao futuro, envol- vendo utopias que reunifiquem cida- de e polrtica, polis e civitas, praça e povo. o discurso científico sobre o espaço urbano, dissolvido en- tre diversas disciplinas e influenciado pelo positivismo, não foi capaz de gerar conceitos e categorias adequadas à sua análise, o que não significa que não tenha aprofundado o conhecimento do seu objeto. Para que pudesse gerar essas categorias, seria preciso que desvendasse o caráter de exploração que as classes dominantes exercem sobre a sociedade como um todo e permitisse a trans- formação do trabalhador em cidadão, com direito e poder de mo- dificar a realidade polftica e social. Isto significaria, necessaria- mente, defender o suiddio ideológico destas mesmas classes, in- teressadas em perpetuar seu modo de organizar a sociedade e, portanto, desinteressadas em defender políticas enquanto ex- pressões da vontade coletiva, pois estas expressariam também a vontade das classes dominadas ou subalternas. 1 • Arquiteto. Professor da Faculdade de Arquitetura da UFBa. FIG.1 (pág. ao lado): Mapa dos arredores da salina deChaux,de C.N. Ledoux. em 1775 Biblioteca Naclonal de Paris

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  • POLlTIZAO E UTOPIA NO DISCURSOSOBRE O URBANO

    o artigo busca caracterizar os tra-os principais do discurso cientfficosobre o espao urbano, tanto o in-fluenciado pelo positivismo quanto oque se vinculou dialtica. Este dis-curso acha-se, hoje, dissolvido entrediversas disciplinas, incapaz de lim-par seu entulho conceitual e criarnovas categorias adequadas, querpara a realidade atual, quer para arealidade histrica ou para sua ex-tenso em direo ao futuro, envol-vendo utopias que reunifiquem cida-de e polrtica, polis e civitas, praa epovo.

    o discurso cientfico sobre o espao urbano, dissolvido en-tre diversas disciplinas e influenciado pelo positivismo, no foicapaz de gerar conceitos e categorias adequadas sua anlise,o que no significa que no tenha aprofundado o conhecimentodo seu objeto.

    Para que pudesse gerar essas categorias, seria preciso quedesvendasse o carter de explorao que as classes dominantesexercem sobre a sociedade como um todo e permitisse a trans-formao do trabalhador em cidado, com direito e poder de mo-dificar a realidade polftica e social. Isto significaria, necessaria-mente, defender o suiddio ideolgico destas mesmas classes, in-teressadas em perpetuar seu modo de organizar a sociedade e,portanto, desinteressadas em defender polticas enquanto ex-presses da vontade coletiva, pois estas expressariam tambm avontade das classes dominadas ou subalternas. 1

    Arquiteto. Professor da Faculdade de Arquitetura da UFBa.

    FIG.1 (pg. ao lado): Mapa dos arredores da salina deChaux,de C.N.Ledoux. em 1775Biblioteca Naclonal de Paris

  • Por estas razes, o discurso sbre o espao construdo res-tringiu-se ao formalismo esttico e no foi capaz de superar aruptura entre o cenrio ffsico e os processos sociais. O discursogeogrfico, por sua vez, mascarou estratgias polticas para odomnio de territrios e teve o papel de justificar a expanso ca-pitalista. O discurso econmico associado a este ltimo centrali-zou-se em teorias de localizao que facilitaram a organizaodo capital, mas pouca ou nenhuma preocupao tiveram pelasquestes referentes reproduo da fora de trabalho, tentandoapenas incorporar variveis espaciais para otimizao dos lucrosda economia privada. E o discurso sociolgico, quer tratando acidade como varivel dependente, quer como independente, ten-tou misturar as classes sociais como se fossem esquadres uni-formes, ocultando, desta forma, as contradi~s que caracterizamos modos de urbanizao. Especificamente, o discurso sociolgi-co da escola de Chicago deu poderes cidade de induzir modifi-caes no comportamento e cultura de seus cidados, fomecen-do argumentos ao discurso antropolgico da modernidade paraque a transformasse, atravs do estudo de gheffos e redes, emum mosaico de territrios isolados entre si.

    A renovao destes discursos, com a aplicao do mtododialtico, ensaiou a superao destes desvios. O discurso in-fluenciado pela dialtica sobre o urbano no , entretanto, umapanacia e gerou, tambm, algumas aberraes. O mtodo dial-tico, tanto no plano histrico, quanto no plano lgico, no foi ca-paz de reunificar epistemologicamente as diversas disciplinas,cujas pesquisas se separam formalmente, nem de limpar o en-tulho conceitual que predomina nas formulaes tericas sbre acidade das contradies entre o capital e o trabalho, a cidade dosconflitos entre a submisso e a revolta em cada processo social,a cidade dos saberes e da ignorncia, a cidade da memria e dofuturo, a cidade que se contrape natureza e cria sua prpriaimagem ambiental, alienada e orientada para destruio existen-cial.

    As novas propostas de discursos sobre o espao construdo,por exemplo, que tentam ralacionar a mortologia dos espaosconstudos com a sua produo, com os processos sociais e pol-ticos ou com o comportamento humano, esbarram ora numa pos-tura de crtica pela crtica, ora numa postura de aceitao e re-forma do sfafus quo.

    Uma das novas proposta do discurso geogrfico, em suatentativa de se colar economia poltica, acentuando a questo

  • da posse e propriedade do solo, conseguiu intruduZlr a histriasem, no entanto, abrir caminhos para o futuro. Sua principal con-cluso foi de que em todas as formaes onde predomina a pro-priedade fundiria, as relaes do homem com a natureza aindadeveriam ter carter prioritrio na luta poltica, enquanto naquelasonde o capital j domina, prevaleceria a luta pela transformaodo elemento social, produzido ao longo da histria, recolocando aformao urbana no plano econmico-social.

    Proposta interessante do discurso sociolgico, por sua vez, a que tenta colocar o centro do estudo sociolgico sobre a ci-dade na contradio entre submisso e rebeldia em cada proces-so social urbano especffico.

    As tendncias tericas destas propostas passam, portanto,pela investigao de uma srie de aspectos caractersticos da ci-dade modema, quer em pases de economia capitalista avanadaou dependente, tais como: produo e consumo do espao urba-no, em geral; domnio do funcionamento do capital na produode bens e servios urbanos; propriedade, renda do solo e merca-do imobilirio; relaes econmicas entre este setor e o Estado;relaes entre custos da terra e custos de urbanizao; polticasurbanas relacionadas com o carter de classe do Estado; rela-es sociais e de poder, movimentos sociais urbanos, etc.

    Qualquer que seja o tema abordado, estas propostas de-vem passar tambm pela limpeza do entulho conceitual e pelodesnudamento epistemolgico e metodolgico oriundo do positi-vismo, pari passu criao de categorias adequadas para enfren-tar esta tarefa que, no momento, so incapazes de levar adiante.

    o mtodo dialtico, no plano histrico, tambm no foi bemaplicado para explicar, por exemplo, a questo urbana da realida-de brasileira, a comear pelo seu contexto. Neste sentido, sobsua inspirao, deu origem a vertentes as mais' dspares, desde aque propugna a predominncia de uma formao econmico-so-cial determinada pelo modo feudal ou semifeudal de produoat a que defende o modo de produo capitalista com suasmais diversas variantes.

    Mesmo sem entrar no mrito, evidente que a opo poresta ou aquela formao decididamente influencia a anlise domodo de urbanizao, quer no que diz respeito, por exemplo,

  • FIG.2: Uma -aldeia de harmonia e cooperao, esboo no relat6rio deRobert Owen, de 1817

    FIG. 3: Planta e corte esquemtico do Falanstrio de Charles Fourier,extrafda da descrio de 1841

    RUA. Salvador, 2(2): 9-18,1989

  • sua distribuio no territrio, quer no que diz respeito a aspectosintra-urbanos.

    Mais grave, no entanto, so os aspectos propositivos e es-catolgicos do discurso sobre o urbano. Quer utilizando o instru-mental do positivismo, quer utilizando o instrumental da dialtica,longe est de sugerir, com suficiente clareza, uma realidade ur-bana que, em futuro prximo, permita a unidade entre o cidadoe a cidade, entre a palis e a urbis, a polftica e seu lcus original:a praa do povo. Entendemos que esta unidade foi rompida, natradio ocidental, desde o perodo da Cidade-estado, quando ci-vitas e palis expressavam um modo de habitar e uma forma departicipar, unindo, no bero etimolgico, cidade e poltica. Nademocracia grega, a polftica era expresso de uma vontade cole-tiva que se fundamentava na filosofia, e, na cidade grega, a filo-sofia e a polftica foram desenvolvidas em plena praa pblica.Tal situao foi destruda com o modo feudal de produo, mo-mento em que as cidades-burgo passaram a gestar territorial-mente os Estados-nao, e a polftica passou a ser a expressodos interesses de classe, principalmente das classes dominantes.

    Defendemos, assim, a tese de que uma restaurao da pol-tica, enquanto vontade poHtica, passa pelareunificao do cida-do com a sua cidade, tomando-se, portanto, necessrio estendero discurso cientfico do urbano para o futuro, o que significa, semdvida alguma, estender este discurso sobre a utopia.

    Em sua origem, utopia significava um no-lugar e simulta-neamente um lugar: um universo fisicamente fechado, uma ilha,uma cidade, o lugar do nada, a semente da esperana, o lcusdo ideal abstrato, o modelo fsico do sonho e da imaginao, quetraduzia o querer do homem, o seu desejo por uma verdadeiraidentidade sem os laos da luta pela sobrevivncia sob um regi-me de explorao, o reino de sua liberdade, a manso final desua plenitude.

    No concordamos com os argumentos frios de que a con-tradio entre a poesia e a realidade, entre o mundo cotidiano docaos e o mundo remoto da liberdade no possam ser discutidos luz de conceitos e categorias cientficas, extradas do real. Poresta razo, concordamos com Bloch que tenta reintroduzir a uto-pia no centro do pensamento marxista 2. Como diz Cioran: liA so-ciedade que no capaz de prorluzir uma utopia para o mundo, ede sacrificar-se por ela, est ameaaria de escl""Jose e de ru(na"3.E, at prova em contrrio, a escatologia marxista, em suas tenta-

  • tivas de modificar a realidade histrica ao sculo XX, no deixoude ser menos utpica que o universo fabuloso de Charles Fourier.

    o discurso sobre a utopia sempre foi, sem dvida, um pro-longamento fascinante do discurso sobre o urbano, desde Plato,voltado para a formao de seres humanos virtuosos, passandopelos discursos dos primeiros crfticos do capitalismo e dos pri-meiros socialistas, at o discurso ingnuo da fico cientrfica eda nova ecologia. O socilogo George Duveau v na utopia "0cPntro rle torla teoria social, mesmo e mais ob;etivamente, desdeo momento que esta se apresenta como especulao sobre a ci-rlade do futuro" 4.

    H quem ache que o utopismo desapareceu em fins do s-culo XIX, esmagado exatamente pelo socialismo cientffico. No essa nossa opinio. As correntes enterradas do utopismo fo-ram: o utopismo retrgrado e religioso (Campanella, Rousseau,La Bretonne), o utopismo romntico (Saint-Simon, Owen e Fou-rier), o utopismo anrquico (Deschamps, Godwin), o utopismo li-terrio (Bacon, Rabelais, Swift, Voltaire, etc.), o utopismo da fic-o cientfica (Isamov, Ursula Le Guin, Robert Heinlein, FrankHerbert, etc.). Mas jamais foi enterrada, entretanto, a discussocentral das formas utpicas verdadeiras, ou seja, o homem e oseu trabalho. No utopismo permanece um valor tico, uma "in-veno quase cotidiana da felicidade" 5, permanece o ideal dasociedade libertria, o ideal comunitrio, o desejo de um homemnovo. No -toa que, embora fugindo ao desenho de uma so-ciedade perfeita, os autores marxistas referem-se extino dosmales coletivos e construo do homem sadio, alegre, tranqiloe honesto.

    Adolfo Snchez Vsquez, filsofo espanhol, traa as se-guintes teses no-utpicas sobre a utopia 6:

    a) A utopia uma representao imaginria de uma sociedadefutura.b) A utopia no somente a antecipao imaginria de uma so-ciedade futura, mas de uma sociedade desejada que, alm disso,se deseja realizar.c) O desejo de realizao no garante a realizao em si. A uto-pia uma idia no realizada, realizvel aos olhos do utopista,mas definitivamente irrealizvel.d) A utopia uma construo imaginria da sociedade futura,mas tem suas rafzes no presente.e) O utopismo um produto histrico necessrio.

  • f) A utopia no apenas tem suas raizes no presente. mas aindaconstitui, como construo imaginria, uma relao particular-mente ilusria com ele.g) Como forma de ideologia, sem deixar de ser a antecipaoimaginativa de um mundo irreal, a utopia tem uma existnciareal, efetiva; a utopia , simultaneamente, topia.h) A utopia, como idia no realizada e como prtica utpica,implica certa destruio da unidade da teoria e da prxis.i) A utopia revela um vazio que a cincia no pode preenchr.j) A utopia incompatvel com a conscincia do utopismo; a pri-meira condio para superar uma atividade terica e prtica ut-pica tomar conscincia de seu utopismo.I) Os utopistas limitaram-se a imaginar o mundo futuro de mododistinto; trata-se de constru-Ia.

    Snchez Vsquez, no entanto, critica o utopismo como -;'ex-presso de perda de contato com a realidade, sintoma de carn-cia de conhecimento do real, alm, tambm, de indicao deuma impossibilidade do que hoie no podemos fundar, nem rea-lizar"7.

    mua que sejamos oongaaos a concordar, em parte, comtais afirmaes, no podemos esquecer, tambm, que o contatoexcessivo com a realidade, o conhecimento do real no limiar en-tre o subjetivo e o objetivo ou a indicao de possibilidades con-cretas para a transformao do mundo nem sempre esto dispo-

  • d a 4FIG.5: Corte do corpo central do FamnJstrto de Guisa, Inspirado no Falanstrto de Fourfer, publicado por GodIn em 1870

    A, porao; B, ptlo; c, clarab6la; o, habitaes; E, guas-furtadas; a, funda&s; b-g, porlles; h-I, condutores de ventllaAo; k, galerias;1, portas das habltaOes; m, calhas de guas pluviais; n, torres de ventllaAo; 0-5, dlsb1bulllo Intertor das habltaOes; t, galerias das guas-furtadas

  • nveis enquanto um manual de receitas dogmticas para as ago-nias sociais, e nem sempre foram guia de todas as revoluesmodernas.

    por isso que os utopistas sempre renascem, como Prome-teu, em pocas de crise. Surgiram exatamente na crise da cidadegrega, na crise do Renascimento, na crise do pensamento euro-peu do sculo passado, na crise mais recente do capitalismo con-temporneo. E todos eles indicaram a presena de novas forassociais. Para no ir muito longe, por exemplo, os utopistas do s-culo passado indicaram exatamente a necessidade de participa-o de novas camadas sociais e particularmente da classe oper-ria na construo de uma nova sociedade. Este ressurgimentopermanente da utopia indica, sem dvida, a necessidade dareflexo da vida como ela e como deveria ser, uma bus-ca contrnua sobre novas formas de vida e novas formas para asrelaes entre os homens e a natureza Neste sentido, o utopis-mo uma luta eterna do homem contra sua prpria alienao,isolamento, desespero e pessimismo.

    A utopia, assim, abarca todos os espaos, tempos e ho-mens, dependendo fundamentalmente de sua ao para a suaconcretude jamais alcanvel. Nesse caso, ela deixa de ser fan-tasia para se tomar meta estratgica, recolocando a esperanana luta pela liberdade e desmistificando o pensamento ideolgicoenquanto pensamento Iibertrio em si prprio.

    Imaginemos, assim, "0 caminho do socialismo indo da cin-cia utopia e no apenas da utopia cincia"8, o que no signi-fica o abandono e sim o reforo prtica cotidiana da luta poruma nova sociedade, por uma nova cidade, a partir de um projetopolftico onde no haja a explorao do homem pelo homem, on-de no haja pobreza de corpo e espirito, onde no se configure aalienao e o pessimismo, onde o medo e a violncia no trans-formem o homem em inimigo de si prprio e da terra que o abri-ga, onde o sonho e a felicidade sejam as palavras-de-ordem. Porconseguinte, a utopia morreu? Viva a utopia!

    (1) As concluses sobre o discurso cientlfico de diferentes discipli-nas foram extrardas da avanao bibliogrfica de minha dissertao demestrado, apresentada ao Mestrado em Cincias Sociais da UFBa, em1988, sob o tftulo Conceio e Pilar, freguesias seculares do centro eco-rJmicoe do pOrto de Salvador no sculo XIX.

  • FIG.6: Alojamento para guardas agrf'colas, de C.N. Ledoux, em 1806BIbIIo19ca Nacional de Paris

    (2) O tema da utopia desenvolvidO por Emest Bloch em "Prindpiode esperana" e retomado no texto sobre "O espfrito da utopia" (Geist derUtopie), sem traduo em portugus.

    (3) Cioran, E.M., Histoire et utopie, apud Szacki. Jerzi. As utopiasou a felicidade imaginada. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1968. Epfgrafe.

    (4) Duveau, George apud Petitfils, Jean-Christian. Os Socialismosutpicos. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.

    (5) Cesar Waldo. Resenha crftica sobre socialismo ut6picos. En-contros com a Civifizao Brasifeira; Rio de Janeiro, (5): 284, novo 1978.Esta resenha de Waldo Cesar, soci610go e jornalista, uma das princi-pais fontes deste artigo, no que se refere utopia.

    (6) Snchez Vsquez, Adolfo. Do sociali~mo cientffico ao socialis-mo ut6pico. Encontros com a Civifizao Brasileiia. Rio de Janeiro,(14):95-114,ago.1979.

    (7) Ibid., p. 135.(8) Bloch apud Petitfils, op. cit., p. 151.