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RESUMO Procuratratara questãoda rremona do pcnto de vista cntolâgicoenquanto elem::mtodereconhecinentoe afinna- ção do ser humano por si préprio.Exa- mina sucintamenteo projeto ll'Oderno enquantotentativadeliberadade rup- tura cem o passadoe suas conseqUen- cias. O tema da memória é subjacente à própria condição humana, à medida que suas raizes se fundam nas necessidades de autoconservação e no medo. O im- pulso à autoconservação nasce do medo mítico da perda do próprio eu, medo da morte e da destrui- çao. Ser nascido para a morte, não dotado de onipresen- ça e onisciência, o homem se afirma e se reconhece como tal, enquanto conserva a sua memória e, nela, a possibilidade de manter e transmitir a tradição, transcendendo a morte através da cultura. Primeira das ciências humanas, tão velha quanto a própria memória humana, no dizer de Foucault, a HistÓria exerceu na cultura ocidental, desde a Grecia Anti- ga, a função de mantenedora da memória e do mito, transmissora da palavra e do exemplo, veículo da * Arquiteta, Professora da Faculdade de Arquitetu- ra da UFBa. RUA,Salvador,v.2,n.3,p.65-74,l989

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  • RESUMO

    Procuratratar a questo da rremonado pcnto de vista cntolgicoenquantoelem::mtode reconhecinentoe afinna-o do ser humano por si prprio.Exa-mina sucintamenteo projeto ll'Odernoenquantotentativadeliberadade rup-tura cem o passadoe suas conseqUen-cias.

    O tema da memria subjacente prpria condiohumana, medida que suas raizes se fundam nasnecessidades de autoconservao e no medo. O im-pulso autoconservao nasce do medo mtico daperda do prprio eu, medo da morte e da destrui-ao.

    Ser nascido para a morte, no dotado de onipresen-a e oniscincia, o homem se afirma e se reconhececomo tal, enquanto conserva a sua memria e, nela,a possibilidade de manter e transmitir a tradio,transcendendo a morte atravs da cultura. Primeiradas cincias humanas, to velha quanto a prpriamemria humana, no dizer de Foucault, a Histriaexerceu na cultura ocidental, desde a Grecia Anti-ga, a funo de mantenedora da memria e do mito,transmissora da palavra e do exemplo, veculo da

    * Arquiteta, Professora da Faculdade de Arquitetu-ra da UFBa.

    RUA,Salvador,v.2,n.3,p.65-74,l989

  • tradio. Essa Histria, at ento unilinear, ditapr-moderna, caracteriza-se por uma concepo detempo eontinuum. O tempo dos homens era reguladopelo devir do mundo, visto atravs da cronologiahumanal.

    Tal era a postura, -por exemplo, dos tratadistas: adescrio e o levantamento das formas antigas, aotempo que permitiam uma certa continuidade formal,deixavam margem para pequenas acomodaes "quandoa vida J.>e. t01Lnava p1L,ione.ta de. n01Lma.6 p1Le.e-aJ.>,,2.

    Esse fluir contnuo, entretanto, rompido com oIluminismo, quando a razo, colocada a servio doconhecimento e como antdoto do medo, propoe-se aliberar os homens da ignorncia, das superstiese do obscurantismo. A cincia tomada como para-digma do saber.

    A Revoluo Francesa d-nos o modelo e o exemplomais dramtico de uma nova concepo da Histria.Como credo religioso, considera o homem de formaabstrata para alm das sociedades particulares. AHistria passa a ser vista como a histria do pro-gresso da razo, irresistvel e necessrio em di-reo s luzes.

    Liga-se perspectiva iluminista a idia de que aignorncia e as supersties sao mantidas pelo po-der de forma difusa entre os oprimidos, no sentidode dominar suas conscincias. A emancipao inte-lectual torna-se emancipao poltica e a memria,ento associada ao obscurantismo, substituda

  • pelo esquecimento. Aquilo que aniquilado sem re-torno deixa o campo livre para um comeo. A cons-cincia revoltada quer comear por um ato rpidoe decisivo de destruio a partir do qual resplan-decer um novo dia3 ~ o instante zero de uma novaera, a Era Moderna.

    Na gnese do projeto moderno est a renegaao dopassado, a ordem racional da cultura, a idia deum progresso ilimitado, fundado no desenvolvimentocumulativo da indstria, da tecnologia, enfim, doconhecimento cientfico como veculo capaz de con-duzir a humanidade liberdade e paz social.

    Paradoxalmente, para mencionar apenas dois dosinmeros aspectos contraditrios da modernidade,falar em conhecimento cientfico tem significadopara o homem moderno falar tambm em violncia,destruio e morte. Visceralmente vinculado sex~gencias do processo blico, o saber cientfico o sustentculo da demanda de guerra.

    Por outro lado, esse saber cientifico, cada vezmais especializado e analtico, para se auto-rea-lizar necessita da fragmentao do seu objeto deestudo, que passa a ser substitudo por um modeloabstrato. Vale dizer, para produzir conhecimento,para alcanar a verdade cientfica, a cincia mo-derna "mata" o prprio objeto do conhecimento, e arazo, tomada como caminho nico e luminoso, capazde conduzir a Eros, mostra ser tambm a via queleva a Thanatos.

    Acuado, preso nas prprias cadeias por eleRUA,Salvador,v.2,n.3,p.65-74,1989

  • das, esse homem tenta retomar as questes metafi-sicas, o questionamento do sentido de ser, reemer-gindo ento o tema da memria enquanto impulso autoconservao. Para o homem ps-moderno o con-ceito de memria se confunde com o conceito mesmode imaginrio, entendido no como fantasia ou ne-gao da dimenso material da histria, mas en-quanto conjunto de imagens que cada sociedade acio-

    - 4na nas suas representaoes . Para Walter Benjamin,Histria no sentido estrito o esforo de recupe-raao da experincia do passado contra um mundoque a reduz a um presente sem passado. Passado ri-tualizado no presenteS

    o momento histrico em que surge onrio tambm o momento em que areconhece o prprio imaginrio. Ouacorda de um sonho, mas acorda-separa citar Freud, um .dos monstros

    tema do imagi-histor10graf1aseja, no se

    para um sonho,da modernidade.

    ~ interessante notar que a cultura ilum1nista;fun-damentada na razo e na ruptura com o passado, amesma a lanar as bases da preservao dos monu-mentos histricos. Passado e presente desarticula-dos passam a fazer parte de mundos totalmente dis-tintos. A obra do passado passa a ser vista comofato concludo, limitado num determinado tempo elugar, no mais capaz de sofrer ulteriores redef1-nies figurativas.

    Nascem na Frana p6s-revolucion!ria os primeirosinventrios do patrimnio monumental, as primeirastentativas de teorizao no campo do restauro, asprimeiras leis relativas a preservao. A mesmaRUA,Salvador,v.2,n.3,p.6S-74,1989

  • cultura que se propoe a esquecer o passado cons-cientemente toma a si a tarefa de preservar osedif!cios que de alguma forma representam essepassad06 A proposio paradoxal somente em apa-rncia, se se leva em conta a conceituao de me-mria, por exemplo, em Proust.

    Na sua obra fundamental, Em bu~~a do tempo pe~d~o,obxa de toda uma vida segundo ele prprio, Prousttenta salvar a vida e as sensaes da voracidadedo tempo. Para alcanar o seu objetivo ele seapia na memria, no naquela que coleciona maisdo que unifica e que, uma vez evocada, devolve-nosum amontoado de fragmentos esparsos.

    Proust, como Bergson, distingue dois tipos de me~mria: a memria voluntria - que diz respeito conscincia e que pertence, portanto, intelign-cia, oferecendo-nos aspectos falsos do passado,porquanto fragmentados e esparsos - e a memriadita involuntria - que se forma no inconscientepela atrao que um momento exerce sobre o outro,permanecendo a! submersa at que um pequeno elo desimilaridade entre o passado e o presente desenca-deie uma exploso capaz de trazer ao presente to-do um segmento de eventos contguos.

    A deflagrao da memria involuntria nao nos fazreviver o passado enquanto tal, mas oferece-nos arealidade em toda a sua inteireza: o passado emtoda a sua forma e solidez restaurado no presente.Emergindo da memria involuntria, somente as ima-gens entendidas como representao de um complexoemocional e intelectual num determinado instante

  • do tempo, e somente elas, trazem para Proust o seloda autenticidade. Nada daquilo que no tivemos deelucidar para ns prprios, nada do que estavaclaro antes de aparecermos pertence-nos de fato,sens nem ao menos sabemos que real, diz Proust.

    A memria involuntria, por ser inconsciente, ainstncia que conserva o passado de maneira dur-vel, enquanto que a consc1encia, atravs da qualtodas as impresses so introduzidas nas camadasmais profundas do inconsciente, preserva lembran-as, sendo estas o verdadeiro esquecimento. O in-consciente , portanto, o lcus da memria,enquan-to que o lugar do esquecimento a conscincia.

    No estranho, pois, pensar que a mesma culturaque gestou a modernidade tenha ela prpria nutridoas primeiras experincias no campo da preservaodos monumentos histricos. De fato, s pode serlembrado aquilo que foi previamente esquecido. Ainstitucionalizao da preservao do patrimniocultural, tal como sentido pela modernidade, dizrespeito mais ao esquecimento que lhe genticodo que propriamente memria que lhe estranha.

    A perplexidade do homem moderno ao se defrontarcom o seu prprio esquecimento poder ser bemilustrada com um exemplo retirado da obra de ItaloCalvino, Le Qitt invi~ibili na parbola de zora7,a cidade inesquec!vel que, para melhor ser lembra-da, quis permanecer igual a si prpria: "Pa~aal~m do~ ~ei~ ~io~ e da~ t~~ Qadeia~ de montanha~~u~ge Zo~a, cidade que quem a v~u uma vez nunQamai~ a e~qaeQe. No que ela deixe na~ ~eQo~da~e~.RUA,Salvador,v.2,n.3,p.65-74,1989

  • eomo out~a4 eidade4 memo~vei4, uma imagem 6o~a doeomum. Embo~a no m04t~e beleza ou ~a~idade4 pa~-tieula~e4, Zo~a tem a p~op~iedade de pe~maneee~ namem~ia ponto po~ ponto, na 4uee44o da4 4ua4 ~a4,e da4 4ua4 ea4a4 ao longo da4 ~ua4, e da4 po~ta4e da4 janela4 na4 ea4a4. O 4eu 4eg~edo e4t no mo-do eom que o oiha~ pe~eo~~e 6igu~a4 que 4e 4ueedemeomo em uma pa~titu~a mU4ieal, na qual no 4e podet~oea~ ou muda~ nenhuma nota. O homem que tem g~a-vado na mem~ia eomo Zo~a . eompo4ta, li noUe qUM-do in4one, imagina-4e eaminhando po~ 4ua4 ~ua4 e~eeo~da a o~dem em que 4e 4ueedem o ~elglo de eo-b~e, a banea li4t~ada do ba~bei~o, o ~epuxo eom4eU4 nove jato4, a to~~e de vid~o do a4t~nomo, aea4inha do vendedo~ de melaneia4, a e4ttua doe~emita e do leo, o banho tu~eo, o ea6 da e4qui-na, a t~ave44a que vai da~ no po~to. E44a eidadeque no 4e apaga da mente . eomo uma ~etZeula emeuja4 enva4adu~a4 a4 pe44oa4 podem di4pO~ a4 eoi-~a4 que que~em ~eeo~da~: nome4 de homen4 ilu4t~e4,vi~tude4, nme~o4, ela44i6iea~e4 vegetai4 e mine-~ai~, data4 de batalha4, eon4tela~e4. Ent~e eadano~o e eada ponto do itine~~io pode~ e4tabele-ee~ um elo de a6inidade ou de eont~a4te que 4i~vade elemento de6lag~ado~ da mem~ia. De tal 6o~maque o~ homen~ mai4 4bio~ do mundo 4o aquele4 quegua~dam Zo~a na mente.

    Po~.m,inutilmente, viajei pa~a vi4ita~ a eidade:ob~igada a pe~maneee~ imvel e igual a 4i p~p~lapa~a melho~ 4e~ ~eeo~dada Zo~a 4e e4vaiu, 4e de~-6ez e de4apa~eeeu.

    A Te~~a a e4queeeu".RUA,Salvador,v.2,n.3,p.65-74,1989

  • 1. Foucault, Michel. As palavras e as coisas: umaarqueologia das cincias humanas. so Paulo:Martins Fontes, 1985. p.384.

    2. Rossi, Aldo. Autobiografia cientfica. Barcelo-na: Gustavo Gili, 1984, p.lO. A avidez pela no-vidade absoluta, juntamente com a convico deque a inovao como tal algo por si s5 dese-jvel, so caractersticas marcantes do mundoem que vivemos, estranhas at o sculo XVII,quando a rejeio de toda a tradio torna-secomum. Sobre o assunto, ver Arendt, Hannah. ~condio humana. Rio de Janeiro: Forense Uni-versitria, 1983. p.260-269.

    3. Starobinski, Jean. 1789, os emblemas da razo .so Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.38-52.

    4. Ribeiro, Renato Janine. "Moda" histrica revi-ve narrativa e cria objetos. Folha de so Pau-~ so Paulo, 12 novo 1988. Livros, H-I. Nesseartigo o autor examina sucintamente os novoscaminhos apontados pela historiogra~ia contem-pornea nos ltimos 20 anos, quais sejam a re-cuperao do relato dos fatos, condenado pelasmais importantes correntes modernas (marxismo,estruturalismo, semitica, etc.> e o interessepor temas que at ento no eram merecedores deateno por parte dos historiadores: sexo, co-zinha, amor filial, bruxaria, etc. Para essa"nova" histria, que d nfase eficcia dosimblico, o factual no interessa tanto en~quanto fato, mas por aquilo que revela, porqueo social pensado a partir da idia ampla decultura. A so contempladas, por exemplo, a

  • antropologia, as teorias freudianas do ato fa-lho, do sonho, etc. "Muda, ne~~e hi~t5~ia,o pa-pel do imagin~io. A~ o~ma~ mentai~ nao ~aomai~ medida~ pela ~ealidade ~atenial e ela~ ex-te1z.nMma~ ela~ pn5p1tia~ ~e entendem c.omo pa~teda nealidade, c.omo loc.al de l~ta, e no me~odec.alque, eeito ou ~epe~c.u~~o pa~~iva de ten-~oe~ c.uja c.ena e~t o~a dela, O hi~t1tic.oe~tem toda a pa~te". Id., ibid.

    5. Benjamin, Walter. Magia e tcnica, arte e pol-tica: ensaios sobre literatura e histria dacultura. so Paulo: Brasiliense, 1987. p. 222-232.

    6. No Brasil o enmeno se repete: em 1936, comoDiretor do Departamento de Cultura da Municipa-lidade de so Paulo, Mrio de Andrade redige oanteprojeto que veio a servir de base cria-o, no ano seguinte, do Servio do PatrimnioHistrico e Artstico Nacional. Mrio, por essaepoca, j realizava o primeiro inventrio bra-sileiro.

    7. Calvino, Italo, Le citt invisibili. In: _La citt e Ia memoria. Torino: Einaudi, 1972.p. 23-24. O romance, em forma de parbola, sur-preende o grande imperador Kublai Kan no momen-to em que, superado o orgulho pelas terras con-quistadas, ele se d conta de que pela ampli-do e diversidade de seus domnios, lhe sernegado o conhecimento do seu prprio imp~rio. ~nesse momento que Kublai Kan solicita a um vi-sionrio, Marco Polo, que lhe faa o relato dassuas viagens por estranhas cidades que no seencontram nos mapas cartogricos e nem se sabea que epoca pertencem. E as descries dessas

  • cidades de mil e uma noites vo-se sucedendonum lento transmutar-se, at nos surpreendermosem meio s megalpoles contemporneas. No rela-to de Zora, como nos de Diomira, Isidora, Zairae Maurilia, o tema da mem5ria exp11cito.