31 03 09 Claudia de Paula Pinto

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    CLUDIA DE PAULA PINTO

    ATALHOS PARA O SUCESSO

    JUIZ DE FORA, MARO DE 2009.

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    CLUDIA DE PAULA PINTO

    ATALHOS PARA O SUCESSO

    DISSERTAO DE MESTRADO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA ORIENTADORA: PROF. DR. BEATRIZ DE BASTO TEIXEIRA

    JUIZ DE FORA, MARO DE 2009.

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    AGRADECIMENTOS

    minha me e ao meu pai que fizeram de tudo para que eu pudesse concluir este trabalho da forma mais tranqila, aos meus filhos Shara e Luiz Guilherme, s minhas irms Mrcia e

    Vnia e minha sobrinha Virgnia. minha famlia agradeo pelo amor, carinho e compreenso.

    Aos funcionrios das escolas envolvidas, s famlias que aceitaram participar desta pesquisa e a todos aqueles que contriburam para a concretizao deste trabalho.

    Aos professores convidados para a banca que, to gentilmente, aceitaram participar da mesa e Prof Dr Beatriz de Basto Teixeira pela orientao acadmica.

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    RESUMO

    A presente dissertao resultado de uma pesquisa cujo objetivo foi apreender as razes que levam alguns alunos e/ou suas famlias a utilizarem atalhos como a transferncia escolar de uma escola privada para uma escola pblica e o curso supletivo para driblar as situaes de risco escolar, como a reprovao. A pesquisa foi desenvolvida junto a cinco famlias pertencentes classe mdia e residentes na cidade de Ouro Preto. Os recursos metodolgicos utilizados foram a entrevista semi-estruturada e o questionrio socioeconmico e escolar. As informaes coletadas no decorrer da pesquisa foram analisadas luz de um referencial terico que privilegia a temtica da escolarizao das camadas sociais privilegiadas. Essa literatura tem demonstrado que o uso de estratgias preventivas ou compensatrias se configura como uma das caractersticas das classes privilegiadas que buscam com esse mecanismo potencializar as chances de sucesso escolar e social dos filhos. Tal parcela da sociedade portadora de privilgios econmicos, sociais e culturais que conferem a esse grupo social o senso do jogo ou resultam em um capital informacional que funciona como um recurso extra, possibilitando a esse grupo social tomar atitudes adequadas em determinadas situaes, driblando os riscos de insucesso. Esses grupos sociais no abrem espao ao acaso e lanam todos os seus trunfos para a maximizao do sucesso escolar e social dos seus filhos.

    Palavras-Chave: estratgias escolares, trajetrias escolares, escolarizao das classes mdias.

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    SUMRIO

    INTRODUO 07 Apresentao do objetivo e estrutura do trabalho 09 1 A PESQUISA E SEUS CAMINHOS 13 2 ESTRATGIAS ESCOLARES: UM OLHAR MICROSSOCIOLGICO 23 3 A PESQUISA: APRESENTAO E ANLISE DOS DADOS 59 3.1 UMA BREVE DESCRIO DA CIDADE E DO SISTEMA ESCOLAR DE DE OURO PRETO 61 3.2 A ESCOLA PRIVADA CONFESSIONAL 63 3.3 AS ESCOLAS DE SUPLETIVO 66 3.3.1 Os Centros Estaduais de Educao Continuada CESEC 66 3.3.2 CESEC da Cidade 1 68 3.3.3 CESEC da Cidade 2 69 3.4 AS FAMLIAS E SUAS HISTRIAS 70 3.4.1 A famlia de Alice 71 3.4.2 A famlia de Gustavo 76 3.4.3 A famlia de Francisco 82 3.4.4 A famlia de Vitria 88 3.4.5 A famlia de Camila 92 3.5 ANLISE DOS PERCURSOS 97 4 CONSIDERAES FINAIS 118 5 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS E BIBLIOGRAFIA 120 6 ANEXOS ANEXO 1 -ESQUEMA DO PROCESSO DE BUSCA E APURAO DAS TRAJETRIAS ESCOLARES 128 ANEXO 2 -QUESTIONRIO PARA OS PROFESSORES 129 ANEXO 3 -CARTA DE APRESENTAO 131 ANEXO 4 -QUESTIONRIO PARA OS ALUNOS 133 ANEXO 5 -ROTEIRO DA ENTREVISTA DOS ALUNOS 145 ANEXO 6 -ROTEIRO DA ENTREVISTA DOS PAIS/RESPONSVEIS 146 ANEXO 7 -TABELA DOS DADOS LEVANTADOS SOBRE OS ALUNOS PESQUISADOS 147

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    INTRODUO

    A sala de aula sempre foi para mim um grande desafio, pois sempre me trouxe muitos questionamentos. Para alguns destes pude encontrar respostas a partir da prpria prtica docente, para outros, foi preciso promover uma mudana na maneira de agir. Enquanto, em outros casos, foi necessrio recorrer a pedagogos ou a ajuda especializada.

    Entretanto, havia algumas questes para as quais no encontrava respostas e que me

    incomodavam muito. Lecionei desde o incio de minha atividade docente em escolas da rede pblica municipal e estadual. Apesar da diversidade de cada instituio em relao ao corpo discente, era comum encontrar problemas sempre muito semelhantes, mesmo que o perfil dos alunos variasse de acordo com as caractersticas da escola, no que se refere localizao e sua representao diante da comunidade.

    Entre os problemas vivenciados nas escolas, destaco aquele que mais me incomodava e para o qual foquei minha ateno na tentativa de entend-lo: como explicar que em uma sala de aula onde os contedos so expostos igualmente a todos, existam alunos que apresentem desempenho escolar to diferenciado? E ainda, por que na maioria das vezes os alunos que apresentam uma facilidade maior diante dos contedos propostos so os mesmos cuja condio financeira se apresenta como mais favorvel?

    Questes como estas me levaram a participar de um curso de ps-graduao em Educao, latu sensu, onde pude ter contato com artigos que foram muito importantes naquele momento. Entre esses, destaco alguns dos trabalhos da sociloga e pesquisadora Maria Alice Nogueira e do socilogo francs Pierre Bourdieu.

    O artigo Trajetrias escolares, estratgias culturais e classes sociais: notas em vista da construo do objeto de pesquisa de autoria de Nogueira (1991) foi muito esclarecedor nesse sentido. Nesse trabalho, a pesquisadora analisa a hereditariedade cultural e sua influncia sobre o destino escolar, buscando

    (...) verificar de que maneira e com que intensidade as condies de existncia afetam, por um lado, o destino escolar nas suas vrias dimenses, a saber: a durao da escolaridade, o lugar ocupado no aparelho escolar (tipo de ensino e de estabelecimento), os resultados escolares obtidos, e, enfim, a prpria vivncia da experincia escolar. E por outro, as estratgias escolares (e a freqncia de uma dada estratgia) de que cada grupo social se utiliza (NOGUEIRA, 1991, p.90).

    A partir de ento, pude reconhecer na minha realidade escolar algumas das caractersticas elencadas, principalmente as que se referiam s camadas populares e mdias. Ento, pude entender algumas atitudes dos pais e dos prprios alunos em relao escola,

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    mas agora, a partir de dados coletados em pesquisas e no mais por meio de concluses baseadas no senso comum.

    O supracitado artigo tambm possibilitou conhecer alguns conceitos de Bourdieu, como capital cultural, social e simblico, com os quais o socilogo busca explicar a diferena de desempenho escolar entre alunos provenientes de diferentes grupos sociais. Atravs do conceito de capital cultural, o acadmico francs, demonstra que alunos provenientes de meios mais favorecidos (do ponto de vista cultural e/ ou econmico) "levam" para a escola toda uma "bagagem extra" de conhecimento que alunos provenientes de meios mais modestos no tiveram acesso (livros, enciclopdias, teatros, viagens, cursos extra-escolares, museus, e a convivncia com pessoas detentoras de capital cultural acumulado domnio da lngua culta, gostos mais "refinados", um modo prprio de agir etc.). Segundo esse socilogo, seria essa parcela extra de conhecimento que faria a diferena entre esses alunos.

    Bem, se os conceitos bourdieusianos trouxeram algumas respostas ao meu questionamento inicial, ao mesmo tempo, fizeram surgir outras questes. Partindo da formulao terica proposta por Bourdieu, em que definiria o bom desempenho escolar de um aluno estaria relacionado ao capital cultural adquirido no ambiente social de origem, como se explicaria casos em que alunos provenientes de meios sociais favorecidos apresentassem baixo rendimento escolar? Quais os outros elementos envolvidos na dinmica famlia/escola? E, principalmente, quais as estratgias de que os grupos sociais privilegiados se apropriam para maximizar o sucesso escolar?

    Estes questionamentos foram o ponto de partida da presente pesquisa. Assim, quando uma colega daquele curso de especializao me falou de um fenmeno que vinha acontecendo em uma escola particular da cidade de Ouro Preto, Minas Gerais, surgiu a oportunidade de articular a teoria realidade. Tal fenmeno consistia no fato de que alunos matriculados em uma instituio privada, confessional e tradicional de ensino, quando se viam diante do risco da reprovao, solicitavam a transferncia para uma escola pblica daquela mesma cidade, onde consideravam ser mais fcil obter a aprovao. Assim, aps essa promoo, esses jovens retornavam no ano seguinte escola de origem, onde continuavam o percurso escolar sem nenhuma reprovao.

    As informaes sobre a ocorrncia desse fenmeno vieram ao encontro daqueles questionamentos acima. O que estava acontecendo na referida escola privada reforava o debate existente na sociologia da educao de que baixo rendimento escolar no est necessariamente associado a pertencimento social.

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    Da, surgiu o interesse em investigar a ocorrncia desse fato, conhecer os atores envolvidos, capturar os elementos contidos no desenrolar desse fenmeno e, quem sabe, trazer elementos novos que ajudem a lanar luz sobre esse debate.

    Apresentao do objetivo e estrutura do trabalho

    A presente dissertao fruto de uma pesquisa desenvolvida junto a cinco famlias na cidade de Ouro Preto, localizada no Estado de Minas Gerais, a 90 quilmetros de Belo Horizonte. Famosa pela sua arquitetura colonial e pelo seu passado histrico, Ouro Preto carrega, desde o ano de 1980, o ttulo de Cidade Patrimnio Cultural da Humanidade. Todavia, nosso interesse por esse municpio no se direciona sua esfera histrica ou cultural, mas, educacional.

    para o mbito da educao que voltamos a nossa ateno, mais especificamente para uma prtica que tem sido utilizada nessa cidade por algumas famlias: o uso de estratgias para evitar a reprovao escolar e as implicaes disso para a trajetria de alunos de classe mdia. O presente trabalho o resultado da investigao desse fenmeno.

    Para tanto, no primeiro captulo fizemos uma reviso de literatura sobre a temtica da relao famlia/escola. A partir das dcadas de 1980/1990, alguns pesquisadores assinalam a emergncia de uma nova perspectiva, na qual a pobreza deixou de ser considerada como um aspecto determinante para uma situao de fracasso escolar (SILVA, 2001; NOGUEIRA, 1995b). O fator classe social se revelou insuficiente para explicar todas as situaes de fracasso ou sucesso na escola. Nesse compasso, as desigualdades escolares apresentadas por alunos de diferentes grupos sociais passaram a ser analisadas levando-se em considerao outros fatores como Nogueira (2004) enfatiza:

    (...) a trajetria escolar no completamente determinada pelo pertencimento a uma classe social (...) ela se encontra associada tambm a outros fatores, como as dinmicas internas das famlias e as caractersticas pessoais dos sujeitos, ambas apresentando um certo grau de autonomia em relao ao meio social (NOGUEIRA, 2004, p.4).

    No campo da Sociologia da Educao, esse momento foi caracterizado pelo deslocamento do olhar sociolgico das macroestruturas para as microestruturas. Interessava nesse momento conhecer o processo e no somente o resultado. Como Nogueira (1995b) assinala, a pergunta deixou de ser por que e passou a ser como.

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    Essa nova perspectiva de anlise possibilitou conhecer as particularidades que caracterizavam algumas famlias e grupos sociais no que tange educao dos filhos. Nesse contexto, sub-temas como as trajetrias escolares e as estratgias que as famlias empregam na escolarizao dos filhos atraram o interesse de pesquisadores que, desde ento, vm desenvolvendo trabalhos que se enquadram nessa linha de pesquisa.

    Todavia, tais pesquisadores no limitaram suas anlises s trajetrias dos alunos provenientes de lares mais modestos. Ao contrrio, buscaram conhecer o itinerrio escolar de jovens pertencentes s classes mdia e alta, assim como, as estratgias que esses grupos sociais utilizam na escolarizao dos filhos.

    O interesse pelos estudos das trajetrias escolares dos jovens de classe mdia e alta trouxe tona as pesquisas dos autores franceses Jean Fourasti (1970, 1972 apud NOGUEIRA, 2004) e Robert Ballion (1977 apud NOGUEIRA, 2004) que, na dcada de 1970, pesquisaram o insucesso escolar nos meios altamente favorecidos do ponto de vista econmico (NOGUEIRA, 2004, p.3). Tais estudos comprovaram que o ndice de insucesso escolar entre jovens provenientes de classes privilegiadas era bem mais elevado do que se imaginava.

    No cenrio educacional brasileiro, o estudo dos casos excepcionais ainda recente. Porm, j se apresenta como promissor, uma vez que, a anlise dos casos improvveis, ou seja, do sucesso escolar nos meios sociais populares e do baixo rendimento escolar nos meios sociais privilegiados, social e culturalmente, possibilitam apreender as diferentes relaes que as famlias de diferentes grupos sociais estabelecem com a escola. E ainda, a apreenso dos casos atpicos nos meios sociais favorecidos ajuda a compreender qual o papel da riqueza econmica na trajetria escolar dos alunos e em que medida esse privilgio maximiza as chances de sucesso escolar (NOGUEIRA, 2004).

    Entretanto, cabe ressaltar que, embora as camadas sociais favorecidas no estejam isentas de uma situao de fracasso escolar, essa parcela da sociedade portadora de privilgios econmicos, sociais e culturais. Esses privilgios conferem a esse grupo social o senso do jogo (BRANDO, 2003) ou resultam em um capital informacional (BRANDO, MARTINEZ, 2006), que funcionaria como um recurso extra, possibilitando a esse grupo social tomar atitudes adequadas em determinadas situaes, driblando os riscos de insucesso. Esses grupos sociais no abrem espao ao acaso e lanam todos os seus trunfos para a maximizao do sucesso escolar dos seus filhos.

    As classes mdias e elites utilizam vrias estratgias preventivas do fracasso escolar como a escolha do estabelecimento, os professores particulares, a transferncia escolar, os

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    cursos extra-escolares (BRANDO, 2006; BRANDO; LELLIS, 2003; NOGUEIRA, 2007; CARVALHO, 2005). H na literatura um nmero significativo de trabalhos sobre algumas das estratgias escolares ou preventivas. Porm, quando direcionamos o assunto para a estratgia da transferncia escolar de uma escola privada para uma pblica, prtica utilizada para evitar a reprovao, no logramos encontrar nenhuma pesquisa.

    Contudo, se no localizamos uma literatura especfica sobre esse assunto, vale ressaltar que essa prtica no um fenmeno novo e nem restrito cidade de Ouro Preto. No decorrer da pesquisa, viemos, a saber, do uso desta estratgia em outros locais. Todavia, no encontramos dados que nos autorizem a falar sobre a sua recorrncia ou sobre a dimenso desse expediente no meio escolar. Porm, se no podemos citar o uso dessas estratgia como uma prtica generalizada, recorrente ou usual, podemos apresentar a anlise do que foi possvel observar no referido municpio.

    No captulo 2, temos primeiramente a apresentao das famlias e posteriormente a anlise de suas condies sociais, trajetria educacional e expectativas em relao educao. Fizemos um exerccio de encontrar na literatura vigente, que trata da escolarizao das classes mdias e elites categorias que acolhessem as caractersticas observadas entre os alunos pesquisados e suas famlias.

    As informaes recebidas sobre o uso da referida estratgia nos levaram a identific-la como um atalho. Afinal, sua utilizao tinha como propsito encontrar uma sada mais rpida para uma situao que exigiria, pelo menos, mais um ano para ser resolvida, a reprovao escolar. Aps serem analisadas as entrevistas, observamos que h na forma de utilizao desse atalho diferenas interessantes que nos possibilitaram formar dois grupos de entrevistados usurios desse mecanismo.

    Temos o grupo que utilizou o atalho quando se viu diante do risco da reprovao. Isso ocorre geralmente no ms de setembro, quando saem as notas do 2 trimestre. O receio de no conseguir alcanar mdia para ser aprovado leva esse aluno a pedir transferncia para uma escola pblica, imaginando que neste estabelecimento conseguir a promoo mais facilmente. Aps atingir o objetivo, ou seja, aps conseguir ser promovido para a srie seguinte, esse jovem retorna escola de origem no ano subseqente, onde continua sua trajetria escolar. Denominamos essa prtica de atalho da transferncia pendular.

    Um segundo grupo formado por aqueles alunos que utilizam o atalho ao final do ano letivo, quando a reprovao no simplesmente um risco como no caso anterior, mas uma evidncia. Assim, diante da reprovao, esses alunos recorrem ao supletivo onde tm a chance de reverter tal situao. Dependendo dos resultados que esse aluno obtiver nas provas do

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    supletivo, em pouco tempo o incidente da repetncia ser driblado e o jovem segue em frente seu percurso escolar. Essa estratgia foi denominada de atalho supletivo.

    Finalmente, neste trabalho so apresentadas as consideraes finais onde esto expostos os principais achados desta pesquisa.

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    1 A PESQUISA E SEUS CAMINHOS

    Neste captulo apresentamos a metodologia de trabalho desenvolvida no decorrer dessa pesquisa e, que nos possibilitou investigar uma prtica que tem sido observada na trajetria escolar de alguns alunos da rede privada da cidade de Ouro Preto. Denominada, nesse trabalho, como um atalho, tal prtica visa driblar situaes de risco escolar como a reprovao.

    Com o objetivo de apreender as razes de alguns alunos e/ou suas famlias para a utilizao do atalho, foram estabelecidos critrios para identificao dos sujeitos desta pesquisa, a saber: estar matriculado em uma dada escola privada no momento da utilizao do atalho e ter como justificativa para o uso do atalho uma situao de risco escolar, ou seja, a iminncia da reprovao.

    O foco dessa investigao foi uma prtica que tem sido utilizada por algumas famlias para evitar a reprovao escolar no municpio de Ouro Preto. As primeiras informaes sobre essa estratgia a que tivemos acesso e que nos inquietaram a ponto de querer investig-la foram superficiais, embora bem especficas. O ponto de partida era uma escola privada, confessional e tradicional da referida cidade, da qual alunos do Ensino Mdio solicitavam sua transferncia quando se viam diante do risco de serem reprovados. Como destino desses estudantes estava uma escola da rede pblica estadual do mesmo municpio, onde tais alunos consideravam ter mais chances de serem aprovados.

    A necessidade de examinar a veracidade de tais informaes fez-nos procurar os dois estabelecimentos de ensino no segundo semestre de 2007. Na escola pblica, foi exposto o interesse em investigar a incidncia de alunos, oriundos de escolas privadas, que utilizavam a transferncia para a rede pblica estadual como um mecanismo para evitar a reprovao. Esta, provavelmente, ocorreria se permanecessem em sua escola de origem. E mais, verificar em que medida esse expediente estava ocorrendo, em qual poca do ano se observava tal evento e se tais alunos permaneciam na rede pblica ou retornavam instituio privada.

    Naquele momento, foi-nos relatado pela secretria da escola pblica que era comum receber alguns alunos de escolas privadas, embora no soubesse precisar com que freqncia tal fato vinha ocorrendo. Sem que lhe fosse perguntado, a mesma funcionria citou o nome de uma escola particular de onde provinham esses alunos, confirmando aquelas informaes que nos conduziram a essa verificao. Percebemos, desse modo, que estvamos no caminho certo.

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    Porm, naquele instante, ficamos sabendo que no havia um livro de registros dos alunos que ingressavam na instituio. Ento, para identificarmos aqueles provenientes da escola confessional e privada, teramos que buscar o histrico escolar, na pasta de cada aluno, para ento, encontrar a escola de origem, assim como a data em que foi realizada a transferncia. Considerando que esta escola tem aproximadamente mil alunos, percebemos que essa anlise demandaria um tempo que excederia ao proposto no cronograma.

    Optamos por uma segunda alternativa, que era encontrar os nomes dos alunos que utilizaram a estratgia da transferncia a partir da escola de onde se originavam as transferncias, ou seja, da escola privada. No entanto, consideramos importante ter cautela ao falar dessa prtica quando visitamos o coordenador do referido estabelecimento. Uma vez que no tnhamos nada comprovado, no sabamos o que havia motivado aquelas transferncias; se estas eram do conhecimento da coordenao da escola, ou no. Enfim, o que havamos coletado ainda era insuficiente para mencionar o fenmeno.

    Nesse estabelecimento, apresentamos a pesquisa e o interesse em conhecer a escola, sua estrutura, o perfil do corpo docente, como tambm, casos de alunos que haviam sado e retornado ao estabelecimento. Tanto na escola pblica como na escola privada recebemos autorizao para o desenvolvimento da pesquisa. Tais instituies se colocaram disposio para fornecer os materiais que vissemos a precisar.

    A partir dessas informaes preliminares, elaboramos um roteiro de trabalho que nos orientaria durante a pesquisa, cujo foco era as duas escolas, uma privada e outra pblica, e os alunos do Ensino Mdio que utilizaram a transferncia para no serem reprovados. Da, a pesquisa teria incio na escola privada atravs da consulta ao Livro de Transferncia, no qual seria possvel encontrar os alunos transferidos a partir do ano de 2006, uma vez que a pretenso era encontr-los ainda como estudantes naquela ou em outras escolas daquele municpio. Caso alongssemos tal busca por anos anteriores, certamente, alguns desses jovens j teriam concludo o Ensino Mdio, tornando mais difcil a sua localizao.

    Embora a escola privada tenha se colocado disposio para o fornecimento de quaisquer materiais de que vissemos a precisar, sabamos da possibilidade de que algumas informaes fossem negadas, inclusive no que se refere aos alunos transferidos. Nesse caso, havia uma terceira alternativa para a obteno desses nomes, a indicao. Ou seja, atravs de

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    informantes1 que soubessem do uso dessa prtica, poderamos obter a indicao de alunos que utilizaram o atalho.

    Consideramos necessrio fazer um levantamento das escolas situadas na cidade de Ouro Preto com oferta do Ensino Fundamental II (6 e 9 anos) e Ensino Mdio para que o leitor pudesse visualizar o leque de opes que as famlias do referido municpio dispunham no momento da escolha do estabelecimento escolar para seus filhos. Esta sondagem foi realizada junto Superintendncia Regional de Ensino de Ouro Preto e Secretaria Municipal de Educao. Constam nesse levantamento as escolas da rede pblica federal, estadual e municipal, assim como, as da rede privada.

    No decorrer do trabalho de pesquisa utilizamos dois recursos metodolgicos: o questionrio scio-econmico e escolar (Anexos 2 e 4) e a entrevista semi-estruturada (Anexos 5 e 6). O primeiro procedimento foi elaborado para que o aluno o preenchesse, com eventual apoio dos pais, respondendo questes referentes escolaridade dos antepassados da primeira e segunda gerao, renda familiar, hbitos de lazer e culturais, rotina de estudos, relacionamento com professores e com a escola, dificuldades com disciplinas escolares entre outros quesitos necessrios para a construo do perfil dessas famlias.

    Tais questionrios seriam entregues aos alunos atravs da escola onde estudassem, juntamente com uma Carta de Apresentao (Anexo 3) expondo o tema da pesquisa. Este material seria direcionado aos pais para que pudessem tomar conhecimento da pesquisa e, assim, se posicionarem quanto participao da sua famlia. Tais questionrios deveriam ser devolvidos pelos alunos escola, logo que fossem preenchidos, para que pudssemos fazer sua anlise antes da realizao das entrevistas.

    Para aprofundar as questes existentes nos questionrios, recorremos entrevista semi-estruturada que permite ao pesquisador uma flexibilidade para explorar de forma mais acurada questes que julgssemos mais relevantes. Contudo, apesar dessa flexibilidade, as entrevistas seguiram um eixo orientador, o qual permeava as questes centrais do questionrio e dentro do princpio de que o empenho dos pais em relao aos estudos da prole est relacionado importncia dada educao, experincia de vida, viso de mundo, expectativa de futuro. Em cada famlia foram realizadas duas entrevistas em horrios separados, sendo uma com o aluno e outra com o pai ou a me, evitando dessa forma, que a presena de um ou de outro pudesse trazer constrangimento no momento de responder s

    1 Para resguardar a identidade dos indivduos que colaboraram com a pesquisa cedendo informaes sobre a

    prtica do atalho e evitar que esses fossem repreendidos por parte de familiares e/ou escolas, optamos por identific-los somente como informantes, sem qualquer descrio sobre o local de trabalho e funo exercida.

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    perguntas. A escolha por um dos pais para participar da entrevista se baseou no critrio desse ser mais atuante na escolarizao desse filho. Esses encontros foram realizados nos domiclios dos atores investigados, com dia e hora marcados antecipadamente.

    Porm, quando de fato a pesquisa teve incio, em agosto de 2008, nos deparamos com elementos novos que exigiram mudanas e reajustes no roteiro de pesquisa proposto inicialmente. Apresentamos a seguir o desenrolar da pesquisa e as mudanas que foram se fazendo necessrias para a concretizao da mesma.

    No retorno escola privada confessional, percebemos que nem todas as informaes sobre a instituio seriam cedidas como fora dito inicialmente. Tivemos acesso aos dados sobre corpo docente e discente, nmero de funcionrios, equipamentos, enfim, sobre a estrutura da escola. Entretanto, quanto aos alunos que haviam sado e retornado, a secretria disse que nem precisaria consultar o Livro de Transferncias, pois eram poucos e se lembrava de todos: quatro casos desde o ano de 2006.

    Mencionamos o interesse em analisar tal registro para obter mais dados, o que foi negado pelo coordenador, sob a justificativa de que no poderiam revelar nomes de alunos sem a permisso dos pais. Assim, foi preciso optar pela alternativa da indicao atravs de informantes que, de algum modo, estivessem envolvidos com a prtica ou que soubessem de casos de alunos que utilizaram a estratgia da transferncia.

    O uso da indicao s se tornou possvel a partir de meados de setembro de 2008, quando encontramos indivduos dispostos a colaborar com o trabalho. Na primeira vez em que recorremos indicao, obtivemos os nomes2 de Camila e Mateus, dois alunos que apresentavam uma trajetria bem prxima ao que procurvamos. Cabe ressaltar, que foi atravs da histria escolar desses jovens que percebemos a necessidade de ampliar o foco da pesquisa. O uso da estratgia da transferncia no se limitava ao nvel do Ensino Mdio, sendo utilizado tambm no Ensino Fundamental. E mais, a transferncia para uma escola pblica no era a nica estratgia utilizada para evitar a reprovao, havia tambm o uso do supletivo.

    Na segunda indicao, realizada ao final do ms de setembro de 2008, tivemos acesso aos nomes de cinco alunos Leandro, Guilherme, Gustavo, Alice e Fernanda. Apesar de breve, o relato sobre a trajetria desses adolescentes levou mesma constatao da indicao anterior. Ou seja, a prtica que pesquisvamos era utilizada tambm por alunos do Ensino Fundamental, abrangendo ainda o uso do supletivo.

    2 A identidade dos alunos envolvidos nesta pesquisa foi resguardada, sendo, portanto, adotados nomes fictcios

    para os mesmos.

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    A emergncia desses novos elementos levou ampliao do objeto da pesquisa. Alm dos jovens do Ensino Mdio, deveramos observar a utilizao da estratgia para evitar a reprovao tambm entre alunos do Ensino Fundamental. E mais, tal estratgia no se limitava ao uso da transferncia da escola privada para uma pblica, mas inclua tambm o emprego dos cursos de supletivo.

    Em conseqncia dessa ampliao do fenmeno observado, foram necessrios alguns reajustes ao roteiro traado anteriormente. A princpio, havia duas escolas envolvidas no uso do atalho e a proposta era montar um perfil desses estabelecimentos. Para tanto, elaboramos um questionrio a ser respondido pelos professores (Anexo 2) dessas instituies, o qual permeava questes como a formao; a idade; a instituio e o tempo em que se formou; o curso de ps-graduao; o tempo de experincia na escola onde trabalha; a disciplina lecionada; o relacionamento com colegas; a direo e os alunos; as condies de trabalho; alm de uma avaliao da escola. Para complementar o perfil seria desenvolvido um mapeamento da estrutura das escolas descrevendo o corpo de funcionrios; o nmero de discentes; a distribuio destes pelos nveis de ensino ofertados; as informaes sobre direo e coordenao; a disposio de material para o trabalho pedaggico; a metodologia aplicada na escola; a grade curricular; o nmero de salas etc. Seria realizada tambm uma anlise do Projeto Poltico Pedaggico das instituies envolvidas. Ao final dessa captura de informaes poderamos construir um perfil desses estabelecimentos.

    No entanto, com a emergncia de outras instituies de ensino, inclusive escolas de outros municpios que ofereciam o curso supletivo, repensamos sobre a aplicao de alguns itens do referido roteiro. Entre esses, destacamos o questionrio com o qual analisaramos o perfil do corpo docente dessas escolas e a anlise do Projeto Poltico Pedaggico das instituies envolvidas. Percebemos que apesar da relevncia de tais anlises, no haveria tempo hbil para a realizao das mesmas. Conclumos, portanto, que a ausncia desses dados no comprometeria o resultado final do trabalho e decidimos no desenvolver essas atividades.

    Mantivemos, no entanto, um levantamento sobre a escola privada e confessional uma vez que esta serviu como ponto de referncia para a investigao do atalho. Enviamos aos professores que atuavam no Ensino Fundamental II e Mdio um questionrio. Atravs da figura do coordenador desse estabelecimento, esse recurso metodolgico chegou at as mos dos professores e aps o seu preenchimento, foi-nos devolvido. Cabe ressaltar que no foi possvel analisar o Projeto Poltico Pedaggico da referida escola uma vez que no dispnhamos de mais tempo para efetuar esse expediente.

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    Com a evidncia da utilizao do atalho tambm na fase do Ensino Fundamental, voltamos nossa ateno para as escolas que ofereciam esse nvel de ensino na referida cidade. Visitamos alguns estabelecimentos pblicos procura de alunos que haviam feito o trajeto entre escola privada/pblica/privada. Com o apoio da direo e do secretariado das referidas instituies, conseguimos a indicao de mais quatro adolescentes, Francisco, Gabriel, Andr e Ceclia. Quase ao final da pesquisa, foi-nos informado o nome de mais uma jovem que havia utilizado o supletivo, Daniela.

    Ao final dessa busca, tnhamos treze nomes de alunos (Anexo 1). Havia alguns que traziam consigo informaes adicionais como sobrenome, escola e srie em que provavelmente estariam estudando naquele ano, nomes de membros da famlia, como me, pai ou tios. Em outras indicaes, no entanto, s constavam o nome do aluno e o relato do fato que justificou a sua indicao como uma possibilidade para preencher as exigncias da pesquisa.

    Assim, a localizao de alguns desses estudantes demandou tempo e um exaustivo trabalho de localizao por pistas que nos levassem a essas famlias. De imediato, fizemos uma triagem separando aqueles que sabamos em que escolas estudavam naquele ano e aqueles em que esse dado era desconhecido. Dos sete primeiros nomes recebidos atravs das duas indicaes de informantes, era sabido que os quatro jovens, Camila, Gustavo, Leandro e Rafael, no eram mais alunos da escola privada confessional.

    Desses, o nome de Camila foi o primeiro a ser indicado como uma aluna que teria utilizado uma estratgia para evitar a reprovao escolar. Todavia, foi um dos contatos mais demorados a ser estabelecido. Sabamos o seu nome e a referncia de um ponto comercial de propriedade de um parente, com o qual conseguimos um nmero de telefone para entrar em contato com a famlia. O primeiro contato com essa famlia ocorreu no incio de outubro de 2008, quando o pai optou por no se posicionar quanto realizao da pesquisa com sua famlia. Explicou que precisaria conversar com esposa e filha, dando uma resposta em seguida. No decorrer daquele ms, ligamos algumas vezes para a residncia da famlia e esse senhor estava sempre ausente. Deixamos alguns recados, mas no tivemos nenhum retorno. Retornamos loja, onde deixamos uma carta de apresentao e o questionrio scio-econmico e, novamente, a famlia no se posicionou se aceitaria participar da pesquisa. Consideramos esse silncio como uma resposta negativa e resolvemos no insistir. Em janeiro de 2009, tentamos novamente fazer contato com a famlia, quando conseguimos conversar novamente com o pai de Camila. Naquele instante, esse se colocou a disposio para

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    conversar. Uma semana depois, fomos recebidos por ele em sua residncia e quinze dias aps por Camila.

    No caso de Leandro, obtivemos uma confirmao sobre a escola onde o jovem estudava, onde conseguimos localiz-lo. Esse foi o primeiro contato direto com um dos possveis alunos que comporiam o objeto da pesquisa. Esse encontro aconteceu em meados de outubro de 2008, na instituio pblica onde o rapaz estava matriculado. Fomos autorizados a conversar com o jovem no intervalo, quando explicamos o teor da pesquisa. Esse, porm, se negou a participar e, at mesmo, a entregar a carta explicando a pesquisa aos seus pais. Disse-nos ainda que havia outros alunos que faziam o mesmo, ou seja, que saiam da escola privada confessional e ingressavam na escola pblica e que poderamos conversar com eles, no entanto, no quis indicar nenhum. Desse modo, diante da negativa do adolescente, descartamos a possibilidade de analisar a sua trajetria escolar.

    O nome de Rafael surgiu tambm na primeira indicao como outro aluno que havia pedido a transferncia da escola privada confessional, muito embora, no se soubesse o que teria motivado tal atitude e nem onde esse jovem estudava naquele momento. O processo de busca por esse estudante foi bem prolongado, uma vez que a nica referncia sobre a famlia desse adolescente era o sobrenome e o parentesco com um poltico da cidade vizinha. Sendo assim, direcionamos a procura para aquela regio, onde passado algum tempo conseguimos uma referncia do local onde esse jovem morava com sua me em Ouro Preto. Apesar de termos encontrado o domiclio dessa famlia ainda em outubro, foi somente nas primeiras semanas de janeiro de 2009, quando conseguimos encontr-los em casa, que viemos a saber que os motivos que levaram a me a retirar seu filho da escola privada confessional foram econmicos. Dessa forma, a trajetria desse aluno no correspondia aos critrios da pesquisa.

    A indicao de Gustavo surgiu na segunda vez em que utilizamos o expediente do informante. O que chamou a ateno nesse jovem a sua trajetria irregular. Ao contrrio do que ocorreu com alguns dos alunos indicados, encontrar sua famlia foi mais fcil, uma vez que nos foi informado o endereo do ponto comercial de propriedade de sua me. O primeiro contato com essa senhora ocorreu nesse estabelecimento, quando explicamos a pesquisa e falamos do interesse em desenvolver uma entrevista com sua famlia. Prontamente essa senhora se colocou disposio e a conversa ocorreu em meados de dezembro de 2008, em sua residncia. Foi necessrio realizar um segundo encontro com essa famlia para esclarecermos alguns aspectos que no ficaram muito claros na primeira conversa. Em janeiro de 2009, retornamos residncia de Gustavo, quando fomos novamente recebidos por sua me.

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    Retomando os sete primeiros nomes indicados atravs de informantes, restavam trs, Alice, Fernanda e Guilherme. Sabamos que estes ainda estudavam na escola privada confessional. Entretanto, no conseguimos conversar diretamente com esses alunos nesse estabelecimento. O coordenador nos informou que para autorizar nosso contato com esses jovens precisaria da permisso dos pais. Ento, optamos por deixar na escola uma Carta de Apresentao endereada famlia desses adolescentes. Nesse documento estava descrito o teor da pesquisa e o interesse em conversar com a famlia, alm de uma solicitao para que preenchessem o questionrio scio-econmico. Nesse instrumento constava um telefone caso

    esses pais quisessem entrar em contato.

    Aps quinze dias sem haver nenhum contato, retornamos escola com uma segunda carta direcionada s famlias desses trs garotos. Nessa, reiteramos a importncia da pesquisa e da participao da famlia. Novamente, no obtivemos retorno e, diante da urgncia dos prazos que precisvamos cumprir, optamos por tentar encontr-los fora do ambiente escolar.

    Nesse sentido, iniciamos a localizao de Alice, uma vez que sabamos o nome de seu pai e a escola onde esse lecionava. O primeiro contato com esse senhor ocorreu no ms de outubro de 2008, quando apresentamos a pesquisa e expusemos o interesse em conversar com sua filha. Naquele primeiro instante, ele se mostrou indeciso em concordar, porm aceitou receber o questionrio scio-econmico para que Alice o preenchesse. Aps algumas tentativas de refazer o contato com essa famlia, conseguimos marcar uma entrevista com Alice para o incio de dezembro e, aproximadamente um ms depois, com o seu pai. Ambos os encontros aconteceram na residncia da famlia.

    O nome de Fernanda foi indicado juntamente com o de Alice, uma vez que ambas utilizaram o expediente da transferncia juntas. A localizao daquela se fez a partir da referncia do ponto comercial de propriedade de seu pai, onde o procuramos algumas vezes sem sucesso. Ao final do ms de outubro de 2008, foi possvel conversar com esse senhor, que autorizou que entrssemos em contato com sua filha. Foi durante a entrevista com Fernanda, realizada em meados de janeiro de 2009, que viemos a saber que os motivos que a levaram a se transferir para uma escola pblica e retornar no ano seguinte foram pessoais. Ou seja, teve problemas com uma colega de turma e diante dessa situao considerou melhor sair daquele estabelecimento. Por isso, no foi possvel aproveitar o seu percurso escolar na anlise.

    E, por fim, a indicao de Guilherme obtida a partir da segunda indicao. Conforme nos foi relatado, esse jovem utilizou o atalho da transferncia quando se viu diante do risco da reprovao. Foi transferido para uma escola pblica e, nesta, aprovado, retornando no ano

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    seguinte escola privada confessional. Tentamos localiz-lo atravs de alunos daquele estabelecimento, mas tambm no tivemos resultados positivos. Sabamos o local onde o pai do adolescente trabalhava, no entanto, no sabamos o seu nome, impossibilitando o seu encontro. Assim, apesar da trajetria escolar desse jovem se enquadrar nas exigncias da pesquisa, foi preciso abandonar as buscas diante dos prazos que precisvamos seguir.

    Dos quatro nomes de jovens obtidos mediante a busca em escolas da rede pblica, somente o Francisco atendia aos critrios da pesquisa. Atravs do sobrenome desse adolescente, incomum na regio, recebemos uma informao sobre uma famlia e sobre onde localiz-la na cidade. Foi assim que chegamos casa de Francisco. O primeiro contato foi feito com sua me em meados de outubro de 2008, que ao tomar conhecimento do teor da pesquisa, prontificou-se a ajudar, dizendo que to logo preenchesse o questionrio scio-econmico que lhe foi entregue naquele momento, entraria em contato. Aguardamos o retorno da me de Francisco, porm mediante um cronograma que precisa ser cumprido, retornamos casa da famlia. Nesse segundo contato, nos informaram que estavam de mudana para outro bairro e que s poderiam nos atender dentro de um ms. Aproveitamos a oportunidade e definimos uma data para conversar com o Francisco e sua me. O encontro ocorreu no incio do ms de janeiro de 2009 na residncia da famlia.

    Em relao aos adolescentes Gabriel, Andr e Ceclia, indicados por escolas pblicas, o trabalho de localizao tambm se desenvolveu a partir de referncias de sobrenome, parentes, escolas, colegas, at que os mesmos fossem encontrados. O Gabriel foi localizado a partir da escola privada confessional com o auxlio de um colega de turma. Este conseguiu o telefone do pai de Gabriel e, a partir de ento, foram realizados os contatos. Na entrevista, que ocorreu em meados de janeiro de 2009, ficamos sabendo que os motivos que levaram essa famlia a transferir seu filho para um estabelecimento pblico foram econmicos e, por isso, o itinerrio escolar desse garoto no pde ser aproveitado.

    Os jovens Andr e Ceclia foram localizados na escola pblica onde estudavam no ano de 2008. Nesse estabelecimento conversamos com os adolescentes que aceitaram fazer a pesquisa. Quando conversamos com seus familiares, semanas depois, foi-nos informado que os motivos que conduziram a retirada de Ceclia da escola privada para uma pblica tambm foram financeiros. J a transferncia de Andr foi justificada pelo fato desse garoto no conseguir se adaptar quele estabelecimento. Logo, a trajetria desses trs alunos no poderia fazer parte do objeto desta pesquisa.

    Quando j estvamos encerrando o processo de busca por alunos que tivessem utilizado o atalho, foi nos indicado o nome de Vitria. Esta jovem a irm mais nova de Fernanda,

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    mencionada anteriormente. Conseguimos marcar uma entrevista que ocorreu em seu domiclio, em meados de janeiro de 2009. No decorrer da conversa, essa garota relatou o uso do supletivo para no ser reprovada e nos informou o nome de uma colega com quem fez o curso.

    Foi dessa forma que chegamos ao nome de Daniela. No primeiro contato, essa adolescente aceitou participar da pesquisa. Entretanto, no dia marcado, a jovem entrou em contato e disse que no tinha mais interesse em fazer a entrevista. Sendo assim, no foi possvel conhecer a trajetria dessa jovem e entender o que a levou a utilizar o atalho.

    Com a evidncia da utilizao das escolas que ofereciam os cursos supletivos, consideramos necessrio investigar tais estabelecimentos situados em cidades vizinhas a Ouro Preto, com o objetivo de compreender o funcionamento desse sistema de ensino3.

    Enfim, ao final do trabalho de busca por alunos que respondiam s exigncias da presente pesquisa, restaram cinco adolescentes (Anexo 7), que preencheram o questionrio scio-econmico e participaram da entrevista semi-estruturada. A verificao do desempenho escolar desses alunos era outra proposta do roteiro inicial de trabalho. Tal sondagem consistia em verificar as notas apresentadas por esse aluno no decorrer do ano em que utilizou o atalho. Em seguida haveria uma conversa com o professor ou professores daquelas disciplinas apontadas pelos alunos como as mais difceis. O confronto dessas informaes permitiria apreender o desempenho desse aluno, no somente a partir do seu relato, mas mediante outras perspectivas como o depoimento do professor e as evidncias de suas notas. Esse expediente demandaria um prazo que no dispnhamos e por esse motivo essa atividade no foi desenvolvida. Mas, consideramos que sua ausncia no afetou o resultado final da presente pesquisa.

    Aps a apurao dos dados levantados atravs desses procedimentos, foram construdas apresentaes de cada famlia. Essas serviram como base para a elaborao de uma anlise, com a qual se buscou encontrar paralelos entre o que foi investigado e o que tem sido observado em outras realidades.

    3 Na cidade de Ouro Preto no existem escolas credenciadas a oferecerem o Supletivo e por isso os alunos se

    dirigem s cidades vizinhas.

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    2 AS ESTRATGIAS ESCOLARES: UM OLHAR MICROSSOCIOLGICO

    Este captulo da dissertao o resultado das leituras realizadas para o desenvolvimento desta pesquisa, cuja rea de interesse se insere dentro de uma temtica ainda pouco explorada no campo da Sociologia da Educao: a escolarizao das classes privilegiadas do ponto de vista econmico. Apesar de recente, este tema se configura como promissor e vem conquistando um nmero significativo de pesquisadores interessados em compreender o papel da riqueza econmica sobre o desempenho escolar do aluno, as estratgias escolares empregadas pelas famlias oriundas desse meio, suas prticas educativas, as disposies dos filhos em aderir ao projeto de futuro traado pelos pais, entre outros aspectos.

    , principalmente, a partir da dcada de 1990 que se observa, no Brasil, o interesse pela temtica da escolarizao das classes mdias e altas. Pode-se dizer que a ateno absorvida por esse tema resultante das transformaes ocorridas no campo da Sociologia da Educao, na dcada anterior.

    A partir dos anos de 1980, se observa uma reorientao do olhar sociolgico, provocada pela constatao de que o carter macroscpico das pesquisas desenvolvidas at aquele momento impossibilitava captar o processo no qual as desigualdades escolares eram produzidas. As anlises dessas pesquisas, fundamentadas em dados estatsticos, evidenciavam o por que, mas no conseguiam explicar o como (NOGUEIRA, 1995b). A dinmica no era capturada e, portanto, no podia ser estudada e analisada e, muito menos, compreendida.

    E ainda, cabe ressaltar que, nesses modelos investigativos, a famlia estava sempre associada categoria scio-econmica de pertencimento, analisada de forma abstrata e isolada do seu contexto social, cultural e histrico. famlia era reservado o anonimato, o silncio e, em muitos casos, um carter vitimizante. A varivel classe social era considerada suficiente para o enquadramento da famlia em determinados padres de anlise. Contra essa postura, Nogueira (1998, p.95) argumenta que no se pode desconsiderar o peso que os condicionantes externos exercem sobre a famlia, todavia, esta no pode ser entendida somente como um reflexo da classe social a qual pertence.

    Partindo dessa perspectiva, os pesquisadores perceberam, a partir da dcada de 1980, que havia pouco conhecimento acumulado sobre a dinmica interna do grupo familiar, sobre as prticas e estratgias empregadas no itinerrio escolar da prole, e, principalmente, sobre as aspiraes em relao escolarizao dos filhos. Nesse contexto, verifica-se uma revalorizao da micro-sociologia, cujo modelo de pesquisa permite aprofundar a anlise ao

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    nvel das microestruturas ou, em outros termos, permite entrar na caixa preta da educao (NOGUEIRA, 1995b, p.33).

    Sem abandonar as anlises macroestruturais, as abordagens micro-sociais adquirem prestgio entre os socilogos. Do mesmo modo, a famlia, possuidora de um novo status, passa a ocupar um lugar de destaque, no qual

    A nfase ser posta (...) na atividade prpria do grupo familiar, definindo-se sua especificidade por sua dinmica interna e sua forma de se relacionar com o meio social, em boa medida uma construo sua. Assim, o funcionamento e as orientaes familiares operariam como uma mediao entre, de um lado, a posio da famlia na estratificao social e, de outro, as aspiraes e condutas educativas, e as relaes com a escolaridade dos filhos (NOGUEIRA, 1998, p.95).

    Vale ressaltar, no entanto, que a famlia no se configura como um tema novo no campo

    da Sociologia da Educao, uma vez que, desde a dcada de 1960, algumas pesquisas4 j demonstravam a sua influncia sobre o desempenho escolar dos filhos. Entretanto, as dcadas de 1980/90 apresentam um elemento novo: o interesse pela relao famlia-escola na tentativa de apreender como o processo de socializao familiar influencia o itinerrio escolar dos filhos.

    No bojo dessa temtica, emergiram novos objetos de pesquisa. Como enumera Brando (2000, p.1), (...) a investigao das trajetrias escolares tpicas e atpicas, as diferentes formas da transmisso da herana cultural e as estratgias na escolarizao dos filhos, (...) passaram a ser temas privilegiados.

    Desde ento, o estudo das trajetrias escolares adquiriu um novo contorno no campo da Sociologia da Educao. As anlises deterministas, que apontavam o pertencimento de classe como fator explicativo do desempenho escolar, passaram a ser criticadas e deram lugar a outra perspectiva. Importa, nesse momento, conhecer a histria de vida escolar do aluno, o processo de socializao, a configurao familiar, assim como reconhecer a existncia de diferenas entre famlias de um mesmo grupo social. Ou seja, o pertencimento a uma mesma classe social no homogeneza as famlias, seus ideais e suas aes.

    Como enfatiza Lahire (1997), as famlias no agem de maneira uniforme, pelo simples fato de pertencerem a um mesmo grupo social. Os indivduos tm formas prprias de agir

    4 Na dcada de 1960, alguns estudos comprovaram que o background familiar influenciava a trajetria escolar

    de um educando. Com destaque para o Relatrio Coleman, pesquisa encomendada pelo governo norte-americano, o qual pretendia compreender o baixo rendimento escolar apresentado por um grande nmero de alunos. Todavia, as desigualdades escolares apuradas nessas pesquisas eram explicadas a partir do pressuposto de que as famlias de origem popular eram detentoras de carncias cultural, cognitiva e nutricional que interferiam no rendimento escolar dos filhos. Ver SOARES; COLLARES, 2006.

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    diante de alguns fenmenos e, embora possa haver semelhana em alguns aspectos, as diferenas so relevantes e no podem ser ignoradas.

    Desse modo, a partir da constatao de que a varivel classe social era insuficiente para explicar todas as situaes de sucesso ou fracasso escolar (SILVA, 2001; NOGUEIRA, 1995b), o estudo das trajetrias foi se consolidando no campo sociolgico. As diferentes trajetrias apresentadas por alunos oriundos de grupos sociais distintos passaram a ser apuradas levando-se em considerao que

    (...) a trajetria escolar no completamente determinada pelo pertencimento a uma classe social (...) ela se encontra associada tambm a outros fatores, como as dinmicas internas das famlias e as caractersticas pessoais dos sujeitos, ambas apresentando um certo grau de autonomia em relao ao meio social (NOGUEIRA, 2004, p.4).

    Ou seja, as especificidades que caracterizam uma famlia e as particularidades individuais influenciam de forma marcante o percurso escolar de um aluno. Assim, a compreenso de uma trajetria de sucesso ou de insucesso no pode se ater a um reducionismo econmico.

    Essa nova abordagem abriu caminho para se compreender os casos improvveis ou atpicos que, por serem considerados como excepcionais, no eram assinalados como relevantes numa reflexo macro-sociolgica. Assim, as trajetrias de sucesso, ou seja, sem atrasos, reprovaes ou interrupo dos estudos, eram consideradas como uma caracterstica inerente s classes privilegiadas. Ao mesmo tempo, uma trajetria de insucesso, marcada por atrasos, repetncias, rupturas e tentativas mal sucedidas de mudanas de estabelecimentos estava relacionada s classes populares.

    A partir da reorientao da pesquisa sociolgica, que direcionou o olhar para o cotidiano familiar, para o interior de uma sala de aula e, principalmente, para a dinmica familiar, os casos que fugiam regra determinista de pertencimento social passaram a chamar a ateno dos estudiosos. Como explicar, por exemplo, o sucesso e a longevidade escolar de alunos provenientes de lares modestos, privados de toda espcie de recursos materiais e culturais? Da mesma forma, como justificar alunos, provenientes de lares privilegiados, nos quais a oferta de recursos abundante, enfrentarem, no decorrer da escolarizao, situaes de fracasso escolar?

    De uma forma geral, so estas questes que tm impulsionado pesquisadores a investigarem famlias nas quais os resultados escolares apresentados pelos filhos divergem das expectativas habituais.

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    No que tange aos estudos do sucesso escolar nos meios populares, podemos destacar Lahire (1997), cuja pesquisa buscou compreender

    (...) como possvel que configuraes familiares engendrem, socialmente, crianas com nveis de adaptao escolar to diferentes? Quais so as diferenas internas nos meios populares suscetveis de justificar variaes, s vezes considerveis, na escolaridade das crianas? (LAHIRE, 1997, p.12).

    Para esse socilogo francs, compreender as situaes atpicas, ou seja, aquelas que se desenvolvem de forma adversa ao esperado, um verdadeiro desafio. Partidrio da micro-sociologia, o pesquisador afirma que a elucidao dos casos singulares requer uma anlise fina da configurao familiar, deslocando o olhar para as prticas e para as formas de relaes sociais que levam ao processo de fracasso ou de sucesso. Desse modo,

    Nunca devemos esquecer que estamos diante de seres sociais concretos que entram em relaes de interdependncia especficas, e no variveis ou fatores que agem na realidade social. No podemos igualmente perder de vista que as abstraes estatsticas (os critrios retidos como indicadores pertinentes de realidades sociais) devem sempre ser contextualizadas. Quando tornamos absoluto o efeito desse ou daquele fator (ou a combinao entre um e outro), estamos produzindo falsos problemas ligados excessiva impreciso dos termos utilizados (o que define, em determinada pesquisa, uma origem social ou um meio social?) (LAHIRE, 1997, p.33).

    Nessa perspectiva, o socilogo investigou 26 famlias francesas de origem popular, com o objetivo de apreender quais fatores as aproximavam e as distanciavam no que se refere escolarizao dos filhos, analisando ao final as semelhanas e diferenas observadas. A partir desse confronto, pretendia-se encontrar respostas que justificassem a desigualdade de desempenho escolar existente entre os filhos dessas configuraes sociais. Ou seja, pretendia-se entender por que enquanto algumas crianas apresentavam um baixo rendimento escolar, outras se sobressaam, contrariando as expectativas deterministas de pertencimento social. O resultado desse trabalho rendeu um livro intitulado Sucesso escolar nos meios populares: as razes do improvvel, publicado no Brasil em 1997.

    Sua pesquisa decorreu a partir do princpio de que

    (...) s podemos compreender os resultados e os comportamentos escolares da criana se reconstruirmos a rede de interdependncias familiares atravs da qual ela constituiu seus esquemas de percepo, de julgamento, de avaliao, e a maneira pela qual estes esquemas podem reagir quando funcionam em formas escolares de relaes sociais (LAHIRE, 1997, p.19).

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    A anlise desses casos singulares foi fundamentada na antropologia da interdependncia 5, na qual os comportamentos sociais so entendidos como frutos de uma complexa combinao entre as dimenses cultural, econmica, escolar, moral, social, poltica, religiosa, entre outras.

    Essa perspectiva tambm serviu como fundamento para a formulao de crticas a alguns pensamentos vigentes no iderio escolar. Entre esses, destacamos a idia de que os pais so omissos em relao vida escolar dos filhos. A partir do que foi observado pelo socilogo nas famlias visitadas, essa idia se configura como uma profunda injustia interpretativa (LAHIRE, 1997, p.334). Tal pensamento emerge da ausncia dos pais no interior da instituio escolar, produzindo uma idia de negligncia e omisso. Contrariamente, o que foi constatado que (...) qualquer que seja a situao escolar da criana, (os pais) tm o sentimento de que a escola algo importante e manifestam a esperana de ver os filhos sair-se melhor do que eles (LAHIRE, 1997, p.334).

    De Queiroz (1981 apud NOGUEIRA, 1991, p.94) destacou esse aspecto do distanciamento e do reduzido envolvimento com a escola em famlias francesas cujo pai apresentava uma baixa qualificao profissional e nas quais, em geral, a me estava voltada para as atividades do lar. Conforme De Queiroz (1981 apud NOGUEIRA, 1991, p.94), essa atitude pode ser entendida como uma autodefesa da identidade. Segundo esses pais, a escola causava uma sensao de mal-estar, afastando-os desse ambiente. Esse distanciamento era justificado por algumas famlias atravs da queixa de que na escola eram tratadas de forma diferenciada, causando um sentimento de desvalorizao social. J outras consideravam que a escola pretendia uma proximidade excessiva e se recusavam a terem seus valores educativos avaliados pelos educadores, ou seja, para estes pais, cabia a eles e no aos professores estabelecer quais atitudes tomar em relao aos filhos.

    Em uma anlise mais superficial, esse distanciamento dos pais com a escola pode ser compreendido como omisso e falta de empenho com a escolarizao dos filhos. No entanto, assim como foi observado por Lahire (1997), essa caracterstica no passa de uma falsa-indiferena, j que essas famlias se revelam ao mesmo tempo concernidas e tocadas pelo processo de escolarizao, embora este se encontre sempre merc da situao econmica e das possibilidades vividas no momento (NOGUEIRA, 1991, p.94).

    5 Sobre a noo antropolgica de interdependncia ver o tpico Uma antropologia da interdependncia, no

    qual Lahire expe o conceito. LAHIRE, B. Sucesso escolar nos meios populares: as razes do improvvel.So Paulo:tica, 1997, p.348.

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    Desse modo, os estudos sobre as trajetrias improvveis nos meios populares tm trazido contribuies substanciais ao campo sociolgico. Viana (1996) apresenta uma reviso interessante de estudos recentes acerca desse tema. Enfocando autores estrangeiros como Zrolou (1988); Terrail (1990); Laurens (1992, 1993); De Queiroz (1993); e brasileiros como Portes (1993) e Zago (1991, 1993), a autora apresenta as principais indagaes presentes nesses trabalhos e que so bem semelhantes quelas j enunciadas: o que diferencia as famlias que apresentam resultados de xito escolar, qual o perfil dessas famlias e da sua prole, qual a trajetria escolar percorrida?

    A partir da anlise dessas pesquisas, Viana (1996) destacou alguns elementos apontados por esses pesquisadores como relevantes para o xito escolar. Com destaque para a participao familiar na vida escolar da prole, o superinvestimento da famlia e do prprio aluno, a autodeterminao do educando, o desejo de ascenso social, entre outros. Da, observa-se a complexidade que envolve as pesquisas inseridas nessa linha temtica, uma vez que cada famlia deve ser investigada tendo em vista que so diferentes em sua dinmica interna e na relao que estabelece com a escola e com a escolarizao dos filhos, assim como a expectativa que constroem sobre os investimentos escolares.

    Acrescentamos ainda a essa literatura uma produo nacional intitulada Por que uns e no outros: caminhadas de jovens pobres para a universidade (2003). Neste trabalho, Silva (2003), semelhana das anlises anteriores, busca compreender como pessoas de origem e caractersticas sociais to semelhantes possam escolher caminhos to diversificados e, at mesmo, opostos nos campos social, escolar, cultural, poltico e/ou econmico. Para tanto,

    esse autor investigou a trajetria de onze jovens moradores da Mar, o maior complexo de favelas da cidade do Rio de Janeiro. Os sujeitos dessa pesquisa superaram as expectativas ao ingressarem na universidade, em alguns casos, federais.

    Observa-se que apesar de ainda recente o interesse pelos casos de xito escolar nos meios populares, essa linha temtica acumula uma produo significativa. Citamos somente alguns artigos, mas possvel encontrar outras anlises interessantes nessa linha terica. Tais

    trabalhos caminham no sentido de romper com a cultura do fracasso escolar, acompanhando uma tendncia iniciada na dcada de 1980, momento em que foram implementadas polticas governamentais com o intuito de transformar fracasso em sucesso escolar, atravs

    (...) de vrias estratgias, tais como: programas de correo de fluxo escolar, progresso automtica de alunos e classes de reforo. Assim, reduzir custos, otimizar recursos pblicos, corrigir panes no fluxo de entrada e sada de alunos, planificar os currculos por meio de parmetros nacionais, descentralizar a administrao dos sistemas de ensino, instituir procedimentos de avaliao do produto escolar (...) (HECKERT, BARROS, 2007, p.5).

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    No se pode dizer o mesmo sobre o estudo dos casos improvveis nos meios favorecidos, isto , das reflexes acerca do papel da riqueza econmica sobre o desempenho escolar de alunos provenientes das classes mdias e elites. Ainda muito reduzido o nmero de pesquisas sobre o assunto.

    Nogueira (2003) ressalta a importncia dessa linha temtica ao estudar o excepcional e no mais a norma. O estudo dos casos improvveis ou atpicos, como so chamados, lana luz sobre a complexa interao entre famlia, aluno e escola. Apesar dessa relevncia, Nogueira destaca somente dois pesquisadores franceses que desenvolveram, na dcada de 1970, trabalhos que se inserem nessa linha temtica. Os franceses Jean Fourasti (1970, 1972) e Robert Ballion (1977) pesquisaram jovens provenientes de classes privilegiadas e puderam comprovar que o ndice de insucesso entre esses era bem mais elevado do que se poderia pensar. Contudo, apesar desse surpreendente achado, no houve uma continuidade nas reflexes sobre o tema.

    No cenrio brasileiro, ainda so escassos os trabalhos que exploram essa linha temtica. Podemos destacar o artigo Favorecimento econmico e excelncia escolar: um mito em questo (2004), no qual a sociloga Maria Alice Nogueira questiona

    (...) a ideologia de que o padro de excelncia escolar apangio dos ricos ou, em outros termos, de que as elites escolares se compem de alunos ricos. A tentativa , portanto, a de colocar em questo algo que no discutido usualmente, porque considerado (implicitamente) como indiscutvel: o papel incondicionalmente positivo do capital econmico no destino escolar do aluno (NOGUEIRA, 2004, p.3).

    Somando a essa tmida literatura, podemos acrescentar os trabalhos da acadmica Zaia Brando que, embora no tenham como foco central o insucesso nos meios favorecidos, evidenciam o fantasma do fenmeno do fracasso escolar entre esses estratos sociais. Ao estudar o processo de escolarizao de jovens oriundos das elites cariocas, eventualmente, se verifica a incidncia de rupturas e de estratgias preventivas contra os riscos de insucesso.

    Observa-se que tantos aqueles estudos que investigam o xito escolar entre as camadas populares quanto estes que analisam o insucesso entre os meios sociais mais privilegiados, procuram romper com o senso comum de que a condio social e econmica condiciona o bom desempenho escolar. Nesse sentido, Nogueira (2004, p.3) assinala que a origem terica desses estudos est inserida em um dilema clssico da sociologia da educao: a controvrsia sobre o peso relativo dos fatores culturais e dos fatores econmicos na definio dos rumos de uma trajetria escolar.

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    Da, se observa que esses trabalhos tm em comum uma forte influncia dos conceitos bourdieusianos. O sistema terico construdo pelo socilogo francs Pierre Bourdieu ganhou terreno no somente no campo da educao, como tambm, em outras reas do saber. De acordo com Nogueira e Nogueira (2006),

    Desde o incio de sua carreira, Bourdieu se mostra interessado em compreender a ordem social de uma maneira inovadora, que escape tanto ao subjetivismo (tendncia a ver essa ordem como produto consciente e intencional da ao individual) quanto ao objetivismo (tendncia a reificar a ordem social, tomando-a como uma realidade externa, transcendente em relao aos indivduos, e de conceb-la como algo que determina de fora para dentro, de maneira inflexvel, as aes individuais) (NOGUEIRA, NOGUEIRA, 2006, p.21).

    Valle (2007, p.119) refora esse carter inovador e multidisciplinar enfatizando, ainda, que possvel perceber em todo o conjunto da obra de Pierre Bourdieu uma intuio fundadora que pode ser resumida em uma frmula nica: as idias puras no existem. Nessa perspectiva, a obra desse terico francs, fornece aos estudiosos e pesquisadores novas possibilidades interpretativas para os fenmenos sociais.

    Nogueira e Nogueira (2006) apontam como justificativa vasta influncia do trabalho desenvolvido por Bourdieu dentro do campo educacional, o fato de ter formulado, a partir dos anos 1960, uma resposta original, abrangente e bem fundamentada, terica e empiricamente, para o problema das desigualdades escolares (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006, p.12). Assim, seus conceitos foram e continuam sendo largamente utilizados por aqueles que buscam entender as diferenas de desempenho escolar apresentadas por diferentes grupos sociais.

    So vrios os conceitos construdos por esse socilogo com fins a descortinar as relaes existentes entre o sistema de ensino e as classes sociais, no entanto, descreveremos aqueles que mais se aproximam temtica explorada neste trabalho, a saber, capital cultural, capital social e capital simblico.

    Na concepo bourdieusiana, os capitais cultural, simblico e social compem um patrimnio cultural herdado socialmente. Ou seja, a famlia transmite aos seus filhos no somente o capital econmico, mas esses capitais que, por sua vez, podem ser colocados a servio do sucesso escolar. Cada qual desempenharia um papel importante no destino social e escolar do seu detentor, ao mesmo tempo, que promovem entre si uma interao.

    Conforme as concepes formuladas por esse socilogo, o capital social pode ser definido como uma rede permanente e durvel de relaes sociais influentes. A manuteno dessas relaes, seja de amizade, de parentesco, profissional, entre outras, funcionaria como

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    um investimento social capaz de trazer ganhos futuros. Bourdieu (1980 in NOGUEIRA; CATANI, 1998, p.65), no entanto, deixa claro que embora o capital social no seja redutvel aos capitais econmico e cultural, aquele no est completamente independente destes.

    Outro componente dessa bagagem cultural o capital simblico, adquirido atravs do prestgio de um indivduo em uma dada sociedade. A posse desse capital pode surgir a partir de um sobrenome tradicional, da boa reputao, da ostentao de luxo e riqueza, pelo respeito adquirido em algum campo especfico, enfim, atravs de sinais externos que confiram ao seu detentor um lugar socialmente privilegiado. Quase sempre a importncia concedida a um indivduo est associada posse dos outros trs capitais (cultural, social, econmico), mas no necessariamente (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006). E, por fim, o capital cultural.

    A noo de capital cultural imps-se, primeiramente, como uma hiptese indispensvel para dar conta da desigualdade de desempenho escolar de crianas provenientes das diferentes classes sociais, relacionando o sucesso escolar, ou seja, os benefcios especficos que as crianas das diferentes classes e fraes de classe podem obter no mercado escolar, distribuio do capital cultural entre as classes e fraes de classe. Este ponto de partida implica em uma ruptura com os pressupostos inerentes, tanto viso comum que considera o sucesso ou fracasso escolar como efeito das aptides naturais, quanto s teorias do capital humano (BOURDIEU, 1979 in NOGUEIRA; CATANI, 1998, p.73).

    Na formulao terica bourdieusiana, o capital cultural apresentado sob trs formas, a saber, capital cultural incorporado, capital cultural objetivado e capital cultural institucionalizado.

    A partir dessa diviso, temos o capital cultural incorporado, entendido como a bagagem socialmente herdada como o domnio da lngua culta, um saber falar e agir, uma forma de pensar o mundo, enfim, uma cultura geral. Tal capital incorporado pelo indivduo mediante o convvio com os familiares, ou seja, atravs da socializao. Essa incorporao ocorre de forma difusa, involuntria e individual.

    A seguir, tem-se o capital objetivado, representado pelos bens materiais, como livros, quadros, esculturas, pinturas, colees, enfim, obras de arte. A posse desses objetos implica a posse de capital cultural incorporado necessrio ao reconhecimento do valor simblico impresso nesses bens materiais.

    O outro capital cultural seria o institucionalizado, representado pelos ttulos escolares e acadmicos que um indivduo adquire no transcorrer da sua trajetria social. Da mesma forma que no anterior, para a obteno dos ttulos provenientes de instituies valorizadas socialmente necessrio a posse do capital cultural incorporado.

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    A partir das concepes dos capitais cultural, social e simblico, Bourdieu pretendeu fugir determinao do capital econmico sobre o desempenho escolar, sem, contudo, desconsiderar que a posse desse capital que possibilita, na maioria das vezes, a posse e uso dos outros tipos de capital. Para o supracitado socilogo, no entanto, seria o capital cultural que exerceria o maior impacto sobre a trajetria escolar.

    A posse de capital cultural favoreceria o desempenho escolar na medida em que facilitaria a aprendizagem dos contedos e dos cdigos (intelectuais, lingsticos, disciplinares) que a escola veicula e sanciona. Os esquemas mentais (as maneiras de pensar o mundo), a relao com o saber, as referncias culturais, os conhecimentos considerados legtimos (a cultura culta ou a alta cultura) e o domnio maior ou menor da lngua culta, trazidos de casa por certas crianas, facilitariam o aprendizado escolar tendo em visa que funcionariam como elementos de preparao e de rentabilizao da ao pedaggica, possibilitando o desencadeamento de relaes ntimas entre o mundo familiar e a cultura escolar. A educao escolar, no caso das crianas oriundas de meios culturalmente favorecidos, seria uma espcie de continuao da educao familiar, enquanto para as outras crianas significaria algo estranho, distante, ou mesmo ameaador (...) Cobra-se que os alunos tenham um estilo elegante de falar, de escrever e at mesmo de se portar; que se mostrem sensveis s obras da cultura legtima, que sejam intelectualmente curiosos, interessados e disciplinados; que saibam cumprir adequadamente as regras da boa educao. Essas exigncias s podem ser plenamente atendidas por quem foi previamente (na famlia) socializado nesses mesmos valores (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006, p.61).

    E ainda, conforme assinalam Nogueira e Nogueira (2006, p.61), o capital cultural proporciona um acmulo de informaes sobre a estrutura e o modo de funcionamento do sistema de ensino, e mais, sobre a hierarquia que distingue as instituies no que tange a qualidade acadmica, o prestgio social e o retorno financeiro. Desse modo, o capital de informaes permite ao seu detentor ter o senso do jogo escolar e assim, poder agir da forma mais adequada em momentos de risco. Em outros termos, a posse desse recurso extra, maximiza o sucesso escolar, na medida em que possibilita a escolha de estratgias mais seguras, evitando riscos desnecessrios. Assim, diante de momentos decisivos, o capital de informaes possibilita, por exemplo, uma escolha mais adequada do estabelecimento de ensino para o filho, decidir sobre a mudana de uma escola para outra, sobre a interrupo dos estudos para fazer intercmbios, entre outras decises que, se bem pensadas, podem trazer um retorno positivo.

    Apontamos algumas crticas tecidas noo de capital cultural. Bourdieu (1979 in NOGUEIRA; CATANI, 1998) argumenta que a herana cultural (...) transmite-se de maneira osmtica, mesmo na falta de qualquer esforo metdico e de qualquer ao manifesta (...) (BOURDIEU, 1996 in NOGUEIRA; CATANI, 1998, p.46). Para Lahire (1997), no entanto, a

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    (...) presena objetiva de um capital cultural familiar s tem sentido se esse capital cultural for colocado em condies que tornem possvel sua transmisso (LAHIRE, 1997, p.338). Nem sempre as pessoas dotadas de alto capital cultural em uma dada famlia tm condies de transmitir alguns de seus conhecimentos ou algumas de suas disposies escolarmente rentveis, de maneira regular, contnua, sistemtica (LAHIRE, 1997, p.338).

    De acordo com esse ponto de vista, no suficiente a posse de uma vasta cultura, da mais alta titulao acadmica, se no houver tempo e condies favorveis para a transmisso desse patrimnio cultural. E mais, necessrio que haja tambm por parte do receptor uma disposio em querer se apropriar desse conhecimento. Nesse ponto, Lahire (1997) chama a ateno para o termo transmisso que, a seu ver, implica um destinatrio passivo. Nesse aspecto, esse pensador ressalta:

    Falar de transmisso , principalmente, conceber a ao unilateral de um destinador para um destinatrio, ao passo que o destinatrio sempre contribui para construir a mensagem que se considera ter-lhe sido transmitida. Ele tem de atribuir-lhe sentido na relao social que mantm com o que est ajudando a construir seus conhecimentos e com seus prprios recursos, construdos no curso de experincias anteriores. Alm disso, mesmo nas mais formais situaes de aprendizagem (por exemplo, as situaes escolares), o que o adulto julga transmitir nunca o que exatamente aquilo que recebido pelas crianas. Os horizontes se revelam diferentes sob muitos aspectos. (...) Assim, a noo de transmisso no explica muito bem o trabalho de apropriao e de construo efetuado pelo aprendiz ou pelo herdeiro. Ela tambm no consegue indicar a necessria e inevitvel transformao do capital cultural no processo de outorgao de uma gerao para outra, de um adulto para um outro adulto, etc., pelo efeito das diferenas entre aqueles que, presume-se, transmitem e aqueles que, supe-se, recebem (LAHIRE, 1997, p.341).

    E ainda, chamamos a ateno para o que Lahire (1997) denomina de patrimnio cultural morto. Para esse pensador alguns pais fazem grandes investimentos na compra de enciclopdias, livros, dicionrios entre outros produtos culturais. Porm, por falta de disposio ou de oportunidades, esses pais no desempenham o papel de intermedirios que possibilitaria aos filhos apropriarem-se dos textos que so colocados disposio deles (LAHIRE, 1997, p.342). Esse terico tambm assinala que muitas vezes o contedo desses livros est fora do alcance de compreenso dos filhos. Em conseqncia, esses objetos culturais seriam pouco utilizados, constituindo um patrimnio cultural morto, no apropriado e in-apropriado.

    No que tange a maneira de se conceber o conceito de capital cultural, Setton (2005) faz uma reflexo interessante ao estudar a trajetria pessoal e familiar de alunos de origem popular, com baixos rendimentos e pequena herana de uma cultura escolar que ingressam em

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    cursos considerados de elite na Universidade de So Paulo (USP). A partir da perspectiva de que o capital cultural um recurso estratgico e pode ter variadas formas, Setton (2005) prope uma ampliao na forma de se entender esse conceito, integrando a esse, prticas culturais informais.

    Em outros termos,

    (...) preciso salientar que a posse desse novo capital pode derivar de investimentos culturais diversos. Pode se expressar na forma de diplomas, na visitao a museus e assistncia a concertos eruditos ou, na sua impossibilidade, pode se expressar em comportamentos menos aristocrticos no deixando de ser utilizado como capital distintivo. Isto , na falta de diplomas, na ausncia do hbito de freqentar os templos da cultura, esse novo recurso pode ser explicitado em atitudes mais simples. (...) quero salientar que a leitura de jornais e revistas, a assistncia interessada a uma programao televisiva informativa, a audincia a entrevistas com especialistas, ou viagens pela Internet (entre outras possibilidades) podem servir tambm como estratgias de adquirir os bens da cultura e do conhecimento e de ter acesso a estes. Em outras palavras, quero destacar uma outra ordem de estratgias e/ou prticas culturais que demonstram uma abertura ante o aprendizado informal/formal difundido por instancias ainda no consagradas como legtimas (SETTON, 2005, p.80).

    Nessa mesma linha de pensamento, Brando e Martinez (2006) apontam que os autores Ortiz (2002), Garcia Canclini (2000) e Sarlo (2000) observaram uma alterao nos padres de consumo cultural mediante o impacto da mundializao da cultura. Nesse sentido, Garcia-Canclini (2000 in BRANDO; MARTINEZ, 2006) sinaliza uma diminuio de freqncia aos espaos pblicos associados oferta cultural clssica, como museus, livrarias, salas de teatro, cinema e msica. Esse fenmeno explicado pela complexificao da vida urbana (disponibilidade de tempo, dificuldades nos deslocamentos e medo da violncia). A tradio e as artes no se configuram mais como padres de legitimidade no novo contexto mundial globalizado, ressalta Ortiz (2000 in BRANDO; MARTINEZ, 2006).

    J no so os valores clssicos que organizam a vida cultural, mas, o que alguns autores chamam de cultura de massas. A arte de viver no toma mais como referncia alta cultura, mas os tipos de sadas realizadas pelos indivduos ira ao concerto de rock, a opera, aos restaurantes, ao cinema, ao teatro, viajar de frias. A oposio cultura erudita x cultura popular substituda por outra: os que saem muito versus os que permanecem em casa. (...) a mobilidade, caracterstica da vida moderna, torna-se sinal de distino (ORTIZ, 2000, p.211 in BRANDO; MARTINEZ, 2006, p. 12).

    Assim, Brando e Martinez (2006) utilizam o termo capital informacional nos seus trabalhos, adotando como perspectiva a idia de que o acesso informao no mundo contemporneo desigual, pois est fortemente relacionado s condies scio-econmicas.

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    As autoras compreendem que a qualidade de vida social nos espaos urbanos das grandes metrpoles exige um tipo de conhecimento que precisa ser constantemente atualizado. Esse saber necessrio para se articular o mbito local aos cenrios mundiais/globais. Atravs dessa articulao se torna possvel compreender e significar o cotidiano, assim como para desenvolver estratgias a partir da antecipao de cenrios futuros de curto prazo (BRANDO; MARTINEZ, 2006). Desse modo, o termo capital informacional define novos modos de produo e o fluxo de capitais, assim como as formas de vida dos grupos e famlias.

    Entretanto, como mencionamos, o acesso a essas informaes no distribudo democraticamente, uma vez que est fortemente associado s condies scio-econmicas. Essa possibilidade de atualizao est ligada ao uso das novas tecnologias de informao que, alm de constiturem o meio no qual o capital-informao produzido, armazenado e transmitido, servem tambm como vias de escoamento e orientao do fluxo de trocas materiais e simblicas.

    No Brasil, as classes mdias e altas, razoavelmente supridas de servios bsicos, passam a demandar, conforme esse autor, servios interativos que lhes dem acesso a novos padres e comportamentos de consumo e entretenimento (televiso por assinatura, compras on line, Internet etc), geralmente agenciadas a partir dos Estados Unidos. A concentrao de grandes corporaes no gerenciamento de jornais, revistas, editoras de livros, TV aberta ou paga e Internet tm conseqncias importantes sobre os gostos e padres de consumo dos diferentes estratos da populao (BRANDO, MARTINEZ, 2006, p.7).

    Na verdade, esses autores propem uma ampliao da concepo de capital cultural sem, contudo, discordar de que as chances de xito escolar so potencializadas conforme o volume e o tipo de informaes possudos por um indivduo. Desse modo, Brando (2000) enfatiza que

    As famlias se diferenciam umas das outras pela estrutura e o volume de seu patrimnio (capitais) acumulado (background), que lhes assegura uma posio na estrutura social, forjando ethos e habitus especficos que por sua vez geram estratgias expressas em prticas. As estratgias familiares refletem portanto, um clculo (que no puramente racional) a partir das chances de ascenso que cada grupo capaz de antever e de atrair para si (BRANDO, 2000, p.2).

    Entramos, desse modo, em uma discusso que se tornou recorrente entre os pesquisadores da Sociologia da Educao: a utilizao de estratgias na trajetria escolar. A reflexo sobre essa temtica assume um carter bem abrangente. Tendo como aporte terico das anlises as premissas bourdieusianas ou de outros tericos, o certo que as estratgias utilizadas pela famlia ou pelo prprio aluno desempenham um papel fundamental sobre os resultados finais. Da se justifica a importncia do estudo desses mecanismos.

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    No sistema terico proposto por Bourdieu, a escolha por determinadas estratgias est condicionada posio do indivduo, ou melhor, do agente na estrutura social, assim como, ao volume de capitais que possui. Dessa forma, o que leva uma pessoa a escolher essa ou aquela estratgia vai depender da posio social que ocupa, do volume e estrutura dos capitais possudos, assim como da possibilidade de retorno dos investimentos empreendidos. Os agentes utilizam o mecanismo das estratgias para a conservao ou o aumento do patrimnio e, correlativamente para a manuteno ou melhoria da posio do grupo dentro da estrutura social (BOURDIEU, 1974 in NOGUEIRA; CATANI, 1998, p.113).

    Nessa formulao terica, no h como compreender uma estratgia sem associ-la s noes de campo e de habitus que, alis, so conceitos interdependentes na teoria de Bourdieu. Destacaremos de forma breve alguns aspectos sobre essas concepes para, em seguida, retomarmos a temtica das estratgias.

    Para esse socilogo francs, a estrutura social formada por diversos campos, seja poltico, escolar, cientfico, filosfico, artstico e assim por diante. Em cada um desses campos h uma relao de fora entre os agentes e/ou instituies para preservar ou melhorar sua posio no interior desse espao. Ou seja, esse microcosmo social um espao de lutas entre os diferentes agentes que ocupam diversas posies (BOURDIEU apud LAHIRE, 2002, p.47). As regras que regem os jogos no interior desses espaos sociais so especficas para cada campo. Em cada um desses espaos sociais tambm existe um capital especfico e legtimo. Em nome da apropriao e domnio desse capital que ocorrem as lutas entre os agentes e/ou instituies.6

    Nesse microcosmo social cada agente detentor de um hbitus que pode ser entendido como

    (...) um sistema de disposies durveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto , como princpio que gera e estrutura as prticas e as representaes que podem ser objetivamente regulamentadas e reguladas sem que por isso sejam o produto de obedincia de regras, objetivamente adaptadas a um fim, sem que se tenha necessidade da projeo consciente deste fim ou do domnio das operaes para atingi-lo, mas sendo, ao mesmo tempo, coletivamente orquestradas sem serem o produto da ao organizadora de um maestro (BOURDIEU, 1972 apud CATANI, s/d, p.4 ).

    6 Sem aprofundar muito na definio de campo, por no ser o tema central do trabalho, consideramos, contudo,

    relevante expor a crtica de Lahire (2002) a essa concepo bourdieusiana. (...) Grande parte dos indivduos de nossas sociedades (as classes populares que, de sada, so excludas dos campos de poder) revela-se fora-do-campo, afundados num vasto espao social cujo nico eixo de estruturao o volume e a estrutura do capital possudo (capital cultural e capital econmico) (...) A teoria dos campos empenha muita energia para iluminar os grandes palcos em que ocorrem os desafios de poder, mas pouca para compreender os que montam esses palcos, instalam os cenrios ou fabricam seus elementos,(...) A teoria dos campos mostra, portanto, pouco interesse para a vida fora-do-palco ou fora-do-campo dos agentes que lutam dentro de um campo (LAHIRE, 2002, p. 50).

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    Para Wacquant (2007), a noo de habitus ajuda a compreender como a sociedade est depositada nas pessoas sob a forma de disposies durveis, ou capacidades treinadas e propenses estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados, que ento as guiam nas suas respostas criativas aos constrangimentos e solicitaes do seu meio social existente (WACQUANT, 2007, p.1).

    Em outros termos, habitus engendra as prticas sociais que estariam estruturadas e apresentariam caractersticas prprias da posio social de quem as pratica. Assim, as experincias vivenciadas pelos indivduos que, de certa forma, esto diretamente relacionadas sua posio social, estruturariam internamente a subjetividade de cada ser, como se fosse uma matriz de percepes e apreciaes e, assim, orientariam suas aes posteriores.

    O conceito de habitus seria assim a ponte, a mediao, entre as dimenses objetiva e subjetiva do mundo social, ou simplesmente, entre a estrutura e a prtica. O argumento de Bourdieu o de que estruturao das prticas sociais no um processo que se faa mecanicamente, de fora para dentro, de acordo com as condies objetivas presentes em determinado espao ou situao social. No seriam por outro lado, um processo conduzido de forma autnoma, consciente e deliberada pelos sujeitos individuais. As prticas sociais seriam estruturadas, isto , apresentariam propriedades tpicas da posio social de quem as produz, porque a prpria subjetividade dos indivduos, sua forma de perceber e apreciar o mundo, suas preferncias, seus gostos, suas aspiraes, estariam previamente estruturadas em relao ao momento da ao. (...) cada sujeito em funo de sua posio nas estruturas sociais, vivenciaria uma srie caracterstica de experincias que estruturariam internamente sua subjetividade, constituindo uma espcie de matriz de percepes e apreciaes que orientaria , estruturaria, suas aes em todas as situaes subseqentes (NOGUEIRA;, NOGUEIRA 2006, p.28).

    Cabe ressaltar, no entanto, que o habitus, na acepo bourdieusiana, no corresponderia a um todo inflexvel de regras de comportamento que seriam rigorosamente seguidas pelo agente, e sim, constituiria um princpio gerador duravelmente armado de improvisaes regradas (BOURDIEU, 1983a, p.65 apud NOGUEIRA; ROMANELLI; ZAGO, 2007, p.28).

    No poderamos, no entanto, deixar de mencionar algumas crticas noo de habitus, especialmente, no que tange o seu processo de formao e transmisso. Na obra Bourdieu e a Educao, Nogueira e Nogueira (2006) destacam alguns autores e suas reflexes a respeito do conceito de habitus. Na interpretao de Alexander (2006 apud NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006) a concepo de habitus elaborada por Bourdieu, reduz excessivamente o grau de autonomia do universo mental, simblico, cultural dos indivduos grupos em relao s suas condies objetivas de existncia (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006, p.106).

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    Em outros termos, os valores, os modos de pensar e agir no estariam determinados, de forma to estreita, por um pertencimento social. A subjetividade de um individuo constituda de forma complexa pela interao social e pela identificao com os outros indivduos e, assim, (...) os resultados no poderiam ser adequadamente previstos pelo simples conhecimento de sua posio nas estruturas sociais (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006, p.106).

    Direcionando as reflexes para o mbito educacional, Charlot (apud NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006) chama a ateno para o sentido que os indivduos concedem a sua escolarizao que, por sua vez, no pode ser considerado produto da posio social ocupada pela famlia. Embora reconhea que o fato de ocupar uma dada posio social favorea o acesso a certos recursos e vivncia de certas experincias, ressalta que esses recursos e essas experincias no exercem uma influncia externa sobre esses indivduos. Conta muito mais o significado atribudo a esses elementos fazendo com que haja ou no o interesse pelos mesmos.

    Nesse sentido,

    Ter pais com um grande patrimnio econmico e cultural, por exemplo, tenderia a favorecer, mas no garantiria uma boa trajetria escolar. Em primeiro lugar, ter-se-ia que investigar o modo como esses pais interpretam e se relacionam com seu patrimnio e o grau e o modo como eles o utilizam em beneficio da escolaridade dos filhos. Em segundo lugar, ter-se-ia que analisar a relao que os prprios filhos estabelecem com esse patrimnio familiar e mais amplamente o modo como eles se relacionam com a escola e com o saber. O mesmo raciocnio valeria para o caso inverso: pertencer a uma famlia com limitados recursos econmicos e culturais no imporia necessariamente o insucesso escolar. Em todos os casos, o efeito das condies objetivas sobre a escolarizao dos indivduos seria intermediado pelos significados que os pais e filhos atribuem a essas condies e ao processo de escolarizao. Esses significados seriam construdos por cada um dos sujeitos envolvidos, de maneira singular, ao longo de suas historias de vida, com base em mltiplos contatos sociais que eles estabelecem e dos diversos eventos mais ou menos imprevisveis de que participam (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006, p.107).

    Aproximando-se dessa perspectiva, Lahire (apud NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2006) observa que em uma anlise coletiva ou macro-social pertinente se apontar uma correlao entre posio social e disposies para ao. Sendo assim, nas anlises coletivas pode-se afirmar que determinada classe social tem a propenso a agir de determinada forma, enquanto outra classe se inclina para outras aes. Entretanto, no h como determinar a ao de um indivduo especfico.

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