20
Este texto pretende ser, ao mesmo tempo, uma breve síntese e o reinício de uma reflexão sobre a dimensão estética da arquitetura Contextualiza esta dimensão tanto em face de outros aspectos específicos - tecnológicos, ambientais, políticos, etc. " como em face do problema mais geral da Estética e da Arte. Ao final, encontram-se apenas sugeridos, para posterior desenvolvimento, os elementos fundamentais da arquitetura enquanto linguagem artística. 1. INTRODUÇÃO Há um objetivo imediatamente didático neste texto: contribuir, de maneira sucinta, para o entendimento da dimensão estética da arquitetura. Para tanto, inicio a discussão por uma referência à sua natureza multidimensional, ou seja, ao fato de que ela contém as mais diversas implicações, as quais são reveladas por disciplinas específicas. Assim é que os aspectos estéticos constituem uma dimensão da arquitetura ao lado de outras dimensões, como a tecnol6gica, a ambiental, a política, a econômica, etc. Em seguida, abordo os conceitos de estética, beleza e arte, chamando a atenção para o fato de que, como qualquer conceito, estes também são constituídos ao longo do tempo, transmitindo idéias que variam em função do momento histórico em que são formulados. Discuto então os gêneros artísticos, registrando as maneiras pelas quais eles se diferenciam em linguagens específicas. Numa "digressão epistemológica", abordo as relações entre arte e conhecimento e passo, finalmente, ao que concerne particularmente à arquitetura como linguagem artlstica, procurando identificar seus elementos fundamentais. De todos os aspectos da arquitetura, os estéticos são talvez aqueles que se têm mostrado mais refratários a uma objetivação concretamente trabalhável. Isso não se dá por acaso. Revendo a literatura disponível neste sentido, encontramos um enorme número de posições sobre o assunto, que não esboçam sequer alguns paradigmas de síntese discerníveis no horizonte. O leitor julgará se estas notas embolam mais ainda o meio-de-campo ou se apontam para uma luz no fim do túnel. Se não tanto, que se considere como um roteiro para um estudo mais aprofundado sobre a questão. 2. OS SENTIDOS DA ARQUITETURA Coelho Netto, em seu livro A construção do sentido na Arquitetura 1, propõe-se examinar os elementos fundamentais da linguagem da arquitetura: "o espaço como forma genérica de expressão que efetivamente Informa o homem ... e como detentor de sentidos pass(veis de uma formalização necessária para a operação sobre esse mesmo espaço" (grifos meus). Em seu trabalho, não fica explícito, de início, a quantos e a qual,;, sentidos ele vai-se referir. Mas, em seu texto, ele aborda vários desses sentidos, dependendo do "eixo organizador do sentido do espaço" que examina. Por exemplo: quando trata do eixo "espaço interior x espaço exterior", trata do sentido sócio-antropológico ou, como prefiro, comportamental; quando trata do eixo ·espaço artificial x espaço natural", comenta as ·visões

3107-7259-2-PB

Embed Size (px)

DESCRIPTION

3107-7259-2-PB

Citation preview

  • Este texto pretende ser, ao mesmo tempo, uma breve sntese e oreincio de uma reflexo sobre a dimenso esttica da arquiteturaContextualiza esta dimenso tanto em face de outros aspectosespecficos - tecnolgicos, ambientais, polticos, etc. " como em face doproblema mais geral da Esttica e da Arte. Ao final, encontram-seapenas sugeridos, para posterior desenvolvimento, os elementosfundamentais da arquitetura enquanto linguagem artstica.

    1. INTRODUO

    H um objetivo imediatamente didtico neste texto: contribuir, de maneira sucinta,para o entendimento da dimenso esttica da arquitetura. Para tanto, inicio a discusso poruma referncia sua natureza multidimensional, ou seja, ao fato de que ela contm as maisdiversas implicaes, as quais so reveladas por disciplinas especficas. Assim que osaspectos estticos constituem uma dimenso da arquitetura ao lado de outras dimenses,como a tecnol6gica, a ambiental, a poltica, a econmica, etc. Em seguida, abordo osconceitos de esttica, beleza e arte, chamando a ateno para o fato de que, como qualquerconceito, estes tambm so constitudos ao longo do tempo, transmitindo idias que variamem funo do momento histrico em que so formulados. Discuto ento os gnerosartsticos, registrando as maneiras pelas quais eles se diferenciam em linguagensespecficas. Numa "digresso epistemolgica", abordo as relaesentre arte e conhecimentoe passo, finalmente, ao que concerne particularmente arquitetura como linguagem artlstica,procurando identificar seus elementos fundamentais.

    De todos os aspectos da arquitetura, os estticos so talvez aqueles que se tmmostrado mais refratrios a uma objetivao concretamente trabalhvel. Isso no se d poracaso. Revendo a literatura disponvel neste sentido, encontramos um enorme nmero deposies sobre o assunto, que no esboam sequer alguns paradigmas de sntesediscernveis no horizonte. O leitor julgar se estas notas embolam mais ainda omeio-de-campo ou se apontam para uma luz no fim do tnel. Se no tanto, que se considerecomo um roteiro para um estudo mais aprofundadosobre a questo.

    2. OS SENTIDOS DA ARQUITETURA

    Coelho Netto, em seu livro A construo do sentido na Arquitetura 1, prope-seexaminar os elementos fundamentais da linguagem da arquitetura: "o espao como formagenrica de expresso que efetivamente Informa o homem ... e como detentor de sentidospass(veis de uma formalizao necessria para a operao sobre esse mesmo espao"(grifos meus). Em seu trabalho, no fica explcito, de incio, a quantos e a qual,;, sentidos elevai-se referir. Mas, em seu texto, ele aborda vrios desses sentidos, dependendo do "eixoorganizador do sentido do espao" que examina. Por exemplo: quando trata do eixo "espaointerior x espao exterior", trata do sentido scio-antropolgico ou, como prefiro,comportamental; quando trata do eixo espao artificial x espao natural", comenta as vises

  • de mundo" comunicadas pelo tratamento destes plos; quando trata do eixo "espaogeomtrico x espao no geomtrico", chega a abordar os aspectos estticos.

    Para maior clareza da anlise, devemos explicitar sempre que tipo de leitura estamosfazendo de um fenmeno multifacetado como o espao arquitetnico. Isto porque, comoqualquer fenmeno do mundo real, quer natural, quer cultural, tambm a arquitetura passlvel de mltiplas anlises no processo de diviso do trabalho no conhecimento que jatingimos.

    Tentativas de ordenao dessa produo de conhecimento, classificando-se os vriossentidos da arquitetura, no tm faltado. Hillier & Leaman2, por exemplo, propem um"modelo de quatro funes", agregando os estudos arquitetnicos conforme estes revelem asimplicaes dos espaos construidos ou apropriados socialmente em face das relaesHomemlNatureza ou Homem/Homem. Neste modelo, qualquer artefato arquitetnico,independentemente de sua escala (um ediflcio ou um conjunto urbano, por exemplo),modifica a realidade prvia sua existncia de quatro maneiras essenciais: a) quanto srelaes Homem/Natureza: 1) como modificador ambiental e 2) como modificadoreconmic'); b) quanto s relaes Homem/Homem: 3) como modificador comportamental e4) como odificador simblico.

    No cabe aqui discutir as potencialidades e limitaes do modelo hillieriano. Cabeapenas chamar a ateno para o fato de que essas distintas dimenses do espao - ououtras que resultem de uma classificao diversa - exigem o desenvolvimento de "regiestericas" que esclaream cada uma das funes exercidas pela arquitetura, ou seja, que, deacordo com vrios pontos de vista, sejam capazes de avaliar o seu DESEMPENHO. Esta uma idia-chave que gostaria de fixar. Avaliamos um artefato arquitetnico quandoesclarecemos o seu desempenho diante de expectativas sociais colocadas em relao aosdiferentes aspectos estruturais inerentesa qualquer objeto arquitetnico.

    Este texto procurar, assim, comentar um determinado tipo de desempenho daarquitetura: o desempenho esttico, isto , aquele que se d diante de expectativas sociaisde natureza esttica.

    "Cincia do Belo", "Cincia das formas", "Rlosofia da Arte", "Estudo dos julgamentosdo gosto": nestes termos variam as definies de Esttica. Mas a "arqueologia" da palavranos ajuda a entender melhor o sentido contemporneo que ela adquiriu. Williams3 observaque "esttica", assim como "arte" e "cultura",assumem novos sentidos pari passus grandestransformaes sociais ocorridas no Ocidente a partir do sculo XVIII. O termo "esttica", emparticular, foi cunhado por Alexander Baumgarten em 1750, como relativo qullo que apreensfvel pelos sentidos, mas j referido arte e apreciao da beleza, diferentementeda acepo mais ampla veiculada pela palavra grega aesthesis. aqui, o termo referia-se scoisas materiais, isto , perceptveis pelos sentidos, em oposio s coisas imateriais, quepoderiam ser somente pensadas.

    Williams comenta como estas mutaes de sentido de "palavras-chave" na sociedadeocidental esto relacionadas com a nova dicotomia valor de uso/Valor de troca. Estticopassa a se referir no a tudo o que percebido, mas s ao qu~ percebido como belo; artedeixa de ser tudo o que feito e passa a se referir ao que feito para fins decontemplao; cultura deixa de se referir ao processo global de desenvolvimento humano epassa a se referir ao que "refinado", simblico, ou superestrutural..Assim, os autorescontemporneos freqentemente intercambiam os conceitos de esttica, beleza e arte, a

  • ponto de cairem em definies circulares, como o faz, por exemplo, Souriau5: a sensibilidadeesttica seria "o conjunto de sentimentos que o Homem pode experimentar diante das obrasde artEl6, e a arte, o "conjunto dos trabalhos que, numa dada sociedade, visa a satisfazer-lheas necessidades esttica5'7.

    Estas mudanas de sentido correspondem a mudanas roadiviso social do trabalhoe do conhecimento. Novos agentes sociais e novas disciplinas configuram a nova formaosocial, que traz embutidas novas contradies e novos problemas, mas tambm novosavanos. Pagamos um preo por essa diviso entre o "belo" e a "percepo em geral", aomesmo tempo em que aprofundamos o conhecimento sobre nosso prprio aparelhoperceptivo e sobre os mecanismos da percepo em geral, e da percepo artstica, emparticular.

    claro que o conceito e a procura da beleza existem desde sempre nas sociedadeshumanas. Na feitura do mais rudimentar objeto, a mais primitiva das comunidades buscavasolues que ultrapassassem a pura dimenso utilitria do artefato, no sentido de algo quesatisfizesse expectativas do gosto contemplativo. O que se verifica contemporaneamente,portanto, uma ruptura, antes inexistente, entre o "belo", por um lado, e o "bom", o "til" ou o"ritualistico", por outr08. A arte como pura contemplao (ou reflexo) - melhor termo do queo infeliz "arte pela arte", que alguns preferem - , assim, uma inveno cultural recente,surgida em determinado momento do desenvolvimentono linear das sociedades humanas.

    Optarei, neste texto, por assumir esta "verdade" provisria, ciente de que a existnciado fenmeno artistico assim entendido no historicamente irreversivel. Num momentofuturo, uma nova relao pode vir a se estabelecer entre "arte" e outras prticas sociais,eliminando-se a ruptura h pouco mais de duzentos anos criada.

    No mesmo espirito, utilizarei aqui a acepo contempornea da palavra esttica, ouseja, aquela que a vincula anlise da Beleza, j que o desenvolvimento de outrasdisciplinas permitiram o aprofundamento do conhecimento sobre o fenmeno da percepolato sensu, como a psicologia, a Teoria da Informao,ou mesmoa biologia.

    Novamente o conceito do Belo pode ser muito amplo; encontra-se beleza numapaisagem, num animal. Entretanto, em funo dos objetivos deste trabalho, as observaesque se seguem vo-se referir ao conceito de Beleza somente enquanto for pertinente aosobjetos artefatuais, isto , ao campo do artificialmenteproduzido.

    Caracterizariam o Belo, como sugeriram autores desde a Antiguidade, qualidadescomo suavidade, claridade, harmonia, unidade, unidade na variedade, Integridade,intellglbllldade9 Entretanto essas qualidades so exclusivas dos "objetos belos"? A no serque alarguemos excessivamente (isto , banalizemos) o conceito de Beleza, uma frmulamatemtica pode ser bela? ou um discurso politico? ou a soluo de um problemageomtrico?

    Souriau1o concorda que fenmenos do mundo real (natural ou cultural) somultifacetados, isto., passiveis de apreenso por inmeras disciplinas, ditas exatas (fsica,biologia, etc.) ou sociais (economia, psicologia, etc.), mas que, esgotadas essaspossibilidades analticas "tradicionais", h uma dimenso que restou de fora: a formal. Mas oproblema continua no resolvido: verdade que aquelas cincias "tradicionais" fazem daforma motivo de sua ateno (por exemplo, a aerodinmica). Ento, uma nova qualificaose torna necessria: forma, sim, mas sob que aspecto?

  • Osborne 11sugere que o ser humano, diferentemente dos animais, tem predisposiesemocionais extremamente ricas: raiva, cime e amor; curiosidade; respeito, admirao ousede de poder; adorao; etc., mas que no h um campo emocional particular onde selocalizem as percepes relativas beleza. Prope, ento, que a atividade esttica aativao autnoma dos sentidos da viso, audio e Imaginao, de maneira que, nesteprocesso, enriqueamos nossa capacidade de ver, ouvir e imaginar. Nosso prazer estticoser to mais especfico quanto mais ampliadas sentirmos essas nossas capacidades naapreciao dos fenmenos do mundo real, mas em termos abstratos, ou seja,independentemente de sua aplicao para a resoluo de problemas prticos12. A emooesttica estar em relao direta com o estmulo provocado em nossos sentidos pela obra dearte. Osbome opta por uma viso radicalmente "Idica" ou "informacional", por assim dizer,da Esttica. Outros autores sugerem, pelo menos, mais dois caminhos que podem serconsiderados complementares a este.

    Evaldo Coutinho13 prope a autonomia do mtodo esttico, no sentido de que aanlise esttica da obra de arte deva restringir-se ao campo formal, consideradas aslimitaes impostas expresso do autor pela natureza especfica de cada matria artlstica(mais abaixo voltaremos a este ponto). Mas, para Coutinho, a avaliao esttica diz respeito medida que, via forma, o autor veicula uma "viso de mundo"14. No haveria distino defundo entre uma obra filosfica e uma obra arUstica: apenas a primeira pode lide com"infindos valores ..., nenhuma coisa se recusa a tocar-se da intuio do filsofo~ enquanto asegunda impe ao artista as limitaes oriundas da natureza de sua matria especfica15. Aemoo esttica, desta vez, estar em relao direta com a clareza pela qual se expressauma viso de mundo, mas na medida em que esta comunicada pela manipulao dosrecursos de linguagem prprios a cada gnero artstico. Parece-me que a nfase colocadapor Coutinho na autoria individual no prejudica essencialmente o seu argumento: "vises demundo" tambm so construdas socialmente, seja por comunidades no dicotomizadas, sejapor determinadas classes sociais nas sociedades divididas.

    Uma terceira viso pode ser considerada como desdobramento e especificao daviso filosfica. Sem a ambio desta ltima, postula apenas que trabalhos artsticosveiculam "estados emocionais": podem ser arrebatados, dramticos, frios, graciosos,irnicos, lricos, melanclicos, serenos, sombrios, trgicos, etc.

    A crtica de arte em geral, e muito freqentemente a crtica de arquitetura (ver abaixo),vale-se dessa adjetivao para qualificar estilos e obras. Schurman, por exemplo, comenta apenetrao ~e essa "teoria dos afetos" teve na anlise da linguagem musical a partir dosculo XVlll1 . Ostrower tambm utiliza largamente deste procedimento em sua anlise dasartes visuais 17,

    Considerarei essas trs vertentes como necessrias e suficientes para a qualificaodos objetos belos. So esforos analticos que procuram explicar a fonte de nossas emoesem face de obras de arte, emoes necessariamente oriundas da estrutura formal dessasobras. Mas difcil afirmar, em cada caso, de onde brota fundamentalmente nossa emoo:se dos estmulos aos quais respondem nossos sentidos, se da viso de mundo que a ns secomunica, se dos afetos da obra de arte, objeto de nossa truio. Certamente ser semprede alguma combinao de todas essas coisas.

    Mais complicado ainda ser identificar se nossa emoo diante de um quadro, filmeou edifcio esttica (no sentido aqui tratado) ou se tem origem em valores ticos, oupolticos, comunicados pela obra de arte que apreciamos, e com os quais nos identificamos.Neste ltimo caso, a obra de arte desaparece como tal e passa a ser simples veiculo, umalinguagem qualquer - verbal, grfica, cinematogrfica - para difundir algum tipo de

  • conhecimento fora dela. Deixa de ser objeto da Esttica e passa a ser objeto da Lingsticaou ela Comunicao. Cada obra se nos comunica por inteiro e at hoje no dispomos de um"estetmetro" que possa separar a "emoo esttica" ela "emoo moral" que nos provoca,por exemplo, um filme como Sociedade dos Poetas Mortos, de Peter Weir, mesmo porque,num primeiro momento, a emoo que resulta da percepo no passa por um filtroracional-anal tico.

    Ainda reconhecendo a dificuldade, todos os autores comentados acreditam no s napossibilidade, mas tambm na necessidade de, partindo do esforo reflexivo, fazermos adistino entre dimenses ticas e estticas. A revelao da estrutura dos cdigos estticosinconscientes, a realizao do esforo para al-Ios ao nvel do nosso consciente, tarefa daEsttica como disciplina dedicaela ao fenmeno do Belo em geral, quer na natureza, quer nasobras artsticas.

    Iniciamos este item comentando aquelas que so as tradicionalmente consideradasqualidades-sntese dos objetos belos: integridade, harmonia, unidade na variedade, etc. Oproblema que estas categorias so pouco teis no estudo transcultural daquilo quehistoricamente considerado belo. Para uma cabea renascentista, uma catedral gtica .uma obra ntegra? Para uma cabea barroca, uma pea musical dodecafnica uma coraharmnica? Seguramente no, pois so diversos os conceitos do que seja ntegro ouharmnico para uns e outros. A compreenso mais profunda do Belo como historicamenteconcebido passa, portanto, por um esforo reflexivo de decodificao das estruturasabstratas que esto na base da produo elou do reconhecimento dos objetos belos: os"cdigos de beleza".

    A no ser que se opte exclusivamente por um conceito absoluto ou universal do Belo,e no um conceito que in'clua a dimenso histrica, quer dizer, que seja culturalmenteconstrudo, temos de apontar para cdigos de beleza. Estes cdigos estabelecem asrelaes entre, por um lado, os elementos de linguagem dos gneros artsticos e suasarticulaes e, por outro, a emoo esttica por eles proporcionada. Quando o trabalhoreflexivo da Esttica revela a natureza desses cdigos, nossos modos de fruio da obra dearte podem mudar. Em outras palavras, o conhecimento (a educao) muda eventualmentenosso gosto: gosto tambm se explical8.

    Sugiro que estes cdigos contm trs nveis de elementos:

    universais, ou biologicamente determinados ela natureza de nossa espcieanimal, quer dizer, de nosso aparelho perceptivo 19;

    culturais, relativos a determinados contextos sociais (valores comunitrios ouvalores de classe, por exemplo);

    - Individuais, informados pelos atributos pessoais de cada um de ns, queinterferem na maneira pela qual percebemos e desfrutamos a Beleza.

    Alm de compartilharmos um mesmo cdigo social, percebemos que os objetos belosnos atingem diferenciadamente, em funo de nossas predisposies individuais. (Destamaneira, resgata-se a legitimidade do "eu gosto' ou do "eu no gosto, mas afirma-se que acoisa bem mais complicada do que isso). Se a beleza, assim, no se extrai exclusivamentedos objetos, no por isso menos real20. Tais cdigos so construes sociais, mas tambmconstrues abstratas e perfeitamente passveis de descrio objetiva, da mesma maneira

  • que possvel descrever-se - embora ningum veja... - a sintaxe de uma Ifngua. Objetosbelos seriam, pois, a instncia materializada"desses cdigos abstratos.

    Dito de outra maneira, nossa emoo esttica tem trs origens possveis (separveisapenas analiticamente): na predisposiodo nosso aparelho perceptivo, nos valores culturaisdentro dos quais se deu nossa socializao, e em nossa estrutura psicolgica pessoal (nossapersonalidade individual). Por isso, nosso gosto pode mudar: quando revelamos essasorigens no nvel do consciente, podemos reconhecer relaes entre emoes estticas evalores sociais que condenamos. Antecipo um exemplo para esclarecer este ponto: quandodescobrimos que nossa sociedade valoriza esteticamente os amplos espaos que destrema continuidade do tecido urbano, por ser este um valor intrnseco a uma formao social naqual as relaes entre os indivduos se do intermediadas por meios de comunicao distncia, centralmente controlados, nosso prazer diante desses desertos urbanos podedesaparecer.

    Friso novamente que o conceito de Beleza se estende a fenmenos da natureza: umaobra artstica, tanto quanto uma paisagem, decodificada por essas nossas estruturas e serconsiderada bela se a ordenao de seus elementos corresponde ao que est definido comobelo nestes c6digos21.

    Independentemente de sua diversidade por pertencerem aos vrios gnerosartsticos, os objetos belos no so do mesmo tipo. Tentativas de classific-Ios tambmdatam da Antiguidade. Arist6teles referia-se a oito categorias: gracioso, belo (propriamentedito)22,sublime, trgico, risvel, feio, horrvel, cmic023.(J possvel notar aqui pelo menosuma das fontes de inspirao da "teoria dos afetos.) Em outros autores, a lista interminvel, como comenta Souriau. Este ltimo se confessa ctico em relao s tentativasde enquadramento das categorias estticas e evita discutir o problema. Entretanto no hcomo negar que duas peas musicais como a Toccatta e Fuga em R Menor, de Bach, e aMsica para Fogos de Artiffcio, de Handel, pertencem a campos categricos distintos. Ouque Tempos Modernos, de Chaplin, e Rocco e seus Irmos, de Visconti, sendo ambos filmesque fazem uma crtica cida sociedade contempornea, fazem-no da maneiracategoricamente distinta. Ou ainda que o Palcio dos Arcos, de Niemeyer, e a Capela deRonchamp, de Le Corbusier. igualmente tm carter diverso.

    De qualquer maneira,-uma categoria de beleza configura-se tanto pelos tipos deelementos da linguagem artstica escolhidos para conStrura obra, como pelas relaes entreeles. Esses elementos e essas relaes sero os responsveis pela comunicao dedeterminados estfmulos, viso de mundo e afetos, os trs nveis acima sugeridos que estona base da emoo esttica. No objetivo deste texto elaborar uma teoria esttica aplicvela todos os gneros artsticos (nem sei at que ponto isso possvel). Antes, trata-se desugerir os elementos da linguagem arquitetnica que permitem a fruio da beleza. (Maisabaixo. quando tratarmos especificamerw.e dos elementos desta linguagem,exemplificaremos como sua manipulao pode proporcionara emoo esttica.)

    Entretanto constar d~ste item a sugesto de alguns "eixos organizadores24 daproduo artstica, por serem estes ainda bastante genricos. Os eixos apenas esboadosabaixo constituem intervalos polares ao longo dos quais se localizam de maneiradeterminada cada objeto belo em particular. Se ocorre uma insero recorrente de inmerosobjetos, estamos diante de uma indicao, em um. primeirO'nfvelba$lnte ,geraJ, lado, e~ tipb'.-

  • atravs do espao, assim como oferece elementos para identificao dos cdigosculturalmente ou individualmente desenvolvidos. Os eixos so os seguintes:

    NEGAO/AFIRMAO: Refere-se aos plos da recusa, negao ou crtica adeterminadas estruturas formais, ou afirmao de outras tantas. A histria da arte constituda por obras que no transgridem uma estruturao j estabilizada (enem por isso so desprezveis), assim como por obras que inauguram novasestruturaes, caracterizando momentos de ruptura (e nem por isso seroobras-primas). Exemplo de dois momentos de ruptura: a Casa Modernista, deWarchavichik, inaugura o cdigo modernista no Brasil, assim como os trabalhos deNiemeyer, em Pampulha, superam, em certa medida, este mesmo cdigo,inaugurando o que talvez se pudesse chamar um "funcionalismolrico".

    - EXACERBAO/CONTENO: Refere-se economia dos meios utilizados peloartista em sua obra. H obras nas quais um pequeno nmero de elementos veiculaa intuio a transmitir, outras nas quais a prolixidade seu trao marcante. Nosculo XX, uma materializao clara desses plos opostos encontra-se naarquitetura de Gaudi (exacerbao) e na de Mies van der Rohe (conteno).

    - ESTRUTURA/ACASO: Refere-se ao grau de regras/restries/cnonesadotados naconstruo do fenmeno. Estetas comentam os perodos "clssicos" e "romnticos"na histria da arte como perodos que respectivamenteveiculam intuies artsticasmais "estruturadas" ou mais "aleatrias". Mas importante frisar que estas ltimasno implicam ausncia de ordem, mas a ocorrncia de uma ordem caracterizadapor regras extremamente parcimoniosas. Por outro lado, enquanto o eixoexacerbao/conteno lida com a variedade dos elementos manipulados, aqui setrata da sintaxe dos elementos, isto , da maneira de sua articulao,independentemente de sua variedade. No Distrito Federal, por exemplo,encontram-se em clara polarizao o urbanismo do Plano Piloto e Braslia, por umlado (estrutura), e o urbanismo da Vila do Parano, por outro (acaso).

    Considerando que a beleza se verifica na relao das pessoas tanto com fenmenosnaturais como com culturais, poder-se- aceitar a definio de Arte em sua conotao maisrecente: a que se refere a objetos culturais belos25. E novamente aqui nos defrontamos comum imenso campo de produtos culturais para os quais se reinvidica a qualidade de objetosartsticos. Ainda uma vez, as classificaes.so inmeras, sendo que alguns autores, comoOsborne, ousam resumir tudo em "quatro tipos principais de arte": literatura, pintura,escultura e msica, todos os outros sendo derivados destes26. Nedoncelle j prope quatrograndes categorias: 1) artes visuais: pintura, escultura, arquitetura; 2) auditivas: msica eartes da linguagem Oiteratura);3) artes tcteis-musculares:dana, mmica, esportes; 4) artesde sntese: teatro, cinema, pera, bal27.

    Evaldo Coutinho prope um critrio para caracterizao dos gneros artsticos: a"forma bastante" utilizada para a comunicao da intuio do artista, isto , a matria-primafundamental com a qual este constri sua obra: o trao e a cor, na pintura; o volume, naescultura; a imagem verbal, palavras e proposies retransmissoras,na literatura; a imagemem preto e branco em movimento, no cinema; o espao, na arquitetura. Mais ainda: umaarte se caracterizaria como tal apenas quando se utiliza de uma matria que exclusivamente sua, conferindo-lhe assim a especificidade necessria e indispensvel aqualquer manifestao artstica28

  • No demais frisar que uma obra de arte (qualquer obra de arte) como fenmenocultural real multidimensional. Uma bela obra de arte no apenas uma obra de arte...Como qualquer fenmeno cultural, possvel nela identificar mltiplas significaes:econmicas, polticas, ecolgicas, etc. Oaro que essas significaes (essas implicaes) noocorrem da mesma maneira em todos os gneros artsticos: uma pintura no exerce impactoecolgico; um edifcio, sim. Algumas obras de arte exercem impacto, sendo reflexes sobreo real; so representaes. Outras so impactantes diretas no mundo: como frisou EvaldoCoutinho, arquitetura realidade, no representao. Representaes so o cinema ou aliteratura. Na arquitetura, por isso mesmo, no se coloca a questo da fronteira esttica damesma maneira como ela se coloca para as outras artes.

    Se as mltiplas dimenses da obra de arte variam de gnero para gnero, hobviamente uma dimenso que no s pertence a todas as obras de arte como tais, mastambm que s pertence a elas e a nenhum outro fenmeno cultural: a forma esteticamentepercebida. Sendo obra de arte, pela forma vista, ouvida ou imaginada que um filme, umapea musical ou uma pea literria significam esteticamente. Caducam, desta maneira, asinterminveis discusses sobre as relaes entre forma e contedo nas obras de arte, comose essas coisas fossem instncias separadas.

    No se pode negar o contedo poltico de um poema como Morte e Vida Severina, deJoo Cabral de Meio Neto, mas, do ponto de vista esttico, na prpria forma daquele poemase encontra um contedo revolucionrio. Ainda: a histria da arte est cheia de exemplos deobras contraditrias, no sentido de que elas potencializam nossas capacidades perceptivasao mesmo tempo em que so execrveis politicamente. Griffith, em seu filme racistaNascimento de uma Nao, praticamente inaugura uma nova linguagem artstica, destamaneira ampliando nossa capacidade de perceber, e portanto intervir, em nosso mund029.

    Estas observaes implicam que a crtica de arte no simplesmente a crtica dabeleza dos objetos de arte. A crtica de arte abrange os campos disciplinares que contribuemparaa compreenso do fenmeno artstico. Podemos legitimamente falar da Psicologia daArte ou da Economia Poltica da Arte30, recuperada a Esttica como apenas uma dasdisciplinas interessadas neste campo, ainda que seja aquela disciplina que capte a nicadimenso que somente a eles - objetos de arte - indispensvel, sob pena de perda de suacaracterstica essencial: a dimenso da Beleza. Tambm conscientes de sua naturezamultiaspectual, corremos menos risco de fazer uma abordagem maniquesta das obrasartsticas.

    Estas questes pedem, neste ponto, uma digresso quanto s modalidades doconhecimento sobre a realidade e suas relaes com o fenmeno artstico. Isto se justificapelas discusses sobre a natureza da arte como saber elou fazer: para muitos, a atividadeartstica consiste no apenas num agir sobre a realidade - sobre as matrias-primasespecficas de cada gnero artstico - mas tambm se constitui uma forma deconhecmento sobre a realidade em face da qual configura uma modalidade especfica desaber.

    No campo do saber humano, Hillier & Hanson sugerem uma distino bsica: acincia ocupa-se do conhecimento sobre os fenmenos reais, enquanto a filosofia procuradesvendar a natureza do prprio conheciment032. Importa frisar, entretanto, que cincia",mais do que uma denominao genrica para as disciplinas que estudam o real, um termoque j conota uma determinada abordagem deste real, entre outras possveis. Podemos nosapoiar em Giddens e novamenteem Hillier & Hansonpara esclarecer este ponto.

  • Giddens33sugere que sabemos o mundo e, a partir deste saber, agimos sobre ele,tanto no nvel inconsciente, como no nvel consciente. Por seu lado, o nvel conscientemostra-se em duas vertentes: a) uma conscincia prtica, no verbalizvel, porm utilizvelem nosso cotidiano e b) uma "conscincia discursiva", aquela que conseguimos traduzir empalavras. Em mais um desdobramento, essa conscincia discursiva - aquele conhecimentoque conseguimos exprimir - apresenta-se sob vrias modalidades, cuja classificao variade autor para autor. Sugiro que temos apenas trs modalidades fundamentais: a) amodalidade especulativa; b) a modalidadeemprica; c) a modalidadecientfica.

    A modalidade especulatlva satisfaz-se, digamos assim, com a f". Apia-se na puraintuio, dispensando a verificao, no mundo real, das entidades e das relaes queimagina. Essas poderiam existir em mbito imaterial e nem por isso deixariam de influenciaras instncias do mundo material34. Podemos, entretanto, considerar o pensamentoespeculativo tambm aquele que no apela para a mgica e para a religio (duas de suasvertentes), mas que prope a existncia de relaes entre instncias do mundo realindependentemente de qualquer tipo de prova ou verificao (comentarei abaixo como aprtica artstica apia-se com freqncia nesta modalidade).

    A modalidade emprlca no dispensa a verificao, mas satisfaz-se com amanifestao mais imediata e superficial dos fenmenos. Insiste numa continuidade quaseabsoluta entre nossa experincia prtica cotidiana de como o mundo funciona e os princpiosabstratos subjacentes a tal funcionamento. tambm conhecida como senso comum","conhecimento acrtico035ou conhecimento social" e nos ensina, por exemplo, que 0 solnasce...36.

    A modalidade cientfica admite que no h tal continuidade entre a aparncia dascoisas e sua natureza real. Essa opacidade do real est na base, na verdade, de todasideologias, as quais se constituem em conscincias discursivas que no conspiramarbitrariamente contra a verdadeira natureza das coisas, mas cuja lgica reside,precisamente, na captura e na transmisso, como verdadeira, da aparncia - ilusria - dosfenmenos. (Se a utilizao dessa iluso ajuda a reproduzir determinadas relaes de poder,como de fato o tm feito historicamente as classes dominantes, j so outros quinhentos)37.

    As fronteiras entre essas modalidades deslocam-se ao longo do tempo, e isso maisverdade ainda para as relaes entre o conhecimento cientfico e o conhecimento emprico:algo que se acreditava cientfico tem-se eventualmente revelado "emprico", na medida emque afirmaes sobre o real que um dia se acreditava profundas no o eram suficientemente.Por outro lado, a verificao dos fenmenos no mbito real j deixou de ser condio sinequa non da prova" de uma teoria cientfica: cada vez mais, os meios de simulao do real,utilizando recursos computacionais sofisticados, so tidos pelos cientistas como suficientespara a verificao ou refutao de uma dada conjectura.

    Assim, como fica a arte como modalidadedo saber, como forma de conscincia sobreo real? No fica. Problemas importantes impedem a equao arte=forma de saber, quepasso a comentar.

    Se desenvolvemos vrias formas de conscincia sobre o real, e sea arte umadelas, necessrio entendermos qual a especificidade de tal modalidade. Vsquez procuraafirmar a modalidade artstica do saber, por contraposio modalidade cientfica, eestabelece trs pontos principais de diferenciao: o objeto de ateno, a maneira pela qualo objeto tratado e a relao pensar/fazer na atividadeconsiderada38.

    . "j Vsquez prope que o objeto especfico da arte o ser humano, a vida humana,ainda que nem sempre o homem seja o objeto da representao artstica (objetos naturais

  • podem s-Io). Mas a natureza vista pela arte seria sempre uma natureza "humanizada", aopasso que a cincia teria de capt-Ia - natureza - em sua essncia "objetiva". Vsquezparece aqui apoiar-se em Lukcs quando este prope que a cincia, em contraste com aarte, exerce continuamente um esforo "desantropomorfizador" diante da viso que o serhumano tem das coisas, na busca de um conhecimento que revele a "realidade objetiva"autnoma39. O problema neste tipo de colocao seu "desvio" positivista, na medida emque se desconsidera que a cincia to "humanizada" quanto a arte: o conhecimentocientfico no "objetivo" se, por tal, entendemos um conhecimento independente domomento histrico em que produzido e, por isso, socialmente determinado. A "realidade",para o ser humano, inevitavelmente uma realidade humanizada.

    Quanto maneira pela qual tratamos o objeto de nosso discurso, Vsquez sugere apolaridade generalldade/especlflcldade como caracterizadora respectivamente da cincia eda arte: "a arte no v as relaes humanas em sua mera generalidade, mas em suasmanifestaes individuaiS'. Na mesma trilha, outros autores afirmam que a cincia tentarevelar leis aplicveis em todos os casos, enquanto as artes exploram reaes individuais edirecionam o foco para qualidades nicas de cada experincia especlfica4o. Este tipo decolocao hipertrofia um dos trs nlveis de cdigos de beleza sugeridos acima: osindividuais. Subestima-se o fato de que, para a empatia necessria fruio artlstica, necessria a existncia de cdigos comuns entre artista e apreciador, os quais no sepodem localizar apenas no mbito mais especfico da individualidade: seria equivocadoidealismo acreditarmos na Individualidade absoluta do artista ou de sua obra,independentemente de um cdigo socialmentedeterminado indispensvel sua produo.

    O terceiro paNo indicado acima diz respeito distino pensar/fazer "o conhecerartstico o fruto de um fazer ..., a arte s conhecimento na medida em que criaoJ.1.Novamente uma qualificao necessria, considerando que a verificao cientfica podepassar pela construo inteira de objetos de conhecimento, e no somente do pensar sobreeles. Tal construo no transforma esses objetos necessariamente em obras de arte, assimcomo absolutamente indefensvel eliminar a "criatividade" (tomemos cuidado com o vismetaflsico do termo) do campo cientfico. Melhor seria frisar que, mesmo construindo ourefletindo sobre objetos inteiros, a preocupao do cientista sempre circunscrita a campos'particulares, ou seja, a aspectos especficos do objeto tratado. Na arte, qualquer que seja aespecificidade do gnero artstico, por mais restrita que seja a matria trabalhada, h semprea tentativa de potencializar a capacidade perceptiva, construir uma viso de mundo, trabalharum feixe de emoes.

    Esses problemas sugerem outro caminho. Mais uma vez podemos nos apoiar naetimologia das palavras para especificar seu uso atual, explorando a arqueologia de seusentido. A propsito da discusso entre "arte" e "cincia", interessante chamar a atenopara o fato de que tambm essa distino recente 42. Na sua origem, "arte" provm dolatim artem, que significava "habilidade", enquanto "cincia" provm do latim scientia, quesignificava "conhecimento". Entretanto os dois termos eram usados de maneiraintercambivel at as grandes transformaes sociais dos sculos XVII e XVIII. A partir dai,arte passa a se referir a um conhecimento "prtico", posteriormente adquirindo o sentido deobjetos "belos", como comentei acima, enquanto cincia passa a se referir a umconhecimento "terico" e "objetivo"que permitiria captar a essncia das coisas para alm dasimpresses subjetivas sobre elas43.

    Finalmente (e encerrando estes alargados parnteses), a palavra "arte", sendoutilizada para designar objetos belos, no mais uma modalidade de conhecimento, masuma prtica concreta. Como qualquer prtica, implica conhecimento(s) para ser realizada.

  • Mas, como prtica que tambm constri um discurso sobre uma realidade fora dela, atravsdos meios que lhe so prprios, esses conhecimentos referem-se no apenas a seuprocesso de feitura, mas tambm realidade que comenta em seu discurso. E comoqualquer prtica, pode lanar mo de todas as modalidades do saber, como de fato faz: aespeculativa, a emprica, a cientfica.

    Se o que qualifica a obra de arte a maneira pela qual a "forma bastante" (ver acima) trabalhada, o "como" esse trabalho transmite uma determinada forma de discurso sobre oreal, ou refaz a prpria organizao desse real, no se coloca, para a arte, a questo da"verdade" sobre aquilo que ela fala (isto , para deixar claro mais uma vez, do ponto de vistaestritamente esttico, no moral, politico, etc.). Por isso, talvez muito mais freqentemente,ou mesmo mais legitimamente do que noutros campos de prticas, a arte utilize amodalidade especulativa de conhecimento. A "verdade"no critrio de validao artstica: aproposta contida numa obra de arte "passa" ou "no passa" para quem dela usufrui, istodependendo dos cdigos de beleza acima referidos. A permanncia no tempo do valor deobras de arte produzidas em contextos histricos h muito ultrapassados, que tanto intrigouMarx, s se pode explicar pela existncia de cdigos universais - no tempo e no espao -inadmissveis no campo cientfico.

    Dadas as diferenas marcantes entre os gneros artsticos, no h por que exigir detodos os tipos de obras de arte que tenham o mesmo tipo de impacto em nossa percepo.Por isso, as categorias de Beleza somente em um sentido muito abstrato, como propostoacima, podem aplicar-se a todos os gneros. Ser que categorias aristotlicas como otrgico, o risvel ou o horrvel, sem dvida legtimas na literatura, podem aplicar-se, porexemplo, arquitetura? ou mesmo msica? Os estetas tm evitado enfrentar estadificuldade.

    Suassuna44, por exemplo, depois de dedicar oito captulos a categorias estticas quepartem, essencialmente, de Aristteles, quando se refere arquiteturaapresenta duas novascategorias sequer insinuadas antes: o "racional" e o "orgnico" (categorias, por sinal,extremamente frgeis para servirem a uma anlise mais rigorosa).

    A partir de um sentido genrico que acredito vlido, como aquele indicado no item 5acima, temos de entender os elementos fundamentais da linguagem de cada gneroartstico, de maneira a captarmos suas potencialidades, assim como suas limitaes. Se alinguagem musical constituda por pulso, tom e t1mbre45, a pintura por linha, suprfcie,volume, luz e cor46, quais so os elementos do .pao arquitetnico mais especificamenterelacionados com a emoo esttica?

    De um texto de Glauco Campelo sobre o projeto de Le Corbusier para a Embaixadada Frana em Braslia47, podemos pinar os seguintes adjetivos referidos quele projeto:severo, despojado, impressionante, forte, solene, nico, solidrio, vigoroso, leve, dramtico,onrico. Esses adjetivos veiculam sensaes provocadas no'autor do texto por elementos ouconjuntos de elementos da linguagem arquitetnica do projeto de Corbu e colocam-no comoadepto da "teoria dos afetos". Mas que elementos de linguagem so aqueles? possveluma teorizao (portanto generalizao) que relacione elementos de linguagem e suaestruturao, por um lado, e "afetos", por outro?

    preciso abordar uma dificuldade inicial: qual a "forma bastante" da arquitetura, nostermos de Evaldo Coutinho? Ou seja, qual a sua especificidade face a outros fenmenos

  • artsticos? Mais uma vez, estamos longe do consenso entre os estudiosos. Duas grandesvertentes podem ser definidas aqui: os 'espa610gos'e os no-espa6Iogos.

    Seguindo Eco, Elvan Silva48 chegou a afirmar que a nfase 'com que se pretendeinstituir o espao como elemento por excelncia da realidade arquitetnica 'quasemetaffsiCll. E mais: "o espao arquitet6nico, rigorosamente falando, constitufdo por ar,elementos atmosfricos, dotado de algumas propriedades ffsicas e qufmicas, masabsolutamente desprovIdo de atrIbutos estticos" (grifos no original). J Coelho Nett049admite a existncia real do espao arquitetnico, mas seu livro trata em captulos distintos osentido da arquitetura e o discurso esttico, como se este ltimo fosse desprovido desentido. Alm disso, no caso da dimenso esttica, suas categorias - ritmo, harmonia,medida, composio - so aplicadas volumetria externa das edificaes, ignorando oespao, que com tanta ateno abordou nos captulos anteriores. Ele trata os aspectosestticos da arquitetura de maneira muito semelhante que faz Fayga Ostrower para asartes visuais5o.

    Evaldo Coutinho adota posio radicalmente distinta: no s prope que possvelexplorar expressivamente luZ/sombra, rudo/silncio, temperatura e odores no espao, comoenuncia sua lei da arquitetura: "a impgsio de condicionalidadea que se subordinam todosos presentes no interior da obra" 51. Para Coutinho, o arquiteto o 'Iocalizador desentimentos~ e o espao matria que desempenha o papel de "criador e regulador decomportamentos~

    Hillier & Hanson 52, na Inglaterra, partindo de pressupostos gerais completamentediferentes de Evaldo Coutinho, e seguramente desconhecendo o trabalho deste, chegam aproposies rigorosamente semelhantes. Para aqueles autores, o que diferencia e especificaa arquitetura em face de outros fenmenos artefatuais que a

    "ordenao do espao a finalidade do ediffcio, no o objeto ffsico em si. O objetoffsico um meio para um fim. Neste sentido os ediffcios no so o que parecem. Elesparecem ser artefatos ffsicos, como quaisquer outros, e seguir o mesmo tipo delgica. Mas isso ilusrio. Enquanto so eivados de inteno, ediffcios no soobjetos mas transformaes de espaopor meio de objetos"s3.Mais: a ordenao do espao nas edificaeS'est relacionada' s relaes entre as

    pessoaS'e. aqui que se encontra seu significado social54 ..

    Da mesma maneira, Coutinho confere aos elementos "escult6ricos" da edificao piso, paredes, teto apenas um papel "instrumental, sendo passveis de avaliao a partirdos pressupostos da arte da escultura, no da arquitetura. Mas no exageremos nacoincidncia destes dois enfoques: Hillier & Hanson, diferentementede Evaldo Coutinho, nopretendem fazer uma anlise esttica da arquitetura, apenas uma anlise comportamental,para usar seus prprios termos55. Coutinho pretende fazer uma anlise esttica, ainda queem sua teorizao no fiquem de fora aspectos "comportamentais".

    Argumentos como os de Coutinho e Hillier & Hanson revelam o equvoco dos"no-espa610gos" como Eco e Silva, referidos acima. Estes desconsideram o fatofundamental de que os atributos espaciais de um pedao de cidade, de um edifcio ou deuma nica unidade de espao arquitetnico resultam de relaes entre elementos emqualquer escala,

    Na escala urbana, no estamos fazendo metafsica quando descrevemos a estruturaespacial de um bairro pelas relaes de segregao/integrao verificveis entre os vrioslugares (ruas, praas), que constituem seu sistema de espaos abertos. Tampouco estamosfazendo metafsica quando descrevemos a natureza peculiar de UJTI espao interno pela

  • relao que se estabelece entre muros opacos e muros vazados, que provocamdeterminados direcionamentos de luz, ou pela relao entre ps-direitos menores e maiores,ocasionando mudanas de escala, em si j um conceito rigorosamente relacional.

    Na linguagem da arquitetura, uma porta, uma parede, a textura de um material,quaisquer que sejam seus atributos isolados, so inteiramente desprovidas de sentido. O(s)sentido(s) da arquitetura so os sentidos do vo, cujos atributos so formados a partir doselementos-meio que o definem, mas que se fundem e metamorfoseiam em um fenmenomaior que osrequalifica: o espao arquitetnico. As observaes de Evaldo Coutinhoreferentes aos atributos do vo (e que jamais se podero aplicar aos elementos-meio que odefinem) levam-me a parafrasear So Toms de Aquino: para a arquitetura, "Belo aquiloque simultaneamente agrada vista, ao ouvido, ao nariz, pelt!S6. O espao arquitetnicoentra por nossos poros e por seis dos sete buracos de nossa cabea...

    Proponho, a seguir, os elementos de uma "teoria descritiva" do espao arquitetnico,mais especificamente, aqueles elementos que melhor permitem sua fruio esttica.Entretanto vale frisar que estas variveis de anlise no pertencem exclusivamente a essaleitura esttica No h tais coisa como categorias analfticas "exclusivas" de determinadasabordagens e "proibidas" a ~alquer outro enfoque que destas se distanciem, ainda que emgrande nmero de aspectos . (Quando falo em "teoriadescritiva",quero dizer que no tenhopor objetivo central discutir peculiares articulaes de determinados atributos que implicamcertos estmulos, vises de mundo ou afetos. Isto far parte de uma eventual "parte 11:estudos de caso". Os 'exemplos sero apenas ilustrativos, para tornar mais clara aargumentao).

    O espao da arquitetura se percebe no tempo. Entretanto isto no diferencia a suapercepo de outras linguagens, mesmo da pintura. Mas podemos estabelecer aqui umaprimeira dicotomia: o elemento espacial que percebido apenas com a modificao dadireo do nosso olhar e aquele que s percebido com a translao do nosso corpo. Noprimeiro caso, estamos lidando com a instncia local do artefato, no segundo, com ainstncia globaf8. A primeira refere-se noo intuitiva de lugar, a segunda, seqncia,ao conjunto de lugares e, principalmente, sua forma de relao.

    O lugar, assim entendido, a unidade elementar de qualquer artefato arquitetnico.Em casos-limite, um artefato pode ser constitudo por um nico lugar: uma casa dos ndiosbrasileiros Yawalapiti59, sem paredes internas, ou uma vila, cujos edifcios situam-se todosem tomo a uma praa central. Nestes casos instncias local e global coincidem numa s.Mas, em geral, um artefato constitudo por um conjunto de lugares. Vejamos primeiro comopodemos considerar esses lugares de per si.

    Componentes artificiais e naturaisEsta categoria refere-se constituio dos elementos definidores do espao,

    pertenam eles mais ao mbito da natureza ou mais ao mbito da cultura. Alm disso, comobem lembra Coelho Netto: os elementos da natureza podem ser tratados "como a prprianatureztl, ou simbolicamente, apenas representando-a, como no tpico "jardim francS'60.Por outro lado, a "naturalizao da cultura" fez com que Gaudi procurasse reproduzir formasnaturais nos elementos estruturais de sua arquittura. Infelizmente, a dicotomia"orgnico/racional" tem sido freqentemente utilizada para caracterizar esse eixo, como se aincorporao ou mimese de elementos naturais fosse um ato instintivo (em oposio ao

  • "racional"), e no fruto de uma deliberada realizaode uma peculiar viso de mundo, comoem Gaudi ou Frank Uoyd Wright.

    Neste eixo, temos em plos-limite, de um lado, algo como uma clareira num parque,organizada a partir exclusivamente de elementos naturais e, de outro, um ambiente nointerior de uma edificao completamente condicionado por meios' artificiais. Um dosprincipais elementos de variabilidade dos espaos o controle da luz natural neles incidente,o qual constitui um controle sobre um dos fundamentais elementos da natureza quequalificam o lugararquitetnico.

    Devemos dar-nos conta de que a utilizao de elementos naturais no espaoarquitetnico quase nunca tem sua razo de ser na mera busca de amenidade ambiental(relativa s nossas exigncias biolgicas). A incorporao de elementos naturais em nossoscdigos estticos tem origem em fatores culturais, como se pde verificar, por exemplo, naspraas ajardinadas das cidades brasileiras, fenmeno que se consolida somente no sculoXIX.

    EscalaMuitos autores concedem escala uma importncia fundamental na linguagem

    arquitetnica, a ponto de 8oudon, por exemplo, procurar fundar sobre este conceito suacincia da "arquiteturologia". "Escaltt caracterizaria a "regra de passagem de um espao aoutrd', enquanto "fropord' a "relao de uma parte de um espao a uma outra parte domesmo espad6 Entretanto seu argumento comea a complicar quando Boudonestabelece a dicotomia entre "espao mental" e "espao real" e prope o conceito de escalacomo "cdigo de traduo" (minhaspalavras) entre um e outro.

    Qualquer construo artificial implica aquele "nvel mental; isso no especificaria oespao arquitetnico. Mas podemos manter o conceito de escala em sua primeira acepoindicada acima, acrescentando, porm, que este no precisa ser apenas relativo a espaosentre si, mas pode ser caracterizado como um mdulo, por exemplo, do tipo do Modular deLe Corbusier. Poderamos, desta maneira, caracterizar no apenas as diferentes escalasencontradias num mesmo edifcio, mas tambm aquelas entre diferentes ediffcios nummesmo universo cultural ou aquelas entre universos culturais distintos, e ainda asestabelecidas por uma referncia extema comum, por exemplo, as dimenses da figurahumana de dado contexto tnico ou mesmo etri062.

    Deve ficar claro que o conceito de escala no coincide com os aspectos funcionais daarquitetura: mais do que o tamanho dos espaos se relacionarem, obviamente, com asatividades que abrigam, historicamente as dimenses dos lugares dizem respeito aelementos simblicos, vinculados a atributos essenciais de estruturao social. Aobservao de Mary Douglas de que "espao mais amplo significa mais formalidadd63,encontra-se respaldada por vasta evidnciaemprica.

    Relacionado a isto, e de certa maneira numa direo oposta, est o conceito de"monumento"; facilmente (e equivocadamente) temos relacionado o "monumentalnecessariamente ao "grande. tamanho, sem nos darmos conta de nosSo etnocentrismo.Encontramos um contra-exemplo radical a isto nos templos da cultura Hopi, escondidosencerrados em celas subterrneas64. No outro extremo do espectro, est a arquitetura deRicardo 80fi11, que persegue a banalizao do monumental (sob o argumento de que todostm direito ao urbanismo simblico), inclusive no espao residencial urbano, constituindomais' uma das estratgias atuais de destruio do tecido urbano como historicamente oconhecemos.

  • ProporoAs propores de determinado espao dizem respeito s relaes entre suas

    dimenses horizontais, entre suas dimenses verticais e, principalmente, entre suasdimenses horizontais e verticais. Coelho Netto aborda esta questo quando trata de seueixo "espao horizontal x espao vertical" e corretamente aponta o subjetivismo presente emvrios autores que tratam da quest065. Na origem do entendimento da verticalidade comoqualidade esttica, Coelho Netto sugere fatores misticos ("a nave gtica a caminho doparafsd), assim como fatores ldicos: a manipulao da dimenso vertical pela criao deplanos distintos favoreceria a "temporallzao"do espao, ao romper a monotonia do mesmoplano horizontal.

    Mas pode haver mais do que isto: a maior verticalidade tem assinalado maiorimportncia (e/ou maior formalidade) de determinados lugares num mesmo edificio: aquesto da escala tem na dimenso vertical o artificio preferido para sua qualificao.Tambm a elevao do nivel do piso claramente assinala uma mudana de status:pensemos nos sucessivos altiplanos sobre os quais esto localizados muitos edificiosmayas, ou na capela-mor das igrejas, geralmente em plano mais elevado. A elevao donivel do pavimento dos pilotis, em Brasilia, pode ser lida como a busca de diferenciao commaior clareza entre o espao condominial sob a projeo do edificio ("nobre) e o espaopblico ("comum")da superquadra.

    Em nosSacultura (ou ser uma questo universal?),"superior" veicula a idia de "maisimportante", mais perfeito, etc., a ponto de equacionarmos os dois termos sem nos darmosconta da conveno que relaciona um atributo espacial a uma situao de qualidade.Necessariamente isso se refletiria na arquitetura66.

    FormaA forma de um espao pode ser caracterizada quanto a sua proximidade ou distncia

    das formas geomtricas regulares - figuras como a esfera, a pirmide, o prisma ou outrasmais complexas67. A um caso e ao outro o discurso arquitetnico novamente acopla osinadequados termos "racional e "orgnico, respectivamente. Nada mais precrio, seconsiderarmos certas formaes naturais como os cristais (formas "racionais) ou o fato determos racionalmente produzido, ao longo dos milnios, e a partir de determinadas vises demundo, artefatos "orgnicos".

    O considerar belos os espaos geometricamente regulares ou irregulares no seancora necessariamente em determinados momentos de desenvolvimento cultural. Tantoencontramos na origem da opo pela regularidade geomtrica valores culturais desociedades primitivas como de sociedades complexas. verdade que, recentemente, com oMovimento Moderno, a paixo pelas formas puras exacerbou-se, mas mesmo Le Corbusierfugiu regra em seus espaos de Ronchamp. Este mesmo arquiteto defendiaardorosamente a regularidade geomtrica, embora suas razes declaradas fossem de outrotipo que no estticas: argumentava em defesa de "clareza", "orientabilidade e "liberdade".Razes estticas declara Camillo Sitte: "o tumulto belo, e a retido, a infmi'68, A opopela geometria regular ou irregular est relacionadaa Idias de como percebemos o espao,que no coincidem necessariamente com a realidade das coisas.

    Num extremo, a idia do regular como belo apia-se numa viso de mundo queequaciona "ordem" com construes intelectuais que procuram devolver ao real umasimplificadora abstrao que dele se fez. No outro extremo, a irregularidade geomtrica deum Gaudi est intimamente ligada a uma viso religiosa do mundo, pela qual o homem,como obra divina, deve construir seu habitat por imitao s aparentes formas da natureza,

  • igualmente obra do Criador (embora em sua estrutura profunda, a natureza talvez seja maisgeometrica do que imaginamos).

    Frontelras

    Nao ha espaC$Osunicos ou isolados: mesmo uma choupana isolada em meio af10resta dicotomiza 0 esp8CSoentre um elemento fechado e um elemento aberto, entre umelemento delimitado para finalidades mais precisas (0 dentro) e outro onde tal determinac;soa em geral menos clara (0 fora)69. A natureza da pele que estabelece a relac;so entre osdois, por meio dos mais variados tipos de aberturas, pode variar enormemente: desde atranspar~ncia radical da casa de vidro de Phillip Johnson70 ata as resid~ncias-cavema dosciganos no sui da Espanha71, relacionadas com 0 exterior atraves exclusivamente de umapequena porta e uma chamine.

    Se pensarmos nas fronteiras entre um espac;o e outro no interior de uma edificaC$8O,ou entre um espaC$Oe outro de uma cidade, a variac;so e igualmente enorme. Quandofalamos de uma rua que desemboca numa prac;a, sentimos que estamos falando de duasunidades morfol6gicas, mas as vezes a delimitaC$8oentre elas nao e muito clara. Sugiro ser atecnica de convexidade desenvolvida por Hillier & Hanson72 a mais interessante disponivelpara essa caracterizac;so. Ela permite a delimitac;so das unidades morfol6gicas elementaresde analise, assim como permite caracterizar suas fronteiras.

    Os tipos m6rficos que historicamente identificamos variam desde uma enorme clarezaem face da na~reza dessa fronteira ate uma grandeambigOidade. No primeiro caso,elementos escult6ricos claros - paredes, piso, teto - e pequenas aberturas definem asfronteiras; no segundo, essas s6 sso perceptiveis atraves de significativo esforc;o analftico, namedida em que os perimetros que definem os lugares sso em muito pouca medida definidospor objetos, maximizando-se a permeabilidade entre os lugares em detrimento de seu claroenclausuramento. Isto faz com que, mesmo sem a transl8C$so de nosso corpo, possamosperceber para hem alem da unidade morfol6gica onde nos encontramos, 0 que nso significaque estas desapareceram como unidades; apenas suas fronteiras sao mais sutis, e asunidades especiais, bem mais permeaveis entre si.

    o conceito dominante de Beleza relativo aos espac;os urbanos contemporaneoscoincide com esta ultima opc;ao: 0 ver longe" e valor explicitamente abrac;ado pela maioriada populac;so do Plano Piloto de Brasilia, por exemplo. Novamente, precisamos indagarsobre as origens culturais dessa valorizaC$8o para, conhecedores do c6digo que nos leva atanto, conscientemente aceim-Io ou rejeita-Io.

    A instineia global

    Um artefato arquitet6nico, seja um edificio ou um trecho de cidade, ou ainda umacidade inteira, caracterizar-se-a pela maneira como variam os atributos de suas inst&nciaslocais indicados acima. 0 resultado global nso e frut9 do somat6rio dos atributos dasinstancias locais, mas de sua interac;ao, seja por repetic;ao, seja por variaC$8o.A globalidadearquitet6nica percebe-se num tempo mais longo do que a localidade, mas os recursos delinguagem estao todos disponiveis, independentemente do nivel globaillocai. Nossos c6digosde beleza nos permitirao (ou nao) a emoc;ao estetica numa cidade, num edificio ou numasimples sala de estar, igualmente a partir dos componentes artificiais/naturais do espac;o, desua escala, suas proporc;oes, sua forma e natureza de suas fronteiras.

  • mesmas, e as que o so em virtude da Bfetivao do artista. No grande acervo do abastecimento - anatureza - de que a arte se tem valido desde os primrdios, existem figuraes literveis, pictricas,esculturais e cinematogrficas em si prprias, e muitos dos respectivos artistas se tm aproveitadodesses aspectos simplificadores para a formao e conformao de suas obras; o sol nascente e osol poente, o luar, a flor, a sBlva, o mar, o ermo, possibilitaram e possibilitam a transposio de HUSconspectos para a vida que na artelhes proporciona a correspondente matrilf (1970:30).

    (22) Ou seja, aquele que revela padres de equilbrio e harmonia, por excelncia, diferena do feio oudo horrvel, ou ainda do risvel.

    (23) Ver Suassuna (1979).(24) Tomo emprestado a terminologia utilizada por Coelho Netto (1984).(25) Ver discusso da evoluo do conceito tambm em Juc (1987).(26) Osbome (1952:91).(27) Ver discusso sobre os aspedos problemticos desta classificao em Suassuna (1979:243ss).(28) Coutinho (1790: 19ss). Vale registrar que a obra de Evaldo Coutinho constitui, a meu ver, o que de

    mais importante se escreveu em nosso pas sobre a Filosofia da Arte naquilo que se refere arquitetura.

    (29) Por ocasio de uma visita nossa Esplanada dos Ministrios, em Braslia, uma amiga exclamouemocionada: "Como lindo!" E acrescentou imediatamente: "Mas como terrvel!" Essa percepoconflituada praticamente simultnea de um mesmo objeto revelava a natureza contraditria entrecdigos estticos e cdigos sociais mais amplos adotadospela mesma pessoa.

    (30) Ver, por exemplo, o livro clssico de Arnold Hauser Histria social dela literatura y el arttf (1969).(31) Uma primeira verso deste Item foi substancialmente modificada e ampliada, a partir de conversas

    com os colegas Gunter e Maria Elaine Kohlsdorf.(32) Hillier. & Hanson (1984:30). Como sempre, tal distino analtica pode ser por vezes problemtica.

    Para estes autores, tal o caso em relao ao espao: "na comprtltlnso do espao, o avano doconhecimento - a cincia - e a anlise do conhecimento - a filosofia tornam-H inextricave/menteinterligadas. A especulao acerca da natureza do espao torna-H inevitavelmente a eSPflCUlaoacerca do como a mente constri HU conhecimento sobre o espao e, por implicao, acerca docomo a mente adquire conhecimento sobre omundo espao-temporal".

    (33) GIDDENS. A. The constitution of society oulline of a Iheory of slrueturalion. PoIfty Press. Cambridge. 1984.

    (34) Fao aqui uma leitura livre do que Hillier & Hanson (1984:30) sugerem quando se referem aopensaniento mgico e ao pensamento racional".

    (35) DEMO, P. Metodologia cientfica em cincias sociais, Ed. Atlas SA, p.14. 1981.(36) Hillier & Hanson tambm chamaram essa modalidade de conhecimento de "racionalidade

    dogmtica" (1984 :31 ).(37) Cf. Mepham (1972) The theory of ideology in "Caplta", in Radical Philosophy, n. 2, pp. 1219.(38) Vsqu&z (1968:31 ss).(39) Lukcs, G. (1966). Na Esttica, o esforo de Lukcs se d no sentido da especificao da arte como

    reflexo da realidade, em contraposio s demais formas de conscincia reflexiva historicamentedesenvolvidas: o pensamento mgico, o pensamento cotidiano, o pensamento cientfico. Umaanlise mais detida da importante contribuio de Lukcs extrapola os limites deste texto. Asobservaes contidas neste item indicam, entretanto, algumas das razes pelas quais no adoto suaargumentao: sua leitura do postulado marxista do primado da realidade sobre a conscinciacontm forte tonalidade funcionalista. Giddens parece mais (perdoem-me) dialtico: o rear histrico"refletido pela conscincia j no matria-prima ou natureza pura, mas um realmediatizadollransformado pela prpria conscincia humana (cf. Giddens 1984, Capo 1).

    (40) Cf. verbete art, da Encyclopaedia Brittannica, vol. 2, William Benton, Publishers, London, 1963.(41) Vsquez (1966:36).(42) Williams (1976) lembra que na Universidade medieval, as sete artes eram gramtica, lgica,

    retrica, aritmtica, geometria, msica e astronomia (p. 33). A partir do sculo XVIII, o termo artecomea a ser aplicado pintura, desenho, gravura e escultura.

    (43) Ver tambm verbete science", em Williams (1976:232-5).(44) Suassuna (1979).(45) Wisnik (1989).(46) Ostrower (1983).(47) Campelo (1989).

  • (48) Silva (1985:107).(49) Coelho Netto (1984).(50) Ostrower (1983).(51) Coutinho (1970:183).(52) Hillier & Hanson (1984).(53) Id., p.1.(54) Id., p.2.(55) Hillier & Leaman (1974).(56) A frase de So Toms de Aquino, "Belo aquilo que agrada vista~ foi-me lembrada por Gasto

    de Holanda, meu pai, comentando por carta uma verso anterior deste texto.(57) A pesquisa que venho desenvolvendo junto com outros colegas do Instituto de Arquitetura e

    Urbanismo da Universidade de Braslia, denominada Dimenses Morfolgicas do Processo deUrbanizao, tem como objetivo central fazer o cruzamento e identificar as superposies eventuaisde categorias analticas dos vrios "cortes" utilizados na anlise da forma dos assentamentoshumanos.

    (58) Os termos so tomados de Hillier & Hanson (1984), que os utilizaram noutro contexto.terico.(59) Novaes (1983).(60) Coelho Netto (1984:56ss).(61) Boudon (1971).(62) Ver a utilizao do conceito feita por Gorovitz (1985) em seu estudo de caso sobre Braslia

    Nesta famlia de preocupaes, so pertinentes colocaes feitas por Coelho Netto (1984), quandoele se refere ao eixo "espao amplo/espao restrito".

    (63) Douglas, M. (1973).(64) Holanda, F. (1977).(65) Ele refere-se particularmente a Bachelard, em seu La potique de I'espace, Paris, PUF, 1974.(66) Essa ambigidade tem origem no prefixo "supero, no latim, que j significava simultaneamente um

    atributo espacial - "posio acima, em cima ou por cima" -e um atributo aespacial - "excesso","aumento" (cf. HoIanda Ferreira, Novo Dicionrio da Lngua Portuguesa).Parte das reflexes constantes deste item me foi sugerida, em conversa, pelo colega AntnioCarpintero.

    (67) Curiosamente, Coelho Netto (1984) no fala nestes termos, mas em termos de elementos em umaou duas dimenses: ato falho que revela um tratamento do espao mais por seus elementos-meio?Quando me refiro quelas formas geomtricas, refiro-me forma do vazio, do vo entre oselementos escultricos da arquitetura

    (66) Tambm comentado em Coelho Netto (1984:85).(69) Vale frisar as especificidades relativas desta categoria e da categoria "componentes artificiais e

    naturais": o ptio interno de uma casa completamente isolado da rua , neste sentido, um espaofechado ou interior; apenas tem sua peculiaridade na abbada celeste com.o uma de suas"superfcies" definidoras.

    (70) Ver em Moere et ai. (1974: 129).(71) Ver em Goldfinger (1970).(72) Hillier & Hanson (1984). Ver exemplificao nos estudos de caso realizados sobre fraes urbanas

    do Distrito Federal, em Holanda & Gobbi (1988).

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICASARNHEIM, R. The dynamics of architectural form, Berkeley: University.of California Press, 1977.BACHELARD, G. La potique de I'espace, Paris: PUF, 1974.BOUDON, P. Surl'espacearchitecturaf, Essai d'epistemologie de I'architecture, Paris, Dunod, 1971.CAMPELO, G. "O projeto de Le Corbusier para a Embaixada da Frana em Braslia", in Boletim do

    Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Braslia, Braslia, n2 47, 1989.COELHO NETTO, J. T. A construo do sentido na Arquitetura, So Paulo: Perspectiva, 1984.CORNU, M. "La conaissance de I'architecture piegee par I'idolatrie de I'art", in La Pense, n2 .185, p.

    110-119, 1976.COUTlNHO, E. O espao da arquitetura, Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 1970.DOUGLAS, M. Natural symbols - explorations in cosmology, London: Barrie & Joenkins, 1973.

  • GOLDFINGER, M. Antes de Ia arquitetura - Edificacin y habltat annimos en Ios paise$ mediterrneos,Barcelona: Gustavo Gilli, 1970.

    GOROVllZ, M. Breslia, uma questo de escala, So Paulo: Projeto, 1985.HAUSER, A. Histria social dela literatura y el arte, Madrid: Guadarrama, 1969.HILLlER, a.; HANSON, J. The sociallogic of space, Cambridge: University Press, 1984.HILLlER, B.; LEAMAN, A. "How is design p0S5ib~", in Journal of Archltectural Research, nO 3/1, 1974.HOLANDA, F. Space and mode 01production, Dissertao de Mestrado (mimeo), 1977.HOLANDA FERREIRA, A. B. Novo Dicionrio da Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Froruira, s.d.JUC. C. "Nestes tempos. questes da arte como cultura, e da arquitetura em sua especificidade", in

    Boletim do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Braslia, nO 44. Br 1987.LUKCS, G. Esttica, Ediciones Grijalbo SA, BarcelonaIMxico: Grijalbo, 1966.MEPHAM, J. "The Theory of Ideology in 'CapitalM, in Radical Philosophy, nO2. p. 12-19. 1972-MOORE, C. et ai. La caSB - forma y diseno, Barcelona: Gustavo GiIIi, 1974.NOVAES, S. C. Habita6es indgenas, NobellUniversidade de So Paulo, 1983.OSaORNE, H. Theory of Beauty - an introduction to Aesthetics, london: Routlege & Kegan Paul, 1952.OSTROWER, F. Universos da Arte, Rio de Janeiro: Campus, 1983.SCHURMAN, E. A msica como linguegem, uma abordagem histrica, Editora Brasiliense,CNPq. So

    Paulo: Brasiliense, 1989.SCRUTON , R. Esttica da arquitetura, livraria Martins Fontes Editora Ltda. So Paulo: MMins Fontes,

    1979.SILVA, E. Arquitetura & Semiologia Notas sobre a interpretao lingstica do fenmeno arquitetnico,

    Porto Alegre: Sulina, 1985.SOURIAU, E. Chaves da Esttica, Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1973.SUASSUNA. A. Iniciao Esttica. Recife: Universidade Federal de Pemambuco, 1979.VSQUEZ. A. S. As idias estticas de MafX, Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1968.WILLlAMS, R. Keywords, a vocabulary of culture and society, London: Fontana/Croon, 1976.WISNIK. J. M. O som e o sentido, uma outra histria das msicas, So PaJIo: Crculo do

    Livro/Companhia das Letras, 1989.