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Ponto de vista 500 anos de demografia brasileira: uma resenha * Massimo Livi Bacci Em 1999, passei parte de meu sabático no Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da UFMG e no Núcleo de Estudos de População (NEPO) da Unicamp. Durante o período em que permaneci nestas duas universidades brasileiras, ministrei cursos nos seus programas de Doutorado e dediquei parte do tempo disponível ao levantamento de material sobre a história da população brasileira. Retornando à Itália, meu colega Carlo Corsini, diretor da revista Popolalizone e Storia , solicitou-me a elaboração de uma “resenha” da história da demografia no Brasil. Realizei esta tarefa com prazer, para dar conhecimento aos estudiosos italianos das venturas e desventuras de um país ao qual a Itália está particularmente vinculada, inclusive demograficamente. Para mim é uma honra que este trabalho seja publicado nesta Revista, graças à tradução da amiga Maria Silvia C. B. Bassanezi – a qual devo preciosas indicações. Gostaria também que os estudiosos brasileiros soubessem qual é a natureza deste escrito: trata-se do ponto de vista de um estrangeiro, não especialista na vida brasileira, mas profundamente interessado pela mesma 1. Em 22 de abril de 1500, uma frota de 13 navios, capitaneada por Pedro Álvares Cabral, aportou nas cercanias da atual cidade de Porto Seguro, aproximadamente no meio dos 8 mil quilômetros da costa Atlântica do Brasil atual. Talvez este desembarque tenha sido acidental: Cabral * Tradução de Maria Silvia C.B. Bassanezi do original italiano “500 anni di demografia brasiliana: una rassegna”, publicado na revista Popolazione e Storia, n. 1, 2001, p. 13-34. 1 A historiografia brasileira recente tem questionado esta versão do descobrimento do Brasil. Baseando-se no contexto da época e em evidências documentais, está mais propensa a aceitar a hipótese da intencionalidade do descobrimento. [N. do T.] navegava em direção às Índias e deveria percorrer a rota traçada pelo navegador Vasco da Gama, que regressara a Portugal no ano anterior. Depois das ilhas de Cabo Verde, no entanto, a frota se desviara de sua rota, empurrada por ventos e correntes, em direção ao Ocidente 1 . A permanência no Novo Mundo durou apenas oito dias, o suficiente para descanso e abastecimento dos navios. No dia 1 o de maio Cabral rumou para as Índias, seu destino final. Entretanto, o contato com a nova terra fora estabe- lecido, marcando o destino do moderno Brasil, o quinto país do mundo em dimensão geográfica (8,5 milhões de km 2 ) e demográfica (170 milhões de habitantes em 2000). Para os estudiosos das Ciências Humanas e da Demografia, o Brasil apresenta-se como um laboratório de extraordinário interesse. A população autóctone, tênue em números e dispersa no enorme território, após o contato com os europeus, chegou a estar próxima (e, em muitas áreas, rapidamente) da extinção. Os conquistadores e os colonos dessa terra, que ocupa a metade do continente sul- americano, vinham de Portugal, um pequeno país com uma população modesta, mas que não obstante conseguiu imprimir sua marca cultural e demográfica no Brasil. O tráfico de escravos, que alimentou a força de trabalho na Colônia durante três séculos, introduziu no Brasil dois quintos dos 10 milhões de africanos trazidos à América pelos navios negreiros (Curtin, 1969, p. 268). A emigração européia, na segunda metade do século XIX e primeiros 30 anos do século XX, enriqueceu ainda mais a já complexa sociedade brasileira. Por cinco séculos, os processos de mestiçagem entre etnias foram seguramente os mais intensos já vistos em um grande país na época moderna. Finalmente, na segunda metade do século XX, a transição demográfica – e em especial a da fecundidade –

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  • Ponto de vista

    500 anos dedemografia brasileira:

    uma resenha *

    Massimo Livi Bacci

    Em 1999, passei parte de meu sabticono Centro de Desenvolvimento ePlanejamento Regional (Cedeplar) daUFMG e no Ncleo de Estudos dePopulao (NEPO) da Unicamp. Durante operodo em que permaneci nestas duasuniversidades brasileiras, ministrei cursosnos seus programas de Doutorado edediquei parte do tempo disponvel aolevantamento de material sobre a histriada populao brasileira. Retornando Itlia,meu colega Carlo Corsini, diretor da revistaPopolalizone e Storia, solicitou-me aelaborao de uma resenha da histriada demografia no Brasil. Realizei esta tarefacom prazer, para dar conhecimento aosestudiosos italianos das venturas edesventuras de um pas ao qual a Itlia estparticularmente vinculada, inclusivedemograficamente. Para mim uma honraque este trabalho seja publicado nestaRevista, graas traduo da amiga MariaSilvia C. B. Bassanezi a qual devopreciosas indicaes. Gostaria tambm queos estudiosos brasileiros soubessem qual a natureza deste escrito: trata-se do pontode vista de um estrangeiro, no especialistana vida brasileira, mas profundamenteinteressado pela mesma

    1. Em 22 de abril de 1500, uma frota de13 navios, capitaneada por Pedro lvaresCabral, aportou nas cercanias da atualcidade de Porto Seguro, aproximadamenteno meio dos 8 mil quilmetros da costaAtlntica do Brasil atual. Talvez estedesembarque tenha sido acidental: Cabral

    * Traduo de Maria Silvia C.B. Bassanezi do original italiano 500 anni di demografia brasiliana: una rassegna, publicado na revistaPopolazione e Storia, n. 1, 2001, p. 13-34.1 A historiografia brasileira recente tem questionado esta verso do descobrimento do Brasil. Baseando-se no contexto da pocae em evidncias documentais, est mais propensa a aceitar a hiptese da intencionalidade do descobrimento. [N. do T.]

    navegava em direo s ndias e deveriapercorrer a rota traada pelo navegadorVasco da Gama, que regressara a Portugalno ano anterior. Depois das ilhas de CaboVerde, no entanto, a frota se desviara desua rota, empurrada por ventos e correntes,em direo ao Ocidente1. A permannciano Novo Mundo durou apenas oito dias, osuficiente para descanso e abastecimentodos navios. No dia 1o de maio Cabral rumoupara as ndias, seu destino final. Entretanto,o contato com a nova terra fora estabe-lecido, marcando o destino do modernoBrasil, o quinto pas do mundo em dimensogeogrfica (8,5 milhes de km2) edemogrfica (170 milhes de habitantes em2000).

    Para os estudiosos das CinciasHumanas e da Demografia, o Brasilapresenta-se como um laboratrio deextraordinrio interesse. A populaoautctone, tnue em nmeros e dispersano enorme territrio, aps o contato com oseuropeus, chegou a estar prxima (e, emmuitas reas, rapidamente) da extino. Osconquistadores e os colonos dessa terra,que ocupa a metade do continente sul-americano, vinham de Portugal, umpequeno pas com uma populaomodesta, mas que no obstante conseguiuimprimir sua marca cultural e demogrficano Brasil. O trfico de escravos, quealimentou a fora de trabalho na Colniadurante trs sculos, introduziu no Brasildois quintos dos 10 milhes de africanostrazidos Amrica pelos navios negreiros(Curtin, 1969, p. 268). A emigraoeuropia, na segunda metade do sculo XIXe primeiros 30 anos do sculo XX,enriqueceu ainda mais a j complexasociedade brasileira. Por cinco sculos, osprocessos de mestiagem entre etniasforam seguramente os mais intensos jvistos em um grande pas na pocamoderna. Finalmente, na segunda metadedo sculo XX, a transio demogrfica e em especial a da fecundidade

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    desenvolveu-se de um modo muitoparticular, chegando, no novo milnio, auma reproduo prxima do nvel dereposio.

    No faltam, pois, razes para consi-derar a histria demogrfica do Brasil umobjeto fascinante de estudo.

    2. Ao contrrio da Amrica Hispnica,o Brasil pobre em fontes documentais ato final do perodo colonial (Marclio, 1990)2.As grandes linhas de desenvolvimento emudana podem ser intudas, mas nomedidas, seno muito grosseiramente. Estacarncia pode ser imputada, de modo geral,a duas grandes causas. A primeira a faltade uma sociedade autctone altamenteorganizada e estratificada como aquelaexistente na Amrica Central ou na regioandina. Havia poucos milhes de habi-tantes poca do descobrimento, que setransformaram em poucas centenas demilhares dispersos no imenso territrio nomomento da Independncia uma realidadepouco verificvel pelos escassos grupos decolonos instalados na faixa costeira. Asegunda razo so as ligaes mais frouxasdos colonos com a me ptria pequena elongnqua, a qual no conseguiu esta-belecer um estreito controle poltico,administrativo e burocrtico sobre suacolnia (ao contrrio do que ocorreu com aEspanha e suas terras na AmricaEspanhola)3.

    Mais que para o resto do continenteamericano, as estimativas existentes parao Brasil sobre o volume da populao poca do contato com os europeus soconjecturas baseadas em notcias eavaliao de colonos, religiosos ou via-jantes. Tais estimativas contam com poucabase na realidade, foram elaboradas empocas muito posteriores e descontam astaxas presumidas de depopulao.Todavia, vale a pena dar conta dos esforosmais srios, pelo menos para se ter uma

    idia do patrimnio demogrfico do Brasilno incio de sua histria moderna.

    A populao autctone vivia princi-palmente da pesca, caa e coleta; emalgumas reas era visvel o cultivo deculturas, sobretudo a da mandioca doce ouamarga. A rea com maior densidade depovoamento era aquela restrita faixa deplancie de aluvio ao redor do rioAmazonas e seus principais afluentes e afaixa costeira ao sul do esturio amaznico,zona rica em caa e pesca em particular.Muito menor era o povoamento nas savanasdos altiplanos e quase nulo aquele dafloresta amaznica, que ocupava a maiorparte da superfcie do territrio brasileiro(Denevan, 1992a, p. 206-208). SegundoDenevan, que baseou sua estimativa sobrevalores de uma mnima densidade potencial(com algum controle de valores maisrecentes, descontadas hipotticas taxas dedepopulao), a populao da GrandeAmaznia (9,6 milhes de km2, corres-pondentes ao atual territrio brasileiro donorte do Trpico excludos os atuaisEstados do Paran, Santa Catarina e RioGrande do Sul , somado rea amaznicada Colmbia, Equador, Peru, Bolvia e dabacia do Orinoco da Venezuela) era de 6,8milhes de habitantes. Esta estimativarepresentaria 12,6% de toda a populaodo continente americano no momento docontato com os europeus (53,9 milhessegundo reviso coordenada pelo mesmoDenevan) (cf. Denevan, 1992b, p. xxviii).Quase quatro dcimos da populaoestavam concentrados na reduzida faixacosteira e margem amaznica uma reade 2% do territrio interno. Foi com estapopulao que os portugueses primei-ramente entraram em contato.

    Entre outras estimativas racionais dapopulao por volta de 1500 encontra-se ade Steward, autor e coordenador dainfluente obra Handbook of South Americanindians, que calcula em cerca de 2,6

    2 Tal afirmao mais vlida para fontes de carter demogrfico. [N. do T.]3 Segundo a historiadora Laima Mesgravis, as ligaes de Portugal com o Brasil eram semelhantes s existentes entre Espanhae suas colnias na Amrica. O que diferenciava a colnia portuguesa das colnias espanholas era que a burocracia, nessas ltimas,era maior e havia um maior nmero de funcionrios. No Brasil, boa parte da burocracia era executada de forma indireta, porpessoas no assalariadas, que prestavam servios gratuitamente. Por exemplo: as milcias, que executavam atividades policiaise militares, os agentes da Coroa e as Cmaras Municipais, que exerciam atividades polticas e administrativas. [N. do T.]

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    milhes o nmero de habitantes dessa rea(Stewart, 1949). Esta estimativa baseia-seno recenseamento de numerosssimosgrupos tribais, relacionado a estimativascom diferentes graus de confiabilidade dossculos XVI e XVII (s quais se atribui, emgeral, pouco crdito). Hemming (1978), porsua vez, estima 2,4 milhes, baseando-seem uma resenha detalhada das fontesexistentes e em vrias metodologias. Estascifras mais aceitveis inserem-se em umamplo leque de valores (de um mnimo de0,5 a um mximo de 10 milhes) (Denevan,1992a, p. 205), cuja amplitude decorre datomada de posies apriorsticas voltadasa maximizar (ou a minimizar) a catstrofeprovocada pelo contato entre autctones ecolonizadores.

    Testemunhos de poca dos primeirospovoadores particularmente jesutas, apartir da metade do sculo XVI e de pocasposteriores confirmam a opinio dosestudiosos contemporneos de que apopulao indgena sofreu uma quedaextraordinria. As contagens gerais de1798 deram um total de 252 mil ndiospacificados, ao passo que a contagemde 1819, que inclui tambm os ndios nosubmissos, refere-se a 800 mil (Marclio,1990, p. 45). Com relao aos autctonesbrasileiros como para outras populaesamericanas , os historiadores sodesafiados a compreender a causa dadepopulao indgena.

    Na segunda metade do sculo XXprevalece entre os estudiosos uma linharevisionista, que, alm de reavaliar a altaestimativa da populao autctone poca do contato, tem sustentado aprevalncia da epidemiologia como causada depopulao indgena peculiar aestimativa de Dobyns (1966) de 113milhes para todo o continente, contra aestimativa anterior de Steward, Kroeber eRosenblat de entre 8 e 15 milhes(Denevan, 1992b, p. 3).

    A introduo da varola, sarampo,tuberculose, uma variedade de gripes e deoutras patologias na populao isolada eno imunizada estaria na raiz da catstrofe.Sobre o impacto destruidor das epidemiasno restam dvidas, e as evidncias

    documentais so muitas tambm para oBrasil. A epidemia de varola nos anos1562-65 levou ao desaparecimento de 30mil indgenas na zona da Bahia (Hemming,1978, p. 144; Marclio, 1990, p. 42; Cook,1998, p. 115-116) e devastou toda a faixacosteira, com perdas entre um tero e ametade da populao atingida (Johnson,1990, p. 222). Um episdio anlogoverificou-se em 1597 e documentos devrias naturezas atestam o contnuoressurgir dessas epidemias durante ossculos XVII e XVIII (Marclio, 1990, p.44-45; Cook, 1998, p. 190-192). Emparticular, ocorreram crises extensasou pandmicas em 1664-66, 1715-18 e1774-79 (Alden e Miller, 1987). Dada a baixadensidade da populao, a varola no eraendmica, mas ocorria periodicamentedevido importao de escravos da frica,onde, ali sim, era endmica (Alden e Miller,1987). O problema, todavia, tornava-se maiscomplexo devido a outros fatores. Pelomenos durante o primeiro sculo daColnia, a fronteira dos europeus era rela-tivamente limitada a uma estreita faixacosteira; no restante do imenso territrio onde havia baixa densidade o contato foiacontecendo gradualmente nos sculosseguintes.

    presumvel que o efeito negativo docontato sobre a populao autctone tenhatido cadncias temporais muito dife-renciadas, assim como tenham sidodiferenciadas quantitativamente, segundoa zona, as perdas demogrficas. Mas osfatores determinantes da depopulaoindgena alm da difusa hostilidadedeterminada pelo povoamento europeu edas contnuas guerras e incurses depacificao, em geral bastante cruis,proporcionando muitas perdas devem serbuscados na contnua demanda de mo-de-obra por parte dos europeus paraalimentar a atividade de produo eservios. Mesmo se as tribos pacficas oupacificadas no pudessem se tornarescravas, o regime da escravido podiaaplicar-se s tribos hostis ou quelassuspeitas de canibalismo (Hemming, 1978).A fome de mo-de-obra satisfeita em partepelo crescente trfico de escravos africanos

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    impulsionava a organizao de expe-dies ao interior do territrio em busca donico recurso de valor existente para oseuropeus (pelo menos at a descoberta doouro no final do sculo XVII): homens emulheres reduzidos escravido. Este foio objetivo das bandeiras de apresamento expedies (compostas por mestios comsangue indgena) que partiam do altiplanopaulista em direo ao interior de MatoGrosso, ao norte, na direo do rio SoFrancisco, ou em direo ao sul. Estetambm foi o objetivo dos resgates expedies fluviais em direo ao interiorpara a escravizao de populaesribeirinhas4. Os efeitos diretos e indiretosdesse saque foram certamente enormesmas, infelizmente, no so mensurveis:extermnio, separao, destruio demuitas comunidades, deslocamento deoutras para o interior, em territrios hostis sobrevivncia. Por outro lado, os ndiosescravos ou colocados em escravidoamide tambm no se reproduziam,determinando, portanto, novas demandas;o elemento feminino, especificamente,muitas vezes era absorvido pela populaobranca e sobretudo subtrado do poolreprodutivo originrio. Muitos religiosos sobretudo o jesuta Antonio Vieira (umaespcie de Las Casas brasileiro) denunciaram as conseqncias dadevastao, divulgando cifras hiperblicas.Nas reas diretamente pacificadas e nasquais se observou uma relativa convivnciapacfica as condies de vida foramfreqentemente alteradas; pode-se pensartambm no processo de concentrao dosndios em grandes vilas (aldeias),organizadas pelos jesutas para facilitara doutrinao e a aculturao, quecertamente modificaram (e nem semprepara melhor) as condies de vidatradicionais. A epidemia de varola de1562-63 eliminou 5 das 11 vilas recm-criadas na poca, o que leva a pensar queos efeitos seriam menos desastrosos se

    os ndios tivessem permanecido dispersose continuado a praticar seu tradicionalseminomadismo.

    Estamos diante de um modelodemogrfico muito complexo para o qualconcorreram numerosos componentesnegativos. Para sua compreenso, precisoconsiderar que o efeito desastroso dasnovas patologias tende a atenuar-se como tempo, em funo dos processos deadaptao gradual e de seleo. O efeitodeslocamento a ruptura da comunidadetradicional, a subtrao da mulher do poolreprodutivo , alm de prejudicar asobrevivncia, reprime a reproduo ecompromete a potencialidade de recupe-rao populacional. Portanto, atribuir adepopulao exclusivamente s patologias uma simplificao que pode distorcergravemente a interpretao histrica dacatstrofe demogrfica dos ndiosbrasileiros. Enfim, preciso considerartambm que muitos indgenas terminarampor adentrar na populao livre, fundindo-se com a populao portuguesa por meioda mestiagem, possvel pela ausncia deuma estreita diviso entre castas (comohavia na Amrica Espanhola). Por outrolado, h casos freqentes em que oelemento indgena se incorporou populao livre sem se mesclar com apopulao branca: no Cear, muitoscaciques de aldeamento (isto , per-tencentes a vilas fundadas pelos religiosos)buscaram adquirir terras doadas(sesmarias) e converteram-se emfazendeiros. Dessa forma, uma parte dapopulao indgena, por meio da mes-tiagem reprodutiva ou da assimilaocultural, tornou-se indistinta daquela deorigem portuguesa.

    3. O povoamento portugus no Brasil,quase exclusivamente na faixa litornea,escasso em nmero, pelo menos duranteos sculos XVI e XVII, no representou poucose pensarmos na exigidade da populao

    4 A partir de 1565 a escravizao de ndios foi proibida em terras brasileiras. A soluo encontrada foi o resgate resgataralmas, isto , libertar ndios prisioneiros de outros ndios em troca de seu trabalho (o que no deixa de ser uma forma de escravizar).Houve resgate em vrias reas do territrio, mas com o tempo este termo ficou restrito bacia Amaznica, o que no significa quetodo o resgate fosse feito atravs de expedio fluvial. [N. do T.]

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    portuguesa no pas de origem. Em Portugal,em meados do sculo XVI, havia um milhoe meio de habitantes; este pas estavaempenhado tambm na colonizao dasilhas do Atlntico e em expandir-se por umarea que ia da costa africana s Molucas.

    Contudo, j no final do sculo XVI, noBrasil, a populao branca (a grandemaioria portuguesa, com algum aporte deoutras nacionalidades europias) haviaseguramente ultrapassado 30 mil indivduos(cerca de 21 mil em 1570 e 29 mil em 1585)(Johnson, 1990, p. 227; Botelho, 1999),subdividida em oito capitanias (foramcriadas 14 inicialmente, na metade dosculo, do Equador ao sul do Trpico, masnem todas haviam prosperado) e com trsprincipais concentraes (Pernambuco,Bahia e So Vicente).

    Um verdadeiro, particular e sistemticoesforo de colonizao decidido pela CoroaPortuguesa comeou nos anos 1530,quando o modelo de estabelecimentocomercial de feitorias (para o comrciode produtos nativos valiosos no mercadointernacional, inclusive escravos indgenas)revelou-se incapaz de resistir s ameaase s tentativas de estabelecimento defranceses no Brasil. Na metade do sculoum governador assumiu a administrao daColnia, trazendo consigo jesutasencarregados da evangelizao. Isso tudocontribuiu para o progresso do povoamento,que se acelerou tambm em virtude dosucesso da lavoura canavieira (Johnson,1987, p. 13-19).

    Durante o sculo XVII, o processo decolonizao continuou, com algum esforoorganizado para povoar o norte do pas(Maranho e Par), em reao a incursesestrangeiras. Com a expulso dosholandeses de Pernambuco, ondeestiveram por 30 anos (1624-1654),ocorreu uma retomada da imigrao. Umatestemunha ocular afirmou que, emSalvador, cada navio vindo de Portugaltrazia uns oitenta camponeses oriundos daMadeira, dos Aores e do Porto. Segundooutro testemunho, nos anos 80, partiam dePortugal 2 mil emigrantes ao ano paraPernambuco, Bahia e Rio de Janeiro (Boxer,1964, p. 10). No final do sculo, a populao

    branca aproximava-se a 100 mil pessoas(Marclio, 1990, p. 47).

    Nos ltimos anos do sculo XVII aimigrao aumentou em conseqncia dadescoberta do ouro em Minas Gerais e,posteriormente, em Gois e Mato Grosso.O fluxo, mais ou menos espontneo, deimigrantes ocorreu sobretudo na primeirametade do sculo XVIII, mas as estimativasainda so imprecisas: Furtado (1971)avalia que, no decorrer do sculo XVIII,imigraram entre 300 mil e 500 mil pessoas;Marclio (1990) apresenta uma cifraintermediria, 400 mil; Rowland (1990)indica cerca de 9 mil ao ano durante o sculoXVIII. Segundo Boxer, citam-se dadosexagerados do fluxo imigratrio, que, paraele, seria da ordem de 3 mil a 4 mil pessoasao ano no perodo mais tumultuado do goldrusch. Aps 1720 a imigrao no chegoua superar 2 mil pessoas ao ano, emconseqncia da introduo do passaporte(Boxer, 1964, p. 49). No perodo de Pombal(1750-77) aumentaram-se os esforos paraorganizar e planificar a emigrao,principalmente aquela em direo ao Sul,ameaado pela expanso espanhola. Aatrao pelas minas comeou a diminuircom o exaurir-se da produo aurfera.

    O recenseamento de 1798 d uma cifrade 1,010 milho para a populao branca,cerca de um tero da populao total doterritrio e um mltiplo da populaoindgena, absoluta em 1500 (Figura 1). Emtodo o Brasil, estava assegurado o domnioeuropeu.

    Pode ser interessante comparar emtermos relativos o esforo de povoamentooperado pelas quatro populaeseuropias s quais se deve o povoamentoamericano: francesa, inglesa, espanhola eportuguesa (Tabela 1). O estoque depopulao (americana) branca recenseadaou estimada em 1800 (col. 1) relacionadoao fluxo de imigrao acumulado na mesmadata (col. 2), obtendo-se uma razo (col. 3)indicadora do sucesso migratrio; omesmo fluxo imigratrio relacionado populao da nao europia de origem(col. 4), obtendo-se um valor que exprime oesforo migratrio da me ptria(col. 5). Enfim, a relao entre populao

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    FIGURA 1A populao do Brasil no final do sculo XVIII

    TABELA 1Populaes americanas, populaes europias e migrao, 1800 (em 1000)

    Nota: As populaes de origem (col.4) so, na ordem: Frana, Reino Unido, Espanha e Portugal. Para as populaes destes pases,cf. M. Livi Bacci (1999, p. 14-15).Para Portugal: Perez Moreda e Rowland (1997).Sobre as populaes americanas, Rosenblat (1954), Charbonneau et al. (1987); Mc Evedy e Jones (1979).Sobre migraes, para uma discusso ver Livi-Bacci (1998).Todas as cifras, especialmente aquelas sobre imigrao acumulada, tm natureza indicativa: objetivam ilustrar a dimenso doproblema.

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    americana e populao europia (col. 6)fornece uma idia resumida do equilbrioEuropa/Amrica no final do perodocolonial. bvio que se tratam de grandezasbastante aproximadas e, de todo,conjecturas no que diz respeito ao fluxoimigratrio. Todavia, os resultados desseexerccio fornecem uma grade deorientao interessante.

    Do ponto de vista do sucesso migratrio,no resta dvida de que os franceses doCanad obtiveram os melhores resultados:seus descendentes, em 1800, eram setevezes mais numerosos na imigraoacumulada. Um discreto sucesso teve aimigrao anglo-saxnica (razo igual a 4),seguida pela espanhola (razo igual a 3) epela portuguesa (cerca de 2). Naturalmente,esta relao grosseira no considera, entreoutras coisas, a longevidade da imigraonaquela data. Esta foi mais remota para aAmrica Espanhola que para o Brasil (naprimeira, o fluxo em grande parte ocorreuno primeiro sculo e meio de colnia; nasegunda, o maior fluxo teve lugar no sculoXVIII). Todavia, a baixa performance daimigrao portuguesa aparente, porqueno considera os descendentes mestios,que foram muitos. Na Amrica Hispnica,estes eram bem menos e na Amrica doNorte, menos ainda, pouqussimos. No quediz respeito ao perfil do esforo migratrio,Portugal situa-se nitidamente no primeiroposto (fluxo acumulado igual a 1/5 dapopulao em 1800), seguido pelaEspanha e Inglaterra (cerca de 1/12) e, auma distncia maior, pela Frana (menosde 1/1.000). Em outros termos, a relao

    entre populao americana e populaoeuropia de origem foi mxima para oBrasil, seguido pelos Estados Unidos,Amrica Espanhola e, distncia, peloCanad.

    Estas cifras grosseiras, sujeitas areviso, indicam o possvel percurso deuma interessante linha de pesquisa. preciso, primeiro, defrontar-se com oproblema do sucesso migratrio dasdiversas populaes, procurando com-preender e decompor os mecanismos eexplicar as causas. Deixo assinalado aquia relevncia da questo.

    4. O povoamento do Brasil deve-seprincipalmente pelo menos at a grandeimigrao europia da segunda metade dosculo XIX ao trfico de escravos africanos.Na poca do primeiro recenseamentomoderno (1872), 58% dos quase 10milhes de brasileiros eram de origemafricana, pura ou mestia. At a aboliodo trfico negreiro (1850), 3,6 milhes deescravos haviam sido transportados emnavios negreiros para o Brasil, o querepresentava 38% de todo o trficotransatlntico.

    Os temas do trfico, da escravido, damestiagem, do acesso liberdade tm umenorme interesse histrico, social e culturalpara o qual a Demografia pode contribuir comnovos aportes. Tais temas esto, justamente,no centro do debate histrico e poltico noBrasil, devido importncia do elementoafricano na populao atual e porque a marcada abolio definitiva da escravido ocorridasomente em 1888 ainda se faz presente.

    TABELA 2Escravos trazidos para a Amrica e populao negra americana, 1800

    (em 1000)

    Nota: Os dados relativos col. 1 - escravos trazidos da frica - foram deduzidos, com algum ajustamento, de Curtin (1969). Paraa populao negra da Amrica em 1800, ver Rosenblat (1954) e Klein (1987: 295-96) e, para o Brasil, Merrick e Graham (1979:44).

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    Considere-se a Tabela 2, construdacom intento semelhante quele da Tabela 1.Nela aproxima-se o fluxo acumulado daimportao de escravos at o incio dosculo XIX com o estoque de populaonegra e de cor na mesma data. (Recorda-mos que estamos diante de estimativasbastante corajosas, no s no que dizrespeito ao trfico de escravos, mastambm quanto ao estoque da populaonegra e de cor, que apenas para a Amricado Norte possuem uma alta qualidade,devido a um bom recenseamentoexistente.)

    O que interessa a razo entreestoque e fluxo, compreendida entre osdois extremos a da Amrica do Norte(razo igual a 3) e a do Caribe (razo iguala 0,5), com a Amrica EspanholaContinental e o Brasil apresentandovalores intermedirios (1,2 e 0,9), masbastante mais prximos do mnimo que domximo. Se considerarmos, em lugar de1800, o ano de 1872 data do primeirorecenseamento , a populao comascendncia africana (negros e mulatos)era de 5,8 milhes e o fluxo acumulado,de 3,6 milhes, com uma evidentemelhoria (razo 1,6). Nessa data, queprecede em poucos anos a abolio daescravido (1888), a populao de origemafricana livre representava trs quartos dototal, contra apenas um quinto no incio dosculo. Todavia, esta razo engana,porque a adeso do Brasil abolio dotrfico j ocorrera, o fluxo j havia cessadoh vinte anos. A razo estoque/fluxo iguala 0,5 do Caribe confirma o que j se sabe:o sistema demogrfico da escravidomantinha-se graas a uma contnua esustentada importao de novas levas quesubstitua os enormes vazios abertospor uma mortalidade elevadssima,compensada, em medida muito modesta,pela baixa reprodutividade. O sistemanorte-americano, por outro lado, era muitoeficiente e o crescimento natural dapopulao negra foi fortemente positivo. Ocaso brasileiro, como evidente, separece mais com o modelo caribenho:necessitava de uma contnua importaopara manter invarivel o estoque existente.

    Colocam-se ainda questes que osestudos at agora no clarificaram: quaiseram as causas da frgil e regressivademografia da populao africana noBrasil? A alta mortalidade, a baixanupcialidade, as unies instveis, a baixafecundidade, uma fertilidade comprometidapor novas patologias? Quais destes foi ofator mais importante, ou em que medida eintensidade eles se misturaram? Em quemedida a privao da liberdade, a cargade trabalho, as patologias do continente,os regimes alimentares eram, indivi-dualmente ou em conjunto, responsveispor esse estado de coisas?

    Antes de olhar o que j sabemos dosistema demogrfico da escravido,colocam-se alguns elementos quantitativosque ajudam a fixar o problema. As estimativasdo volume do trfico (Figura 2) soconjecturas at o final do sculo XVIII edependem mais de indicadores indiretos otrfico martimo, aquele dos navios negreiros,testemunhos, opinies dos contemporneos que de indicadores diretos, como o nmerodos embarcados nos portos negreiros (comoNantes e Liverpool) ou dos desembarquesnos portos de entrada (Salvador e Rio deJaneiro) (Curtin, 1969, p. 15-17). A partir dosculo XVIII, os indicadores diretosprevalecem e as estimativas so ancoradasem uma farta documentao. A revisomoderna operada por Curtin (1969) estimaem 560.000 no sculo XVI (42%), 1.891.000de 1700 a 1810 (31%) e 1.145.000 (60%)at a abolio geral do trfico no Brasil(1850). No total, 3,65 milhes (38% de todoo trfico) de homens, mulheres e crianasforam transferidos para o Brasil em trssculos e meio; os homens adultosprevaleceram sobre as mulheres e crianas(uma relao entre 3:2 e 2:1). Uma propororelevante de escravos compreendida paramais, entre os 5% e os 20%, e tanto mais altaquanto mais longa era a durao da viagem no sobrevivia s condies da viagempelo Atlntico (Curtin, 1969, p. 275-286;Klein, 1986, p. 139-147); uma proporoignorada no sobrevivia ao saque que, aolongo da costa e no interior prximo costa,fazia afluir a mercadoria humana aos portosde embarque.

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    Grande parte do trfico foi absorvida nasplantaes, mas foi notvel tambm apresena de escravos nas artes e artesanato,particularmente nas cidades. Durante osculo XVIII a busca do ouro e pedraspreciosas alocou uma consistente mo-de-obra africana (Botelho, 2000). Na economiade plantation dominava a lavoura da cana-

    de-acar quase a nica mercadoriaexportada entre o sculo XVI e o final dosculo XVII , at quando se expandiu o caf,no sculo XIX. Na metade deste sculo, ocaf dominou 4/10 dos valores daexportao, com um quarto do acar(Merrick e Graham, 1979, p. 12).

    FIGURA 2Destino do trfico Atlntico, 1701-1810

    FIGURA 3O trfico de escravos para o Brasil, 1817-1843

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    A maior parte dos escravos provinhado Congo e sobretudo de Angola sob aadministrao portuguesa , mas no inciodo trfico tambm foi importante o grupoproveniente do Golfo da Guin e, no final, omoambicano (Curtin, 1969; Klein, 1986 e1987). Em fins do sculo XVII, o jesutaAntonio Vieira escrevia: aqueles que dizemacar, dizem Brasil e aqueles que dizemBrasil dizem Angola (apud Schwartz, 1986,p. 38) uma perfeita sntese da fora quetiveram os escravos na vida e nocrescimento da Colnia.

    At a segunda metade do sculo XVIII,o porto de entrada principal do trfico eraSalvador (capital da Colnia at 1763,quando esta foi transferida para o Rio deJaneiro). De 1780 at o trmino do trfico,quase dois teros dos africanos dirigem-se para o sul da Bahia e o restante, empartes iguais, para outras regies da Bahiaou ao norte desta provncia (Figura 3)(Klein, 1987). No decorrer do sculo XIX,com o desenvolvimento da cafeicultura emSo Paulo e a valorizao econmica doSul, a migrao interna assume impor-tncia. Segundo o recenseamento de1819, um quinto da populao escravaresidia nos estados do Norte (Maranho,Cear, Par); 28% na Bahia, Pernambucoe Alagoas; 36% no Rio de Janeiro, MinasGerais e So Paulo (IBGE, 1987, p. 30). Aproporo dos escravos nestas trsltimas provncias, s vsperas daabolio, crescera para 53%, teste-munhando as mudanas no centroeconmico e demogrfico do pas.

    5. O sistema demogrfico da escravidoera, como foi visto, um sistema de perenedficit; a escravido sobrevivia graas constante renovao do estoque por meiodo trfico. Quanto a isto parece no haverdvidas. Todavia, os mecanismos destecolossal e duradouro jogo perdido no sode todo claros e a discusso sobre oemaranhando de causas determinantescontinua em aberto.

    Convm examinar brevemente oestado do conhecimento que diz respeitoaos principais componentes do sistema,com particular ateno mortalidade, s

    unies e mestiagem entre etnias. Em umaresenha como esta, que somente umesboo, difcil prescindir de umcomponente histrico e ideolgico acercada natureza do sistema escravista, visto soba luz benigna da influncia do livro deGilberto Freyre Casa-grande e senzala (1954[1933]), questionada nos anos 50 e 60(Ianni, 1962; Fernandes, 1969; Cardoso,1977) e revista nos ltimos vinte anos(Mattoso, 1986; Vidal Luna e Klein, 1990;Schwartz, 1996; Slenes, 1998). De fato, osfenmenos demogrficos, conseqnciade comportamentos e constrangimentos,prestam-se a testemunhar a favor ou contradeterminadas interpretaes do regimeescravista.

    Que os escravos tinham uma morta-lidade muito alta ponto pacfico, noobstante o fato de que j tivessem sido sub-metidos a processos de seleo por partedos mercadores, primeiramente, e dascircunstncias da viagem, depois. As teste-munhas e as estimativas quantitativasexistentes deixam poucas dvidas a estepropsito. opinio corrente que a vida ativatil de um jovem escravo em uma plantaocompreendia entre 7 e 15 anos (Stein, 1957;Viotti da Costa, 1982; Schwartz, 1986). Estesnmeros, contudo, adquiriram fora maispela contnua repetio. quase impossvelverificar a sua confiabilidade, pois naequao entram muitas variveis tais como:a idade ao chegar ao Brasil; o trmino davida ativa pela invalidez e doena ou morte;as alforrias; a fuga (muito freqente); aeventual perda de observao (por vendaou fuga) etc. As cifras assumem relevnciasdiferentes quando um ou mais desseselementos so esquecidos ou conforme soavaliados.

    Com base na distribuio por idade dosescravos em 1872, e incluindo os efeitosde uma populao no fechada (pelo trficoe pela alforria), Evans e Mello estimaramuma esperana de vida para os homens de18,3 anos contra 27 para o total dapopulao brasileira , o que contrasta comos 35 anos observados para os escravosdos Estados Unidos na metade do sculoXIX (Merrick e Graham, 1979, p. 53).Deixando de lado as numerosas taxas de

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    mortalidade (e natalidade) calculadas paravrias reas e pocas todas gravementedeficitrias devido ausncia de registrodos eventos e s peculiaridades daestrutura por idade e sexo , o que seobserva uma alta mortalidade, emexcesso em relao natalidade. Em RioClaro (SP), a conservao de um registropermitiu calcular em 36% a sobrevivnciade um grupo de escravos (cuja idade mdiainicial era de 23 anos) entre 1822 e 1835,um nvel que implica uma mortalidadedesastrosa (Dean, 1977, p. 85). Entre 1838e 1852 perodo em que o trficoformalmente ilegal foi amplamentepraticado observou-se a idade de 440escravos embarcados em navioscapturados e sua idade ao morrer. Estes,na captura (e liberao), tinham entre 15 e25 anos em 4/5 dos casos; a suasobrevivncia mdia foi de 14 anos paraos homens e 10 anos para as mulheres.Valores compreendidos entre 7 e 15 anosso usualmente citados, com uma forteperda nos primeiros anos por causa deproblemas, presumveis, de aclimataoinicial (Karash, 1987, p. 32-34).

    Se no restam dvidas sobre a altamortalidade dos escravos sensivelmentesuperior quela dos livres, que tambm jera alta , o debate sobre suas causasespecficas est ainda em aberto. Apatologia tropical e equatorial seguramenteno era benvola para a sobrevivncia,embora, muito provavelmente, os africanosdevessem se adaptar melhor que oseuropeus. No hospital da Santa Casa deMisericrdia do Rio de Janeiro, ondedurante o sculo XIX eram redigidos osatestados de bitos, as dez causas de mortemais freqentes eram tuberculose,disenteria, diarria, gastroenterite, pneu-monia, varola, hidropisia, hepatite, malriae apoplexia, prevalecendo aquelasdoenas associadas ao baixo padro devida (Karash, 1987, p. 183-184). Mas, quaiseram as condies de vida dos escravos,particularmente nas grandes plantaes,onde se desenvolvia a vida da maioriadeles? No cultivo da cana e produo deacar, que prevaleceu at o final do sculoXVIII, Schwartz (1985) mostra um quadro

    preciso do massacrante ciclo do trabalho,sob rgido e forte controle, desde aplantao, os cuidados com a lavoura, ocorte da cana, at o transporte da lenha degrandes distncias para alimentar ascaldeiras. O esforo cobria quase todo oano, com nove meses de produo, o queimplicava a contnua operao dosengenhos e caldeiras, que empregavamhomens e mulheres do nascer ao pr dosol e, no perodo de pico, tambm noite(Viotti da Costa, 1982; Schwartz, 1985;Mattoso, 1986). Sabendo que os senhoresno tinham interesse em esbanjar seuprecioso investimento, conclui-se que otrabalho de 14-24 meses repunha o capitalinvestido na aquisio de um escravo; erapreciso extrair o mximo do trabalho escravoem um nmero mnimo de anos para, aocabo de cinco anos, assegurar a duplicaodo investimento inicial (Schwartz, 1988,p. 41-42).

    O regime alimentar dos escravos erabaseado em alguns elementos funda-mentais: milho, mandioca, feijo, carneseca, acar e derivados e frutas; portanto,a dieta podia ser variada e adequada. Poroutro lado, aos escravos era concedidocultivar um terreno para uso pessoal(Mattoso, 1986, p. 103; Viotti da Costa, 1982,p. 213-268; Stein, 1957). A higiene nasenzala era seguramente pssima; ocuidado com as doenas se no apreocupao com a cura por parte dossenhores era quase nenhum. A incidncia,a cada momento, de escravos enfermospela doena aguda ou crnica, cegueira,deformidades, seqelas de traumas eacidentes presumivelmente muitofreqentes em um ambiente duro detrabalho era muito alta (Stein, 1957; Viottida Costa, 1982, p. 244). As condies devida podiam variar muito segundo a vontadedo proprietrio paternalmente benvolo,cnico ou cruel , mas era sobretudo omecanismo produtivo que as ditava (Boxer,1964, p. 8-9). A mortalidade infantil e jovem em uma sociedade que, como veremos,no encorajava a procriao e a famlia eque obrigava a mulher ao trabalho pesado era, por deduo, altssima. Mas faltam dadosconfiveis e testemunhos convincentes.

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    preciso dizer que as novas pesquisastendem a colocar em relevo uma grandevariedade de condies de vida dosescravos, que no se resumem em umsimples paradigma de generalizadaprivao (Slenes, 1999).

    Outros importantes elementos materiaisque constituem a causa direta damortalidade so de difcil verificao. Pode-se dizer que o regime de privao daliberdade, que restringe e obriga oscomportamentos e que, no caso brasileiro,desencorajava a solidariedade familiar ecomunitria e impedia os contatos entreescravos de plantaes diferentes, umregime institucional que priva o indivduo ea comunidade da capacidade de elaborare experimentar eficientes mecanismos dedefesa perante constrangimentos externos,acrescentando vulnerabilidade. Comcerteza, difcil incorporar esse plus devulnerabilidade em um modelo quantitativode sobrevivncia mas isto no significaque deva ser ignorado.

    6. A alta perda pela mortalidade noera compensada pelo crescimento naturalda populao. Testemunhos da poca,senhores de terras, viajantes, religiosos,todos lamentavam a escassez denascimentos. Cremos que este tipo detestemunho seja mais confivel que outros:no difcil comparar nascimentos edescensos, ver o ativo ou o passivo. Difcil construir relaes que implicam oconhecimento numrico dos eventos e dapopulao. Uma explicao comumentedada ao balano natural negativo e baixa natalidade diz respeito aodesequilbrio entre os sexos, a favor doshomens. Este desequilbrio era tanto maisalto quanto mais elevada era, em umaplantao ou em uma comunidade, aproporo de escravos nascidos na frica,selecionados j pelo trfico, que introduziano Brasil mais homens que mulheres. Haviatambm um desequilbrio de sexomoderado entre os nascidos no Brasil, emcativeiro (crioulos) (Marclio, 1990, p. 55).Na Bahia, do sculo XVII ao incio do XIX, arazo de sexo na populao escrava giravaem torno de 3:2 e 2:1 nas plantaes de

    cana (Schwartz, 1996, p. 41); a mesmarelao (2:1) observava-se nas plantaesde caf paulista no incio do sculo XIX(Vidal Luna e Klein, 1990, p. 354). Overdadeiro problema, porm, est napresumida explicao: comunidades deescravos constitudas h sculos deviamsobreviver devido fora contnua daalimentao do trfico, mesmo porque ha-via alta mortalidade e baixa fecundidade. Odesequilbrio de sexo uma conseqnciae no uma explicao. A experincia degrupos no escravos imigrados, comestrutura por sexo e idade semelhante dos escravos importados, tem se mostradooposta: no obstante o desequilbrio dossexos, o seu saldo natural apresenta-sefortemente positivo.

    No existindo registros confiveis denascimentos, a medida da fecundidade ouda reproduo, em geral, obtida pela razoentre crianas e mulheres em idade fecunda,em que pese a limitao desta medida (ainfluncia ignota da mortalidade infantil ejovem; erros e distores da estrutura poridade; sada e entrada na coletividadeestudada etc.). O recenseamento de 1890(dois anos aps a abolio) perguntou aocasal no Distrito Federal do Rio de Janeiro o nmero de filhos tidos e sobreviventes.Os casais (no h distino de idade) cujoscnjuges eram ambos brancos haviam tido3,53 filhos, dos quais 2,53 sobreviveram;para os casais de mulatos foram encontradasas cifras de 3,30 e 2,34, respectivamente;para os casais de negros, 2,98 e 1,99 (Merricke Graham, 1979, p. 62). Segundo o Censode 1872, a relao entre crianas de 6-10anos e mulheres de 16-40 anos era igual a0,57 para os brancos, 0,50 para os livres decor e 0,35 para os escravos (Merrick eGraham, 1979; Dean, 1977, p. 85). Para oterritrio de So Paulo ao redor de 1830,Vidal Luna e Klein calcularam que a relaocrianas/mulheres em mdia era menos dametade da observada na populao escravados Estados Unidos em 1830, onde severificou um elevado crescimento natural dapopulao escrava, impensvel para aregio paulista examinada, assim como paraMinas Gerais (Vidal Luna e Klein, 1990,p. 359). Uma baixa relao criana/mulher

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    tambm se observa na regio da Bahia, nossculos XVII e XVIII, e uma baixssimafecundidade foi encontrada no EngenhoSantana, em Ilhus, na primeira metade dosculo XVIII. A hiptese avanada pelosautores a de que as mulheres amamen-tavam prolongadamente, seguindo hbitoda cultura de origem (Schwartz, 1986, p.57, e 1988, p. 321-324). Clculos de taxade natalidade devem ser vistos comreservas (Viotti da Costa, 1982, p. 247;Marclio, 1990, p. 59).

    Vale para a fecundidade como paraoutras manifestaes da vida escrava aconsiderao da existncia de situaesmuito diferentes que no excluem casospositivos. Estes exemplos mesmo na suaimparcialidade e impreciso confirmam aopinio comum dos contemporneos: osnascimentos eram poucos, a mortalidadeinfantil era alta, a nova gerao no repunhaa velha. Mas, por qu?

    7. Alguns senhores se opem ao casamentode escravos e escravas e no se opem asuas unies ilcitas; abertamente do oconsentimento e diretamente marcam o seuincio dizendo tu, Caio, no tempo devidoesposar com Tizia, e da em diante osdeixam conversar entre si como se fossemmarido e mulher [...] Outros, depois que osescravos esto casados, os separam de talmaneira que, por anos, permanecem comose fossem solteiros, coisa que contra aconscincia. (Antonil, 1922)

    Estas so palavras de Giovanni AntonioAndreoni, o jesuta chamado Antonil, talvezo observador mais arguto e atento do Brasildo incio do sculo XVIII. O problema, noentanto, era que os senhores noencorajavam ou procuravam colocarobstculo ao casamento; admitiam asunies livres ou ocasionais, mas nofavoreciam a estabilidade familiar. As razesdisso eram vrias e complexas. Na opiniode muitos, o peso econmico era muito forte.Havia ampla disponibilidade de escravos nomercado a preos baixos, o que tornava maisconveniente adquiri-los no mercado, emlugar de favorecer a reproduo e criao.Estas comportavam custos diretos e,sobretudo, indiretos: leis e costumesimpediam de vender escravos separando-os da famlia; a reproduo subtraa a mulher

    do trabalho; os negros boais (isto ,chegados da frica) eram trabalhadoresmais maleveis que os crioulos (Viotti daCosta, 1982; Mattoso, 1986; Schwartz, 1996).Outros fatores ainda complicavam o quadro:a intromisso do senhor na vida sexual dasescravas (o nascimento de numerososmulatos que permaneciam escravos) e a suasubtrao do pool matrimonial; a ausnciade contato entre escravos de senhoresdiferentes, limitando a escolha matrimonial;a prpria a organizao do trabalho. Astradies africanas, igualmente, nofavoreciam a monogamia e encorajavam asunies temporrias (Slenes, 1976). SaintHilaire comentava:

    [...] quando deu incio no Brasil a campanhada abolio da escravido o Governoordenou aos proprietrios de Campos quecasassem os prprios escravos; algunsobedeceram, mas outros responderam queera intil casar as negras que no podiamcriar seus prprios filhos. Logo aps o parto,estas mulheres eram obrigadas a trabalharnas plantaes de cana, sob um sol forte equando, depois de serem separadas desuas criaturas parte do dia, era-lhespermitido ficar junto a elas, seu leite erainsuficiente; como podiam as pobrescriaturas resistir misria cruel da qual aavareza dos brancos circundava o seubero? (apud Gorender, 1978, p. 342)

    Os dados disponveis confirmam abaixa nupcialidade dos escravos. Orecenseamento de 1872 d notcia de casa-mentos (excludas unies consensuais)segundo a raa e condio social. Mesmofaltando o detalhe da idade, as diferenasno deixam dvidas: na populao livre,30% estavam casados (tanto homens comomulheres), assim como 26% dos mulatos e20% dos negros; na populao escrava acota dos casados chegava apenas a 8%,quer para os negros, quer para os mulatos.No podemos saber quantas foram asunies consensuais, mas certamentedevem ter sido muitas, e com varivel graude estabilidade, dada a alta proporo denascimentos ilegtimos. No decorrer dotempo, so numerosas as indicaes debaixa nupcialidade entre os escravos: naParaba (1798) a proporo de casadosentre os escravos negros era metade ouum tero daquela entre os brancos da

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    mesma idade (Marclio, 1990, p. 54). Umasituao semelhante de baixa nupcialidadeencontramos tambm na regio de Cam-pinas em 1801, 1829 e 1872 (Slenes, 1998).

    Naturalmente, o quadro no erauniforme. Por exemplo, foi demonstrado quea nupcialidade era mais elevada nasplantaes com grande nmero de escravose menor em plantis com pequeno nmerode escravos; que, em geral, a nupcialidadeera mais elevada nas plantaes que nasreas urbanas. Estes resultados derivam, emparte, da dimenso demogrfica domercado matrimonial, menos reduzido nasplantaes com alto nmero de escravos,mas tambm de um maior interesse dosproprietrios de criar uma mo-de-obra maisestvel, mais confivel e controlada (Slenes,1976). Elementos de maior estabilidadetambm foram encontrados nas plantaesde caf da rea paulista e carioca no cursodo sculo XIX (Slenes, 1987 e 1998).Estabilidade e crescimento natural carac-terizavam as comunidades escravas doParan, uma regio de penetrao recente,no incio do sculo XIX, e com uma economiano orientada para a exportao (Gutirrez,1987). No sculo anterior, as prdicasjesuticas encorajavam um equilbrio entrehomens e mulheres, a nupcialidade,condies de estabilidade favorveis natalidade. Tal poltica foi seguida com efeitopositivo pelos beneditinos que possuamgrandes propriedades em Pernambuco,Bahia e Rio de Janeiro (Schwartz, 1988, p.53-54), nas quais a proporo de crioulosera alta, a de africanos, baixa (Gorender,1978, p. 345) e o crescimento natural positivo.

    8. Vrios fatores tornaram a populaobrasileira uma rica e complexa mistura deetnias, mais que uma sociedade com rgidaseparao entre os grupos. Pode-se objetarque o Brasil um pas de grandes con-tradies e diferenas sociais, e que istoamide se identifica com subdiviso tnica.

    Certamente, isto verdade, mas tambm verdade que as diferenas de cor, decondio, de lngua ou de religio forambarreiras frgeis para a mestiagem entregrupos. Sem dvida, foram os fatores demo-grficos e de poder que deram grandeimpulso mestiagem. Os imigrantes portu-gueses eram, na sua grande maioria,homens dispostos a unies com ndias e,mais tarde, quando o trfico de escravoscomeou a vigorar, com as africanas. Entreos escravos importados prevaleciam oshomens sobre as mulheres e nas plantaes nas quais os escravos nascidos na fricaprevaleciam sobre os nascidos no Brasil este desequilbrio se repunha, mesmo queatenuado. Todavia, j dissemos: ossenhores eram pouco inclinados a fortalecero matrimnio ou a estabilizar as relaesentre os escravos. A poltica dos senhoresera aquela de tornar a relao sexual difcil,mas no impossvel. A poligamia africanaabria a estrada a uma sucesso de relaesde durao breve (Mattoso, 1986, p. 11).Tanto entre os brancos, como entre os negrosou indgenas, na populao livre e na escra-va, grande parte das unies no era legali-zada pelo matrimnio e a ilegitimidade eraaltssima. Dada a escassez do elemento ind-gena e ao fato de que muitas regies esta-vam fora do controle direto dos portugueses,os nascidos da unio de brancos com ndios(caboclos) assumiam relevncia sobretudonas reas marginais (Marclio, 1990, p. 550).No final do perodo colonial, quase doisteros da populao era de origem africana(negra ou mulata) e na populao livre haviamais pessoas de cor que brancos [...] vriosestudos sugerem que, entre os livres de cor,seis ou sete entre dez eram mulatos, o quetornou esse grupo racial o de crescimentomais veloz no Brasil (Alden, 1987, p. 291).

    Para a regio da Paraba, no nordestedo pas, uma estatstica de 1798 d uma idiado tipo de distribuio da populao africana(contam-se tambm 8.930 brancos).

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    TABELA 3Populao do Brasil por etnia e condio social

    1798 e 1872 (em 1000)

    Fonte: Merrick e Graham, 1979, p. 29

    TABELA 4Brasil, Argentina, Mxico e Estados Unidos: populao, 1800-2050

    Populao (em 1000)

    Fontes: Para 1800: Brasil (1798), Merrick e Graham (1979:23); Argentina (1797) e Mxico (1803), Rosenblat (1954:182 e205); Estados Unidos, Recenseamento. Para 1850 e 1900, Brasil, Argentina e Mxico, Sanchez Albornoz (1994:143); EstadosUnidos: Recenseamento.Para 1950, 2000 e 2050: United Nations (1999).

    O estudo demogrfico da mestiagem muito difcil e, pelo que consta, no foi atagora realizado com sucesso. Um primeiroobstculo aquele definido pela tendnciado elemento misto a entrar em um gruposocialmente superior, fazendo-se classificarou autoclassificando-se diferentemente.Resolvido este problema, outros apa-receriam. A coletividade negra, porexemplo, alimentava-se do trfico deescravos e dos prprios nascimentos. Acoletividade dos mulatos alimentava-se dos

    prprios nascimentos, mas tambm donascimento de crianas geradas porelementos de outros grupos (branco e umanegra pelo menos), e por esta razo eramais dinmica que as outras coletividades.A dos escravos (seja preta ou mulata)alimentava-se tambm atravs do trfico edo nascimento de escravos e perdiaelementos no s por morte, mas tambmvia alforria.

    No Brasil, a alforria era obtida commaior freqncia que em outra sociedade

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    escravista (por exemplo, os Estados Unidos)e era mais seletiva, porque privilegiava asmulheres (cerca de 2/3 das alforrias, emborao nmero de mulheres fosse menor que ode homens na populao escrava), osidosos e as crianas. Chegava-se alforriapor uma srie de razes (afeto; relaesuxricas; para liberar-se de escravosdoentes, incapazes ou perigosos; porcompra). Enfim, a coletividade dos livres eraalimentada pelos prprios nascimentos,pela imigrao e pela alforria (maisfreqente, como foi dito, para os mulatosque para os negros). Levar em conta esteselementos e as particularidadesestruturais dos vrios grupos uma tarefamuito complexa e quase impossvel de serrealizada quando os dados disposioso inadequados.

    A Tabela 3 mostra a variao dapopulao brasileira entre 1798 e 1872,que aproximadamente triplicou nesses trsquartos de sculo. O mais forte incremento(1,9% ao ano) ocorreu na populaoeuropia, alimentada pela imigrao quefoi ampliada com a transferncia da Corteportuguesa para o Rio de Janeiro em 1808,de incio, e, a partir de meados do sculo,pela grande onda europia moderna, efavorecida pelas condies de vidaindubitavelmente privilegiadas. A popu-lao de origem africana (negra e mulata),no obstante as condies de vidanitidamente piores, cresceu a uma notveltaxa de 1,4%, reduzida a 1,1% se exclumosos 1,35 milho de escravos trazidos antesde 1850. A populao escrava permaneceuestacionria, pois no foi mais alimentadapelo trfico aps 1850 e presenciou umataxa natural negativa.

    9. O Recenseamento Geral do Impriode 1872 colocou fim ao perodo pr-estatstico do Brasil. Este censo foi reali-zado um ano aps a Lei do Ventre Livre(1871), que libertou da escravido os filhosde escravas nascidos a partir da data dapromulgao da lei, e precedeu em 16 anosa Lei urea (1888), que aboliu definiti-vamente a escravido. Por essa ocasio,

    havia se iniciado a grande imigraoeuropia (dominada pela italiana) e,poderamos dizer tambm, comeava ahistria do Brasil moderno. Convmterminar nessa data, quando a populaobrasileira chegava a 10 milhes dehabitantes, esta breve resenha dos fatos eproblemas.

    Para concluir, seria interessante aindanos determos na Tabela 4, que traz umaestimativa de populao para intervalos de50 anos, entre 1800 e 2000, e a previsopara 2050, segundo a variante mdia(United Nations, 1999), para os quatromaiores pases da Amrica: Brasil,Argentina, Mxico e Estados Unidos. Dessesquatros pases, apenas o Mxico possuauma forte dotao demogrfica nomomento do contato com os europeus (erao mais populoso em 1800) e foi tocado demodo marginal pela grande imigraoeuropia. No quarto de milnio consi-derado, a populao argentina multiplicou-se por um fator igual a 176, a dos EstadosUnidos, por 89, a brasileira, por 73, e amexicana por 25. Entre 1850 e 1950 perodo que inclui a grande imigraoeuropia (quase 5 milhes de imigrantesno Brasil) a populao argentina (a quemais cresceu pelo aporte imigratrio)multiplicou-se 16 vezes, contra cerca de 7vezes a do Brasil e dos Estados Unidos emenos de 4 a do Mxico. Se considerarmoso perodo 1950-2050 durante o qual seiniciou e deve ser concluda a modernatransio demogrfica nos pases pobres ,a populao americana ter pouco mais queduplicado, a argentina multiplicar-se- por3,2, a brasileira por 4,5 e a mexicana por 5,3.

    Em 1500, a escassa populao do atualBrasil representava uma pequena cota dapopulao do continente ao sul do rioGrande e dos Estados Unidos, dominadapela demografia da Amrica Central eandina. Hoje, os 170 milhes de brasileirosso um tero da populao do continente econstituem-se na sociedade etnicamentemais complexa e mais dinmica dasAmricas.

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