34861-40865-1-SM

Embed Size (px)

DESCRIPTION

penedo historia

Citation preview

  • Lidice Meyer Pinto ribeiro

    no Brasil

    LIDICE MEYER PINTO RIBEIRO professora nos programas de ps-graduao em cincias da religio e da graduao da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

    islmicos

    Negroses

    crav

    ocra

    ta

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 139-152, setembro/novembro 2011140

    isl est presente em todo o mundo, em parte devido migrao e em parte ao tra-balho missionrio realizado,

    sem muito alarde, atravs de aes sociais, distribuio de literatura e pela Internet, em diversas webpages.

    Apesar da divulgao conflitante a seu

    respeito na mdia secular, na qual figuram

    converses como a do msico Cat Stevens, hoje, Yusuf Islam, e do boxeador Cassius Clay, renomeado como Muhamad Ali, juntamente com aluses ao terrorismo e ao fundamentalismo, o isl cresce e espanta, pois apesar de quase um bilho de adeptos espalhados pelo mundo, ou cerca de 25% da populao mundial, pouco se sabe real-mente sobre ele.

    Hoje o isl j considerado a segunda maior comunidade religiosa em pases como Estados Unidos (cerca de 6 milhes de mu-ulmanos), Frana (5 milhes), Alemanha (2,5 milhes) e Holanda (500 mil) (Pinto, 2005, p. 229).

    E entre ns, de acordo com o IBGE, no Censo Demogrfico de 2000, verificou-se

    a presena de 27.239 brasileiros que se declararam seguidores do isl. Desses, a maior concentrao encontra-se nas regies Sudeste (13.953), com destaque para So Paulo, com 12.062 muulmanos, e Sul (9.590), com destaque para o Paran, com 6.025 muulmanos.

    A INTRODUO DO ISLAMISMO

    NO BRASIL

    De forma semelhante distino uti-lizada pelo socilogo Mendona (2002, p. 25) ao classificar os tipos de insero

    do protestantismo no Brasil, o islamismo passou por trs fases de implantao nas terras brasileiras:

    islamismo de escravido oriundo do trfico negreiro de escravos islamizados

    desde o sculo XVIII, instalou-se primei-ramente na Bahia, progressivamente se espalhando por outras regies do pas; islamismo de imigrao oriundo da imigrao de povos rabes no perodo ps--Primeira Guerra Mundial, iniciando uma comunidade islmica reconhecida no pas; islamismo de converso fenmeno do final do sculo XX, que se inicia com

    a crescente converso de brasileiros ao islamismo.

    Neste estudo, abordaremos a primeira fase, iniciada com a vinda de escravos islamizados.

    Essa presena dos primeiros muul-manos no Brasil foi documentada por diversos historiadores e folcloristas, como Nina Rodrigues, Etinne Brasil, Arthur Ramos, Gilberto Freyre, Joo do Rio, Abelardo Duarte e Waldemar Valente. A esses registros somam-se os achados his-tricos de fragmentos de escritos rabes em porta-amuletos e o relato de Francis de Castelnau, do sculo XIX. A participao poltica e ideolgica dos nossos, por assim dizer, primeiros muulmanos nas diversas revoltas do Recncavo Baiano tambm foi minuciosamente relatada nos ltimos tempos por Joo Jos Reis.

    Recentemente, a descoberta de um registro em rabe, do sculo XIX, trou-xe uma nova viso sobre os fatos, visto se tratar de um relato feito por um lder muulmano em visita ao Brasil entre os anos de 1866 e 1869. O relato em questo refere-se ao precioso dirio de viagem do

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 139-152, setembro/novembro 2011 141

    embarcados nos navios negreiros para o Brasil, sendo a grande maioria do sexo masculino, pois raramente mulheres eram feitas prisioneiras de guerra.

    Esses prisioneiros tinham em comum, alm da pele negra, a crena islmica, apesar de algumas diferenas nas prticas e dogmas. Em solo brasileiro, porm, o destino trgico compartilhado no tardou por unir os antes inimigos em uma forte identidade comum.

    Os primeiros muulmanos a chegarem ao Brasil, trazidos fora, eram hausss na sua maioria, seguidos de cativos dos reinos Gurma, Borgu, Borno, Nupe e outros reinos vizinhos dos hausss, localizados no Sudo Central (Reis, 2003, pp. 159-63). Sendo rea ricamente influenciada pela cultura rabe,

    esses naturalmente trouxeram consigo a religio muulmana e aqui ficaram conheci-dos pelo nome de mals, que vem do termo iorub4 imali, significando renegado, que adotou o islamismo (Ramos, 1951, p. 317). Apesar de esses negros mals possurem um grande desenvolvimento cultural sabiam ler e escrever em rabe , foram obrigados a despir suas tnicas brancas e a viajar trajados sumariamente em pores escuros dos navios negreiros.

    [] o africano foi muitas vezes obrigado

    a despir sua camisola de mal para vir de tanga, nos negreiros imundos, da frica para o Brasil. A escravido desenraizou o negro do seu meio social e da famlia, soltando-o entre gente estranha e muitas vezes hostil (Freyre, 1980, p. 315).

    Mesmo com a hostilidade devida relao entre senhor e escravo, em virtude da sua habilidade em ler e escrever, muitos mals foram destinados a atividades ligadas ao comrcio, tornando-se negros de ganho (escravos que faziam servios urbanos e recebiam um salrio). Devido a essa peculia-ridade, muitos dos mals chegaram, mesmo com dificuldade, a comprar a sua alforria5 e at alguns desses alforriados conseguiram desenvolver patrimnio financeiro maior

    que certos brancos. Mas essa caracterstica no os livrava do domnio do colonizador,

    im Abdurrahman AlBaghdadi, ao qual deu o nome de Deleite do Estrangeiro em

    Tudo o que Espantoso e Maravilhoso, guardado pela Biblioteca de Istambul e traduzido para o portugus por Paulo Daniel Farah1. Esse texto constitui uma importante fonte de informao histrica, antropolgica e religiosa sobre o isl no Brasil do sculo XIX.

    Atravs desses materiais faremos uma anlise sobre o tema, dentro de uma pers-pectiva cronolgica, buscando compreen-der a implantao do islamismo em terras brasileiras, sua influncia poltica, social e

    religiosa, bem como a sobrevivncia desse islamismo de escravido nos dias atuais.

    O PONTO DE PARTIDA DO ISL

    NEGRO NO BRASIL

    O isl foi trazido ao Brasil no final do

    sculo XVIII pelos escravos oriundos das regies islamizadas da frica. Sua influn-cia na frica comeou no sculo VII com a invaso pelos povos rabes do norte do continente. A resistncia foi pouca e a regio passou a ser governada por califas, que introduziram a religio islmica nas terras conquistadas, juntamente com prticas culturais rabes. O islamismo at hoje a religio dominante nessa rea, existindo porm um amlgama com prticas animistas e fetichistas ancestrais em diversas tribos2.

    O islamismo de escravido tem, por-tanto, seu incio com a chegada ao Brasil, principalmente na Bahia, de milhares de prisioneiros advindos de guerras poltico--religiosas na regio do Sudo Central, que hoje equivaleria ao norte da Nigria. O califa hauss, do grupo tnico fulni, Usuman du Fodio, em 1804 declarou uma guerra santa, jihad, contra outros reinos hausss, acusados por no praticarem a religio do Profeta de modo digno, misturando-a com prticas animistas3 (Reis, 2003, p. 73). Do longo conflito resultou a tomada de prisio-neiros de ambos os lados da batalha, que eram vendidos aos traficantes de escravos,

    1 Esse texto foi publicado pela Bibliaspa internamente e espera por financiamento para ser publicado em larga escala, para venda.

    2 Arthur Ramos, ao fazer o estudo antropolgico dos povos africanos que con-triburam para a formao do povo brasileiro, registra com preciso essas crenas diferenciadas por tribos (Ramos, 1951, pp. 316-28.)

    3 Dentre essas prticas pode-mos citar o uso de amuletos e a participao em batu-ques.

    4 Interessante reparar que o nome mal dado aos negros muulmanos por outro grupo de africanos trazido em grande nmero para o Brasil, os iorubs, o que denota a estranheza dos outros grupos africa-nos para com esse grupo diferenciado pela religio. Apoiando essa ideia, Cas-telnau (1851, p. 12) faz a seguinte observao: [] on designe sous le nom de Malais tous ls infideles, cest--dire tous ceux quin e sont ps mahomtans.

    5 As estatsticas divergem, como se pode ver nos nmeros desses trs relatos: Na cidade de Salvador no ano de 1775 encontrou 3.630 negros livres, 4.207 mulatos livres e 14.696 es-cravos negros e mulatos. Em 1808, um censo realizado em Salvador e 13 freguesias rurais da Bahia constatou a presena de 104.285 negros e mulatos livres ou alfor-riados e 93.115 escravos negros e mulatos (Reis, 2003, p. 22). J segundo a estatstica da Populao Es-crava e Libertos Arrolados do Ministrio dos Negcios, da Agricultura, Comrcio e Obras Pblicas, realizada em 1888, existir iam na Bahia 1.001 negros livres e 76.838 negros escravos (apud Ramos, 1951, p. 249).

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 139-152, setembro/novembro 2011142

    pois, para realizar negcios, esses negros livres precisavam estabelecer alianas sociais que exigiam no s subservincia social como tambm religiosa, sob pena de revogao das cartas de alforria.

    Sobre a diferenciao intelectual desses primeiros muulmanos no Brasil, Gilberto Freyre escreveu, comparando sua habilida-de com a escrita com a dos colonizadores brancos:

    A verdade que importaram-se para o

    Brasil, da rea mais penetrada pelo Islamis-mo, negros maometanos de cultura superior no s dos indgenas como de grande maioria dos colonos brancos portugueses e filhos de portugueses quase sem instruo

    nenhuma, analfabetos uns, semianalfabetos na maior parte (Freyre, 1980, p. 299).

    Esse diferencial trazido pelos negros mals foi-lhes deveras proveitoso, pois lhes permitiu acesso a ambientes onde os demais escravos, iletrados, no podiam penetrar. Foram aos poucos conquistando no s espaos na economia, tornando-se pequenos comerciantes, quando livres, mas tambm espaos para desenvolver sua crena, embora, perante os brancos, aparentassem ter aceitado a religiosidade catlica, assumindo para isso at mesmo um novo nome de batismo. Semelhantes

    escravos no podiam conformar-se ao papel de mans-gostosos dos portugueses; nem seria a gua-benta do batismo cristo que, de repente, neles apagaria o fogo maometano (Freyre, 1980, p. 310).

    Em seu dirio de viagem, em 1866, corroborando as afirmaes acima, o im

    AlBaghdadi registrou: Vinte anos atrs,

    uma parte deles j era livre porque alguns compravam a si prprios e livravam o co-rao dos grilhes da escravido. A esse relato, o im rabe acrescenta: Depois dis-so, todos os que conseguiam a liberdade por direito lembravam-se da religio dos seus antepassados, qual eles se voltavam aps a libertao. Esse registro precioso revela a fora da crena islmica que sobreviveu no corao desses alforriados, apesar do jugo catolicizante a que foram submetidos.

    Para manter a crena viva em solo bra-sileiro, esses muulmanos livres criaram escolas e casas de orao (Freyre, 1980, p. 306). O im AlBaghdadi, em visita ao Brasil no sculo XIX, observou a existncia de salas de reunies a que os muulmanos davam o nome de majlis. Devido perse-guio religiosa, ainda que velada, essas casas de orao localizavam-se afastadas

    da populao, prximas s plancies. A falta de registro da existncia de mesquitas nesse perodo deve-se, provavelmente, proibio instituda pelo artigo 276 do Cdigo Penal de 1830 de celebrar em casa, ou edifcio,

    que tenha alguma forma exterior de templo, ou publicamente em qualquer lugar, o culto de outra religio, que no seja a do Estado. Assim, os mals, alm de se reunirem em lugares afastados das cidades, evitavam a aparncia de templo mantendo a integridade do culto. Algumas runas dessas casas ainda hoje mostram em suas paredes internas inscries do Alcoro em rabe, coisa que comum hoje ser vista em mesquitas. Na incumbncia de preservadores da religio islmica estavam sacerdotes versados em rabe e conhecedores do Alcoro, que rece-biam o nome de alufs. Desses sacerdotes

    islmicos, Reis (2003, p. 146) cita o registro de um mal livre de nome Manuel Calafate em cuja residncia eram realizados estudos do Alcoro. Outros lderes livres seriam conhecidos por AlBaghdadi alguns anos mais tarde.

    Com o estudo do Alcoro, ainda que escondido das autoridades pblicas, o islamismo foi criando um grupo coeso, unificado pela crena em comum, mas tambm pelas mazelas sofridas longe de sua ptria natal. Esse grupo de negros muulmanos comunicava-se entre si em rabe, dominando a lngua escrita e falada. Podemos perceber desse modo que o isl foi um fator de coeso grupal e de formao de identidade entre os negros. Gilberto Freyre viria a ressaltar que:

    Os escravos vindos das reas de cultura

    negra mais adiantada foram um elemento ativo, criador, e quase que se pode acres-centar nobre na colonizao do Brasil;

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 139-152, setembro/novembro 2011 143

    degradados apenas pela sua condio de escravos. Longe de terem sido apenas animais de trao e operrios de enxada, a servio da agricultura, desempenharam uma funo civilizadora (Freyre, 1980, p. 307).

    O fervor religioso desse grupo islmico era tanto que, apesar de o Cdigo Penal de 1830, art. 277, declarar como crime abusar

    ou zombar de qualquer culto estabelecido no Imprio, o que ocorreu foi o inverso. Escravos livres, conhecedores do Alcoro, eram vistos pregando a religio do Profeta na cidade de Salvador, em locais como o Beco da Mata-Porcos, na Ladeira da Praa, no Cruzeiro de So Francisco, perto de igrejas e mosteiros catlicos. Nessas pregaes, faziam propaganda contra a missa catlica, dizendo que a venerao de santos era o mesmo que adorar um pedao de pau e

    opondo seus rosrios aos rosrios catlicos (Freyre, 1980, pp. 310-1).

    O ISL E AS REVOLTAS DE

    NEGROS LIVRES E ESCRAVOS

    Nina Rodrigues confere proeminncia

    intelectual e social para os negros trazi-dos da regio do Sudo, atribuindo-lhes a organizao de revoltas de senzala e movimentos contestatrios de escravos. Para esse pesquisador, os fulas e hausss muulmanos exerceram uma grande in-fluncia sobre os nags e sobre os jejes.

    Os hausss muulmanos teriam sido uns aristocratas das senzalas, pois, alm de

    possurem literatura religiosa j definida

    havendo obras indgenas escritas em ca-racteres arbicos , vinham de reinos com organizao poltica j adiantada, sendo, portanto, estrategistas natos (Rodrigues apud Freyre, 1980, p. 310).

    Os negros muulmanos eram conheci-dos como os mais inclinados aventura

    da fuga, ao movimento, rebeldia contra os senhores brancos (Freyre, 1967, pp. 131-2). Comprovando essas palavras, os hausss comandaram diversas insurreies

    na Bahia, nos anos de 1807, 1809, 1814, 1815 e 1816, seguidas de um intervalo, aps o qual se iniciaram diversas rebelies que ficaram conhecidas como nags: 1826,

    1827, 1828, 1830, 1835.Os registros oficiais dessas rebelies

    deixam perceber a presena de muulma-nos com forte influncia na liderana dos

    levantes. Alguns fatos em comum chamam a ateno: a escolha de datas religiosas para os levantes, a presena de negros livres e escravos vestidos com roupas tipicamente muulmanas e utilizando amuletos contendo textos do Alcoro em rabe, alm de terem sido encontrados bilhetes em rabe com informaes sobre os levantes, servindo essa lngua de cdigo para a passagem de informaes entre quilombos, senzalas e negros livres. A escolha de dias de festa para os levantes tem a sua explicao no fato de esses dias serem dias faustos, quando os senhores tinham a sua ateno voltada para os festejos catlicos, podendo ento os levantes acontecer com mais eficcia.

    Destaca-se, porm, a revolta de 1835, realizada ao final do Ramad, mostrando

    Amuleto contendo a sura Qadr, Noite de Glria

    Acer

    vo d

    o Ar

    quivo

    Pb

    lico

    do E

    stad

    o de

    Bah

    ia

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 139-152, setembro/novembro 2011144

    com isso uma forte conotao islmica ao levante em questo.

    As revoltas com participao de mals foram bem estudadas por Joo Jos Reis (2003). Aqui s ressaltaremos algumas delas devido a certos aspectos que as ligam ao islamismo. A primeira de todas as rebeli-es, em 1807, foi planejada para acontecer durante as celebraes do Corpus Christi. A inteno era incendiar a casa da Alfndega e uma igreja do bairro de Nazar, tomar a cidade e instalar no governo um lder hauss. A revolta seguiria para Pernambuco, liber-tando os hausss escravos nesse estado e formando um grande reino hauss no Brasil (Reis, 2003, pp. 72-6).

    Na revolta de 1814, outros grupos t-nicos, na maioria nags, se uniram sob o comando dos hausss. Dos que escaparam da derrota dessa revolta, uns teriam fugido para Alagoas e outros se escondido nas matas dos arredores de Salvador. O lder dessa revolta aparentemente era um negro de nome Joo a quem era atribudo o ttulo de malomi6 (Reis, 2003, pp. 82-3). Abelardo Duarte (1958) confirma essa hiptese re-latando, em seu livro Negros Muulmanos nas Alagoas: os Mals, acerca de um grupo de muulmanos estabelecido em Alagoas, que teriam planejado uma revolta em 1815, no dia de Natal.

    Os demais revoltosos da insurreio de 1814, que haviam se aquilombado nos arre-dores de Salvador, tinham entre eles o malo-mi, agora chamado de sacerdote Malamim, e realizaram ainda mais uma revolta no ano de 1816, depois da qual os hausss deixam a liderana das rebelies, at que em 1826 as mesmas recomeam, agora sob a liderana dos nags convertidos ao isl. Dessas re-voltas, destaca-se o levante de 1835. Com a priso de dois mestres muulmanos, o lder Ahuma e o aluf Pacifico Licutan, criou-se

    um clima de revolta em meio aos grupos de negros islmicos (livres7 e escravos). Essas prises foram o estopim necessrio para que cerca de 600 a 1.500 mals, livres e escravos, vestidos de abads brancos e usando amuletos protetores, atacassem a cadeia municipal onde os lderes islmi-cos estavam presos, enfrentando a tropa

    policial, lutando por quatro horas nas ruas de Salvador. A maior parte dos envolvidos era nag8, vindo depois os hausss, tapas e bornos. O dia escolhido para o levante simblico: o fim do Ramad (ms sagrado

    muulmano) e das festas de Nossa Senhora da Guia. Provavelmente esse dia coincidia com o final da festa de Lailat al-Qadr, que

    celebra a revelao do Alcoro ao Profeta. Os mals tentariam revogar a sua sorte nas terras brasileiras enfrentando o poder constitudo pelos infiis catlicos. Mas,

    devido superioridade dos armamentos dos brancos, a revolta foi vencida.

    O papel da religio nas revoltas do Recncavo Baiano e reas prximas evi-denciado pela presena de diversos amuletos muulmanos confiscados pela polcia. Esses

    amuletos consistiam de pequenas caixas ou bolsas que guardavam em seu interior fragmentos de textos do Alcoro. A esses pe-quenos amuletos, os negros davam o nome de mandingas. Um dos textos encontrados consistia da sura cornica Noite de Glria.

    O ataque frequente a locais de culto catlico e a queima de imagens tambm demonstram a conotao religiosa por detrs das revoltas.

    O que podemos perceber de tamanhas empreitadas que os levantes no eram sem direo ou propsito. Tinham a inteno de tomar o poder poltico e religioso. Caso o levante de 1835 tivesse alcanado sucesso, a Bahia se transformaria em um pas islmico, com uma pequena tolerncia para os cultos afro-brasileiros.

    O ISL SE DISSEMINA NO PAS

    Aps a revolta de 1835, um certo nmero de escravos presos foi devolvido a seus senhores e posteriormente vendido para o Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Co-meou uma grande perseguio aos mals, com priso e confisco sucessivo de textos

    em rabe, o que fez com que um nmero significativo de mals livres se dirigisse para

    o Rio e ali fixasse residncia. Cessa o pero-

    do de revoltas conduzidas pelos adeptos do islamismo na Bahia e em Alagoas, mas,

    6 O termo malomi uma corruptela do termo haus-s malm ou malami (de muallim, em rabe), que significa mestre religioso. Nos anos seguintes do sculo XIX, o termo malm seria o mais utilizado, sendo substitudo posteriormente pelo termo iorub aluf.

    7 O historiador Joo Jos Reis estima que em 1835 hou-vesse em Salvador 17.325 africanos escravos para 4.615 africanos liber tos, o que representaria 1/3 da populao de Salvador (Reis, 2003, p. 24). Ressalta--se que, dentre os 21.940 negros em Salvador, 21% eram livres, o que uma parcela bem significante.

    8 O levante parece ter acon-tecido em meio a um forte movimento de converso ao islamismo sobretudo entre os nags (Reis apud Farah, 2007, p. 28).

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 139-152, setembro/novembro 2011 145

    apesar disso, o isl continuou presente no Brasil, registrado por Mello Moraes Filho (1901) atravs da descrio da Festa dos

    Mortos, celebrada duas vezes ao ano at 1888, em Alagoas; a cerimnia, que inclua o sacrifcio de animais, foi considerada por Arthur Ramos como um rito funerrio de origem mal (Ramos, 1951, p. 332).

    Alguns anos aps, em 1909, o abade tienne escreveria a respeito da presena e do crescimento do isl em terras brasileiras:

    Notou o abade Etienne que o islamismo

    ramificou-se no Brasil em seita poderosa,

    florescendo no escuro das senzalas. Que

    da frica vieram mestres e pregadores a fim de ensinarem a ler no rabe os livros

    do Alcoro. Que aqui funcionaram escolas

    e casas de orao maometanas (Freyre, 1980, p. 310).

    Quem eram esses mestres e pregadores

    continuaria um mistrio no houvesse sido descoberto o relato do im AlBaghdadi, provavelmente um dos mestres africanos referido pelo abade, que encontrou aqui, em 1866, ummas, ou comunidades mu-ulmanas estruturadas no Rio de Janeiro, Salvador e Recife, permanecendo entre eles para ensin-los. Esse relato tem a im-portncia de ser o nico at o momento de que temos notcia, escrito da perspectiva de um muulmano. Tendo por base os relatos dos quais dispomos, podemos assumir a presena de grupos de negros islmicos em Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. Apesar da indicao de que alguns mals presos na revolta de 1835 tenham sido vendidos para o Rio Grande do Sul, no h evidncias bibliogrficas

    de que esse grupo tenha constitudo uma comunidade islmica organizada.

    Aps estas consideraes, resta-nos relatar sinteticamente as informaes for-necidas pelo im AlBaghdadi no texto, ainda indito ao pblico geral, Deleite do

    Estrangeiro. Abdurrahman alBaghdadi, nascido em Bagd, era sdito do Imprio Otomano, que controlava o Oriente Mdio. Embarcou como im, responsvel pelo cuidado espiritual da tripulao, em uma

    viagem de Istambul a Barsa, mas uma tem-pestade fez com que a embarcao viesse costa brasileira, aportando no cais do Rio de Janeiro em setembro de 1866, apenas trinta anos aps o ltimo levante mal na Bahia. Ao desembarcar, AlBaghdadi foi abordado por diversos negros que o saudaram: As--salmu, alaykum , fazendo distino entre ele e os demais membros da tripulao devido as suas vestes formais e turbante. interessante notar que esses negros, ao entrar no navio, fizeram questo de afirmar eu,

    muulmano e no, eu, mal, reforando

    a ideia de que essa nomeao era rejeitada pelos negros islamizados.

    Ainda confirmando o fato de existir re-almente um grupo islmico organizado no Rio de Janeiro, AlBaghdadi relata o fato de todos, juntamente com ele, praticarem os rituais de orao: Dessa forma, ns

    reconhecemos que eles eram muulmanos e acreditavam na unicidade do Criador da existncia. H tambm a referncia ao fato de esses muulmanos terem o cuidado de manter partes do Alcoro no idioma rabe guardados dentro de pequenos cofres. Es-ses fragmentos do Alcoro so, portanto, do mesmo tipo dos que foram confiscados

    pelas autoridades da Bahia aps o levante de 1835, o que nos leva a afirmar que esses

    negros do Rio de Janeiro seriam os que fugiram depois daquela derrota e/ou seus descendentes. Confirmando os registros

    dos pesquisadores anteriormente citados,

    Livro de suras encontrado no pescoo de um mal morto na revolta de 1835

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 139-152, setembro/novembro 2011146

    AlBaghdadi percebeu que esses cofres

    com fragmentos do Alcoro eram consi-derados mais como amuletos protetores do que como formas de manuteno do ensino religioso.

    AlBaghdadi observou que esses mu-ulmanos do Rio de Janeiro praticavam costumes que diferiam dos pregados pelo isl, e atribuiu isso influncia de um tra-dutor rabe-portugus que, por ser judeu, intencionalmente passava os ensinamentos de forma incorreta. Esse tradutor, por ser conhecedor do rabe, foi tido pelos mals como rabe, tendo lhe sido solicitado que lhes ensinasse sobre o Alcoro, tarefa que aceitou, mas com ms intenes, chegando a cobrar financeiramente daqueles que qui-sessem aprender sobre a religio islmica.

    AlBaghdadi foi insistentemente con-vidado pelos muulmanos do Rio para permanecer com eles e ensinar-lhes sobre o Alcoro, como se pode ver nesse trecho do dirio:

    mestre resoluto, ns no queremos

    bens passageiros nem pedimos proteo ou preveno, apenas queremos aulas nesta correta religio. Ns acreditvamos que ramos os nicos muulmanos no mundo, que estvamos na via clara e que todos os brancos pertenciam s comunidades crists at que, por ddiva de Deus, o sublime, ns o vimos e soubemos que o reino do Criador vasto e que o mundo no uma terra desolada, mas repleta de muulmanos. No nos prive da instruo nessa religio.

    Inicialmente o comandante do navio o abenoa, enviando-o a terra para ensinar aos muulmanos, considerando a solicitao destes como uma prova de real f islmi-ca: Acompanhe-os e rogue boas preces

    em prol deles. Em verdade, se o isl no estivesse firme no peito deles, no teriam

    pedido que voc se encarregasse dessas questes. AlBaghdadi permaneceu junto comunidade muulmana do Rio por 13 dias, ensinando-os: Todo dia, quando o sol

    comea a se pr, a maioria deles comparece a uma reunio geral de reflexo acerca dos

    fundamentos do isl e do hadit.

    Voltando ao navio, recebeu de seu co-mandante a recusa em permitir uma nova estadia de AlBaghdadi, mas posteriormente isto lhe concedido, com a recomendao de que no revelasse s autoridades brasileiras a sua real inteno:

    Depois que eu permiti que voc fosse com

    eles arrependi-me porque eu temi que o governo constatasse sua presena, tirasse a minha estabilidade e dissesse As embar-caes otomanas chegaram a nosso pas e corromperam a religio que ns herdamos de nossos pais e dos nossos avs.

    Para acobertar ento sua misso no Brasil, AlBaghdadi registra em seu di-rio de viagem, alm de suas experincias com os mals, tambm aspectos da fauna e flora brasileira e ainda curiosidades so-cioculturais. Outra observao realizada sobre a existncia de certa animosidade entre cristos e muulmanos no sculo XIX relatada por um dos mals quando AlBaghdadi manifesta seu desejo de usar seus trajes rituais pela cidade: Se voc usar

    seus trajes, ns no poderemos mais ir a sua casa, e sua utilidade se esvair, pois se os cristos souberem que voc muulma-no ho de imaginar o mesmo de ns. Ao questionar a origem desse medo dos cristos, lhe narrada a histria da rebelio de 1835, com o enfoque de que fora uma guerra entre muulmanos e cristos, em que os negros

    pretendiam tomar conta da regio, mas fo-ram vencidos pelos cristos. Em decorrncia desse evento, os muulmanos renegaram

    sua religio por temer retaliaes, sendo essa a provvel causa no s de a crena ser praticada s escondidas como tambm da sua aculturao com prticas catlicas: Todos

    os muulmanos nestas terras submergem seus filhos na pia batismal, e enterram seus

    mortos sem lavar o corpo e sem volt-lo para Meca. AlBaghdadi chega a dizer que se os

    cristos identificam que algum muulma-no pode ser que o matem, que o exilem ou que o enviem priso perptua. Ele tambm afirma que os muulmanos residentes no Rio

    de Janeiro precisam esconder sua religio

    sem opo.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 139-152, setembro/novembro 2011 147

    Devido a todas essas questes, AlBagh-dadi passou a se reunir ocultamente com um grupo de cerca de quinhentos homens para o estudo do Alcoro. Para isso, aps aprender o portugus, redigiu um tratado bilngue rabe-portugus com as principais recomendaes do isl:

    Eu compilei um tratado em escrita rabe

    e no idioma portugus no qual recordei tudo o que eu pude traduzir dos elevados atributos de Deus, o Altssimo, dos atributos de seus nobres profetas e das obrigaes

    da abluo ritual, da orao, do jejum, da peregrinao e da caridade; e listei algumas tradies profticas, palavras benfazejas e prdicas recomendveis.

    Na cidade, encontrou em um livreiro francs um exemplar do Alcoro, que ad-quiriu e ainda encomendou mais exemplares adquiridos pelos mals. Apenas trs anos depois, em 1869, o conde Joseph-Arthur de Gobineau, representante diplomtico da Frana no Brasil, escreveria que os franceses Fauchon e Dupont vendiam anualmente a escravos e ex-escravos cerca de cem exemplares do Alcoro, alm de gramticas rabes (Gobineau apud Farah, 2007, p. 5).

    Ao chegar ao Rio de Janeiro, AlBaghdadi recebeu a informao de que no Brasil ha-via aproximadamente 5 mil muulmanos, nmero que subiria para 19 mil ao final de

    sua estadia. verdade que tais nmeros parecem exagerados, mas o que importa aqui

    Negra baiana retratada por Jean-Baptiste Debret com o que parece ser um amuleto mal

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 139-152, setembro/novembro 2011148

    o relato presencial, que atesta a existncia de grupos muulmanos organizados no fi-nal do sculo XIX. Essa mesma nfase no grande crescimento numrico observada nas palavras de um dos negros islmicos, dirigindo-se a AlBaghdadi aps aprender que no havia necessidade de pagamento em dinheiro para receber o ensino e muito menos para assumir a f:

    Aluf, cujas palavras so ouvidas, se ns

    soubssemos que as coisas eram assim como voc mencionou e se tivssemos caminha-do na mesma senda que voc trilhou, ns seramos milhares neste pas e a cada dia cresceramos porque muita gente gostaria de aderir nossa religio, mas o pagamento de dinheiro as impedia.

    Mas, quando trata das converses, o termo usado algumas pessoas e no

    milhares: [] em seguida me dirigi at

    algumas pessoas que queriam integrar a religio muulmana. Ocupei-me delas generosamente e dediquei-me a instru-las e ensin-las. Quanto ao que motivava as

    converses de outros grupos de negros, AlBaghdadi deixa entender que seria a forte identificao entre os membros da comu-nidade: Quando observam a comunidade

    muulmana entre eles e o intenso amor que seus integrantes nutrem uns pelos outros, sentem cime intenso desses cidados. E eles aderem religio muulmana com almas vidas. O prprio AlBaghdadi de-monstra seu interesse missionrio quando se dispe a ir evangelizar os indgenas brasileiros, sendo porm desmotivado pela barreira da lngua.

    Aps uma longa estadia no Rio de Janei-ro, AlBaghdadi, a pedido dos grupos mals que l se reuniam, dirige-se a Salvador. Chegando l, percebe claramente que esses negros possuem ainda mais prticas altera-das que os do Rio. Preocupa-se, portanto, em ensinar o islamismo corretamente para resgat-lo em sua pureza: Eu permaneci

    nesta cidade aproximadamente um ano e no tinha outra ocupao alm de ensinar aos muulmanos e ratificar sua conduta.

    Constata, porm, tristemente, que os ma-

    ls baianos dificilmente largariam essas

    prticas diferenciadas devido ao fato de serem aceitos entre os brancos justamente por pratic-las. interessante ressaltar o registro da existncia de mais muulmanos em Salvador que no Rio de Janeiro, embora no conste o nmero desses, o que condiz com o que sabemos sobre a histria do trfico negreiro de tribos islamizadas para

    a Bahia. H tambm a observao de que muitos filhos de muulmanos estavam se

    convertendo ao cristianismo atrados pelas festas, msicas e, sobretudo, pelo fato de ser a religio mais aceita socialmente. AlBaghdadi faz ento a recomendao de que os pais aprisionem seus filhos

    at atingirem a maturidade plena e que os instrua, mostrando nfase na necessidade da preservao familiar da crena islmica.

    Da Bahia, AlBaghdadi se deslocou para Pernambuco9, convidado por outra comu-nidade islmica, a qual tambm passou a ensinar por seis meses. Nessa comunidade, encontrou dois lderes, fato a que atribui a manuteno do isl nessa cidade. Havia ainda outros diferenciais: uma maior tran-quilidade em assumir o credo islmico e uma forte inclinao a magia, numerologia e geomancia. Relata-nos AlBaghdadi que os cristos (brancos) buscavam junto aos mals orientaes adivinhatrias, pagando--lhes por uma consulta. Esse fato traria uma relao mais amigvel entre as duas culturas. Ao fim de trs anos no Brasil, AlBaghdadi

    decidiu voltar Arbia e despediu-se dos irmos muulmanos prometendo voltar caso o governante otomano assim permitisse. Na sua despedida, no h referncia ao nmero de muulmanos, mas apenas a de que muita

    gente esteve presente.O relato de AlBaghdadi tem portanto

    uma grande importncia como prova da permanncia da crena islmica at quase o fim do sculo XIX no Brasil dentre os

    descendentes de escravos mals. Aps a abolio da escravatura em 1888 e a Pro-clamao da Repblica em 1889, houve uma reduo nas limitaes s religies no catlicas, mas, apesar disso, esse isl, aparentemente to organizado e forte, no deixou registros. Foi apenas aps o fim da

    9 No texto aparece Marn-pukua, traduzido por Paulo Farah como Pernambuco.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 139-152, setembro/novembro 2011 149

    Primeira Guerra Mundial, com a chegada dos imigrantes rabe-srio-libaneses ao Brasil e com a garantia para suas prticas religiosas atravs da Constituio de 1949, que se estabeleceu a comunidade islmica que conhecemos hoje. Fica, portanto, um vcuo no tempo, sem informaes sobre o destino que esses grupos mals possam ter tido.

    O ISL SOBREVIVE O LEGADO

    MAL

    At bem pouco tempo, as referncias continuidade da crena islmica em terras brasileiras eram bem escassas, limitando-se a poucas citaes na literatura apontando para algumas sobrevivncias do culto islmico, bem como de certos costumes e prticas indicando a dissoluo desse primeiro islamismo brasileiro atravs de um processo de assimilao para garantir a prpria sobrevivncia. Algumas pistas nos foram legadas por Joo do Rio, Arthur Ramos, Gilberto Freyre, Pierre Verger, Abelardo Duarte e Waldemar Valente. Esses autores encontraram um isl aculturado, transformado pelo catolicismo de um lado e pelo candombl de outro. H inclusive a possibilidade traada por Gilberto Freyre de que alguns negros muulmanos tenham se convertido ao protestantismo como for-ma de reao contra o catolicismo oficial

    brasileiro (Freyre, 1980, p. 312).Abelardo Duarte10 (1958, p. 41) defende

    terem os muulmanos de Alagoas man-tido as tradies islmicas misturadas ao catolicismo. o caso do assumy ou jejum anual (um dos cinco pilares do isl), que coincide com a Festa do Esprito Santo. Os muulmanos procuravam, assim, den-tro do catolicismo, encontrar brechas para praticar sua religiosidade com todo o rigor que a mesma exige. Abelardo Duarte no s descreve a revolta de 1815 em Alagoas, mas tambm fala da continuao da comu-nidade islmica no local, incluindo em seu livro uma foto de um grupo muulmano,

    datada de 188711. A foto traz em seu verso a inscrio Candombl brinquedo dos

    africanos de Penedo e na frente a imagem de cinco homens e quinze mulheres. Um dos homens traz na mo um machado. Ao seu lado est um carneiro que ser sacrificado

    no buraco aberto no cho logo frente. Os trajes dos homens so tipicamente muul-manos. Entre as mulheres apenas uma cobre a cabea com um vu enquanto as demais usam turbantes. Como o trfico dos negros

    islmicos foi fortemente influenciado por

    guerras internas, a presena de um nmero menor de mulheres pode ser devido ao fato de as prisioneiras serem destinadas para outros fins na prpria frica.

    Joo do Rio encontrou em 1904, no Rio de Janeiro, um isl misturado com o candombl, onde alufs vestidos com abads, com a cabea coberta por um gorro vermelho, o fil, e sentados sobre tapetes de

    pele de tigre ou de carneiro liam o Alcoro, faziam suas preces (kissium), rezavam o rosrio (tessub)12, no comiam carne de porco e guardavam o Ramad. Joo do Rio ainda chegou a observar ablues, poligamia, o smbolo do crescente lunar, o hbito de escrever oraes com tinta de arroz queimado em tbuas (ats) e a sau-dao Al selam aleikum13 (Joo do Rio, 2006, pp. 25-6). A comunidade muulmana observada por Joo do Rio possua sacer-dotes (lemanos), auxiliares dos sacerdotes (ladanos), que cuidavam da parte religiosa e lcalis, juzes, sagabanos, imediatos de

    juzes, assivaji, que cuidavam da parte jurdica da comunidade (Joo do Rio, 2006, p. 26). Para se tornar um aluf era necessrio conhecer o rabe, a suma, realizar a circun-ciso (kola) e passar por um exame. Aps o exame, os demais muulmanos danavam o opa-suma e conduziam o iniciado sobre um cavalo pelas ruas vestido de roupas brancas e gorro vermelho. O informante de Joo do Rio, Antonio, explica que essas cerimnias sempre se realizavam em lugares afastados, nos subrbios cariocas. Joo do Rio registrou que, apesar de os praticantes do candombl carioca e os muulmanos que encontrou possurem hbitos exteriores semelhantes e praticarem feitiarias da

    10 Apesar de a data do livro de Abelardo Duarte ser poste-rior s publicaes de Joo do Rio, Gilberto Freyre e Arthur Ramos, aqui citado primeiro devido data que apresenta na referida foto em sua publicao.

    11 Foto de autoria do Dr. Carvalho Sobrinho, que chegou s mos de Abe-lardo Duar te atravs do Dr. Alosio Freitas Melro. Duar te tambm registra ter recebido informaes sobre a comunidade islmica atravs de um jornalista, Jurandir Gomes, redator principal do jornal A Gazeta de Alagoas, publicada em seu livro (1949). A foto original encontra-se no Instituto Histrico e Geogrfico de Alagoas.

    12 A mesma roupagem descrita por Arthur Ramos em 1934 na Bahia.

    13 Corruptela da saudao As-salmu alaykum, signi-ficando Que a paz esteja com voc.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 139-152, setembro/novembro 2011150

    mesma forma, no havia total absoro de uma religiosidade pela outra, pois observou que a reao entre negros islamizados e os provenientes das tribos iorubs permanecia: Os alufs no gostam da gente de santo a

    quem chamam de auauad-chum; a gente de santo despreza os bichos que no comem porco, chamando-os de mals (Joo do Rio, 2006, p. 27).

    Gilberto Freyre, em 1933, encontraria elementos de sobrevivncia de prticas mu-ulmanas na Bahia, Rio de Janeiro, Recife e Minas Gerais e defenderia a hiptese de que o islamismo, por um lado, teria impregnado o catolicismo rural:

    Forosamente o Catolicismo no Brasil

    haveria de impregnar-se dessa influncia

    maometana como se impregnou da animista e fetichista, dos indgenas e dos negros menos cultos. Encontramos traos de in-fluncia maometana nos papis com orao

    para livrar o corpo da morte e a casa dos ladres e dos malfeitores; papis que ainda se costumam atar ao pescoo das pessoas ou grudar nas portas e janelas das casas, no interior do Brasil (Freyre, 1980, pp. 311-2).

    E, por outro lado, havia dados sobre as suas contribuies para as religies afro--brasileiras do Rio de Janeiro e Recife. Nesse ponto, o relato de Freyre apresenta muitas semelhanas ao de Joo do Rio:

    [] temos vrias vezes notado o fato dos

    devotos tirarem as botinas ou os chinelos antes de participarem das cerimnias; em um terreiro que visitamos no Rio de Janeiro notamos a importncia atribuda ao fato do indivduo estar ou no pisando sobre velha esteira estendida no meio da sala. No centro da esteira, de pernas muulmanamente cru-zadas, o negro velho, pai de terreiro. [] Nas

    festas das seitas africanas que conhecemos no Recife [] Manuel Querino fala tambm

    de uma tinta azul, importada da frica, de que se serviam os mals para seus feitios ou mandingas; escreviam com esta tinta sinais cabalsticos sobre uma tbua preta. Depois lavavam a tbua, e davam a beber a gua a quem quisesse fechar o corpo; ou

    atiravam-na no caminho da pessoa que se pretendia enfeitiar (Freyre, 1980, p. 312).

    Em outro estudo menos conhecido, Gil-berto Freyre, juntamente com Pierre Verger, procurar analisar as influncias brasileiras

    entre os negros islamizados na frica oci-dental, buscando as sobrevivncias deixadas pelos que foram deportados aps a revolta de 1835 (Freyre, 1959, pp. 263-313).

    Arthur Ramos, em 1934, teria identifica-do duas seitas poderosas que disputavam

    a primazia religiosa em Alagoas: a de xang e a de mal. Ramos argumenta que havia uma diferena fundamentalno culto

    praticado pelos negros muulmanos do

    Penedo (Alagoas) em relao aos da Bahia e Rio de Janeiro, sendo os primeiros menos ortodoxos que os demais. Tambm teria registrado um cntico de Ogun de male

    em Macei no ano de 1934, e presenciado terreiros onde o lder teria o nome de aluf, com rituais mesclados de nag e elementos mals. Tambm registrou expresses de origem rabe em jornais de 1906 a 1912 e o recebimento de um livro manuscrito com oraes e partes do Alcoro, em rabe14 (Ramos, 1951, pp. 328-9). Para Arthur Ramos, o islamismo dos negros mals do

    Brasil sempre esteve eivado das prticas religiosas africanas, fenmeno que havia se iniciado na prpria frica. Adoravam

    Al, Olorun-ulu (sincretismo de Olorum dos Yorub e Al) e Mariana (me de Deus). Ramos acredita, portanto, que as sobrevivncias mals acham-se diludas nas prticas e cultos jeje-nags ou bantos, das macumbas e candombls do Rio, Bahia e outros pontos do Brasil, tendo a cultura mal se amalgamado s outras culturas africanas, criando sincretismos, podendo hoje s ser detetadas por meio de alguns termos, roupas e prticas (Ramos, 1951, pp. 332-3).

    Segundo Roger Bastide (1971), em 1937, o candombl baiano tinha ainda conotao mal, demonstrada por algumas palavras, expresses e oraes com seme-lhana na aplicao dos rituais mals.

    Pierre Verger (1968, p. 520), bem de-pois, estudando as religies africanas no Brasil sugere a possibilidade de existirem

    14 Arthur Ramos teria recebi-do esse livro de dison Car-neiro (1912-72), estudioso de assuntos afro-brasileiros da Bahia.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 139-152, setembro/novembro 2011 151

    Pelo contrrio, por diversas vezes percebe--se uma inteno clara de inicialmente formar-se at um reino islmico nas terras brasileiras atravs de uma revolta com subjugo ou mesmo morte dos brancos e mulatos. H tambm, paralelamente, um proselitismo ora aberto, ora velado, gerando diversas converses entre negros no isla-mizados. Tambm se destaca a preocupao constante com a preservao da crena, constituindo-se para isso escolas, casas de orao e formas de carregar consigo partes dos textos sagrados, guardados junto ao corao, em pequenas caixas-amuletos.

    O relato do im rabe AlBaghdadi no nos deixa dvidas de que, por diversos anos aps a revolta de 1835, houve comunidades islmicas organizadas, com liderana pr-pria, casas de estudo e literatura religiosa e secular em rabe.

    Mas tambm fato que esse isl negro desapareceu no tempo e no espao numa fase de grande intolerncia religiosa no pas. Ainda h muito o que ser pesquisado sobre o assunto antes de assumirmos com firmeza a sua lenta transformao at o total

    desaparecimento no candombl brasileiro. Por ora, ficam os relatos, os artefatos e as

    sobrevivncias desse passado de influncia

    islmica, to bem relatados por Gilberto Freyre (1951) como as janelas com rtulas

    ou gelousias ou xadrez mourisco, as

    pontas de telhado arrebitadas em cornos

    de luas, os azulejos de influncia rabe, o

    uso de vus pesados durante a missa, o uso de patus e amuletos protetivos e os trajes das baianas.

    muulmanos pertencentes a uma das irman-dades negras dedicadas a Nossa Senhora do Rosrio em Salvador, Bahia.

    Waldemar Valente (1976) realizou diver-sos estudos, buscando as sobrevivncias do isl negro atravs das marcas muulmanas nos xangs de Pernambuco e demais cultos afro-brasileiros.

    Beatriz Dantas (1988, pp. 117-8), em seu estudo sobre a religiosidade africana, faz uma breve meno presena de muulma-nos em Laranjeiras, Sergipe, com formas de organizao separada dos l denominados nags e tors.

    Corroborando essa hiptese de que o isl dos mals tenha se aculturado, misturando--se ao candombl, Mariza Soares encontrou alguns artefatos da coleo Perseverana, organizada por Theo Brando e Abelardo Duarte, com objetos dos antigos terreiros xangs15 de Macei, hoje extintos, que apresentam o smbolo da meia-lua, e a aparncia de bolsas de mandinga.

    CONCLUSO

    Podemos perceber, atravs dessas pes-quisas, que houve realmente uma primeira tentativa de implantao do isl no Brasil atravs dos escravos islamizados aqui tra-zidos desde o sculo XVIII. Essa ao no foi passiva como poderia se pensar, e por isso poderia ter a tendncia de se dissolver, quase se fundindo s crenas animistas e fetichistas africanas dos demais escravos.

    BIBLIOGRAFIA

    bAStide, roger. As Religies Africanas no Brasil. Vols. 1 e 2. So Paulo, Pioneira/USP, 1971.brAndo, theo. Folguedos Natalinos. Macei, Museu theo brando/Ufal, 2003.cASteLnAU, Francis de. Renseignement sur lAfrique Central et sur Une Nation dHommes qujeu

    qui sy Trouverait. Daprs le Rapport de Ngres du Soudan, Esclaves Bahia. Paris, P. bertrand Librairie-editeur, 1851.

    15 Os xangs eram grupos de cultos fetichistas que vinham da segunda metade do sculo XIX, dirigidos na sua maioria por africanos puros, legtimos e descendentes destes (Duarte, 1974, p. 15).

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 139-152, setembro/novembro 2011152

    dAntAS, beatriz Gis. Vov Nag e Papai Branco. Usos e Abusos da frica no Brasil. rio de Janeiro, Graal, 1988.

    dUArte, Abelardo. Negros Muulmanos nas Alagoas: os Mals. Macei, caets, 1958.________. Catlogo Ilustrado da Coleo Perseverana. Macei, iHGAL, 1974.etienne, ignace brazil. La Secte Musulmane ds Mals du bresil et ler revolt em 1835, in Anthro-

    pos. Viena, janeiro-maro/1909, pp. 409-12.FArAH, Paulo daniel elias. Deleite do Estrangeiro em Tudo o que Espantoso e Maravilhoso Estudo

    de um Relato de Viagem Baghdali. rio de Janeiro, Fundao biblioteca nacional, 2007.Freyre, Gilberto. Problemas Brasileiros de Antropologia. 2a ed. rio de Janeiro, Jos olympio, 1959.________. Nordeste. 4a ed. rio de Janeiro, Jos olympio, 1967.________. Casa-Grande e Senzala. 20a ed. rio de Janeiro, Jos olympio, 1980. Joo do rio. As Religies do Rio. rio de Janeiro, Jos olympio, 2006. MendonA, Antonio Gouva; e VeLASQUeS FiLHo, Prcoro. Introduo ao Protestantismo no Brasil.

    So Paulo, Loyola, 2002.MorAeS FiLHo, Mello. Festas e Tradies Populares no Brasil. rio de Janeiro, F. briguiete cia., 1901.Pinto, Paulo Gabriel Hilu da rocha. ritual, etnicidade e identidade religiosa nas comunidades

    Muulmanas no brasil, in Revista USP, no 67. So Paulo, ccS-USP, set.-nov./2005, pp. 228-50.rAMoS, Arthur. Introduo Antropologia Brasileira. 1o volume. 2a ed. rio de Janeiro, casa do estu-

    dante do brasil, 1951.reiS, Joo Jos. Rebelio Escrava no Brasil: a Histria do Levante dos Mals em 1835. So Paulo, com-

    panhia das Letras, 2003. SoAreS, Marisa de carvalho; MeLLo, Priscilla Leal. o resto Perdeu-se? Histria e Folclore o caso

    dos Muulmanos em Alagoas, in rachel rocha de A. barros; bruno csar cavalcanti e clara Suassuna Fernandes (orgs.). Kul Kul Visibilidades Negras. Macei, edufal, 2006, pp.14-25.

    VALente, Waldemar. Influncias Islmicas nos Grupos de Culto Afro-brasileiro de Pernambuco. recife, boletim do instituto de Pesquisas Sociais Joaquim nabuco, s/d.

    ________. Sincretismo Religioso Afro-Brasileiro. coleo brasiliana. Vol. 280. braslia, Grfica brasilia-na, 1976.

    VerGer, Pierre. Flux et Reflux de la Traite des Ngres Entre le Golfe de Bnin et Bahia de Todos os Santos. Paris, Mouton, 1968.

  • REVISTA USP, So Paulo, n.91, p. 139-152, setembro/novembro 2011 153

    artes