53
57 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – Popper e Kuhn podem oferecer maior inteligibilidade a esta questão? 4.1 A Busca por uma Fundamentação Epistemológica na Ciência Organizacional A ciência organizacional também denominada ciência da administração ou ciência do gerenciamento, define o gerenciamento como um processo que envolve a coordenação de recursos humanos, materiais, tecnológicos e financeiros necessários para uma organização alcançar seu objetivos, baseando-se em teorias provenientes de diferentes áreas de conhecimento como observa Small (2004, p.184), “Como uma área de estudo, a administração é baseada em inúmeras áreas relacionadas, principalmente, as ciências físicas e sociais, a matemática, filosofia, sociologia e psicologia.”. Dentre estas diversas áreas do conhecimento Small enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico poderiam oferecer ao desenvolvimento da ciência organizacional, ao sugerir que: “Outras áreas centrais dentro da filosofia, tais como: a metafísica e ontologia, a epistemologia e a lógica, e a ética e a filosofia política parecem ter sido esquecidas. Essas áreas ainda terão de prestar sua contribuição significativa à administração e aos estudos da organização”. (Small, 2004) Seria imprudente de nossa parte afirmar que Kuhn ou Popper demonstrassem interesse específico pelas questões da administração, no entanto sob a ótica popperiana a filosofia por “natureza” pretende a resolução de problemas urgentes e genuínos, os quais se encontram fora de seu campo de atuação tendo, assim, a capacidade de influenciar profundamente outras ciências. Neste sentido, num exercício de imaginação, podemos deduzir que a filosofia da ciência também pode oferecer importante contribuição à ciência organizacional. Esta expectativa, do mesmo modo, foi demonstrada em Hopp (2004) ao mencionar a criação da revista “Management Science”, em 1954, publicação de referência especializada na ciência do gerenciamento, enfatizando a escolha do

4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

57

4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – Popper e Kuhn podem oferecer maior inteligibilidade a esta questão?

4.1 A Busca por uma Fundamentação Epistemológica na Ciência Organizacional

A ciência organizacional também denominada ciência da administração ou

ciência do gerenciamento, define o gerenciamento como um processo que envolve

a coordenação de recursos humanos, materiais, tecnológicos e financeiros

necessários para uma organização alcançar seu objetivos, baseando-se em teorias

provenientes de diferentes áreas de conhecimento como observa Small (2004,

p.184), “Como uma área de estudo, a administração é baseada em inúmeras áreas

relacionadas, principalmente, as ciências físicas e sociais, a matemática, filosofia,

sociologia e psicologia.”. Dentre estas diversas áreas do conhecimento Small

enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico

poderiam oferecer ao desenvolvimento da ciência organizacional, ao sugerir que:

“Outras áreas centrais dentro da filosofia, tais como: a metafísica e ontologia, a epistemologia e a lógica, e a ética e a filosofia política parecem ter sido esquecidas. Essas áreas ainda terão de prestar sua contribuição significativa à administração e aos estudos da organização”. (Small, 2004)

Seria imprudente de nossa parte afirmar que Kuhn ou Popper

demonstrassem interesse específico pelas questões da administração, no entanto

sob a ótica popperiana a filosofia por “natureza” pretende a resolução de

problemas urgentes e genuínos, os quais se encontram fora de seu campo de

atuação tendo, assim, a capacidade de influenciar profundamente outras ciências.

Neste sentido, num exercício de imaginação, podemos deduzir que a filosofia da

ciência também pode oferecer importante contribuição à ciência organizacional.

Esta expectativa, do mesmo modo, foi demonstrada em Hopp (2004) ao

mencionar a criação da revista “Management Science”, em 1954, publicação de

referência especializada na ciência do gerenciamento, enfatizando a escolha do

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 2: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

58

Dr. Churchman, que na ocasião ocupava o cargo de editor chefe de filosofia da

ciência do Case Institute of Technology, para a função de primeiro editor deste

periódico científico.

“Essa vontade de promover a ciência do gerenciamento claramente influenciou a evolução do periódico ‘Management Science’. Para começar, enquanto o presidente fundador da ORSA1, Philip Morse, e os primeiros editores da ‘Operations Research’, Thornton Page e George Shortley, eram todos físicos, Churchman era um filósofo. Como implicação lógica deste episódio inusitado ficou evidente que a ‘Management Science’ adotaria uma visão mais ampla das disciplinas incluídas nas ciências da administração”. (Hopp, 2004)

Tais afirmações e a constatação do constante recurso a conceitos

epistemológicos em diversos trabalhos publicados por estudiosos da ciência

organizacional, demonstram uma tendência, notadamente acentuada a partir da

década de 70, de apropriação do ideário filosófico pelos estudiosos da

administração, sobretudo aqueles atinentes à filosofia da ciência de Karl Popper e

Thomas Kuhn, com o intuito de oferecer novas perspectivas no campo da pesquisa

em administração.

Na tentativa de aproximar a filosofia da ciência organizacional, observamos

ainda que a informação, o conhecimento e inteligência são temas recorrentes, e

vistos como importantes áreas de problematização pela literatura da

administração, em especial pela teoria organizacional. De acordo com Hawkins

(2001, p. 51), as áreas de interesse da teoria organizacional, atualmente são: a

gestão da informação, a inteligência competitiva, e a gestão do conhecimento.

A gestão da informação pode ser definida como “o gerenciamento de todo o

ambiente informacional de uma organização” (Davenport, 1994, p.84), ou seja, se

refere à aplicação de princípios administrativos à aquisição, organização, controle,

disseminação e uso da informação para a operacionalização efetiva de

organizações de todo tipo (Wilson, 1988).

1 A ORSA – Operations Rresearch Society of América foi formada por um grupo similar ao

TIMS – The Institute of Management Science, no interesse de iniciar a publicação do jornal, Operations Research, em 1952 nos Estados Unidos. Ambas tinham fortes raízes militares que as levavam a privilegiar os métodos quantitativos como ferramentas de gerenciamento. Entretanto a TIMS entendia como parte de sua missão o desenvolvimento de um quadro de referência científico com o qual estas ferramentas poderiam ser utilizadas.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 3: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

59

A inteligência competitiva pode ser entendida como a habilidade em lidar

com a complexidade; a habilidade de capturar, compartilhar e extrair significado

de sinais da ambiência externa que possam afetar as organizações de forma

positiva ou negativa (Haeckel & Nolan, 1993). De acordo com Lev (2004), com a

intensificação do uso da informação para fins estratégicos, compreendeu-se que o

valor da empresa, na percepção do cliente e do mercado, incorpora aspectos

“intangíveis”, tais como valor da marca, peso das patentes geradas, capacidade de

inovação, talento dos funcionários em especial dos executivos e suas relações com

os clientes, softwares, processos únicos, desenhos organizacionais e outros.

No que diz respeito à gestão do conhecimento, destacamos dentre os

diversos autores interessados em conhecer como as organizações adquirem e

utilizam o conhecimento organizacional: Argyris(1965), Drucker(1974), Senge

(1990), Nonaka e Takeuchi (1995), De Geus (1998). No interesse dos objetivos

desta dissertação vamos apresentar uma síntese das idéias destes autores fazendo

referência à definição de gestão do conhecimento oferecida por Tarapanoff.

“... disciplina que trabalha sistematicamente a informação e o conhecimento visando ao aumento da capacidade de resposta da empresa ao meio ambiente com inovação e competência, desenvolvendo a eficácia e o conhecimento corporativo”. (Tarapanoff, 2006, p.28)

Considerando este ambiente em constante mudança, repleto de novas

situações e problemas não se pode mais retornar indefinidamente à elaboração de

soluções para cada situação observada. Neste contexto, entendemos a

inevitabilidade do desenvolvimento de teorias organizacionais que primem pela

consistência lógica, no sentido de apoiar o desenvolvimento de empresas

competitivas, ou seja, que sejam capazes de apoiar o desenvolvimento de novas e

melhores práticas, idéias novas, processos de descoberta, algo que a informação,

por mais bem administrada que seja não pode oferecer (Davenport; Prusak, 1998).

Entretanto, ao demonstrar estas tendências também nos vemos obrigados a

contextualizar a maneira pela qual a literatura acadêmica da administração

contemporânea, continua fortemente atrelada a questões dogmáticas, norteada

pela crença no conhecimento seguro, de fontes últimas, fundamentado pela lógica

indutiva da ciência e pelo empirismo verificacionista. No artigo denominado - O

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 4: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

60

que diria Popper à Literatura Administrativa de Mercado?, Mattos (2003) entende

que a “literatura administrativa de mercado”, representada pela produção editorial

de revistas especializadas incluindo “bestsellers” de profissionais da consultoria

de negócios, acaba por interessar e até influenciar à própria literatura acadêmica

da administração, ao escrever que:

“... não é possível ao discurso teórico mais frequente no mercado reivindicar qualidades de cientificidade. Mas também não cabe à academia imitar-lhe o empirismo – ainda que agregando bela arquitetura metodológica – nem incorporar levianamente o conhecimento produzido por ele ao acervo de sua tradição literária e à atividade de suas escolas”. (Mattos, 2003, p.61)

Não obstante a filosofia da ciência ser tida por muitos acadêmicos, como

um estudo de problemas abstratos, “pseudoproblemas”, ou mera questão de

linguagem, desconectados dos desafios cotidianos, pudemos constatar que tem

sido cada vez mais representativo o número de pesquisadores no campo da ciência

organizacional, dentre eles Behling (1978), Shareef (2007), Rommel e Christiaens

(2006), Ansoff (1987) e Bernstein (1976), para citar apenas alguns, que contestam

tais idéias e buscam na epistemologia fundamentação teórica para apoiar o

desenvolvimento das teorias organizacionais contemporâneas.

No artigo “Some Problems in the Philosophy of Science of Organizations”

(1978), Behling confirma o valor da articulação entre a epistemologia e as ciência

organizacional ao mencionar:

“A filosofia da ciência, o estudo dos processos sistemáticos pelos quais os seres humanos tentam entender o mundo, têm desenvolvido poderosas ferramentas conceituais, as quais têm potencial para aprimorar a compreensão dos esforços de pesquisa no estudo das organizações”. (Behling, 1978, p.193)

Shareff em artigo recente, cujo título, “Want Better Business Theories?

Maybe Karl Popper Has the Answer” (2007), particulariza a relevância da

metodologia da ciência de Popper, como uma abordagem de pesquisa alternativa

para resolver a baixa eficácia das teorias organizacionais e das práticas gerenciais.

Rommel e Christiaens (2006), Ansoff (1987) e Bernstein (1976), por sua

vez, falam sobre a influência das idéias de Kuhn, e de maneira especial do

conceito do paradigma, na literatura acadêmica da administração, de acordo com

as seguintes citações:

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 5: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

61

“Um dos livros que ‘deve ser lido’ por qualquer aluno de pesquisa é o ‘The Structure of Scientific Revolutions’(1970), de Thomas Kuhn. Embora esse livro não tenha sido especificamente escrito para administração pública, é um material obrigatório para aqueles que querem compreender esta disciplina. Ao ler a outra parte da lista dos que ‘têm que ler’, principalmente aqueles exemplares que são específicos à administração pública, rapidamente se torna claro que os paradigmas de Kuhn aparecem muito frequentemente”. (Rommel e Christiaens, 2006) “O interesse científico sobre o comportamento estratégico de organizações pró-ativas vem desde o início dos anos 50. Desde então, várias explicações teóricas, diferentes e conflitantes sobre o comportamento estratégico têm sido oferecidas. Escolas de pensamento foram formadas, dedicando-se a enriquecer as respectivas teorias e a marcar a sua superioridade sobre teorias propostas por outras escolas... a proposta de Thomas Kuhn(1970) se baseia no conceito do paradigma científico. Um dos instigantes aspectos do conceito de um paradigma é que ele põe as teorias aparentemente contraditórias como complementares. Um outro aspecto, igualmente animador, é que o paradigma mostra o caminho para importantes áreas de pesquisa previamente inexploradas”. (Ansoff, 1987) “Os critérios… para um paradigma são muito exigentes, especialmente para uma área tão nova como administração e sociedade. De acordo com os pesquisadores, até as ciências sociais mais maduras, como sociologia e ciência política, carecem de certos elementos de um paradigma, especialmente sua capacidade explanatória”. (Bernstein, 1976)

Diante deste contexto, e no interesse desta dissertação vamos procurar nos

ater à maneira como os pesquisadores da ciência organizacional sustentam os

conceitos oferecidos pelas epistemologias popperiana e kuhniana, seja

interpretando suas experiências à luz destes conceitos, ou apoiando o

desenvolvimento de novas teorias e práticas organizacionais.

4.2 A Presença de Thomas Kuhn

Não obstante a diversidade de questões abordadas por estudiosos das teorias

da administração, os que recorrem à epistemologia de Thomas Kuhn em sua

grande maioria fazem referência ao paradigma kuhniano.

Começamos por citar Ansoff (1987) que recorre à teoria de Kuhn para

entender a lógica da evolução da pesquisa científica, destacando o conceito de

paradigma científico e sua evolução. Ao fazer uma breve descrição sobre algumas

teorias epistemológicas Ansoff aponta a filosofia da ciência de Kuhn como um

rico modelo explanatório acerca da evolução científica. Em seu trabalho, Ansoff

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 6: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

62

utiliza o modelo kuhniano de progresso científico para identificar a lógica da

evolução das estratégias organizacionais e propor um novo paradigma que seja

capaz de conciliar as diferentes teorias sobre o comportamento estratégico.

“Felizmente, um quadro de referência conceitual está disponível para identificar a lógica da evolução da pesquisa. Esse quadro de referência, proposto por Thomas Kuhn (1972), se baseia no conceito do paradigma científico, e de sua evolução através do tempo. Um dos aspectos instigantes do conceito de um paradigma é que ele coloca teorias aparentemente contraditórias sob uma perspectiva comum, e frequentemente converte contradições em complementaridades. Um outro aspecto, igualmente instigante, é que o paradigma indica, antecipadamente, o caminho para importantes áreas de pesquisa ainda não exploradas”. (Ansoff, 1987, p. 501)

De acordo com Ansoff (1987), a partir da década de cinquenta o

comportamento estratégico de organizações lucrativas passa a ser objeto de

interesse científico surgindo, nesta mesma época, várias escolas (destacando a

Strategic Management Society) criadas para desenvolver estudos e analisar a

lógica que orienta o processo pelo qual uma organização se adapta ao seu

ambiente externo, ou seja, para propor teorias que melhor descrevam a forma

como se dá a formação de políticas organizacionais, também entendidas como

formulação de estratégias organizacionais.

Ansoff observa que as teorias propostas, apesar de empiricamente testadas e

exibindo algum progresso, se mostram, no conjunto, aparentemente conflitantes,

ainda que tenham como foco o mesmo problema, “... todas essas escolas parecem

estar estudando o mesmo problema. Alguns de nós chamamos esse problema de

formação de política, outros, de formulação estratégica” (Ansoff, 1987, p. 501).

Para ele, o conflito entre as diferentes escolas do comportamento

estratégico, deve-se ao fato dos proponentes observarem as organizações em

contextos ambientais diferentes. Neste sentido, fundamentado no conceito do

paradigma de Kuhn propõe um novo paradigma para o comportamento

estratégico, acreditando que com isso possa legitimar e conciliar diferentes

perspectivas teóricas no campo da estratégia organizacional.

A nosso ver esta assunção é equivocada, pois a explicitação de um

paradigma emergente não nos dá garantia alguma, como pretende Ansoff (1987,

p. 501), de que este novo quadro de referência possa legitimar e acomodar as

diferentes teorias da estratégia organizacional. Para Kuhn a transferência de

adesão de um paradigma a outro é uma experiência de conversão não

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 7: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

63

compulsória, e não necessariamente ocorre por meio de uma lógica

verificacionista ou falsificacionista qualquer. Esta transferência de adesão pode se

dar através de técnicas de persuasão e argumentação ou ainda por fatores tais

como: preferências pessoais ou de grupo, idiossincrasias, crenças religiosas,

reputação, dentre outras questões de caráter psicológico e sociológico (Kuhn,

2006, p. 185-202). Portanto, de acordo com a filosofia kuhniana, a mera

proposição de um novo paradigma para o comportamento estratégico não

conduziria à sua adoção pelas escolas em conflito, como pretende Ansoff.

Ainda assim, Ansoff acredita na possibilidade de inspirar a criação de um

novo paradigma capaz de conciliar as diferentes teorias sobre o comportamento

estratégico. Entende que a questão crucial estaria em “Como definir os limites de

um paradigma válido?”, e apresenta a seguinte resposta: “A parte da realidade

abarcada pelo paradigma deve ser tal que a maior parte dos fenômenos dentro

desta realidade pode ser satisfatoriamente explicada dentro dos limites

demarcados pelo paradigma” (Ansoff, 1987, p. 503). Com essa resposta Ansoff

supõe ter ampliado a abrangência do conceito de paradigma proposto em Kuhn,

com o objetivo de apontar as deficiências encontradas nas principais teorias do

comportamento estratégico, ao recomendar:

“Portanto, a distinção entre uma teoria e um paradigma é que a primeira provê somente uma explicação parcial da realidade escolhida. Essa deficiência se torna evidente, na prática, sob duas condições normais: i. Quando um teste empírico da teoria é inconclusivo. ii. Quando explicações alternativas do mesmo fenômeno são oferecidas por outras teorias. Ambas as condições têm sido bem evidentes nos últimos 30 anos da pesquisa sobre o comportamento estratégico”. (Ansoff, 1987, p. 504)

Podemos notar mais uma vez um problema na compreensão do conceito do

paradigma kuhniano, considerando a simplicidade da distinção feita entre teoria e

paradigma e a conclusão prematura quanto ao caráter das diferenças conceituais

apresentadas por Ansoff, simplesmente pela referência ao que Thomas Kuhn

escreve em seu posfácio de 1969:

“Percebe-se rapidamente que na maior parte do livro o termo paradigma é usado em dois sentidos diferentes. De um lado, indica toda a constelação de crenças, valores, técnicas etc., partilhadas pelos membros de uma comunidade determinada. De outro, denota um tipo de elemento dessa constelação: as soluções concretas de quebra-cabeças que, empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explícitas como base para a solução dos restantes quebra-cabeças da ciência normal”. (Kuhn, 2006, p. 220)

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 8: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

64

Masterman também pontuou tais dificuldades ao observar que “sejam quais

forem os padrões sinonímicos que Kuhn tenha sido levado a estabelecer no auge

de sua argumentação, ele, na realidade, jamais equipara “paradigma” – em

nenhum dos seus principais sentidos – a teoria científica” (Lakatos & Musgrave,

1979). Diante destas considerações pode-se concluir que a diferença entre teoria e

paradigma não são tão óbvias e não pode se resumir em termos da abrangência,

como sugere Ansoff.

Ansoff (1987) recorre também ao conceito de fase pré-paradigmática,

definido em Kuhn, para justificar o desacordo entre os proponentes das diversas

teorias da estratégia organizacional. Enfatiza ainda a dimensão sociológica dada

pela epistemologia de Kuhn, quando afirma que os interesses pactuados por cada

grupo, conflitos pessoais e contendas políticas são inevitáveis, ao citar Kuhn:

“este estado de acontecimentos continua até que surja um paradigma unificador

para reconciliar e legitimar as reivindicações conflitantes” (Ansoff, 1987, p. 506).

Apesar de entender que um acordo e a opção por um paradigma dominante entre

escolas competidoras da teoria da estratégia organizacional, não se resolverá tão

cedo, sua intenção foi situar este momento vivenciado pelos teóricos do

comportamento estratégico como pré-paradigmático, e mais uma vez comete um

equívoco ao afirmar que não evoluem porque os proponentes destas teorias não

têm por objetivo chegar à “verdade comum”, ao passo que o conceito de evolução

da ciência em Kuhn seria o da evolução “a partir de” e não “em direção” a

verdade. Mais uma vez registramos a falha de Ansoff ao ignorar que a idéia

kuhniana de progresso científico não pressupõe como meta a verdade.

Para Ansoff, o estabelecimento de uma teoria dominante sobre o

comportamento organizacional só será possível através da formulação de um novo

paradigma que concilie os interesses e perspectivas particulares dos pesquisadores

mais influentes. Apoiado nesta observação parafraseia Kuhn ao citar as principais

características que um paradigma emergente do comportamento estratégico deve

apresentar:

“1. A ótica científica deveria ser multidisciplinar incluindo no mínimo as interações e influências políticas, sociológicas, psicológicas e racionalidades lógicas; 2. O ‘espaço problema’ deveria incluir a interação de comportamento estratégico com a configuração e a dinâmica da organização;

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 9: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

65

3. A interação entre os comportamentos estratégicos e operacionais, deveria ser incluída no ‘espaço problema’, sempre que ambos coexistirem e suscitarem importantes reivindicações de recursos e esforços; 4. O processo de evolução estratégica deveria ser tratado holisticamente combinando perceber, decidir e executar; 5. A evolução deveria ser vista como um processo de feedback paralelo e mútuo. O modelo sequencial, perceber-decidir-executar deve ser tratado como um caso especial; 6. Domínios de validade deveriam ser identificados para cada modelo que é arquitetado para descrever uma atividade estratégica; O relacionamento paradigmático básico quando aplicado a todas as variedades do comportamento estratégico pode ser resumido da seguinte maneira: A evolução estratégica de uma organização é determinada pela realimentação da interação entre três forças: do ambiente, da configuração interna e da dinâmica da organização, e de suas estratégias”. (Ansoff, 1987, p. 514)

Procurando legitimar um novo paradigma acerca do comportamento

estratégico, Ansoff conclui seu trabalho com uma questão final: O que é um bom

paradigma? A resposta apresentada assemelha-se aos pressupostos do paradigma

kuhniano, ao afirmar que:

“1- Um paradigma oferece um ‘guarda-chuva científico’ sob o qual teorias anteriormente conflitantes podem coexistir e prosperar; 2- Ele reorienta as energias dos teóricos de escolas competidoras e em conflito com outros teóricos para a exploração e enriquecimento mútuo; 3- A perspectiva paradigmática tipicamente estimula novas saídas teoréticas; 4- Um paradigma define o domínio da aplicação das respectivas teorias; 5- Como conseqüência, um paradigma define as condições sob as quais prescrições normativas baseadas em seus respectivos modelos teoréticos poderiam ser usadas na prática”. (Ansoff, 1987, p. 514)

Aproximadamente nove anos antes da publicação do trabalho de Ansoff

(1987), Behling já indicava a existência de problemas decorrentes da interpretação

indevida do paradigma kuhniano. No artigo “Some Problems in the Philosophy of

Science of Organizations”, publicado em 1978, chama a atenção para a

diversidade de sentidos deste conceito, e observa que o paradigma era citado

independente de uma compreensão clara de seus diversos significados ou das

implicações de suas diferentes definições, comumente utilizadas pelos

pesquisadores da ciência organizacional (Behling,1978, p.193).

Behling aponta tais dificuldades ao divergir das observações de Shapere e

Masterman quanto aos diferentes e inconsistentes sentidos que Kuhn conferiu ao

paradigma afirmando que: “Kuhn usa ‘paradigma’ de uma maneira diferente e

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 10: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

66

inconsistente; Masterman identifica 21 sentidos nos quais Kuhn usa o termo, que

não são mutuamente exclusivos e que pertencem a três categorias” (Behling,

1978, p. 193).

O paradigma kuhniano, de acordo com Behling poderia assumir três

possíveis categorias de sentido: os metaparadigmas, paradigmas sociológicos e

paradigmas de artefato ou de construção. Explica que no caso do primeiro sentido,

Kuhn usa o termo paradigma para designar o que ele chamou de metaparadigmas,

por entender que eles se referem mais às ‘visões de mundo metafísicas’ dos

cientistas do que à ciência em si mesma, e oferece como “exemplos de tais

aplicações do termo: um conjunto de crenças, um mito, uma nova maneira de ver,

um princípio organizador governando a percepção, e um mapa” (Behling, 1978, p.

194).

No segundo sentido, Behling entende que Kuhn utiliza o termo paradigma

fazendo referência ao que Masterman chama de paradigmas sociológicos: alguns

exemplos aceitos da real prática científica – exemplos que incluem leis, teoria,

aplicação e instrumentação, modelos estes, que contribuem para o nascimento de

tradições de pesquisa científica, particulares e coerentes (Masterman, 1970, pp.

10-11).

O terceiro sentido, pretendido por Kuhn, de acordo com Behling seria o

que Masterman designou como artefato ou paradigmas de construtos, ao fazer

referência a: “alguma habilidade ou técnica embrionária, ou desenho, e um insight

que é aplicável na sua área. Esta habilidade mais este insight, juntos constituem o

paradigma” (Masterman, 1970, p.69). Nesse sentido, o termo pode referir-se a

coisas tão concretas e limitadas como instrumentos ou livros didáticos clássicos,

ou, mais abstratamente, as analogias ou figuras de “gestalt” (Behling, 1978, p.

194).

Cabe aqui uma observação sobre a natureza do paradigma proposta em

Masterman e indicada por Behling, quando o próprio Kuhn, em sua réplica a

Masterman, admite apenas duas alternativas de sentidos possíveis para o termo

paradigma, uma que ele chama de “sociológico” e a outra que define o

“paradigma enquanto exemplos compartilhados” (Kuhn, 2006, p. 220-222).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 11: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

67

Behling além de perceber a relevância dos diferentes sentidos do paradigma

kuhniano, procura também esclarecer o que eles não significam, citando as

ponderações de Masterman:

“É importante ressaltar também que, quaisquer padrões-sinonímicos que Kuhn possa ter apresentado no calor de seus argumentos, ele nunca, de fato, iguala ‘paradigma’ em nenhum dos seus muitos sentidos com ‘teoria científica’. Porque para ele metaparadigma é algo muito mais amplo e ideologicamente anterior à teoria; por exemplo, uma visão de mundo. O seu paradigma sociológico... é também anterior à teoria, desde que é alguma coisa concreta e observável: por exemplo, um conjunto de hábitos. E seu paradigma de construto é menos que uma teoria, uma vez que pode ser alguma coisa tão teoricamente pequena como um simples pedaço de um artefato: por exemplo, qualquer coisa que possa motivar a ocorrência de um quebra-cabeça real”. (Masterman, 1970)

Para Behling é importante entender toda esta diversidade de sentidos por

considerar que o termo paradigma amplamente usado na área dos estudos

organizacionais (Organizational Studies - OS), carece da clara compreensão de

seus múltiplos sentidos, para que possa ampliar o entendimento dos sucessos e

falhas neste campo de estudos, neste entendimento apresenta a definição atribuída

ao termo “paradigma” por Pondy e Boje: “O termo ‘paradigma’ é usado, segundo

Thomas Kuhn, para se referir aos métodos, teorias, exemplares e visões de mundo

de uma subcomunidade científica particular” (Pondy e Boje, 1975, p.1). Usam o

termo como alguma coisa mais abstrata do que um modelo totalmente explicitado,

embora mais concreto e facilmente externalizado do que o metaparadigma

identificado em Masterman. A intenção de Behling não é negar a existência

destas teorias implícitas, mas sim mostrar como estas teorias diferem dos

metaparadigmas e paradigmas de artefato, na medida em que podem ser tidas

como um meio termo entre estes conceitos. Segundo este entendimento este tipo

de teorias se orientam a partir dos paradigmas de artefatos, e com o apoio das

teorias se movimentando na direção dos metaparadigmas, um esforço que de

acordo com Behling, leva ao aumento de:

“1. Ausência de Abstração – As proposições que compõem o quadro de referência lidam menos com eventos reais e objetos e mais com construtos representados por classes e grupos de eventos e objetos. 2. Escopo – O número ou tipos de fenômenos de experiências materiais para explicar, dentro de um parcimonioso conjunto de proposições crescentes. 3. Limitações na externabilidade – Isto torna mais difícil para o proponente do quadro de referência apresentá-lo sob formas que permitam um exame objetivo”. (Behling, 1978, p.194)

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 12: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

68

Com esta comparação Behling apresenta o entendimento de Merton (1957)

quanto à possibilidade da classificação da “teoria” em duas subcategorias. A

primeira conceitualmente próxima aos paradigmas de artefato de Masterman,

descrita em Merton como teorias logicamente interconectadas que são limitadas e

modestas em seu escopo, sendo tidas como teorias de abrangência mediana para

teorias intermediárias, hipóteses de menor relevância que compreendem a maior

parte das rotinas diárias da pesquisa, e as especulações que comprometem um

‘esquema conceitual mestre’”. (Merton, 1957, p. 5-6). A segunda categoria

chamada por Merton de “esquemas conceituais mestre” são entendidas por

Behling como conceitualmente próximos aos metaparadigmas de Kuhn e

Masterman. Em Behling tais diferenças são cruciais para fundamentar o

entendimento das pesquisas na ciência organizacional e devem ser consideradas

além da mera semântica. O problema causado pela confusão entre os

metaparadigmas de Kuhn, e as teorias de abragência média e os esquemas

conceituais mestres, além de tornar a comunicação entre os defensores de

diferentes teorias organizacionais, mais difícil, pode conduzir a conclusões

equivocadas2, como observamos anteriormente no trabalho de Ansoff.

A exemplo de Ansoff, Jones (1983) recorre ao paradigma kuhniano para

falar sobre a inexistência de consenso em torno da disciplina de Negócios e

Sociedade, começando por citar as diversas denominações utilizadas para designá-

la, tais como: “Negócios e seus Ambientes”, “Negócios, Governo, e Sociedade”, e

“Negócios e Políticas Públicas”. Jones afirma que apesar deste campo de estudos

dispor de literatura significativa, acadêmicos comprometidos com pesquisas nesta

área da ciência organizacional sentem falta de uma teoria ou um paradigma

unificador. Ilustra seu ponto de vista pela citação feita ao trabalho de Lee Preston

(1975) “Corporations e Society: The Search for a Paradigm”.

Jones comenta a ausência de definição precisa para o termo “paradigma” e

tomando como referência “The Structure of Scientific Revolutions” (Kuhn, 1970)

resume o extenso discurso em torno do termo conferindo três características

descritivas ao paradigma: 1- tem a capacidade de unificar e integrar uma

2 Para maiores detalhes sobre as diversas classificações do quadro de referência conceitual

no estudo das organizações ver Behling, O. (1978, p.195-199) e Koontz, Harold. The Management

Theory Jungle, Academy of Management Journal, v. 4, p.174-188, 1961.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 13: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

69

disciplina; 2- oferece uma substancial ortodoxia aos parâmetros básicos da

pesquisa – teoria, métodos, e valores; 3- apresenta capacidade preditiva e

explanatória (Jones, 1983).

Segundo Jones a área de negócios e sociedade, tem sido constituída a

revelia desses critérios. Reforça este ponto de vista ao citar alguns autores como

Preston (1975), Cheit (1978) e Post (1982), que também se ressentem da ausência

de um mecanismo de integração capaz de nortear suas pesquisas. Jones expõe a

maneira como as pesquisas nesta área de estudo carecem de sistematização e

normatização, comparando com os critérios estabelecidos pelo paradigma

kuhniano, ao citar a forma como vêm se desenvolvendo:

“1- teorias emprestadas de diversas disciplinas como as ciências econômicas e políticas, sociologia, teoria da organização e lei; 2- uma atordoante variedade de abordagens metodológicas para problemas de pesquisa; 3- uma significativa diversidade de valores”. (Jones, 1983, p. 559)

A partir destas observações conclui que o campo de estudos de Negócios e

Sociedade para se desenvolver deve adotar um modelo paradigmático, embora

reconheça a dificuldade desta empresa de acordo com a filosofia kuhniana,

acreditando que será improvável, num futuro próximo, a emergência de um

paradigma na área de Negócios e Sociedade.

Jones concorda ao mesmo tempo com a observação de Bernstein (1976) ao

afiançar que mesmo as ciências maduras como a sociologia e a ciência políticas

carecem de certos elementos do paradigma, mais notadamente de sua capacidade

explanatória. Reconhece que as pesquisas sobre negócios e sociedade são

recentes, momento segundo ele, que se assemelha à fase pré-paradigmática

identificada em Kuhn. Assim como Ansoff (1987), Jones conclui pela aceitação

dessa substancial diversidade de teorias, métodos e valores no campo de estudo de

negócios e sociedade. Contudo, propõe um modelo com o qual acredita estar

contribuindo para unificar ou integrar a pesquisa sobre este tema, que ele define

como:

“...um modelo geral, de alto-nível que descreva os relacionamentos dos vários assuntos neste campo; e mostre como as partes se ajustam, refutando a noção que este campo de estudo não é nada mais que uma coleção de tópicos fracamente relacionados”3. (Jones, 1983, p.560)

3 Para maiores detalhes do modelo proposto por Jones para integração das pesquisas da disciplina de Negócios e Sociedade ver JONES, T. A. An Integrating Framework for Research in Business

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 14: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

70

A pretensão do trabalho apresentado por Jones, seria propor o controle

social dos negócios como uma preocupação dominante deste campo de estudo, e

acredita que seu modelo pode auxiliar na busca por um padrão básico capaz de

contribuir para a formulação de um paradigma para esta área da ciência

organizacional. Portanto, podemos registrar outra percepção equivocada da

epistemologia kuhniana, pois sendo o paradigma um modelo que assegura o

controle de um campo de estudo por comunidade científica particular, seria bem

improvável que a adoção de um paradigma dominante pelos pesquisadores da área

de Negócios e Sociedade, tivesse como objetivo a transferência de autoridade para

qualquer outro grupo externo a esta comunidade.

Outra controvérsia quanto à compreensão do paradigma ficou evidenciada

pelas críticas feitas por Cannella e Paetzold (1994) ao trabalho de Pfeffer (1993),

que atestam o problema de má interpretação do paradigma kuhniano, não

aceitando o ponto de vista de Pfeffer, ao escrever:

“Na nossa visão, Pfeffer argumenta sobre um paradigma que não podemos admitir, um paradigma implicando relacionamentos lineares de causa-efeito, a acumulação linear de conhecimento, certeza tecnológica e, consequentemente, um alto grau de consenso”. (Cannella e Paetzold, 1994, p.332)

Cannella e Paetzold (1994) fizeram duras críticas às idéias de Pfeffer (1993)

apresentadas no artigo “Barriers to the Advance of Organizational Science:

Paradigm Development as a Dependent Variable”, cujos pressupostos podem ser

resumidos em três tópicos fundamentais:

- o controle das publicações acadêmicas, em especial das ciências da

administração, deve ser mantido por uma elite acadêmica.

- este pequeno grupo de pesquisadores devem se empenhar para obter

consenso e impor um paradigma dominante aos demais pesquisadores ainda que

estes tenham idéias divergentes.

- tanto os pesquisadores organizacionais quanto os estudos organizacionais

em geral, irão desfrutar de inúmeros benefícios, pela imposição de consenso e

and Society: A Step toward the Elusive Paradigm?. The Academy of Management Review, v. 8, n. 4, p. 560-563, 1983.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 15: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

71

pela adoção de um paradigma dominante, que conduzirão ao progresso da ciência

organizacional.

Segundo Cannella e Paetzold (1994) tais pressupostos são

fundamentalmente equivocados e por meio da revisão dos aspectos essenciais da

epistemologia de Kuhn, como o papel da sociologia na construção e

desenvolvimento do conhecimento científico, e em particular da ciência

organizacional, eles pretendem esclarecer a maior parte destes equívocos.

Cannella e Paetzold (1994), a exemplo de Kuhn, acreditam que todo o

conhecimento é construído socialmente, afirmando ser essa a principal conclusão

da filosofia kuhniana. Fazem, ainda, alusão à crítica4 impressa na contracapa do

livro “The Structure of Scientific Revolutions” (1970), apresentada pela revista

Science ao dizer que Kuhn consegue com facilidade questionar a perspectiva de

uma visão da ciência estritamente empírica cujo objetivo de progresso seria

alcançar a verdade. De acordo com a crítica, Kuhn constrói uma estrutura na qual

a ciência é fortemente influenciada por procedimentos não-racionais, onde novas

teorias são tidas como mais complexas que suas antecessoras, mas não

necessariamente melhores ou mais verdadeiras que suas antecessoras. Cannella e

Paetzold (1994) aceitam esta perspectiva questionável do progresso científico

estendendo esta observação para o campo da ciência organizacional ao afirmarem

que:

“...pelo fato de não sermos capazes de determinar quanto nossas teorias representam a verdade absoluta, também não podemos avaliar paradigmas de modo que nos permita saber qual deles poderia merecer uma posição dominante na ciência organizacional”. (Cannella e Paetzold, 1994, p. 332)

Canella e Paetzold (1994) concordam com este ponto de vista, pela citação

a Astley: “Ciência não é uma marcha magnífica em direção a verdade absoluta,

mas uma luta social entre acadêmicos de uma profissão para construir a verdade.”

(Astley, 1985). Entretanto, questionam, a exemplo de Feyerabend (1983), a

existência de uma “ciência normal”, conforme descrita por Kuhn. Questionam

4 Transcrição original da crítica citada por Cannella e Paetzold (1994) “Its author, Thomas S. Kuhn, wastes little time on demolishing the logical empiricist view of science as an objective progression toward the truth. Instead, he erects from ground up a structure in which science is seen to be heavily influenced by nonrational procedures, and in which new theories are viewed as being more complex than those they usurp but not as standing any closer to the truth.”

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 16: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

72

também quão incerta pode ser a extensão dos períodos em que a ciência normal

foi realmente praticada, e a validade desta prática para o evolução da ciência, ao

citar que:

“…a ‘ciência normal’ de Kuhn poderia ter sido imposta em períodos de atividade científica onde não foi identificada a noção de revolução científica de Kuhn; ele observou à descoberta científica a partir de um ponto favorável tão distante que ocorreram atenuações históricas consideráveis, razão pela qual a ciência normal – tipo de períodos sem desafios constantes e importantes entre escolas competidoras, pode ser questionável.” (Cannella e Paetzold, 1994, p. 334)

Além disso, Cannella e Paetzold acreditam no conhecimento socialmente

construído, ao propor que os paradigmas são uma parte importante da sociologia

da ciência, entretanto os paradigmas competidores não deveriam ser ignorados

(Cannella e Paetzold, 1994, p.333). Não aceitam, porém, a idéia dos responsáveis

pelo controle dos financiamentos de pesquisa sustentarem uma visão

paradigmática, como pretende Pfeffer. Para eles a aprendizagem de um paradigma

leva os pesquisadores à aquisição de uma teoria, métodos e padrões para analisar e

julgar os resultados dentro do campo de estudo do paradigma, mas a exemplo de

Kuhn acreditam que o conflito entre escolas competidoras é necessário para que

um paradigma emergente conduza ao reexame completo da ciência. Como Kuhn,

entendem que cada grupo de pesquisadores utiliza seu paradigma para argumentar

e defender sua própria estrutura paradigmática gerando uma circularidade de

argumento que nem sempre lhes é visível. Entretanto não acreditam que esta

circularidade torna a argumentação ineficaz contanto que ela seja persuasiva, e

como Kuhn assinalam que nem a lógica nem o experimento sozinhos podem

resolver o conflito entre paradigmas.

Cannella e Paetzold evidenciam ainda o problema de entendimento do

termo “paradigma” quando afirmam que a posição das pessoas com relação ao

paradigma se torna mais clara quando ele ou ela usa o termo, assim como se usa o

termo conhecimento, como se todos os leitores lhes atribuíssem, implicitamente,

um mesmo significado (Cannella e Paetzold, 1994, p. 333). Para Cannella e

Paetzold, a argumentação de Pfeffer (1993) sobre o desenvolvimento do

conhecimento, não somente admite a linearidade da acumulação do conhecimento,

mas assume também que todos os cientistas organizacionais concordam com uma

definição única para o que vem a ser conhecimento. Assim sendo, para Pfeffer

(1993), a evolução do conhecimento só pode ocorrer nos períodos da ciência

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 17: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

73

normal, períodos estes caracterizados pela adesão da comunidade científica a um

paradigma. Os autores sugerem que esta visão de conhecimento e de ciência

normal representa uma interpretação equivocada da epistemologia de Kuhn

(1970). Entendem que na filosofia da ciência de Kuhn o conceito da ciência

normal emergiu de registros históricos da atividade de pesquisa científica, que a

caracteriza como altamente diretiva e orientada pelo paradigma, na medida em

que os pesquisadores sabem o que querem demonstrar e projetam instrumento

para apoiar seus objetivos (Kuhn, 1970). Cannella e Paetzold defendem a idéia,

presente em Kuhn, do progresso da ciência ocorrer por meio de revoluções, e ao

citarem Feyerabend reiteram esta crença, afirmando que grandes avanços

científicos se devem às interferências externas que são feitas para prevalecer em

face das regras metodológicas mais básicas e mais “racionais” (Cannella e

Paetzold , 1994, p. 162).

Julgam, assim, ter apresentado um bom motivo pelo qual métodos e regras,

num dado momento, devem ser quebrados para que a ciência progrida,

evidenciando a impossibilidade das conclusões de Pfeffer (1993), ao assumir que

o desenvolvimento do conhecimento da ciência organizacional, só é possível

através da existência de um paradigma dominante associado a alto grau de

consenso e certeza tecnológica. Cannella e Paetzold contestam esta restrita visão

de Pfeffer ao assegurarem que mudanças revolucionárias em ambientes

organizacionais, quando reavaliadas por grupos com alto nível de consenso e que

compartilham o mesmo paradigma, resultariam na manutenção do paradigma

dominante.

Outro ponto de discordância com Pfeffer surge quando em seu artigo de

1993, ele faz distinção entre ciências naturais e humanas, onde compara a ciência

organizacional com a física e afirma a inferioridade da primeira em relação à

segunda. Cannella e Paetzold (1994, p. 334) entendem que esta comparação e a

certeza de Pfeffer com relação à idéia de um paradigma dominante, colocam a

ciência organizacional em uma perigosa dicotomia epistemológica. Segundo

Cannella e Paetzold, para evitar problemas das ciências humanas, tais como a

dificuldade em se obter financiamentos, os pesquisadores da ciência

organizacional são reticentes quanto à incorporação de métodos provenientes das

artes ou das ciências humanas, aproximando a ciência organizacional das ciências

naturais (altamente quantificáveis). Cannella e Paetzold argumentam que esta

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 18: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

74

dicotomia entre ciência e arte é falsa e ultrapassada. Acreditam que tanto as artes

como as ciências são construídas socialmente, e que a ciência é apenas mais uma

ideologia e que nenhuma metodologia científica pode separar ciência da arte ou de

outra ideologia qualquer (Cannella e Paetzold, 1994, p. 335). Entendem que uma

teoria só pode ser justificada (ou glorificada) pela comparação com outras teorias

ou pontos de vista, e concluem que as ciências físicas são limitadas pelo fato de

não observarem este pluralismo. Ainda assim, reconhecem a hegemonia das

ciências naturais conferida pela sociedade atual, e entendem que essa tendência

teve início com os movimentos em direção à quantificação e ao desenvolvimento

de metodologias estatísticas que acompanharam e influenciaram as metodologias

científicas, e reforçam essa tendência ao citar Feyerabend:

“... no início, os cientistas podem ter tomado decisões preocupados com as questões das políticas sociais; hoje, os cientistas têm se tornado diretamente responsáveis pelo controle econômico, político e social”. (Feyerabend, 1983)

Pfeffer (1993), de acordo com Cannella e Paetzold (1994), parece aceitar

este nível de controle sobre as ciências naturais como uma medida importante do

avanço destas ciências, além de argumentar que os cientistas organizacionais

deveriam imitar os físicos para alcançar os mesmos resultados. Cannella e

Paetzold não concordam com esta afirmativa e usam a própria alegação de Pfeffer

quanto à novidade deste campo de estudos para mostrar a inadequação de suas

idéias.

“Ciência organizacional é uma disciplina relativamente nova. Seus acadêmicos continuam a retratá-la a partir de uma variedade de disciplinas, com fronteiras indefinidas, de acordo com Pfeffer”. (Pfeffer, 1993, p. 336)

Segundo Cannella e Paetzold (1994), a ciência organizacional se encontra

na fase pré-paradigmática. Para que surja um paradigma dominante, recomendam,

então, a incorporação e aprovação de todas as concepções de conhecimento

compreendidas em diferentes disciplinas que irão apoiar a construção de uma

visão unificada desta área de conhecimento. Segundo eles, não se trata de aderir

ao “anything goes”, em clara alusão aos temores de Pfeffer (1993). Concordam

com o espírito de abertura e defendem diálogo contínuo, segundo eles, essencial à

promoção das teorias, métodos e paradigmas. Consideram legítimas as pesquisas

que seguem coerentemente suas premissas e comunicam claramente seus

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 19: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

75

objetivos, descobertas e cujas limitações são admitidas em público. Assim sendo,

não concordam que a legitimidade da ciência organizacional derive da aprovação

por uma elite acadêmica, ou pela obtenção de consenso quanto as suas

perspectivas. Por isso, Cannella e Paetzold discutem ainda o significado do termo

“consenso”, tido em Pfeffer (1983) como a ausência (para os observadores

externos) de discordância visível, sugerindo que aqueles que divergem dos

caminhos estabelecidos deveriam ser relegados ao ostracismo. Para Cannella e

Paetzold (1994, p. 336) ignorar mais de meio século de pesquisa sobre a ciência

organizacional e ignorar as divergências entre os pesquisadores não resolve o

problema dos desacordos observados neste campo de estudos. Acreditam, ao

contrário de Pfeffer (1983), que o alto nível de consenso oferece pouco conforto

aos pesquisadores que crêem num conhecimento socialmente construído, levando

estes pesquisadores à paralisação quando inseridos neste contexto. Além disso, a

conformidade com um paradigma central, segundo os autores, exigirá que o

treinamento tanto dos pesquisadores quanto dos estudantes os conduza a ignorar

qualquer trabalho divergente do paradigma dominante. Cannella e Paetzold

distinguem como outra provável consequência da adoção de um paradigma

dominante, a acomodação dos acadêmicos já estabelecidos, situação que pode

gerar resistência ao ingresso de novos pesquisadores, e, por conseguinte, restringir

o número de soluções inovadoras.

Para Cannella e Paetzold (1994, p. 338) a proposta de Pfeffer (1983) em

defesa de uma hierarquia da ciência organizacional, associada a um sistema de

elites provenientes das melhores escolas levaria à tirania das elites, que iriam

proteger suas posições pela negação de evidências que desafiassem suas visões e

credibilidade, toda vez que fossem questionadas por aqueles que não podem

controlar. Portanto, Cannella e Paetzold (1994) em posição diametralmente oposta

as idéias de Pfeffer (1983), concluem que os pesquisadores que desafiam as visões

dominantes contribuem para um diálogo contínuo, condição essencial para a

evolução do conhecimento da ciência organizacional, não aceitando assim a idéia

de um paradigma dominante para a ciência organizacional.

Como destacamos anteriormente, outra importante área problematizada pela

literatura da administração, diz respeito à formulação de uma teoria capaz de

apoiar a gestão do conhecimento organizacional. Dalmaris et al (2007a) ratificam

este interesse, além de propor o relacionamento entre a teoria do conhecimento de

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 20: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

76

Popper e a disciplina de “Knowledge Management” (Gestão do Conhecimento),

afirmando que esta área carece de um claro e consistente entendimento sobre a

natureza do conhecimento.

Dalmaris et al, tomando como exemplo o trabalho de Lang (2001),

concordam com a inadequação do conceito de gestão do conhecimento, tido como

gestão da informação, Dalmaris cita ainda a referência feita por Lang aos

trabalhos de Popper e Kuhn (Lang, 2001, p. 44-45), na tentativa de obter uma

fundamentação epistemológica sobre a natureza do conhecimento.

De acordo com Lang (2001, p.43) a indústria da tecnologia da informação

seria a principal responsável pela simplificação do processo de criação e utilização

do conhecimento organizacional, induzindo os gestores a uma percepção

equivocada sobre o que significa gestão do conhecimento organizacional, ao

oferecer através de taxonomias dualísticas, classificações como: público versus

privado, hard versus soft ou tácito versus explícito, distorcem a verdadeira

percepção sobre a natureza do conhecimento organizacional e a maneira como

deve ser construído e utilizado pelos gestores do conhecimento. Visando

esclarecer este impasse propõe a seguinte questão: Pode-se realmente gerenciar

alguma coisa vaga e intangível como o conhecimento? (Lang, 2001, p. 43).

Para Lang a nova economia surge com o aumento da especialização do

trabalho resultante da integração deste conhecimento especializado às atividades

desempenhadas pelas organizações. Deste modo, a manutenção da economia

baseada no conhecimento depende de que cada organização continue

incorporando este conhecimento especializado às atividades habituais. Outra

importante característica da economia do conhecimento, indicada em Lang, é a

transferência do principal meio de produção, o conhecimento da organização, para

seus colaboradores (trabalhadores do conhecimento)5. Segundo Lang, este

trabalhador especializado irá determinar o tipo de contribuição e produção,

proveniente de seu conhecimento, que será capaz de oferecer a organização. Neste

momento, recorre a Kuhn (1970), ao advertir que mudanças radicais, responsáveis

por afetar mais profundamente um corpo de conhecimento organizacional,

geralmente não emergem de seu próprio domínio de conhecimento, terminando

5 Por trabalhador do conhecimento entende-se todo o profissional que utiliza a informação

como insumo, combina-a com seu conhecimento individual para gerar nova informação como produto de sua atividade. Este termo foi cunhado por Peter Drucker em 1993.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 21: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

77

por sugerir que os trabalhadores do conhecimento devem procurar adquirir novos

conhecimentos a cada quatro ou cinco anos.

Consideramos a inadequação das alegações feitas por Lang, tanto em

termos conceituais quanto em relação às suas conclusões. A nosso ver a premissa

central da teoria de Kuhn (1970) sobre as revoluções científicas é de que são

episódios raros. Assim sendo, qualquer prescrição temporal visando à aquisição

de novos conhecimentos em função da adoção de um novo paradigma, não se

justifica a partir da teoria kuhniana. Procura ainda mostrar que a construção do

conhecimento se dá através da interação social, mas em momento algum Lang

menciona as considerações de Kuhn (2006) sobre a relevância da comunidade

científica, dos compromissos e dos exemplos compartilhados pelo grupo

dominante.

Lang (2001) entende que o conhecimento é construído em comunidades, e

se aproxima de Berger e Luckmann (1966) quando defendem a construção social

da realidade abalizada por pressupostos, expectativas e experiências anteriores.

Para Lang o conhecimento se baseia na crença adquirida, que não é

necessariamente, correta. Observa ainda, de forma implícita, a questão da

verificação de teorias pelo método da falseabilidade de Popper (1972), afirmando

que o conhecimento pode ser avaliado quanto à sua coerência interna e não

necessariamente pela sua correspondência com a realidade.

Portanto a conciliação, admitida em Lang, entre as epistemologias de

Popper (1972) e Kuhn (1970) visando obter fundamentação epistemológica e

concordância quanto à natureza do conhecimento, nos parece equivocada.

Ao sugerir que a evolução do conhecimento ocorre por meio de mudanças,

de forma muito simplificada Lang (2001) tenta transpor a tese kuhniana sobre a

evolução do conhecimento científico para a evolução do conhecimento

organizacional, ao concluir que o principal objetivo da gestão do conhecimento

organizacional seria facilitar o fluxo de comunicação entre as pessoas para

compartilhar habilidades e conhecimento, de forma a possibilitar a criação de

novos conhecimentos. Entende-se, entretanto, que a gestão do conhecimento nas

organizações engloba objetivos mais amplos do que estes apontados em Lang,

podendo ser entendida como uma disciplina que tem como premissas básicas

projetar e implementar um sistema cujos objetivos incluem identificar, captar e

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 22: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

78

compartilhar sistematicamente o conhecimento contido em uma organização, de

modo tal que possa ser convertido em valor para a mesma.

Rommel e Christiaens no artigo “Beyond the Pardigm Clashes in Public

Administration”, publicado em 2006, também ilustraram de forma exemplar o

problema do entendimento e a aplicação do paradigma kuhniano no campo da

ciência organizacional. Assinalam o conflito entre paradigmas na administração

pública ao resumir de forma precisa as questões centrais da epistemologia de

Kuhn, como se segue:

“Embora Kuhn não seja o único autor a escrever sobre esse tema, é definitivamente o mais conhecido. A sua contestação é que a ciência não progride através de acumulação. Mais exatamente, ocorre uma série de revoluções destruidoras das tradições. Ele asseverou que a ciência se desenvolve através de diferentes caminhos. No período de ciência normal, pesquisadores refinam e expandem o paradigma por meio de soluções de quebra-cabeças. Paradigmas são ‘pressupostos universalmente reconhecidos que, por um tempo, fornecem problemas modelos a uma comunidade de praticantes’ (Kuhn, 1970). Paradigmas concorrentes se distinguem em termos de pressuposições filosóficas, metas e métodos que cada um traz. Eles têm um papel crucial em prescrever as normas e regras que guiam pesquisas mais avançadas. Em certo momento, os cientistas encontram fatos inesperados que não podem ser integrados ao paradigma dominante. Após um período pré-paradigmático, caracterizado por debates profundos entre diversas escolas, um novo paradigma vem à tona, com um novo vocabulário e novos conceitos, necessário para analisar novos fatos. Esse novo paradigma não é um caso especial do antigo paradigma, ele é ‘não só incompatível, como também frequentemente incomensurável com o paradigma anterior’ (Kuhn, 1970, p.103). Quadros de referência científicos rivais são incomensuráveis se nenhum deles pode ser completamente traduzido no vocabulário do outro. Paradigmas concorrentes são mundos diferentes e vêem coisas diferentes. Depois da mudança revolucionária, um novo período de ciência normal começa a refinar o novo paradigma, que é substancialmente diferente da ciência normal que precedeu o paradigma anterior”. (Rommel e Christiaens 2006, p.611)

Neste trabalho, Rommel e Christiaens (2006, p.611) apresentam uma

expressiva lista de pesquisadores que debatem a questão da administração pública

sob a perspectiva do paradigma kuhniano, incluindo Aucoin (1995), Barzelay

(1992), Behn (2001), Borins (1999), Cheung (2005), Holmes & Shand (1995),

Hughes (2003), Mathiasen (1999), Osborne & Gaebler (1992).

Para Rommel e Christiaens estes pesquisadores propõem uma mudança

radical, conduzida por uma mudança revolucionária do paradigma, no que diz

respeito aos pressupostos tradicionais da administração pública, hoje

fundamentados na ciência política e considerados ineficientes (ex. baixo

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 23: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

79

desempenho dos governantes). Em oposição aos pressupostos tradicionais,

pretendem se espelhar no setor privado, fundamentado em conjecturas

econômicas e norteado pela lógica de mercado, objetivando desenvolver teorias

organizacionais mais adequadas ao desenvolvimento do setor público. Afirmam

que estas mudanças estão sendo observadas em vários países, pela citação da

OECD6 (Organisation for Economic Co-operation and Development), quando diz

que um novo paradigma para a administração pública vem emergindo, com o

propósito de fomentar uma cultura orientada ao desempenho, em um setor público

menos centralizado (OECD, 1995, p. 8).

Ao examinar as propostas destes pesquisadores Rommel e Christiaens

notam problemas de entendimento e aplicação do paradigma, ao mencionar que a

maioria dos teóricos da administração pública enfatiza as diferenças entre a nova e

a velha administração, ignorando características essenciais do paradigma

kuhniano, ao relatarem:

“A reivindicação do paradigma é feita surpreendentemente rápido. Embora muitos autores citem o trabalho de Kuhn e reivindiquem a utilização de seu conceito, apenas poucos parecem ter realmente lido com cuidado o trabalho de Kuhn. Tem-se a impressão de que nunca usaram um quadro de referência sistemático para analisar se alguém pode realmente falar sobre um paradigma, nem aplicam o quadro de referência de Kuhn às suas próprias argumentações”. (Rommel e Christiaens, 2006, p.612)

Portanto, neste sentido eles acreditam que embora muitos enfatizem as

diferenças entre uma administração antiga e a nova administração, poucos olham

para a convergência da literatura, muito menos para a consistência da nova

administração pública ou de sua capacidade de solucionar problemas, que para

eles seriam as três características essenciais do paradigma de Kuhn.

Rommel e Christiaens (2006) também advertem sobre o problema de

entendimento, demonstrado por alguns teóricos da administração, que costumam

estabelecer uma similaridade entre teoria e paradigma, além de confundir as

mudanças de práticas da gestão pública com mudanças paradigmáticas.

6 A OCDE – Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, fundada em 1948

é uma organização internacional, formada por trinta países que aceitam os princípios da democracia representativa e da economia de livre mercado. A maior parte dos membros da OCDE é composta por países economicamente desenvolvidos com um elevado índice de desenvolvimento humano (IDH). Informações detalhadas sobre países membros no site http://www.oecd.org.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 24: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

80

Confirmam esta convicção ao observer a ausência de questões epistemológicas

relevantes na administração pública:

“... nós não encontramos nenhum autor que mencione ter criado um novo tipo de método de pesquisa para a administração pública, ou como estes métodos estão sendo modificados em função da Nova Administração Pública (NPM), ou porque estes métodos não são úteis à administração pública tradicional”. (Rommel e Christiaens, 2006, p.612)

Segundo, Rommel e Christiaens muitos destes pesquisadores não entendem a

diferença entre mudança teorética e mudança paradigmática, quando escrevem:

“Além disso, estes autores, na maioria, estão falando sobre mudanças na prática, enquanto os paradigmas falam sobre ciência e pesquisa. Ainda que muitos governos se organizassem de maneira diferente da tradicional, isso não implica que a pesquisa tenha de fazer à mesma mudança. Hughes (2003), como defensor incondicional da idéia de que a administração pública é um paradigma kuhniano, argumenta que existe uma convergência com a teoria. Entretanto, mudança teórica não é a mesma coisa que mudança paradigmática”. (Rommel e Christiaens, 2006, p.612)

4.3 A Relevância de Karl Popper

No capítulo anterior apresentamos a maneira como alguns pesquisadores da

administração têm mencionado e utilizado o modelo epistemológico de Thomas

Kuhn, pretendemos agora prosseguir em nossa pesquisa na intenção de verificar

em que sentido a filosofia da ciência de Popper tem contribuído para o

desenvolvimento dos estudos organizacionais.

Em artigo recente, denominado de “Want Better Business Theories? Maybe

Karl Popper Has the Answer ”, Shareef (2007) sugere como a filosofia da ciência

seria capaz de mudar a cultura das escolas de negócio tendo como fonte de

inspiração a metodologia crítica de Popper, e recomenda a revisão do modelo

paradigmático tido como prática da ciência normal em Kuhn. Para este autor tal

perspectiva poderia mitigar problemas de crise no ensino das escolas de pós-

graduação em negócios, assim como oferecer inspiração à formulação de novas

teorias mais adequadas às exigências gerenciais das organizações

contemporâneas. Cabe aqui ressaltar a justificativa dada por Shareef à tese supra

citada.

“Essa posição é baseada na literatura publicada, nas tendências contemporâneas da teoria da administração, e no ensino de cursos de pós-graduação em ciências da administração. Eu também sugiro que, se tal

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 25: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

81

transição não ocorrer, os programas de MBA vão continuar a perder tanto sua legitimidade social quanto organizacional”. (Shareef, 2007, p. 272)

Este depoimento explica porque a tese de que o interesse e aplicação da

epistemologia de Popper pelas ciências da administração são genuínos e têm se

confirmado em publicações recentes.

Shareef, baseado nos artigos de Ghoshal (2005), Mitroff e Swanson (2004)

questiona a ascendência da teoria da agência7 (instituída pela Escola de Negócios

de Chicago e disseminada pelos cursos de pós-graduação), julgando esta situação

prejudicial às teorias científicas da administração, e responsável por comprometer

a legitimidade das escolas de pós-graduação em negócios, quando escreve:

“Ghostal primeiramente dirige o seu ataque no efeito destrutivo da teoria da agência no curso de MBA da ‘Chicago School of Economics’. Ele corretamente afirma que a teoria da agência relacionada com os modelos do comportamento humano (exemplo: racional, auto-centrado...) e do comportamento corporativo (exemplo: o objetivo fundamental da empresa é maximizar o valor de acionistas) conduziu a formulação de teorias da administração pseudocientíficas, práticas de administração ineficientes, e decisões administrativas antiéticas. Como resultado, a legitimidade institucional das escolas de graduação de negócios e a influência da teoria da administração na pesquisa, foram severamente comprometidas. Assim como Ghoshal, Mitroff e Swanson (2004) argumentam que a teoria da agência e a economia neoclássica infectaram o currículo de educação em negócios por incutir nos estudantes um conjunto de normas que sugerem que decisões de negócio são livres de valores. Esse sistema de valor não normativo passa a idéia aos futuros alunos de MBA de que não existe problema em adotar um comportamento antiético no processo de tomada de decisões”. (Shareef, 2007, p. 272)

Shareef entende que Ghoshal (2005) reconhece a situação de conformidade

experimentada pela comunidade científica frente a um paradigma dominante. Cita

Pfeffer (2005), ao mencionar que o aparecimento de novas teorias da

administração, norteadas pela prática da ciência normal, conforme descrita em

7 A teoria da agência procura alinhar os interesses dos gestores aos interesses dos

proprietários, baseada em um processo de delegação de autoridade e atribuições, neste intuito surgem dois personagens que assumem papéis bem definidos nas relações contratuais mencionadas por Jensen, M. C., Foundations of organizational strategy. Boston: Harvard University Press, 1998. O primeiro identificado como Principal, é o empreendedor original, aquele que detém a posse da organização ou delega alguma atribuição a outrem, ou em um nível ainda maior, identificado pelos acionistas da Instituição. O segundo personagem, identificado como Agente, é aquele que irá executar ou administrar o empreendimento sob delegação do proprietário ou superior hierárquico (Principal). Para melhor compreensão dos problemas inerentes a teoria da agência ver Fama, E. 1980. Agency problems and the theory of the firm. Journal of Political

Economy, 1988, p. 288–307.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 26: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

82

Kuhn (1970), poderá ser a salvação intelectual e institucional das escolas de

graduação em negócios. Comenta ainda as afirmações de Frankfort-Nachmias e

Nachmias (1996), que ponderam sobre a continuidade da prática da ciência

normal apesar dos problemas observados pela própria comunidade científica, que

segundo Shareef têm impossibilitado as mudanças, a inovação e a construção de

uma nova teoria da administração. Contrariamente a estes autores Shareef (2007,

p. 273), afirma que a aceitação do modelo do paradigma de Kuhn torna

virtualmente impossível acelerar o processo de desenvolvimento e advento de

teorias melhores para a ciência organizacional. De acordo com Shareef, Frankfort-

Nachmias e Nachmias (1996), acharam que não existia uma “lógica da

descoberta” no quadro de referência do paradigma, somente uma “sócio-

psicologia da descoberta”, e que à exemplo de Kuhn, aceitam o comprometimento

psicológico dos pesquisadores, membros de uma comunidade científica, com a

preservação dos valores da tradição de pesquisa dominante, o que justifica a

ascendência da teoria da agência apesar de um número crescente de pesquisas

empíricas evidenciarem seu reduzido poder explanatório e preditivo.

Shareef menciona também um artigo recente de Locke e Noel (2004),

pretendendo demonstrar a situação atual dos estudos de ética nas escolas de

graduação em negócios.

“Eles argumentam que escolas de negócios deveriam continuar a ensinar a filosofia do pragmatismo – a filosofia na qual não existem princípios absolutos e os administradores deveriam tomar decisões baseados nos princípios amorais de Machiavell. Esse tipo de filosofia, livre de valor leva ao comportamento administrativo anti-ético descrito por Maslow (1970)”. (Shareef, 2007, p. 273)

Estas perspectivas que toleram estes tipos de conduta na tomada de decisão,

segundo Shareef, ilustram o recente caso da falência da Enron, cujos gerentes

realizaram acordos secretos com produtores de energia da Califórnia para

paralisar deliberadamente suas centrais elétricas de maneira a manipular preços e

aumentar os lucros.

Shareef, em sua análise, estabelece uma relação de identidade entre a

irracionalidade da avaliação do paradigma pela comunidade científica com os

processos de tomada de decisão organizacional definido pelo grupo de pensadores

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 27: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

83

de Janus8 (1970), cuja norma do grupo dominante não permite perspectivas

discordantes, mantendo a conformidade com o “status quo” no sentido de

preservar a associação da comunidade. Para Shareef, tanto o processo de

comprovação do paradigma como a dinâmica do grupo de pensadores de Janus

provocaram crises organizacionais-sociais que poderiam ser evitadas.

Neste contexto, como alternativa ao paradigma de Kuhn, Shareef propõe a

idéia de uma ciência racional crítica, em permanente revolução, apresentada por

Popper, e interpreta esta perspectiva popperiana de ciência ao dizer que o objetivo

fundamental do cientista é gerar teorias melhores já que teorias antigas são

descartadas como resultado de terem falhado quando submetidas a testes

empíricos rigorosos (Shareef, 2007, p.273), e cita Popper ao afirmar que a ciência

revolucionária deve fundamentar a pesquisa científica.

“A comunidade científica é uma comunidade aberta onde nenhuma teoria dominante ou paradigma deveriam ser sagrados; teorias são só tentativas e os cientistas não deveriam hesitar em rejeitar uma teoria baseada em resultados empíricos não confirmados; teorias melhores evoluem continuamente através da rejeição de teorias inferiores”. (Popper, 1965)

Como se vê, Shareef aceita a tese popperiana sobre a construção de teorias

como um processo em permanente revolução e a tese que admite a substituição da

teoria dominante como decorrência da pesquisa empírica.

Todas as considerações feitas por Shareef, até aqui, tiveram por objetivo

apontar que a cultura vigente das escolas de graduação em negócios revela-se

completamente vinculada ao modelo paradigmático, segundo ele, motivo pelo

qual a teoria da agência não foi solapada a despeito de tantas evidências

contrárias. Neste entendimento, Shareef apresenta duas possibilidades: ou a

eliminação da teoria da agência por meio de provas empíricas, ou sua prevalência

enquanto dominante, conduzindo assim ao descrédito das escolas de graduação

em negócios. Para justificar sua tese de que a epistemologia popperiana pode

resolver problemas como os apontados no trabalho de Ghoshal (2005), Shareef

propõe a revisão da teoria da agência na perspectiva kuhniana de ciência normal,

8 Para mais informações sobre processos de tomada de decisão organizacional ver Janus, I. 1970. Groupthink: The desperate drive for consensus at any cost. In J. M. Shafritz & J. S. Scott (Eds.), Classics of organization theory (5th): 185–192. Ft. Worth: Harcourt College Publishers.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 28: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

84

frente à da construção da ciência como um processo de revolução permanente

segundo Popper. Shareef mostra ainda como o modelo de desenvolvimento de

teorias de Popper serviu de base epistemológica para uma nova teoria, a HRO -

teoria da organização de alta confiabilidade (HRO; high-reliability organization)

proposto em Weick (2003) e Sutcliffe (2001).

Shareef cita alguns problemas da teoria da agência identificados em Jensen

& Mecling (1976) e Fama (1980), e assim a resume:

“No quadro de referência da teoria da agência o proprietário-principal determina o trabalho a ser feito pelo gestor-agente, que aceita a responsabilidade de verificar se a tarefa designada é concluída”. (Shareef, 2007, p. 274)

Evidencia alguns dos conflitos observados nesta teoria como: as perdas que

podem ocorrer numa agência quando o principal não pode determinar se o agente

tem se empenhado para concluir a tarefa solicitada. Menciona o problema dos

incentivos, quando o agente não é responsável pela segurança da organização,

preocupando-se exclusivamente com a maximização dos lucros, e sobre a

incongruência de objetivos entre o relacionamento agente-principal e os

mecanismos específicos para reduzir as perdas da agência. Shareef recorre ainda

ao conceito de empresa definido em Fama (1980), como uma equipe cujos

membros são motivados somente por interesses próprios embora aceitem que só

conseguirão alcançar os objetivos individuais se a equipe vencer outras equipes

concorrentes no mercado.

O autor descreve de forma detalhada os conceitos de paradigma, ciência

normal, revoluções científicas apresentados por Kuhn, além de indicar o

comprometimento social e psicológico dos cientistas com o paradigma e a

consequente resistência dos membros da comunidade científica, em abandonar um

paradigma desacreditado. Shareef observa que de acordo com este contexto o

estabelecimento de um paradigma alternativo à teoria da agência pode levar

décadas, como destaca do relatório de Frankfort-Nachmias e Nachmias:

“Os cientistas, assim como outros profissionais, vêem o que eles esperam ver. Por essa razão, um paradigma dominante tende a permanecer como paradigma aceito muito tempo mesmo que se mostre contrário às observações empíricas”. (Frankfort-Nachmias e Nachmias 1996, p. 16-17)

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 29: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

85

Shareef ainda evidencia a semelhança desta perspectiva com a

epistemologia de Kuhn ao citá-lo: “note que o cientista (educado para esperar

resultados induzidos pelos paradigmas) continua resistindo em ver a natureza de

uma maneira diferente, muito tempo depois das anomalias se tornarem aparentes.”

(Kuhn, 1970), concluindo que as revoluções são raras dentro deste pressuposto

epistemológico.

Em contraposição à perspectiva kuhniana, Shareef apresenta as teses

centrais da epistemologia de Popper, na intenção de contestar a visão descritiva e

psicológica da pesquisa científica em favor de uma metodologia racional crítica

para o desenvolvimento da ciência (Shareef, 2007, p. 275). Defende ainda a

possibilidade de substituição do paradigma dominante submetendo-o à

falsificação pelo método dedutivo da prova, ao citar Hindess.

“Popper alega que uma sociedade científica é uma sociedade aberta onde nenhum paradigma dominante é consagrado. Sua visão do mundo é que o objetivo da descoberta na ciência começa pelos enunciados universais, prossegue por meio da dedução e falsificação, e que o progresso científico deve, por isso, avançar pela eliminação das teorias que são falsas”. (Hindess, 1977)

Shareef também faz menção à tese popperiana do conhecimento em

evolução constante e da ciência cujo objetivo principal seria produzir teorias

melhores, pela seguinte citação:

“... o conhecimento é revolucionário e cresce à medida que as teorias são refutadas pela evidência empírica permitindo assim, que surjam novas teorias. Cada passo nos conduz mais próximo da verdade através ‘do crescimento integrado da árvore do conhecimento’”. (Popper, 1965, p. 264)

Aceita o conceito intuitivo de verdade como correspondência aos fatos,

assim como a inexistência de um critério adequado para a determinação da

verdade, ao afirmar que Popper (1965) não está interessado em demonstrar as

teorias científicas como seguras, certas ou prováveis. Neste sentido Shareef (2007,

p. 276) além de rejeitar a idéia de que uma pesquisa científica tenha algo a ver

com certeza, probabilidade ou confiabilidade, a exemplo de Popper, acredita na

ciência revolucionária, controlada por críticas que permite aos cientistas:

“(a) se aproximar da verdade de um fenômeno e (b) melhorar o conteúdo de verdade de teorias dentro de uma disciplina específica. Assim, a metodologia da ciência revolucionária é relativamente válida quando: uma teoria existente (T1) pode ser substituída ou suplantada por outra teoria (T2) só depois que a teoria existente falhar frente aos testes

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 30: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

86

empíricos rigorosos. T2 seria então substituída por T3 de uma maneira similar. A cada grau de avanço da verdade, ou seja, a cada teoria sucessora, chega-se a uma aproximação mais precisa da verdade”. (Popper, 1965)

Shareef destaca também o desacordo de Popper com relação ao conceito de

ciência normal e com o pensamento dogmático dos cientistas acerca do paradigma

kuhniano ao dizer que Popper é especialmente crítico quanto à descrição de Kuhn

do conceito de ciência normal e argumenta que cientistas “normais” têm sido

doutrinados e educados de maneira dogmática. Além disso, Popper acredita que

paradigmas constituem-se em um dogma dominante, são pseudocientíficos, e

abalam a pesquisa científica legítima. Mesmo assim, Popper reconhece que os

cientistas deveriam reter algum dogmatismo para não ceder às críticas tão

facilmente, mas rejeita as crenças de Kuhn acerca de um dogma preponderante

para a comunidade científica por períodos de tempo prolongados (Shareef, 2007,

p. 276).

Shareef procura evidenciar a preocupação dos filósofos da ciência com esta

aparente dicotomia entre dogma e ciência e recorre a Greer (1989) na intenção de

mostrar dois cenários possíveis para o processo da pesquisa científica:

“uma espiral para cima onde o conhecimento científico se acumula ou uma espiral para baixo onde a teoria se transforma em doutrina e depois em dogma. Kuhn (1970) aceita que a ciência normal é relacionada com dogma mas não acredita que isso impede o empreendimento científico. Inversamente, Popper (1965) argumenta que a existência de um dogma dominante da comunidade científica é o maior empecilho ao crescimento do conhecimento científico”. (Shareef, 2007, p. 276)

Outro importante dissenso entre Popper e Kuhn apontado por Shareef, diz

respeito ao objetivo da ciência quando diz que as abordagens de Popper e Kuhn da

pesquisa científica são muito diferentes. O objetivo da ciência revolucionária de

Popper é de conduzir o cientista mais próximo da verdade durante o processo de

construção da teoria. Consequentemente, onde Popper vê a ciência revolucionária

produzindo teorias melhores através de estágios evolucionárias, Kuhn acredita que

a ciência deveria ser originalmente caracterizada por ampliar o detalhamento e

refinamento do conhecimento da natureza. Kuhn reconhece que a pesquisa

científica evolui com a tradição da ciência normal a partir de começos primitivos,

mas não acredita que o objetivo da investigação científica se oriente na direção e

uma meta específica, como a verdade (Shareef, 2007, p. 276).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 31: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

87

Baseado nos pressupostos filosóficos até aqui apresentados Shareef analisa o

problema da falsificação da teoria da agência, conforme o artigo de Ghoshal

(2005), e aponta a inadequação da interpretação de Ghoshal no que diz respeito a

epistemologia popperiana. Nota que Ghoshal se preocupa com o aspecto negativo

da teoria da agência, ao dizer que:

“... a concepção liberal do homem, enquanto seres humanos imperfeitos... e observa o problema da organização social mais como uma questão negativa de prevenir pessoas más de causarem danos do que permitir pessoas boas de praticarem o bem”. (Ghoshal, 2005, p. 84)

Segundo Shareef, o problema encontrado por Ghoshal na teoria da agência tem

como origem a ideologia dos conservadores contemporâneos, de acordo com o

artigo “Liberals, Conservatives, and the Elections” de 1980, ao esclarecer:

“Parece que o conservador enquanto reconhece que o homem é abençoado com a centelha divina, acredita que o animal humano é incorrigível, que a sua natureza é imutável e... ele é egoísta por projeto e necessidade. Essa visão conformista nos remete ao âmbito da nossa herança ocidental, a doutrina judaica-ocidental a qual nos ensina que o homem é completamente, e para sempre, predestinado a viver debaixo da sombra do pecado original”. (Bunke, 1980)9

De acordo com Shareef, como resultado desta interpretação os conservadores

modernos acreditam que a natureza humana é invariável e fixa, transferindo para

as instituições a força decisiva para modelar e disciplinar a personalidade humana.

Com base nesta crença comportamentos oportunistas são esperados, sendo, pois

necessário realizar controles organizacionais visando restringir as consequências

indesejadas decorrentes da natureza egoísta do gestor. Para Shareef essas crenças

formaram a base da ideologia científica da teoria da agência, a exemplo do

paradigma, as crenças ideológicas e valores que sustentam a teoria da agência

formam grupos coesos e promovem solidariedade social nesta comunidade

científica particular. Podemos subentender, neste momento, a referência de

Shareef, ainda que implícita, ao conceito de paradigma como uma constelação de

compromissos de grupo (Kuhn, 1970, p. 228-234), ao atribuir a avaliação negativa

de Ghoshal a respeito da teoria da agência ao fato dele não fazer parte desta

comunidade de teóricos. Explica também porque milhões de seguidores da

9 Ver Bunke, H. C. 1980. Liberals, Conservatives, and the Election. (Reprint from Business Horizons, No. 80509: 3–10.), para maiores esclarecimentos sobre visão ideológica dos conservadores sobre a natureza humana.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 32: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

88

doutrina do cristianismo não se opuseram às crenças e valores que fundamentam a

teoria da agência, ao citar Weick (1995): “... ideologias ajudam as pessoas a dar

um significado ao comportamento humano obstinado”.

Para Shareef, Ghoshal inadvertidamente iguala a concepção pessimista e

egoísta de mundo oferecida pela teoria da agência com a noção popperiana sobre a

falseabilidade e refutabilidade das teorias, tomando-as como ideologias

pessimistas. Contrário a esta visão pessimista a respeito da refutação de teorias

Shareef propõe um novo referencial para analisar as idéias de Popper:

“(a) a construção da teoria é feita através de graus da verdade, ou (b) a construção da teoria vista como um critério de progresso oferece a esta abordagem metodológica uma perspectiva bem mais afirmativa”. (Popper, 1989)

Confere essa nova perspectiva de abordagem a Senge (1990) que considerou

esses tipos de alterações linguísticas cruciais no sentido de mudar a construção

social da realidade, facilitar mudanças organizacionais, e criar uma cultura de

aprendizagem.

Outro equívoco cometido por Ghoshal em seu artigo, diz Shareef, foi

presumir que Popper teria uma visão negativa da natureza humana, do que

discorda veementemente, justificando seu ponto de vista apoiado nas idéias de

Bunke (1980) sobre a concepção popperiana de progresso da ciência, ao escrever:

“Na verdade, o processo evolucionário de Popper de criar um mundo melhor através do aumento do conteúdo de conhecimento das teorias é congruente com a descrição liberal de Bunke sobre século 20 a respeito do ser humano: (a) chegamos ao mundo como uma folha em branco (b) criaturas cujo bem/razão/esclarecimento são intrínsecos, e (c) inferiorizados somente por padrões institucionais imutáveis que reprimem o crescimento e a criatividade. Bunke (1980) afirma que o liberal acredita que: ‘se por extensão o mundo é bom, o homem leva o crédito; e se por extensão o mundo é conturbado, o homem deve também levar a culpa’. Os problemas que pairam pelo mundo são produtos de decisões humanas; para eliminá-los novas decisões são necessárias. O critério de Popper (1961) quanto ao conceito de progresso ‘se ajusta’ à descrição de Bunke da filosofia liberal. Seja na área da teoria organizacional ou na filosofia política, Popper acredita que a eliminação de teorias ou políticas falseadas e a tentativa de substituí-las empiricamente por teorias mais novas é o método para o progresso humano. Popper argumenta que esse quadro de referência da ciência revolucionária fornece um fluxo contínuo de novas e melhores teorias destinadas a aperfeiçoar a condição humana. Isso é precisamente a prática da filosofia da ciência de Popper, um quadro de referência normativo. Da mesma maneira, Popper chama de tentativa e erro a construção do processo de conjectura das teorias, tentando refutá-las, e

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 33: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

89

somente depois de várias tentativas, as aceita se elas não forem rejeitadas”. (Shareef, 2007, p. 277-278)

Baseado nestas considerações Shareff assegura que Popper tem muito pouco em

comum com os partidários da teoria da agência no que diz respeito à natureza

humana.

Shareef conclui seu artigo, propondo uma inusitada correlação do método da

falseabilidade e da idéia de progresso científico proposta em Popper com a

definição de organizações de alta confiabilidade (high-reliability organizations -

HROs), conceituando-as como empresas que respondem as turbulências

ambientais através da busca de falhas nas teorias ou procedimentos em operação

na organização, ao escrever:

“Weick (2003) lembra que as HROs têm uma ‘fascinação pelo erro’, este por sua vez serve de mecanismo para construção de teorias melhores. Como o processo de tomada de decisão, neste tipo organização tem como premissa o quadro de referência teórico de Popper, os líderes nas HROs entendem que os planos estratégicos são apenas tentativas, e procuram por qualquer situação incongruente com os procedimentos baseados nas teorias existentes, de modo a desenvolver uma cultura organizacional de aprendizagem contínua e atualizada. Weick (2003) alega que as HROs se preocupam com erros porque seus lideres percebem que melhores planos estratégicos e aprendizagem institucional, só aparecem quando a organização identifica pequenas falhas antes que evoluam, a ponto de ameaçar a sustentabilidade organizacional”. (Shareef, 2007, p. 278)

Shareef concorda com as conclusões de Weick and Sutcliffe (2001), que

mostram como os gestores das organizações de alta confiabilidade (HRO)

desenvolvem seus planos estratégicos pelo reconhecimento de falhas através de

testes empíricos.

“Weick e Sutcliffe reconhecem (como Popper) que a busca por confirmação dá margem aos pesquisadores observarem de maneira seletiva aquilo que confirma suas crenças enraizadas, e ignoram dados que comprometem essas crenças (Weick, 1995). Consequentemente, os lideres de organizações de alto desempenho buscam substituir os seus planos estratégicos através de T1, T2..., quando pequenos erros de desempenho ocorrerem – antes que evoluam e ocasionem uma catástrofe organizacional. Aqui, planos estratégicos são substituídos por melhores planos estratégicos, como resultados de erros reconhecidos empiricamente”. (Shareef, 2007, p. 278)

Com base na tese supra citada Shareef conclui que o modelo teorético das

HROs, ajusta-se ao conceito da ciência revolucionária de Popper, e admite que a

construção de uma teoria capaz de projetar estruturas organizacionais tão flexíveis

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 34: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

90

e adaptáveis, como as HROs, só pode ter sido desenvolvida pela aplicação da

metodologia da ciência de Popper.

Em outro instigante artigo, “A Popperian View of Change in Innovative

Organization”, de 1997, Shareef examina o motivo pelo qual a maior parte dos

teóricos e especialistas em mudanças organizacionais adota o paradigma kuhniano

e a idéia de revoluções como eventos extraordinários. Contrariando esta visão

dominante, Shareef defende a tese da “revolução permanente” oferecida pela

epistemologia de Karl Popper, como a mais adequada ao desenvolvimento de

teorias que expliquem as transformações frequentemente observadas em

organizações inovadoras. Baseado nesta premissa pretende elucidar algumas das

principais teses epistemológicas de Popper, analisando possíveis contribuições à

teoria da mudança organizacional. A expectativa de Shareef com esta

averiguação, foi oferecer aos stakeholders10 (partes interessadas) destas

organizações, um melhor entendimento sobre a mudança organizacional, além de

facilitar a condução de processos de mudança em organizações inovadoras.

Shareef estruturou seu artigo em cinco seções, apresentando na primeira a

teoria de conjecturas e refutações definida em Popper. Na seção seguinte, oferece

um “rationale” para a aplicação da filosofia da ciência em geral com o intento de

entender a mudança nas organizações inovadoras. Na terceira parte, discute alguns

estudos de caso sobre mudanças empreendidas por indústrias americanas no setor

de petróleo, farmacêutico e de transporte baseado na visão popperiana. Termina

mostrando as implicações e conclusões desta nova perspectiva filosófica para a

comunidade científica dos teóricos organizacionais ao propor um (re)exame da

filosofia da ciência popperiana com o objetivo de analisar suas relações e

contribuições no campo da mudança organizacional.

Shareef observa que a tese popperiana é amplamente considerada, tanto por

pesquisadores da administração quanto por economistas e gestores de políticas

públicas ao escrever:

10 O termo Stakeholder, Project Stakeholder ou Partes Interessadas (em português) é

amplamente utilizado pelos acadêmicos da Administração. De acordo com o PMI- Project

Management Institute, responsável pela publicação do guia do conjunto de conhecimentos em gerenciamento de projetos, o termo é definido como: “Pessoas e organizações, como clientes, patrocinadores, organizações executoras e o público, que sejam ativamente envolvidas no projeto ou cujos interesses possam ser afetados de forma positiva ou negativa pela execução ou término do projeto. Elas podem também exercer influência sobre o projeto e suas entregas” (PMBOK®, 2004).

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 35: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

91

“Fundamentalmente, Popper sustenta que o valor das proposições científicas reside no fato de que elas ainda não foram falseadas. Essa descrição do processo científico teve várias influências, desde o editorial de tomada de decisão a respeito das publicações sobre as ciências organizacional/administrativa (Beyer, Chanove, & Fox, 1995), até a formação das políticas públicas e econômicas (Sowell, 1995)”. (Shareef, 1997, p.656-657)

Neste sentido Shareef fala sobre o caráter não definitivo da refutação, ao

descrever o método dedutivo da epistemologia de Popper.

“Popper acredita que o objetivo da ciência no sentido de encontrar proposições universalmente verdadeiras, procede pela dedução e falsificação. As teorias podem ser refutadas, mas elas não podem ser provadas. Assim, ‘a busca por declarações universais deve proceder através de eliminação daquelas que são falseadas’ (Hindess, 1977, p.168). Além disso, Popper (1965, p.54) também escreve, ‘podemos ver este momento, quando percebemos a aceitação pela ciência de uma lei ou teoria, apenas como uma tentativa; significa dizer que todas as leis e teorias são conjecturas, ou hipóteses arriscadas; e que podemos rejeitar uma lei ou teoria com base em uma nova evidência, sem necessariamente eliminar a evidência antiga que nos levou, originalmente, a aceitá-la”. (Shareef, 1997, p.657)

Shareef defende a crença popperiana numa ciência cujas características

revolucionárias seriam a regra, na qual a formulação de conjecturas desafiadoras

passíveis de crítica constante pelos cientistas, configura o comportamento

dominante. Neste sentido explica em que medida diverge da percepção de Kuhn a

respeito de Popper ao citá-lo:

“Popper (1965) somente acredita na ciência revolucionária que ele descreve na seguinte passagem: ‘Eu acredito que a ciência é essencialmente crítica: que se fundamenta em conjecturas audaciosas, controladas pela crítica, podendo então, ser descrita como revolucionária. Mas, eu sempre enfatizei a necessidade de certa dose de dogmatismo: o cientista dogmático tem um papel importante a desempenhar. Se nós cedemos à crítica rápido demais, nunca iremos descobrir onde jaz o verdadeiro poder de nossas teorias’”. (Kuhn, 1970)

Segundo Shareef, esse tipo de dogmatismo não é o que Kuhn (1970, p. 55) deseja

ao sugerir a preponderância do dogma durante longos períodos, não aceitando que

o método da ciência normalmente é o de conjecturas audaciosas e críticas. Afirma

também que para Popper (1965) a tentativa dos cientistas de verificar e confirmar

as leis os induz a negligenciar refutações, levando ao dogmatismo ou ao tipo de

dogmatismo dominante, creditado a Kuhn. Inversamente, na perspectiva

popperiana os cientistas devem adotar uma atitude crítica, uma atitude pronta para

mudar leis, “para testá-las; refutá-las e falsificá-las se possível” (Popper, 1965, p.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 36: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

92

50). Shareef, a exemplo de Popper, afirma que “essa atitude crítica reflete a

verdadeira atitude científica enquanto a atitude dogmática é pseudocientífica”

(Shareef, 1997, p.657).

Shareef destaca a perspectiva da essência revolucionária da prática científica

ao defender a tese popperiana da comunidade científica como uma sociedade

aberta, na qual nenhum paradigma (ou teoria dominante) é superlativo, reforça

esta perspectiva pela citação de Nachmias e Nachmias (1992), quando afirmam

que “a ciência deve estar numa revolução permanente, e a crítica deveria ser o

coração do empreendimento científico. Refutações ao conhecimento até então

aceito dão origem as revoluções” 11.

Shareef propõe que a metodologia da ciência de Popper seria o modelo mais

adequado para explicar as transformações observadas em indústrias inovadoras,

ao argumentar que a noção de Popper das revoluções científicas em permanência

são ainda mais relevantes para as organizações do setor privado no sistema

capitalista, devido às rápidas mudanças observadas em seu ambiente operacional.

Exemplifica seu ponto de vista ao citar a análise de Euchner (1993) sobre a

mudança frequente, entre cidades, dos times de esporte profissional nos Estados

Unidos, atribuindo a tremenda capacidade de transformação e mobilização destes

times ao controle total dos recursos e processos por eles gerenciados. Shareef

concorda com Euchner12, quando afirma que a procura por novos mercados e o

confronto com mercados competidores alimentam as revoluções permanentes nas

forças produtivas (Euchner, 1993, p. 56). Tendo em mente esta acepção, ele

reconhece a relevância das idéias de Popper além de indicar que no caso dos

interesses privados, devido à flexibilidade, inovação e controle coeso de seus

recursos, eles respondem mais rapidamente a novas situações, tendo assim maior

afinidade com a proposta da revolução em permanência de Popper (Shareef, 1997,

p.657-658).

Shareef destaca ainda a meta de aproximação da verdade como um dos

objetivos da ciência na epistemologia popperiana, através da crítica racional dos

11 Para maiores detalhes desta proposição ver FRANKFORT-NACHMIAS, C., & NACHMIAS, D. Research methods in the social sciences(4th ed.). New York: St. Martins Press, 1992. 12 Para mais informações sobre o estudo de caso citado por Shareef, ver EUCHNER, C. Playing

the field: Why sports teams move and cities fight to keep them. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1993.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 37: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

93

enunciados universais pelo método dedutivo, fazendo menção a Hindess (1977)

que descreve o processo dedutivo da seguinte maneira:

“(1) comece por um problema e formule uma tentativa de solução ou teoria; (2) submeta a teoria aos testes mais severos possíveis, num processo de eliminação de erro, e (3) a eliminação de erro leva à formulação de novos problemas que surgem da própria atividade criativa”. (Hindess, 1977, p. 176)

Shareef prossegue apresentando as questões sobre o teste dedutivo da

prova, e as tentativas de Popper para eliminar hipóteses que não são boas,

comparadas ao desenvolvimento do conhecimento humano e científico, na

seguinte citação:

“Enquanto o conhecimento animal é pré-científico se desenvolve principalmente pela eliminação daqueles que não se adequam as hipóteses, a crítica científica normalmente faz nossas teorias perecerem em nosso lugar, eliminando falsas crenças antes que tais creças nos conduzam a nossa própria extinção”. (Popper, 1972, p. 261)

Analogamente, define o desenvolvimento do conhecimento como

revolucionário, afirmando que este se desenvolve como as teorias, ao citar Popper:

“Assim, o conhecimento é revolucionário – crescendo conforme as teorias são refutadas pela realidade e quando novas teorias aparecem. Cada passo nos conduz mais próximo da verdade ‘o crescimento integrado da árvore do conhecimento’”. (Popper, 1972, p. 264)

Neste ponto Shareef indica a possibilidade de estabelecer um paralelo entre

o método das conjecturas e refutações, definido em Popper, e a práxis das

“organizações de alto valor” 13.

Recorre então à obra de Reich (1992)14, para mostrar que a experimentação

de novas teorias/conceitos são cruciais para o tipo de empresa que ele chama de

“organização de alto valor” (high-value organization). Segundo Shareef, Reich

acredita que neste tipo de organização os analistas estratégicos consomem muito

tempo procurando pela combinação certa das soluções e problemas. Reich (1992,

p.20) nota que a experimentação é o sangue da vida das organizações de alto

13 De acordo com Reich (1994), torna-se difícil, ou até impossível, o controle de cima para baixo, assim como se torna obsoleta a percepção de propriedade centralizada nas organizações de alto valor. Neste novo ambiente, poder e prosperidade fluem para os grupos que acumularam a experiência mais valiosa na identificação de problemas, nas soluções de problemas e na promoção estratégica da “venda” das soluções. 14 Para mais detalhes sobre organizações de alto valor ver REICH, R. The work of nations. New York: Vintage Books, 1992. e KANTER, R. When giants learn to dance. New York: Touchstone.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 38: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

94

valor, uma vez que a customização de suas estratégias e práticas requer contínuas

tentativas e erros. Em Shareef, a analogia feita por Reich se adapta nitidamente à

visão de mundo de Popper, ao proferir:

“... então não existe nenhum procedimento mais racional do que o método da tentativa e erro – da conjectura e refutação; da proposta de teorias audaciosas; de tentar o máximo possível provar que elas estão erradas; e de aceitá-las caso os nossos esforços não tenham sucesso”. (Popper, 1965, p. 51)

Shareef (1997, p. 659) faz também referência à pesquisa de Kanter (2001)

sobre inovação, que de forma similar enfatiza a necessidade da experimentação

nas empresas na era da globalização. De acordo com Shareef, os experimentos

para Kanter têm dois propósitos: em primeiro lugar eles são obviamente a chave

para novos sucessos e descobertas. Em segundo, experimentos bem sucedidos

oferecem aos formuladores das políticas organizacionais alternativas para a

reformulação de suas estratégias. De acordo com Kanter, essas opções constituem

o equivalente interno de um portfólio diversificado para momentos de turbulência

(Kanter, 2001).

Para ilustrar de que forma a tese popperiana se ajusta melhor às mudanças

organizacionais realizadas nas organizações inovadoras, Shareef (1997, p. 659-

666) apresenta cinco estudos de caso, visando estabelecer paralelos de

comparação convincentes quanto à aplicação das conjecturas epistemológicas,

estabelecidas em Popper, como por exemplo, a dimensão crítica da ciência, o

método de conjeturas e refutações e a idéia de progresso científico, com o

desenvolvimento de estratégias e práticas adotadas por este tipo de organizações.

A análise dos casos apresentados no trabalho de Shareef foge ao contexto desta

pesquisa, considerando sua abordagem predominantemente utilitária e técnica,

portanto não serão aqui discutidos, sendo mencionados apenas com o intuito de

evidenciar a aplicação destes conceitos filosóficos na práxis das organizações

inovadoras.

Shareef (1997, p.668) termina seu artigo concluindo que dentro da

comunidade científica tem ressurgido o interesse pela filosofia de Popper aplicada

às mudanças organizacionais. Faz menção ao livro de Thomas Sowell do Instituto

Hoover, ao questionar o número reduzido de testes sistemáticos das teorias, que se

evidencia no âmbito das políticas públicas. Entende ainda que Sowell, como

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 39: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

95

Popper, atribui tal comportamento ao espírito dogmático que existe na

comunidade científica, ao escrever:

“O pensamento dogmático, a habilidade extraordinária para desafiar a evidência ‘objetiva’ (como definido por Weber15), é mais perigoso no modelo paradigmático, uma vez que este modelo reduz os circuitos de realimentação provenientes de uma realidade fundamentada”. (Sowell, 1995)16.

Shareef conclui sua reflexão acreditando na possibilidade de um futuro

próximo, em que a comunidade dos teóricos da administração examinará e

reexaminará as teorias da mudança organizacional à luz da filosofia da ciência de

Popper.

Susman (1981) como Shareef (1997), também pesquisou a questão das

mudanças organizacionais tendo por inspiração a filosofia popperiana, ainda que

pareça não percebê-la em profundidade. No artigo entitulado “Planned Change:

Prospects for the 1980s”, parte da premissa de que o planejamento e

desenvolvimento organizacional são áreas intimamente associadas ao

planejamento de mudanças, e reconhece que estas áreas levantam problemas

fortemente inter-relacionados e comuns. Diante desta afirmação Susman (1981

p.139-141) analisa problemas comuns como: a estagnação da produtividade, a

migração para fontes de energia alternativa, crescimento reduzido do estado e do

governo local, transformação de valores, e o aumento da interdependência entre os

problemas. Ilustra sua pesquisa fazendo alusão a casos reais de organizações da

década de 80, tanto na administração pública quanto na administração privada,

nos Estados Unidos, constatando que independente da área de atuação as

organizações podem e devem atuar de forma coordenada.

Segundo Susman, a atividade de resolução de problemas e suas

consequências, tanto nas empresas privadas quanto na administração pública, não

são facilmente negociadas através de um planejamento central. A recomendação

de Susman seria a criação de fóruns internos à organização e entre as

organizações, que incluíssem representantes de todas as partes interessadas. Além

disso, propõe um método de solução de problemas que busca valores comuns

15 WEBER, M. The theory of social and economic organization. New York: Free Press, 1964. 16 SOWELL, T. The vision of the anointed: Self-congratulations as a basis for social policy. New York: Basic Books, 1995.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 40: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

96

através do alinhamento de diferentes interesses, encorajando o comprometimento

e esforço conjunto das partes interessadas no processo de definição e resolução de

problemas. Destaca a importância destas duas condições facilitadoras e as trata

como temas centrais do seu trabalho. Em Susman (1981) esses “Fóruns de

Resolução de Problemas” devem ser gerenciados e apresentar como pré-requisitos

para sua efetividade, as seguintes condições:

“(2.1) Desenvolver redes entre organizações, (2.2) Desenvolver estruturas transversais dentro das organizações, (2.3) Expandir a base da capacitação para resolução de problemas, (2.4) Encorajar valores congruentes com a resolução de problemas”. (Susman, 1981, p.145)

Susman cita ainda Michael (1973)17 pretendendo enfatizar o trabalho de

construção de uma cultura organizacional que valorize a atividade de resolução de

problemas, ao defender a:

“... necessidade dos membros de uma organização conduzirem suas ações orientadas ao futuro em detrimento do presente, e adotarem uma postura pró-ativa em vez de reativa, e ‘considerar erro’ a fim de que os membros da organização possam aprender a partir destes erros e planejar de forma mais eficiente”. (Michael, 1973)

Neste ponto Susman não deixa claro em que medida “considerar erro” seria uma

conduta fundamental no processo de resolução de problemas e na aprendizagem

organizacional. Neste caso poderia ter recorrido a Popper quando afirma que:

“... o crescimento de todo conhecimento consiste na modificação de conhecimento prévio – ou sua alteração, ou sua rejeição em ampla escala. O conhecimento nunca começa do nada, mas sempre de algum conhecimento de base – conhecimento que no momento é tido como certo – juntamente com algumas dificuldades, alguns problemas. Estes, via de regra, surgem do choque entre, de um lado, expectativas inerentes a nosso conhecimento de base e, do outro lado, de algumas novas descobertas, tais como nossas observações ou algumas hipóteses sugeridas por elas”. (Popper, 1999, p. 75)

Com relação ao método de resolução de problemas, Susman opta pela

“Investigação-Ação”, descrito como “um processo cíclico composto de cinco

fases: diagnóstico, planejamento da ação, execução da ação, avaliação e

especialização da aprendizagem” (Susman, 1981, p.146). Cada uma destas fases é

apresentada detalhadamente em Susman. Entretanto em função dos objetivos

17 Michael, D. N. On Learning to Plan-and Planning to Learn. San Francisco: Jossey-Bass, 1973.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 41: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

97

centrais desta dissertação será comentada apenas a fase de especialização da

aprendizagem, na qual o pesquisador faz referência a Popper.

De acordo com Susman, na fase de especialização da aprendizagem apesar

do objetivo principal ser a aprendizagem em si, a maior parte desta aprendizagem

ocorre em cada uma das fases anteriores, ele reconhece, entretanto, que é nesta

fase que a Investigação-Ação focaliza direta e conscientemente no que foi

aprendido e no processo de “aprender a aprender”. Segundo Susman (1981, p.

152) a fase de aprendizagem organizacional da Investigação-Ação considera

quatro aspectos importantes: o reconhecimento de padrões, de contradições, de

consequências e da interdependência. O reconhecimento de padrões é definido por

Susman como a habilidade de descobrir o que é comum entre fenômenos

aparentemente não relacionados. Em oposição à indução, o reconhecimento de

padrões é uma atividade que transcende à observação dos fenômenos, exigindo

“saltos da imaginação”. Neste momento Susman afirma que tais “saltos da

imaginação” foram chamados de “conjecturas”, de acordo com Popper. 18

Susman mais uma vez perde a oportunidade de estabelecer a conexão entre

o conhecimento conjecturado e a questão da indução amplamente discutida em

Popper (1999, p. 13-23).

A conclusão de Susman de que o planejamento de mudanças na década de

80 está intrinsecamente associado aos problemas concretos observados neste

mesmo período de tempo, e que, portanto devem ser tratados através de um

método geral de resolução de problemas, método que permitiria a revitalização e

atualização da teoria da Investigação-Ação. Entretanto, Susman não observa em

profundidade a epistemologia de Popper, mais especificamente o método da

ciência (Popper, 1973), o qual permitiria ampliar a conclusão apresentada por ele,

não limitando o sucesso do planejamento de mudanças organizacionais a uma

metodologia de resolução de problemas. Para Popper, seria inexequível conduzir o

processo de resolução de problemas dissociado da formulação de conjecturas

avançadas, de acordo com sua própria síntese.

“Tantas vezes tenho descrito o que considero como o método de autocorreção por meio do qual a ciência procede que posso ser aqui

18 Traduzimos o termo “cojecturing” como “conjecturas”, entretanto no texto original Susman usa o termo “conjecturing”, segundo ele extraído do livro POPPER, K. Conjectures and

Refutations. New York: Harper, 1968.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 42: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

98

muito suscinto: o método da ciência é o método de conjecturas ousadas e de tentativas engenhosas e severas para refutá-las”. (Popper, 1985)

Robb em artigo denominado de “Towards a 'Better' Scientific Theory of

Human Organizations” (1985), também reconhece o racionalismo crítico presente

na epistemologia de Popper, aceitando a idéia que a teoria científica é uma

conjectura corroborada acerca do mundo, uma suposição que é submetida a

severos testes críticos para definir os limites de sua validade. Segundo Robb, os

cientistas devem olhar para uma hipótese com a qual se comprometem, tendo por

objetivo a definição de expectativas, ou sua definitiva rejeição, caso essas

expectativas não se realizem. Robb sugere que a teoria da administração, ao

enunciar prescrições para melhorar o controle das organizações humanas,

encontra-se repleta de “mitos” que influenciam fortemente o comportamento e a

percepção dos gestores destas organizações. Neste sentido acata a teoria científica

e o método de conjecturas e refutações de Popper (2003), ao justificar que a teoria

tradicional da administração não pode ser classificada como científica segundo o

critério de demarcação da epistemologia popperiana. Assim sendo, Robb (1985)

pretende propor uma “hipótese do gerenciamento”, a propósito da natureza das

grandes organizações, de modo a identificar suas fronteiras e validade, sendo

passível de testá-la pela observação.

Robb argumenta que a teoria do gerenciamento tradicionalmente lida com

questões para melhorar a eficiência gerencial, levanta também hipóteses

substanciais sobre a natureza das organizações humanas, e, portanto sugere a

seguinte hipótese: “organizações humanas de grande porte são sistemas vivos”

(Robb, 1985, p. 463), e introduz o conceito da “autopoiesis” e “auto-produção” ao

pressupor que as organizações humanas de grande porte19 se assemelham aos

organismos vivos.

Pode-se resumir a definição de sistema vivo, apresentada em Robb (1985),

como um sistema topograficamente delimitado que, apesar de importar e exportar

19 Robb (1985) define organizações de grande porte como qualquer sociedade

suficientemente grande capaz de conter estruturas gerenciais formais ou informais, incluindo: corporações, instituições governamentais, instituições religiosas entre outras. Segundo ele, estas instituições exibem as mesmas propriedades de uma organização fechada, ou seja, existe fisicamente no tempo e no espaço sendo reconhecidas por um observador informado, qualquer que seja o seu quadro de referência.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 43: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

99

materiais e energia se constitui num sistema fechado. Robb (1985, p. 464) propõe

como característica necessária, mas não suficiente para a caracterização dos

sistemas vivos, a autonomia, ou seja, um sistema vivo é uma unidade

exclusivamente envolvida com o seu próprio sistema. Explica que a autopoiesis se

fundamenta na produção e na destruição dos componentes de um sistema por si

mesmo, ao descrever a forma que opera para se manter como uma entidade, e

justifica que a noção da auto-produção seria uma condição necessária e suficiente

para caracterizar os sistemas vivos. Segundo Robb as observações mostram que

tais sistemas expostos a perturbações externas associadas às dinâmicas internas do

próprio sistema, induzem mudanças estruturais que visam à manutenção de sua

autopoiesis. Robb (1985, p. 464) classifica estas mudanças em quatro tipos:

adaptação (mudanças estruturais), também denominada de aprendizagem,

desintegração (sucumbência pela incapacidade de adaptação), reprodução (criação

de um outro sistema que continua a realizar a autopoiesis da mesma maneira que

o organismo original) e evolução (reprodução de várias gerações, onde cada uma

delas acrescenta mutações aos seus descendentes).

Baseado na caracterização dos sistemas vivos Robb (1985, p.464) afirma

que as organizações humanas são sistemas semelhantes, portanto

organizacionalmente fechados a despeito de importar materiais e energia,

processando-os para exportar o produto como um bem. Além disso, as

organizações também desviam parte do que importam, com o intuito de suportar a

estrutura gerencial, ou manter a produção do próprio sistema, ou ainda para se

adaptar às condições de mudança.

Robb (1985) afirma que, a despeito da extensão de propósito que uma

organização humana possa ter, ela sempre opera para manter sua própria

identidade inalterada. Independente de perturbações externas, busca adaptar suas

dinâmicas internas, e, como os sistemas vivos, uma organização submetida a

pressões internas e externas pode se desintegrar, reproduzir e evoluir.

Conclui que a hipótese por ele levantada não implica em atribuição de

propósito, intenção ou objetivos últimos, seja ela aplicada aos organismos ou às

organizações humanas. Robb (1985) entende que as estruturas e operações de

auto-produção das organizações determinam apenas a forma como irão se

comportar. A “intenção”, como propriedade atribuída às organizações humanas,

segundo Robb (1985), desvia a atenção para a eficiência de produção de bens e

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 44: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

100

serviços, e impede o exame detalhado das várias estruturas que comprometem as

organizações humanas e das perturbações que as afetam.

Na pretensão de apoiar suas hipóteses quanto à natureza das organizações

humanas, Robb (1985, p. 464-466) propõe analisá-las tendo em vista novas

perspectivas.

Começa por divergir da idéia dominante, segundo a qual as organizações

são construídas pelos humanos com o propósito de executar um serviço para a

comunidade ou para os indivíduos que a compõem. De acordo com Robb (1985),

as organizações humanas são entidades biológicas vivendo de um substrato

composto por materiais, energia e seres humanos que competem por recursos

materiais, energéticos e humanos de forma a manter sua própria auto-produção.

Robb sugere ainda rever a crença dominante que prega o irrestrito controle

humano sobre as organizações, ao propor que frente às oscilações os gestores

devem buscar simplesmente fazer ajustes de modo a manter o sistema de auto-

produção da organização. Implica em dizer que as organizações devem se

comportar como se não estivessem sob controle humano, pois apesar dos recursos

humanos exercerem algum papel de controle sobre as mudanças organizacionais,

a natureza da própria mudança é determinada por fatores inerentes à estrutura

organizacional num estágio particular de desenvolvimento. A fim de suportar esta

proposição, Robb cita sucintamente Greiner (1983), ao deduzir que:

“... o desenvolvimento organizacional passa por um número de estágios conhecidos de ‘evolução e revolução’, a taxa de progresso através destes estágios é função do tempo de vida e tamanho da organização, considerando ainda a taxa de crescimento da indústria na qual se insere. Indica que uma ação gerencial adequada, em tempos de crise ou revolução, ao mesmo tempo em que deve assegurar a sobrevivência para progredir através dos estágios evolucionários subsequentes, também considera as sementes das próximas crises, além de estimular os gestores a identificar o estágio de desenvolvimento de suas organizações de modo a antecipar a natureza da próxima crise, desse modo, controlar melhor seus efeitos”. (Robb, 1985, p. 465)

Robb busca inspiração nas conjecturas de Calow (1978)20 ao explicar a

constância de sistemas biológicos, a despeito das forças entrópicas de seu entorno.

20 CALOW, P. Life Cycles. London: Chapman & Hall, 1978.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 45: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

101

Atribui esta tenacidade a dois sistemas bem distintos, observados nos sistemas

biológicos:

“... um sistema protegido e termodinamicamente estável (o genoma) e um sistema ativo, e em parte meta-estável (o fenótipo). O processo de auto-produção depende do genoma que provê a subsistência do mecanismo de reparo ou substituição de partes de um fenótipo quando eles estão desgastados ou danificados. Durante o ciclo de vida de um organismo, ocorre uma acumulação gradual de danos quando se envelhece e eventualmente morre. A reprodução permite que o genoma se mantenha constante. O sucesso de um organismo depende de sua habilidade de compartilhar recursos que lhe são demandados a fim de assegurar sua própria manutenção, crescimento e reprodução”. (Robb, 1985, p.465)

Robb (1985) entende, então que se as organizações alcançarem o estágio de

desenvolvimento dos organismos biológicos, serão observadas de forma similar,

ou seja, se constituirão de um sistema aberto de produção, separado do meta-

sistema organizacionalmente fechado, responsável por controlar seu

desenvolvimento. Analogamente aos sistemas biológicos, este sistema de

produção, será responsável por importar processos, material, informação, energia

e pessoas e exportar produtos, além de contribuir para manutenção do meta-

sistema. Por outro lado este meta-sistema fechado será protegido e estável, como

o genoma de um sistema biológico, provendo os meios de reorganizar e regenerar

o vulnerável sistema de produção. Neste sentido, toda a organização é dirigida

pela auto-preservação, cujo meta-sistema, fechado por natureza, estaria além do

controle humano, enquanto o sistema de produção pode ser controlado pelo

homem, desde que observadas as restrições organizacionais impostas pelo meta-

sistema. Portanto, de acordo com Robb o destino de uma organização foge do

controle humano, quando ela desenvolve seu meta-sistema, sendo o futuro

determinado pela interação de seu meta-sistema com o meio ambiente instável e

com o seu sistema de produção, renovando constantemente seus componentes e

modificando sua forma.

A apresentação desta peculiar interpretação a respeito de sistema de

desenvolvimento organizacional, segundo Robb, tem por finalidade suscitar novas

alternativas para canalizar e não controlar a direção das mudanças

organizacionais. Nesta abordagem os gestores não controlam o processo de

mudança organizacional, mas devem pretender a reestruturação do meio ambiente

no qual se inserem. Uma forma de interferir neste ambiente seria, segundo ele,

produzir leis e regras mais efetivas para conduzir a direção das mudanças uma vez

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 46: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

102

que em alguns casos as leis e regras formuladas para normatizar o ambiente

organizacional têm sido responsáveis pela extinção de recursos organizacionais de

grande valor para a sociedade.

Robb (1985) conclui que sua hipótese quanto à semelhança entre as

organizações de grande porte e os organismos vivos poderia ser falseada pela

observação de que algumas organizações de grande porte não se comportam de

forma a preservar sua própria auto-produção, tratando-se, assim, de uma

proposição científica no sentido popperiano. Neste sentido Robb considera que

sua teoria poderia ser submetida a testes críticos, e sendo bem sucedida poderia

ser aplicada, teria como implicação imediata uma mudança de paradigma, com

consequentes mudanças no contexto organizacional, especialmente na maneira

como os gestores percebem seu trabalho. Destaca que a contribuição mais

importante desta nova teoria seria levar a uma reavaliação radical do

relacionamento entre pessoas e as instituições sociais em que habitam.

Chamamos a atenção para duas publicações recentes de Dalmaris et al

(2007a e 2007b) que reforçam a tese desta dissertação quanto à relevância da

metodologia da ciência de Popper e a possibilidade de aplicação da mesma pela

ciência organizacional. Nos artigos “A framework for the improvement of

knowledge-intensive business processes” e “The time-value of knowledge: a

temporal qualification of knowledge, its issues, and role in the improvement of

knowledge intense business processes”, Dalmaris et al (2007a e 2007b). São

trabalhos complementares que propõem um novo modelo para a administração

das organizações baseado em processos de negócio que dependem do emprego de

conhecimento especializado, chamados de “knowledge-intensive business

processes – KBPI” (processos de negócio intensivos em conhecimento).

“Em Dalmaris et al, nós apresentamos um quadro de referência para o desenvolvimento do modelo de processos de negócio intensivos em conhecimento. O KBPI é baseado na epistemologia de Popper que define o desenvolvimento do conhecimento científico como uma atividade baseada na ‘solução de problemas’, conhecimento este de natureza tácita ou explícita. O modelo incorporou a ontologia dos processos de negócio para capturar suas características básicas, e uma metodologia para orientar os esforços de desenvolvimento”. (Dalmaris et al, 2007b, p. 1)

Em linhas gerais Dalmaris et al (2007a) partem do pressuposto de que os

processos residem no coração de quase tudo que as organizações fazem para

permanecerem competitivas ou crescerem. Ao entenderem que a maioria dos

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 47: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

103

processos envolve algum grau de conhecimento, acreditam que o

desenvolvimento organizacional depende do desenvolvimento de processos de

negócio (BPI- Business Process Improvement), no caso específico deste artigo,

ampliam este conceito ao pretenderem o desenvolvimento de um modelo para os

processos de negócio intensivos em conhecimento, doravante designado KBPI, e

fundamentado na teoria do conhecimento de Popper.

Dalmaris et al (2007b) destacam a idéia central da epistemologia

popperiana sobre o desenvolvimento do conhecimento como um processo crítico

de “resolução de problemas”, como parte integrante de seu modelo de processos

de negócio intensivos em conhecimento. Segundo eles o KBPI é composto de três

partes: a epistemologia, a ontologia dos processos de negócios e a metodologia de

desenvolvimento (Dalmaris et al, 2007b, p. 3). Afirmam que a razão pela qual

escolheram a epistemologia popperiana para fundamentar o modelo KBPI, seria

pelo fato desta epistemologia considerar a obsolescência do conhecimento em sua

essência, pelo processo de tentativa e eliminação de erro, o conhecimento é

abolido (eliminado) e substituído por novos e melhores conhecimentos

modificados (Dalmaris et al, 2007b, p. 2).

Durante a elaboração do modelo KBPI aplicam a metodologia que

denominaram eliminação do erro, numa analogia clara com a tese da

falseabilidade de Popper, sobre o desenvolvimento de teorias, que pode se

observar pela seguinte descrição:

“A eliminação do erro é um mecanismo pelo qual teorias existentes são melhoradas. Cada enunciado que fazemos é uma teoria. Formulações de problemas (enunciados de problemas) e suas soluções são teorias que nos ajudam a dar sentido e interagir com o meio ambiente. A eliminação do erro é crítica no sentido de projetar uma teoria melhor. Seguindo Popper (1972) e Niiniluoto (1999), cada tentativa de falsificar uma teoria fornece uma oportunidade de aprimoramento. A falsificação pode ser alcançada usando uma lógica dedutiva, assim como acontece no campo da matemática, ou através de experimentos. Na maior parte dos casos presentes nessa pesquisa, ambas as formas de falsificação foram usadas. Aqui, a lógica foi usada para produzir a formulação do problema e uma tentativa de solução original. A utilização da experiência foi feita sob a forma de estudos de caso. Um erro em uma teoria é descoberto quando o que é percebido pelos nossos sentidos não está de acordo com a teoria – com o que nós esperamos. Isto leva à falsificação da teoria original e muitas vezes indica a localização e a natureza da inconsistência entre a teoria e o fato observado. Essa informação é usada pelo pesquisador para corrigir o erro indicado pelo teste, e para produzir uma teoria presumivelmente nova e melhor”. (Dalmaris et al, 2007a, p. 286)

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 48: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

104

Asseguram ainda que a apropriação desta metodologia de eliminação de

erros foi ainda mais desafiadora, ao ser utilizada para encontrar uma solução

consistente, capaz de incorporar componentes teóricos e práticos, ao proporem a

classificação dos erros em três tipos: erros de fundamentação teórica, erros de

representação de processo, e erros da metodologia de desenvolvimento,

detalhados em Dalmaris et al ( 2007a) como se seguem:

“(1) Erros da base teórica. Esses são erros relacionados à epistemologia, e sua habilidade de fornecer definições apropriadas às questões fundamentais relacionadas com essa pesquisa, tais como ‘o que é conhecimento’. (2) Erros de representação do processo. Esses são erros relacionados à representação de um processo de negócio como uma instância da ontologia de processos de negócio. (3) Erros de desenvolvimento da metodologia. “Esses são erros relacionados à aplicação do desenvolvimento do quadro de referência de um processo de negócio”. (Dalmaris et al, 2007a, p.287)

Vale a pena destacar como Dalmaris et al, adotaram a metodologia

popperiana de resolução de problemas, ao aplicá-la ao processo de resolução de

erros do tipo 1, na ocasião da construção do modelo KBPI.

“(1) Problemas na definição do conceito de conhecimento e como o conhecimento pode ser encontrado em processos de negócio pertencem à primeira classe de erros. Foi determinado que as soluções (respostas ao problema básico de epistemologia) disponíveis na literatura não eram adequadas, uma vez que as definições ou explicações eram muito ambíguas para serem úteis na prática. Soluções para esse tipo de erros foram encontradas, subsequentemente, nos trabalhos de Karl Popper e foram adotadas no quadro de referência. Essas soluções se tornaram fundamentais para o resto do quadro de referência, já que tanto a ontologia do processo de negócio como o desenvolvimento da metodologia se basearam nelas”. (Dalmaris et al, p. 287)

Além da possibilidade de avaliação e eliminação do conhecimento vigente

pelo método de conjecturas e refutações, outra importante contribuição de Popper

ao modelo KBPI, se fundamenta na tese do terceiro mundo, ou seja, na defesa de

uma epistemologia sem um sujeito conhecedor. Entretanto, de acordo com

Dalmaris et al (2007b, p. 3-4) a contribuição fundamental de Popper reside na

definição do conhecimento como “soluções de problemas”, em oposição à

definição popular que descreve o conhecimento como “crenças verdadeiras

justificadas”. Dentro deste contexto argumentam que o conhecimento cresce

através de um ciclo continuamente repetido de suposição/teorização para construir

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 49: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

105

novos conhecimentos e testar estes conhecimentos contra uma realidade externa,

possibilitando a eliminação de erros de forma seletiva. Segundo Dalmaris et al,

uma das peças vitais dessa epistemologia é que alguns tipos de conhecimento

podem existir e persistir independente do “conhecedor”. Para Popper, o

conhecimento pode existir fora do cérebro humano num sentido objetivo (Popper,

1972, pp.73-74), em outras palavras, o conhecimento objetivo pode ser autônomo

e independente do conhecedor. E por causa dessa independência do conhecedor,

o conhecimento objetivo (ou explícito) pode ser submetido às mentes conscientes

e a uma crítica linguística e intersubjetiva, diferença crucial do conhecimento

tácito que não pode ser criticado (Popper, 1972, p.66). A qualidade do

conhecimento não está relacionada ao sujeito do conhecimento, mas ao nível com

que é testado ou verificado (criticado por seus erros potenciais pelo(s) seu(s)

usuário(s)).

A epistemologia de Popper também especifica o “lócus” do conhecimento,

que pode ser encontrado em três diferentes mundos ontológicos. O “mundo 1”

corresponde ao mundo físico e tudo que existe nele. O “mundo 2” representado

pelo mundo das nossas experiências pessoais subjetivas. E o “‘mundo 3” que

corresponde ao mundo do conteúdo lógico de coisas, como os livros e a memória

do computador (Popper, 1972, p.74). Dalmaris et al, não fazem distinção entre

dado, informação ou conhecimento. Segundo eles, dentro do paradigma

popperiano, dados e informações podem ser vistos como formas de conhecimento

menos integradas e testadas. Para eles o conhecimento é o único que torna

possível a interpretação, uma vez que envolve o como-conhecer (know-how)

interpretativo.

Portanto ao adotar a concepção de um terceiro mundo objetivo concebida

em Popper (1999, p. 109), Dalmaris et al afirmam ter obtido as ferramentas

conceituais adequadas ao desenvolvimento do modelo KBPI, e distinguem três

pontos importantes que integram as idéias de Popper ao modelo proposto:

“1. O conhecimento objetivo pode existir fora do cérebro e pode ser armazenado em ‘reservatórios’ de conhecimento. Portanto, a tecnologia pode ser usada para armazenar e transportar conhecimento do ‘mundo 3’. O conhecimento que pode existir independente e autônomo em formas objetivas é de grande valor para a gestão do conhecimento (KM). 2. O KBPI enfatiza o conhecimento objetivo em oposição ao subjetivo. Isso porque o conhecimento objetivo pode ser transferido e testado facilmente, enquanto o conhecimento subjetivo não apresenta esta

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 50: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

106

facilidade. Ainda assim, o conhecimento subjetivo, é reconhecido como importante. 3. O conhecimento do ‘Mundo 3’ é expresso linguisticamente. A linguagem é necessária para a transferência de conhecimento codificado de um conhecedor para outro, e deve ser usada com cuidado para assegurar a objetividade e clareza”. (Damaris et al, 2007b, p. 4)

Dalmaris et al (2007a, p.288) admitem preferência pelo racionalismo crítico

de Popper enquanto fundamentação epistemológica do modelo KBPI, e justificam

esta opção com base no extenso estudo comparativo entre teorias epistemológicas

publicado por Niiniluoto (1999)21. Segundo eles, a obra de Niiniluoto (1999)

oferece uma análise profunda e a justificativa para a adoção do “racionalismo

crítico”. Asseveram que no seu livro ele estuda detalhadamente um grande

número de epistemologias concorrentes, incluindo várias vertentes do

construtivismo adotadas por diversos gestores do conhecimento, avalizando a

epistemologia de Popper como um instrumento para a compreensão dos

fenômenos do mundo real. Neste entendimento Dalmaris et al (2007, p. 288)

reforçam a adoção da perspectiva popperiana para o desenvolvimento do modelo

KBPI.

Os artigos de Dalmaris et al (2007a, 2007b) colocam em evidência a

relevância da associação entre a epistemologia e a ciência organizacional,

ilustrando de forma exemplar como a filosofia da ciência de Popper disponibilizou

arcabouço conceitual importante para o desenvolvimento de um novo modelo

teórico orientado ao desenvolvimento de uma prática organizacional

fundamentada pela epistemologia, que visa ajudar as organizações a aprimorar o

desempenho de seus processos de negócio.

Outro exemplo de como a epistemologia de Popper tem ajudado a

desenvolver o pensamento crítico na ciência organizacional pode ser observado no

trabalho de Fontaine (2007), por intermédio do artigo “Cross-cultural

management: six perspectives” nos oferece outra interessante perspectiva sobre a

epistemologia de Popper. Em sua pesquisa Fontaine (2007, p. 125-134) faz

referência ao critério de demarcação e ao método de verificação de teorias

popperiano, ao ponderar sobre as diferentes abordagens possíveis para o

21 Para uma análise mais profunda e justificativa da abordagem escolhida por Dalmaris et

al, no desenvolvimento do modelo KBPI, ver Niiniluoto, I., Critical Scientific Realism, Oxford University Press: Oxford, 1999.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 51: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

107

“gerenciamento intercultural” (cross-cultural management)22. Destaca a

relevância das discussões acadêmicas em torno da disciplina do gerenciamento

intercultural, ao observar que quase todos os gestores, do CEO (Chief Executive

Office)23 até o supervisor, atuam como gerentes interculturais, e ainda que

entendam a relevância desta atuação poucos sabem, verdadeiramente, como agir

ao assumir esta função.

Fontaine (2007) principia seu artigo estabelecendo alguns pressupostos

relativos à abordagem tradicional das pesquisas sobre o gerenciamento

intercultural. Afirma que segundo esta perspectiva tradicional, diferentes valores

entre grupos conduzem a diferentes culturas, e que a mensuração do número de

problemas relacionados a sociedades culturalmente heterogêneas poderia ser feita

através do registro do número de distúrbios, de natureza étnica, num dado período

de tempo. Pela assunção destas premissas, Fontaine concorda que as sociedades

culturalmente mais homogêneas deveriam apresentar menos distúrbios raciais do

que sociedades culturalmente menos homogêneas. Fontaine estudou por sete anos

o gerenciamento intercultural na Malásia e apresentou um contra-exemplo a essa

teoria ao afirmar que a Inglaterra, da década de oitenta até 2001, vista como uma

sociedade culturalmente homogênea teve oito conflitos raciais, enquanto na

Malásia, vista como uma sociedade culturalmente heterogênea, não foi observado

nenhum conflito neste mesmo período. Assim sendo, Fontaine propõe entender tal

contradição a partir do estudo de seis teorias sobre o gerenciamento intercultural:

a abordagem clássica, antropológica, psicológica, estereotipada, gerenciamento do

conhecimento e sistemas de pensamento.

As questões levantadas por Fontaine (2007, p. 125-131) sobre cada uma

destas abordagens teóricas, se basearam no estudo de caso sobre o papel atribuído

a um gerente intercultural malasiano, cujas implicações relacionadas a cada uma

destas possíveis abordagens na pesquisa do gerenciamento intercultural, são

apresentadas como se seguem:

22 Segundo o IDG (Instituto de Desenvolvimento Gerencial)- http://www.institutoidg.org/ “Cross-Cultural Management” tem por objetivo ampliar os conceitos e processos de comunicação sob a ótica da globalização, traduzindo na prática as novas competências nas relações interpessoais e de negócios. 23 Dispensamos a tradução do termo CEO - Chief Executive Office, pois o termo, em inglês, costuma ser adotado pelos acadêmicos da administração para designar a pessoa com a mais alta responsabilidade ou autoridade numa organização.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 52: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

108

Abordagem Clássica – o gestor intercultura aceita a teoria de Hofstede

(1980)24, por acreditar que todos os malasianos compartilham o mesmo valor

cultural.

Abordagem Antropológica – o gestor intercultural não aceita a

generalização da cultura malasiana, proposta pelo modelo de Hofstede (1980),

considerando a diversidade proposta pela teoria geral da cultura, onde os gestores

interculturais devem se assemelhar mais aos antropólogos.

Abordagem Psicológica – o gestor intercultural seria capaz de conhecer e

modificar os fatores do contexto. Os fatores de contexto, ilustrados em Fontaine

(2007, p. 127) são; as políticas nacionais, organizacionais e fatores individuais, de

forma a minimizar as diferenças contextuais no ambiente de trabalho.

Abordagem Psicológica com foco em estereótipos – o gestor intercultural

age mais como um conselheiro psicológico, ajudando os membros da equipe a

identificar e modificar o estereótipo negativo que tem a respeito de outros grupos.

Abordagem Gerenciamento do Conhecimento – o gestor intercultural atua

como facilitador do processo de gerenciamento do conhecimento na medida em

que é capaz de transformar conhecimento tácito em explícito, conciliando as

diferenças culturais.

Abordagem Sistemas de Pensamento – o gestor intercultural passa a ter

como papel fundamental a capacidade de projetar ou reprojetar novos sistemas

organizacionais visando à melhoria das relações interculturais.

O aspecto mais relevante do artigo de Fontaine (2007, p.133) considerando

o objetivo desta dissertação, reside no tópico Limitações, ao salientar que todas as

abordagens anteriormente mencionadas permitem muitas críticas, e afirmar que

muitas teorias do gerenciamento intercultural não são “teorias boas” de acordo

com os critérios popperianos (2002)25.

Fontaine se refere ao critério de demarcação de Popper (2002), mesmo de

forma implícita, ao argumentar que boas teorias têm de ser “arriscadas”, ou seja,

elas devem mostrar se são verdadeiras ou falsas, uma teoria não arriscada se ajusta

24 Fontaine faz severas críticas aos pressupostos de Hofstede, G., Culture’s Consequences, Sage, CA: Thousand Oaks, 1980, ao constatar que a Malásia em 2005 era um país, cuja população era constituída por 60% de malasianos, 27% de chineses, 7% de indianos e outros grupos étnicos que coexistiam em um ambiente multicultural. 25 Fontaine faz alusão ao livro de Popper, Conjecture and Refutations, London: Routledge Classics, 2002.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA
Page 53: 4 Capítulo 4 - Teorias Organizacionais em Crise – … · enfatiza ainda a contribuição que correntes essenciais do pensamento filosófico ... teorias epistemológicas Ansoff

109

a qualquer conjunto de dados, não sendo possível dizê-la como verdadeira ou

falsa. Segundo Fontaine é fundamental encontrar o ponto fraco de uma teoria, e

cita Mackenzie e Afzalur Rahim (2003)26 ao assegurar que eventualmente todas as

teorias se provam erradas ou necessitam de reformulação. Em vez de tentar

justificá-la, a melhor maneira de aprimorar a teoria é encontrar onde ela falhou. A

falha, uma vez identificada, pode levar a reformulação da teoria. Pode-se ultimar

que Fontaine ao citar Popper procura evidenciar o valor da proposição de novas

teorias para o gerenciamento intercultural, que sejam passíveis de avaliação

segundo as regras metodológicas da epistemologia popperiana. Neste sentido a

lógica dedutiva de Popper parece ser uma via alternativa à construção de teorias

organizacionais mais progressivas como também afirma Camerer (1985) em seu

artigo Redirecting research in business policy and strategy, ao argumentar que a

teorização dedutiva pode ser a maneira mais útil de abordar as questões

organizacionais.

26 Mackenzie, K.D. and Rahim, M.A. (2003), ‘‘Strong inference and weak data’’, in Rahim, M.A., Golembiewski, R.T. and Mackenzie, K.D. (Eds), Current Topics in Management, Vol. 8, Transaction Publishers.

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710686/CA