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3/24/2016 Fugir da brasilidade - Guggenheim Blogs http://blogs.guggenheim.org/pt-br/guggenheim-ubs-map-pt/fugir-da-brasilidade/ 1/8 Demonstrators on Presidente Vargas Avenue in downtown Rio de Janeiro, June 20, 2013. Photo: Santiago García Um Brasil transbrasileiro (capaz de se guiar pelas novidades das regiões menos ouvidas do território), transcontinental (capaz de pensar seus destinos misturandose com os fluxos de toda América) e trans mundial (capaz de sair de sua própria plataforma continental para entrar em cooperação com o globo): eis a imagem do Brasil que sempre vi nos textos de Oswald de Andrade. Na iluminação antropofágica, o encontro com os outros começa antes de qualquer operação consciente de interceptálos, na variação microscópica dos corpos, onde os outros já estão dentro do eu e o eu já está dentro dos November 21, 2014 Demonstrators on Presidente Vargas Avenue in downtown Rio de Janeiro, June 20, 2013. Photo: Santiago García Navarro

 · 4. Comentários de toda espécie destacaram a quase total ausência de identificações partidárias nas manifestações, assim como a ubiquidade da bandeira nacional. Diversos

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Demonstrators on Presidente VargasAvenue in downtown Rio de Janeiro,June 20, 2013. Photo: Santiago García

Um Brasil trans­brasileiro (capaz de se guiar pelasnovidades das regiões menos ouvidas do território),transcontinental (capaz de pensar seus destinosmisturando­se com os fluxos de toda América) e trans­mundial (capaz de sair de sua própria plataformacontinental para entrar em cooperação com o globo): eis aimagem do Brasil que sempre vi nos textos de Oswald deAndrade. Na iluminação antropofágica, o encontro com osoutros começa antes de qualquer operação consciente deinterceptá­los, na variação microscópica dos corpos, ondeos outros já estão dentro do eu e o eu já está dentro dos

November 21, 2014

Fugir da brasilidadeINGLÊS | ESPANHOL | PORTUGUÊS

BY SANTIAGO GARCÍA NAVARRO

Demonstrators on Presidente Vargas Avenue in downtown Rio de Janeiro, June 20, 2013. Photo: Santiago García Navarro

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Navarro

Demonstrators on Presidente VargasAvenue in downtown Rio de Janeiro,June 20, 2013. Photo: Santiago GarcíaNavarro

outros. A negação dessa constituição afetiva, a política doscontornos impossíveis de serem transpostos sem aanuência do outro substancial, se correspondia com osujeito produzido na matriz colonial brasileira (e latino­americana), assim como com o euro­centrismo numsentido geral. Nesse contexto, a antropofagia é a mise enmonde de um sujeito capaz de devorar a matriz, seemancipando e, no mesmo movimento, emancipando oinimigo.

Mesmo que nos textos oswaldianos só se explicite comouma deglutição brasileira de Europa, tal posicionamento éum movimento des­brasilizante. Lida nos próprios termosdo manifesto de 1928, aquela linha que fala: “preguiçososno mapa­múndi do Brasil” anseia a transmutação do Brasilem modo­mundo, contra as diversas leituras quesustentam o Brasil como mundo­em­si, autossuficiente num eterno devorar­sedevorando a abundância euro­estadunidense.

2.1. Dias antes da passeata do dia 17 de junho de 2013, eu vinha brincando com ainversão de algumas alocuções características da fala dos brasileiros. Entendendo que amais monolítica delas – aquela que refere à “dimensão continental do Brasil” – serviacomo argumento inconsciente para sustentar a auto­referencialidade do território e,numa suposta série causal, a incapacidade de estabelecer relações com a Américahispano­falante, reformulei a frase apenas negando seu conteúdo: “Brasil não temdimensão continental”. Se afirma­la equivalia a invisibilizar o resto do continente, acasoinverter a frase podia fazer com que certas coisas no imaginário brasileiro perdessempeso, e outras, ganhar novas forças.

Um segundo cliché – “cada região do Brasil é um Brasil diferente” – me parecia tercausado um efeito distante da diversidade: ficar maravilhado pela própria riqueza(étnica, paisagística, cultural) implicava que o tamanho (a grandeza) do país resultavasuficiente para conter todas as diferenças necessárias à vida coletiva. Inverti, pois, afrase, e ficou assim: “As diferenças dentro de Brasil são menores do que assemelhanças”.

Um terceiro lugar comum assegura que “a causa da desconexão entre Brasil e o resto deLatino­América é a diferença linguística”. Minha inversão foi: “Para um brasileiro, nãoexiste língua mais fácil de aprender que o castelhano”. Argumentos vários colaboramcom a ideia de que os países hispano­americanos identificam­se por meio da língua, epor tanto os laços entre eles são mais fortes. Só com o ânimo de ofender esseargumento, eu podia responder com novos lugares comuns: então, por que a Bolívia nãotem relação cultural com seu vizinho Paraguai? E por que o Brasil tem mais vínculos coma França do que com Angola?

Colocadas uma seguida da outra, minhas três propostas mudavam dramaticamente aimagem do país: sem o peso da brasilidade, parecia mais fácil sair a percorrer ocontinente em toda sua dimensão.

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2.2. No dia 20 de junho de 2013, o cântico mais repetido nas ruas especulava com umimpossível: “Não vai ter Copa!” Foi em meio à passeata que percebi a solidariedade entreesse mecanismo de desativação e o que eu procurava com as inversões de frases, aoponto de me perguntar se a minha inquietação não tinha sido provocada pelos primeirose mais distantes estremecimentos que o movimento social poderia ter começado aexercer sobre os corpos antes de sua irrupção geral no dia 17. Ao final das contas, certosanimais tem a capacidade de perceber as vibrações dos terremotos momentos antesdestes surtarem.

3. Em seu pronunciamento do dia 21, a presidenta assegurou que o Brasil faria umagrande Copa em 2014, e pediu para a cidadania a maior boa vontade no acolhimento dosvisitantes. Um de seus argumentos foi que o país era o único que tinha participado detodas as copas –e que, por tanto, tinha sido acolhido em todo mundo­, além de terganhado cinco delas. Um segundo argumento apelava a “alma” e ao “o jeito de ser” dosnativos, procurando reafirmar nesse vasto depósito de lugares comuns que é a mitologianacional o que existe de inviolável na brasilidade. O recurso à identidade para salvar aCopa apresentava a participação brasileira no megaevento como uma decisão e umganho próprios, mascarando assim a estratégia da FIFA, que, como todos os consórciostransnacionais desde meados da década de setenta, e em conivência com o poder políticoe a participação de outras empresas, utiliza para suas operações as infraestruturas dosestados e os imaginários produzidos em torno deles.

4. Comentários de toda espécie destacaram a quase total ausência de identificaçõespartidárias nas manifestações, assim como a ubiquidade da bandeira nacional. Diversoscânticos, por sua vez, colocavam no centro dos discursos da rua uma frase elementar eirrebatível: “Sou brasileiro!” Contudo, não é de jeito nenhum evidente o que significavaser brasileiro naquelas circunstâncias. Só uma coisa podia se dizer: que um brasileirosem Copa é uma novidade radical.

O fato de alguns torcedores brasileiros, na semifinal da Copa das Confederações contraUruguai, no dia 26 de junho, terem levado cartazes com a legenda “Sem essa Copa nãofico”, assim como camisetas com as cores da seleção nacional (isso último, igual que nasmanifestações), só enfatiza a inconsistência da brasilidade desse momento: tanto suadefinição quanto seu modo de inserção no capital transnacional é uma questão disputadadiretamente nos corpos e em meio a uma altíssima volatilidade. Dito de outra forma: osentimento nacional já não é sublime.

O lema “Não vai ter Copa!” pareceu introduzir, ali onde as identificações com os códigosnacionais ainda fazem algum sentido, a possibilidade do impossível no plano daconstituição de uma comunidade. Não ter Copa significava negar a necessariedade daassociação entre a alegria do futebol e a lógica do ganho. Poderia implicar, por exemplo,no abandono dos afetos gerenciados como commodities pelo mercado transnacional.Nessa perspectiva, negar o inegável –o alicerce do ser comum­ era desvendar oabsolutamente negado e ir ao seu encontro. O mais acontecimental nos acontecimentosde junho foi, sem dúvida, a negação das impossibilidades brasileiras. O desafio abertonas ruas é pensar o impensável, e agir nos termos dessa impensabilidade.

5. A manifestação mais explícita e sistemática de um “fora” atuante dentro do Brasil nos

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últimos vinte anos tem sido as grafias­textos inscritas pelos pichadores nos muros dasprincipais cidades do país. A potência do fenômeno –já não tão irradiadora como em seumomento de emergência, na década de noventa­ funda­se em uma estranheza: aestrangeria do nativo.

A ilegibilidade da escrita dos pichadores é da mesma natureza que a ilegibilidade do risco(de serem espancados pela polícia, de morrer caindo de um prédio) que eles correm aoescrever, e que a ilegibilidade da violência que perpetram contra prédios públicos eprivados. Muito mais do que como favelados, como vândalos ou como artistas, ospichadores participam da cidade como espectros, espalhando um medo difuso, menosvinculado aos danos infligidos à propriedade que à sensação que tem os moradores dosprédios de uma ubíqua ameaça do desconhecido, precisamente porque o acionar dospichadores foge de qualquer interpretação. Mais tranquilizador seria que eles fossemcriminosos ou artistas tout court, ou do tipo de favelados que, na cidade, ganhamvisibilidade no carnaval ou nas notícias policiais.

Os textos e o contexto dos pichadores permanecem como sob um véu toda vez quequem está do lado de cá não consegue transpassa­lo e ver com a perspectiva que brindao lado de lá. Estrangeria e ilegibilidade juntam­se, em primeiro lugar, ali onde as açõesdos pichadores são tão ilegíveis para o brasileiro como podem sê­lo os códigos de umestrangeiro qualquer. Nacionalidade e proveniência tocam­se nesse ponto, de maneira talque a indistinção no caráter da proveniência relativiza o valor subjetivador danacionalidade: todos são estrangeiros e importam primeira e indistintamente como tais.

Em segundo lugar, estrangeria e ilegibilidade juntam­se no fato dos pichadores serempercebidos como não pertencentes a lugar nenhum. Eles escrevem num portuguêscríptico por conteúdo, tipografia e fragmentariedade, e seu lugar de aparição não é afavela, nem o museu, nem o muro autorizado (como no caso do graffiti). Em sua radicalcondição de estrangeiros, a forma de sua visibilidade reafirma o desejo de não serintegrados.

6. O sujeito da multidão é hoje estrangeiro em sua própria casa, diz Paolo Virno, porquejá não existem as comunidades substanciais que forneciam reparos contra aimprevisibilidade e a contingencia do mundo: “aquellos que no se sienten como en supropia casa, para orientarse y protegerse deben recurrir a los lugares comunes, o sea, alas categorías generales del intelecto lingüístico; en tal sentido, los extranjeros sonsiempre pensadores” (Virno, 30).

Nessa situação geral, diz Virno, se produz um dos fenômenos linguísticos típicos dascomunidades não substanciais contemporâneas: a substituição, na fala, dos lugaresespeciais (os topoi idioi de Aristóteles: modos de falar, vocabulários, repertóriostemáticos, tipos de argumentação próprios de cada âmbito específico da sociedade, comoo clube ou o partido político) pelos lugares comuns (os topoi koinoi, “formas lógicas elinguísticas de caráter geral”). Perante a percepção imediata e permanente dainstabilidade do mundo, o homem atual percebe que deve responder produzindo uma falasituacional altamente flexível. Só que, para garantir a comunicação entre pessoasquaisquer numa comunidade descaraterizada, é preciso então utilizar os topoi koinoi,única coisa que na fala é imediatamente comum.

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“Ellos afloran en la superficie como una caja de herramientas de inmediata utilidad. ¿Quéotra cosa son los lugares comunes sino el núcleo fundamental de la ‘vida de la mente’?[…] la ‘vida de la mente’ deviene en sí misma pública, ya que, al no disponer más decódigos ético­comunicativos ‘especiales’, sectoriales, se recurre a categorías generalespara manejarse en las más variadas situaciones. El no ‘sentirse en la propia casa’ y lapreeminencia de los ‘lugares comunes’ van de la mano. El intelecto como tal, el intelectopuro, deviene la brújula concreta”. (Virno, 28).

Talvez os pichadores tenham prefigurado a composição das novas subjetividades noBrasil. Não só porque a produção de pensamento dos estrangeiros permanentes(independentemente de onde estejam) já é universal, mas também por conta dacondição espectral dessa subjetivação. A espectralidade do estrangeiro permanente égritante em cidades como São Paulo, epicentro do levante disparado pelo Movimento doPasse Livre, que protestava contra o aumento em 20 centavos do valor da passagem doônibus urbano.

Essa espectralidade foi dissipada pelas passeatas dos dias 17 e 20 de junho. Assim como,antes, a submissão aos dispositivos de impacto quotidiano davam curso livre ao acionardo governo, assim formavam aos brasileiros no conhecimento desses mesmosdispositivos. Provavelmente foi essa a expressão mais clara do pensamento estrangeirodos que moram aqui, e que naqueles dias fez com que a estrangeria fosse visível dentrode casa, furando de outro modo a “dimensão continental do Brasil”.

7. Conectando a semana do dia 17 com acontecimentos recentes em outros países,Giuseppe Cocco refletia:

“a base social dessa produção de subjetividade é o novo tipo de trabalho que caracterizao capitalismo cognitivo. As redes que protestam e se constituem nas ruas de Madri,Lisboa, Roma, Atenas, Istambul, New York e agora de todas as cidades brasileiras sãoformadas pelo trabalho imaterial: estudantes, universitários, jovens precários,imigrantes, pobres, índios… ou seja, a composição heterogênea do trabalhometropolitano. […] O movimento foi mesmo pelos 20 centavos! Só que esse ‘pouco’ é narealidade ‘muito’. Por quê? Porque a questão dos transportes, e mais em geral dosserviços, é estratégica para o trabalho metropolitano. […] Os operários fordistas lutavampara reduzir a parte do horário que ia embutida como lucro nos carros que produziam; ostrabalhadores imateriais nas metrópoles desviam os slogans publicitários de umamontadora (‘Vem Pra Rua’) para re­significar os agenciamentos produtivos que sedesenham na circulação. Os operários fordistas lutavam contra o trabalho. Ostrabalhadores imateriais lutam no terreno da produção de subjetividade. É na circulaçãoque a subjetividade se produz e produz valor e renda”.

O trabalho imaterial ao qual Cocco se refere funda­se na vida da mente imediatamentepública na qual pensa Virno. E a publicidade da vida da mente já é mundial. Dado que osmodos de circular, trabalhar e fazer não param de se acelerar e hipervincular, oacontecido em junho passado no Brasil deveria ser entendido, também, como umaabertura massiva a fluxos mundializados. “Não vai ter Copa!” é, nesse sentido, umamensagem direta do Brasil para o mundo, falada com os topoi koinoi. (Estes fabricammensagens imediatamente reproduzíveis não só por serem imediatamente legíveis, mas

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também porque são imediatamente capturados pelos sistemas de transmissão).

8.1. Existe um confronto potencial entre dois tipos de lugares comuns: os topoi koinoiindispensáveis para guiarmos no posfordismo (eles mesmos sempre sujeitos de disputa)e os lugares comuns dos imaginários nacionais presos de si mesmos. Nessasdessubjetivações parece existir uma lógica de reciprocidade segundo a qual, quanto maisse sente a perda da nação como comunidade substancial, tanto mais são invocados oslugares comuns que asseguram imaginariamente o poder protetor dessa nação.

8.2. Os clichés da brasilidade são imagens fossilizadas na fala. Os topoi koinoi, pelocontrário, constituem faculdades linguístico­comunicativas comuns à espécie, composiçãomesma do general intellect (Virno, 35). Os clichés da brasilidade só podem serintroduzidos nesse general intellect com um efeito restritivo, na medida em que remetemàs impossibilidades da nação (agora subsidiária do capital transnacional) e nada podemaportar à comunidade que trabalha na coletivização dos usos comuns.

8.3. Os lugares comuns da brasilidade têm hoje tanta mais eficácia quanto mais fácilresulta desmonta­los. São as impossibilidades repetidas “dispositivamente” as queconformam, de fato, o sistema de auto­referencialidade. Assim como o dispositivo tornaimpensável o pensável, a inversão dessa lógica potencialmente desarma o dispositivo.

9. Ainda hoje a brasilidade se configura num triângulo constituído pelo Brasil, os EstadosUnidos e a Europa ocidental. Só que essa identificação, em meio aos fluxosmundializados, já não é estrutural. Contudo, ainda é maioritária e tende a evitar outrasidentificações. Se o Brasil sente a impossibilidade de se abrir a Latino­América, é porqueainda se alimenta (e não antropofagicamente) do que percebe como superior. E evita aigualdade só para manter a ilusão de uma superioridade perante os irremediavelmentepares. Mas o Brasil já foi furado pelo capital transnacional. E agora é furado pelosprotestos.

10. O Brasil já experimenta em sua fronteira com dez países hispano­americanosmúltiplos confins de inespecificidades e hibridações (sendo que o Brasil é o território dahibridação: mais um lugar comum, formulado nos principais centros urbanos por efeitode uma modernidade que foi apenas urbana). Para poder conferir a realidade do outro,as fronteiras apelam aos topoi koinoi, criando uma língua sem identidade que é oportunhol afetado por diversas línguas autóctones. A experiência da fronteira não é o quegarante, de fato, a abertura do Brasil aos vizinhos, mas se oferece como exemplo daquiloque foge ao ideal da brasilidade abrindo espaço potencial para um “Brasil trans­brasileiro”.

11. A espectralidade dos pichadores tem a ver com um fora que de dentro percebemosturvamente, com sensações misturadas. Mas esse fora é uma emancipação, precária,parcial e mudável como qualquer outra hoje. Como a dos pichadores, mas ao mesmotempo singular, a emancipação dos membros das novas classes médias brasileiras, oudos precários e marginais, é uma construção feita em meio a borrascas. Todos podemosa toda hora passar de espectros a heróis (mais dificilmente de heróis a espectros). Anossa falta de refúgios é o lugar, ao mesmo tempo, de nossa potência e de nossaimpotência.

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Mas os pichadores são também aqueles que não recorrem aos topoi koinoi. Elesintroduzem nas ruas uma escrita privada que se torna imediatamente pública por contade sua gritante mudez. Ao evitar os topoi koinoi, eles manifestam a sua impossibilidadede conversar com os brasileiros, a sua condição de alvos de uma xenofobia interna.Mesmo muda, essa escrita fala assinalando o modo em que o comum é roubado. Falanão por si mesma, mas por meio da gráfica, produzindo um inesperado deslocamentosemântico. O ilegível da pichação não tem a ver com o que não pode ser comunicado,mas com o que é propositadamente não transmitido. Ao experimentar seu ficar fora daconversa, o leitor público percebe que algo está sendo dirigido a ele. Nessa interrupçãoda comunicação, a utilização de paredes patrimoniais como suporte aprofunda agravidade da mensagem, estabelecendo a oposição entre legalidade da propriedade eilegalidade da denuncia.

12. Segundo Virno, Aristóteles distingue três topoi koinoi: a relação entre mais e menos,a oposição dos contrários e a categoria de reciprocidade (“se eu sou o pai dele, ele é meufilho”). Perante ao poder dos pichadores de fazer visível a cidade como espaço roubado,um dos recursos frequentes que descompõem os usos gramaticais do português do Brasilé a calma violência dirigida contra o segundo topós koinós aristotélico. Como no seguinteexemplo: “O maior problema brasileiro é sua histórica divisão em duas classes sociais.Ou não”.

O que essa inclusão do oposto na própria argumentação sustenta, de maneira velada, é aequivalência ontológica dos opostos. Não a fuga do binarismo, mas a anulação dodiferencial. O fatídico “ou não” anula todo “fora” dos termos propostos por quem outiliza, para se apropriar da totalidade da fala. Se os topoi koinoi são a estrutura mesmada linguagem, o patrimônio comum que permite a diferença, no uso do “ou não”, aviolência perpetrada contra o comum está na boca mesma do falante, que desse modomanda o interlocutor calar. Quem fala “ou não” não aceita o estrangeiro, nem a própriaestrangeria. Divide o espaço linguístico entre quem tem o direito de falar e que não otem.

13. “Os brasileiros não saem nas ruas para protestar”, costumava dizer um quinto lugarcomum. Mas em junho saíram, e nas passeatas, novos discursos da brasilidade entraramem disputa com os antigos. Mal entendido, o lema “Gentileza gera gentileza”, do ProfetaGentileza, só atualizava o mito da “brasilidade cordial”, asfixiando qualquer conflito comoverdoses de alegria apriorística. A sobreimpressão “Protesto gera mudanças”, comumnas passeatas de junho, não apagou o lema original: aproveitou seu formato (a grade) eseu fôlego para que a nova frase pudesse ser articulada. E não só não implicou nanegação da gentileza, mas a fortaleceu perante os perigos do presente.

14. Adriana Schneider Alcure, numa assembleia popular realizada no Rio no dia 21 dejunho de 2013, encerrou sua participação com uma análise do que ela chama de“tecnologia do carnaval nas ruas”, dizendo: “A potência do carnaval sempre foisubestimada como alienação e subaproveitada pelos foliões. A potência das organizaçõesdos blocos de carnaval finalmente pode ser muito mais do que já é. Arrisco dizer que opróximo carnaval será alguma coisa que jamais brincamos”.

Rio de Janeiro, um mês antes do carnaval de 2014

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Tropicologia de Gilberto Freyre

How have the idea, structure, and function ofpublic protest and “occupation” manifestedthemselves differently in the first years of thetwenty-first century century, and what rolemight art practice have to play therein?

Citas

– Coco, Giuseppe e Patrícia Facchin. “Revuelta brasileña: entrevista a Giuseppe Coco”,in: Lobo Suelto!, Buenos Aires, 23 de junho de 2013. [Traduzida do português porSantiago García Navarro] http://www.anarquiacoronada.blogspot.com.br/#!.

– Virno, Paolo. Gramática de la multitud. Para un análisis de las formas de vidacontemporánea. Buenos Aires: Colihue, 2003.

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