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4 Como os juízes tomam decisões moralmente carregadas? Analisando a hipótese realista a partir do modelo sócio- intuicionista de julgamento moral. No capítulo 2 foi visto que a teoria da decisão judicial sustentada pelos realistas poderia ser decomposta em uma hipótese de duas partes. A primeira parte consiste na proposição de que a maioria dos juízes tem uma inclinação para chegar a um determinado resultado antes de consultar os materiais jurídicos; a segunda parte consiste na proposição de que no contexto dos casos difíceis o juiz raramente terá dificuldade de encontrar a roupagem jurídica para a decisão tomada no vasto e complexo universo de materiais jurídicos existentes. Também foi visto que os casos difíceis do direito colocam o juiz numa posição em que os materiais jurídicos não são capazes de guiar a tomada de decisão. Nesses casos, o juiz exercerá a discricionariedade e integrará sua decisão com a consulta a materiais extrajurídicos. No capítulo 3 fiz uma breve revisão das duas principais linhas de investigação no domínio da psicologia moral. Apresentei a teoria dos estágios de desenvolvimento moral e o modelo sócio-intuicionista de julgamento moral. É chegado o momento de relacionar esses dados com o processo de tomada de decisão moral no contexto dos casos difíceis do direito. Aqui será desenvolvido o argumento de que a tomada de decisão judicial nos casos difíceis moralmente carregados tem estrutura semelhante àquela sugerida pelo modelo sócio- intuicionista no que concerne ao julgamento moral. Para conectar o modelo sócio-intuicionista com a hipótese realista, pretendo analisar algumas questões ligadas ao modelo por meio de uma incursão na literatura das ciências cognitivas. Especificamente, no que diz respeito ao primeiro e quarto elos do modelo, serão apresentados os problemas do processo dual. No que diz respeito ao segundo elo do modelo, serão apresentados os problemas do raciocínio motivado e do raciocínio post hoc. Argumentarei que esses elos do modelo sócio-intuicionista se relacionam diretamente com as

4 Como os juízes tomam decisões moralmente carregadas ... · De acordo com Haidt, pesquisas em psicologia social também revelam que a maioria dos julgamentos morais é automática

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Como os juízes tomam decisões moralmente carregadas?

Analisando a hipótese realista a partir do modelo sócio-

intuicionista de julgamento moral.

No capítulo 2 foi visto que a teoria da decisão judicial sustentada pelos

realistas poderia ser decomposta em uma hipótese de duas partes. A primeira parte

consiste na proposição de que a maioria dos juízes tem uma inclinação para

chegar a um determinado resultado antes de consultar os materiais jurídicos; a

segunda parte consiste na proposição de que no contexto dos casos difíceis o juiz

raramente terá dificuldade de encontrar a roupagem jurídica para a decisão tomada

no vasto e complexo universo de materiais jurídicos existentes. Também foi visto

que os casos difíceis do direito colocam o juiz numa posição em que os materiais

jurídicos não são capazes de guiar a tomada de decisão. Nesses casos, o juiz

exercerá a discricionariedade e integrará sua decisão com a consulta a materiais

extrajurídicos.

No capítulo 3 fiz uma breve revisão das duas principais linhas de

investigação no domínio da psicologia moral. Apresentei a teoria dos estágios de

desenvolvimento moral e o modelo sócio-intuicionista de julgamento moral. É

chegado o momento de relacionar esses dados com o processo de tomada de

decisão moral no contexto dos casos difíceis do direito. Aqui será desenvolvido o

argumento de que a tomada de decisão judicial nos casos difíceis moralmente

carregados tem estrutura semelhante àquela sugerida pelo modelo sócio-

intuicionista no que concerne ao julgamento moral.

Para conectar o modelo sócio-intuicionista com a hipótese realista,

pretendo analisar algumas questões ligadas ao modelo por meio de uma incursão

na literatura das ciências cognitivas. Especificamente, no que diz respeito ao

primeiro e quarto elos do modelo, serão apresentados os problemas do processo

dual. No que diz respeito ao segundo elo do modelo, serão apresentados os

problemas do raciocínio motivado e do raciocínio post hoc. Argumentarei que

esses elos do modelo sócio-intuicionista se relacionam diretamente com as

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questões levantadas pelo realismo jurídico: primeiro os juízes têm uma intuição

moral automática que causa um julgamento moral; em seguida, não tendo

condições de conscientemente acessar aquilo que causou o julgamento moral e já

sabendo o resultado a que desejam alcançar, eles procedem a uma busca enviesada

por premissas e evidências que deem suporte à decisão tomada, engajando-se em

uma argumentação post hoc com a finalidade de justificá-lo.

4.1

O problema do processo dual: a tomada de decisão é o resultado da

interação entre sistemas psicológicos distintos.

Como apontei acima, normalmente as teorias normativas da decisão

judicial são construídas a partir de visões pouco realistas da figura do juiz.

Pressupõe-se que o juiz é uma criatura de racionalidade quase ilimitada; que tem a

capacidade de “desligar” seus vieses e preconceitos, suas emoções. O juiz sempre

seria capaz de tomar decisões morais racionalmente construídas a partir de certos

dados mediante um processo controlado de inferência. Quando muito, reconhece-

se que o juiz é humano, falível e sujeito a variações emocionais, para em seguida

exigir dele uma racionalidade ilimitada. É como se os juízes agissem ou devessem

agir como o personagem Data do seriado de TV Jornadas nas Estrelas – A nova

geração. Data era um andróide que possuía um chip carregado de informações a

respeito das reações emocionais do seres humanos. Data tinha a faculdade de

ativar ou desativar o chip quando quisesse agir sem a influência de emoções. Essa

visão do juiz como um andróide tem, no mínimo, dois problemas.

O primeiro problema já foi mencionado no capítulo anterior (item 3.3).

Pesquisas em neurociências sugerem que flashes de afeto ou emoções são

essenciais para direcionar o julgamento moral. Para Jonathan Haidt, a “habilidade

de raciocinar combinada com a falta de emoções é perigosa” (HAIDT, 2012a:

62). Pense no caso dos psicopatas: está estabelecido na psicologia que os

psicopatas são pessoas racionalmente capacitadas 35 , porém emocionalmente

debilitadas e de comportamento antissocial. Para Robert Blair e seus

35 Isso explica a razão pela qual os psicopatas atingem altos níveis de desenvolvimento moral nos testes de Kohlberg, mas agem de maneira desastrosa em situações reais (HAIDT, 2001: 823-824).

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colaboradores, (BLAIR et al., 2006: 262) o componente emocional é crucial na

psicopatia. Os psicopatas têm reduzido sentimento de culpa e de empatia. As

evidências primárias advêm dos estudos de casos e da neurociência36. Este não é o

local para avaliar as possíveis implicações normativas que essas constatações

empíricas surtem na análise filosófica, mas parece que sugerir que o juiz deva agir

como o personagem Data para tomar uma decisão moralmente carregada pode

não ser a melhor estratégia. Essa é uma questão lateral para o problema discutido

neste trabalho.

O segundo – e principal – problema reside na racionalidade quase

ilimitada que opera como pano de fundo das teorias normativas da decisão

judicial. Nas ciências cognitivas, a visão de um ser humano dotado de

racionalidade ilimitada vem sendo contestada desde a década de 1950. Não é que

as pessoas sejam irracionais; elas simplesmente não são completamente racionais

(STERNBERG e STERNBERG, 2012: 489 e ss.). Teorias tradicionais como a do

homem econômico e da expectativa de utilidade subjetiva se revelam

insatisfatórias para descrever adequadamente a atividade de julgamento e tomada

de decisão que as pessoas desempenham no cotidiano.

Na realidade, as pessoas não agem somente movidas por emoções,

intuições, ou razões. Durante muito tempo se acreditou que o pensamento humano

e que a solução de problemas se dava apenas no nível da consciência e que era o

produto do sistema da linguagem (GAZZANIGA, 1985: 4). No entanto, aos

poucos essa posição passou a ser desacreditada em razão de robusta evidência

empírica em favor de uma concepção de organização cerebral modular: o cérebro

humano se organiza dividido em unidades funcionais relativamente independentes

que trabalham paralelamente (GAZZANIGA, 1985: idem). Normalmente, o

trabalho de solução de problemas desempenhado por esses módulos ocorre

apartado de nossa consciência verbal. Michael Gazzaniga esclarece que isso não

significa que tais atividades estejam fora do nosso alcance de identificá-las, isolá-

36 BLAIR (2008), sugerindo existir uma forte conexão entre fatores genéticos e a disfunção emocional, sustenta que os psicopatas apresentam disfunções na amígdala e no córtex pré-frontal ventromedial.

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las e compreendê-las, porque elas operam paralelamente à nossa consciência e

com ela contribuem de maneira identificável (1985: idem).

Embora a questão da modularidade massiva seja controvertida no domínio

das ciências cognitivas (HAIDT e BJORKLUND, 2008: 204), as descobertas

reportadas por Gazzaniga abriram o caminho para as teorias de processo dual, de

acordo com as quais o pensamento e julgamento são operados por sistemas

distintos às vezes chamados de implícito e explícito, intuitivo e deliberativo, ou

sistema 1 e sistema 2 (EVANS, 2003; STANOVICH, 2010; CUSHMAN,

YOUNG, e GREENE, 2010). Essa hipótese dual é amplamente aceita nos campos

da psicologia social e cognitiva (HAIDT, 2001: 819). As características dos

sistemas serão descritas a seguir.

O sistema intuitivo não é propriamente um único sistema, mas um

conjunto de subsistemas que operam com certa autonomia (EVANS, 2003: 454).

Dentro desse sistema estão inseridos programas inatos de comportamentos

instintivos. Tarefas importantes como reconhecimento facial, propriocepção,

percepção de profundidade visual, resolução de ambiguidades linguísticas etc. são

desempenhadas por esse sistema (STANOVICH, 2010: 128). O sistema intuitivo é

automático e se caracteriza por operar rapidamente, sem esforço, de maneira não

intencional, e inconsciente. Apenas seu produto final chega ao nível da

consciência (EVANS, 2003: 454).

Enquanto o sistema intuitivo é geralmente descrito como uma forma de

cognição universal compartilhada entre seres humanos e os outros animais,

considera-se que o sistema deliberativo evoluiu mais recentemente e é

exclusividade dos seres humanos. O sistema deliberativo é relativamente lento,

esforçado, intencional, controlável e consciente. Seu uso demanda atenção, e

atenção é um recurso limitado. Uma das principais funções do sistema

deliberativo é passar por cima do sistema intuitivo e de suas desvantagens.

Também é o sistema deliberativo que viabiliza o pensamento “abstrato-hipotético”

(EVANS, 2003: 454), tornando possível lucubrarmos sobre a probabilidade de

ocorrência de eventos futuros, suas causas e consequências. Evans afirma: “Não

podemos, por exemplo, aprender pela experiência como evitar desastres como

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uma guerra nuclear ou os efeitos de aquecimento global descontrolado” (2003:

idem).

Haidt esclarece que o sistema 1 surgiu primeiro na evolução (filogenia), se

desenvolve primeiro na mente humana (ontogenia), é acionado mais rapidamente

em julgamentos em tempo real, e é mais poderoso e irrevogável quando os dois

sistemas entram em conflito (HAIDT, 2001: 819). Isso teria sido confirmado por

pesquisas destinadas a apurar os efeitos das avaliações automáticas. Por exemplo,

pesquisas revelaram a influência desempenhada pela apresentação de brevíssimos

flashes (até subliminares) de palavras afetivamente carregadas, expressões faciais,

e fotografias de pessoas ou animais, no tempo de avaliação subsequente de objetos

apresentados logo em seguida (HAIDT, 2001: idem).

De acordo com Haidt, pesquisas em psicologia social também revelam que

a maioria dos julgamentos morais é automática. Pesquisas que examinam o modo

como as pessoas formam atitudes em relação às outras geraram as principais

evidências (HAIDT, 2001: 819-820). Deliberar, raciocinar sobre o mundo social

com o qual alguém interage é tarefa que depende de duas condições: (i) que a

pessoa tenha acesso à informação correta e relevante; e (ii) que a pessoa tenha

recursos mentais necessários e tempo para processar informações (ARONSON,

2012: 118). O problema é que essas duas condições quase nunca estão presentes

no cotidiano. De um lado, Daniel Kahneman reuniu uma série de evidências

empíricas para afirmar que nossa convicção de que o mundo faz sentido repousa

em nossa habilidade quase ilimitada de ignorar nossa ignorância (KAHNEMAN,

2011: 201). De outro lado, o mundo social exige tamanha quantidade de

processamento de informação e tomada de decisão que é inviável que as pessoas

se engajem a processar informação e tomar decisão de maneira controlada e

deliberada em todas as situações (ARONSON, 2012: 118).

Para lidar com o problema da escassez de tempo, de informação e de

recursos mentais, as pessoas empregam certas estratégias simplificadoras que

otimizam a tomada de decisão, mas, por outro lado, aumentam as chances de erro

(ARONSON, 2012: 118-119). Essas estratégias são chamadas de heurísticas de

julgamentos e sujeitam as pessoas a vieses cognitivos inconscientes e

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involuntários. Uma delas é a heurística de atitude. Em uma definição, atitude é

uma forma especial de crença que inclui componentes emocionais e avaliativos;

uma avaliação armazenada (bom ou ruim) de um objeto (ARONSON, 2012: 136).

Como essas atitudes se formam? Aqui entram em cena as pesquisas relatadas por

Jonathan Haidt:

“People form first impressions at first sight (Albright, Kenny, & Malloy, 1988), and the impressions that they form from observing a ‘thin slice’ of behavior (as little as 5 s) are almost identical to the impressions they form from much longer and more leisurely observation and deliberation (Ambady & Rosenthal, 1992). These first impressions alter subsequent evaluations, creating a halo effect (Thorndike, 1920), in which positive evaluations of nonmoral traits such as attractiveness lead to beliefs that a person possesses corresponding moral traits such as kindness and good character (Dion, Berscheid, & Walster, 1972). People also categorize other people instantly and automatically, applying stereotypes that often include morally evaluated traits (e.g., aggressiveness for African Americans; Devine, 1989)” (HAIDT, 2001: 820).

Essas pesquisas ilustram o tipo de operação que ocorre no primeiro elo do

modelo: o elo do julgamento intuitivo. Haidt também recorre às pesquisas ligadas

à persuasão para esclarecer uma forma de operação do quarto elo, isto é, o elo da

persuasão social (HAIDT, 2011: 820). Como visto, o quarto elo do modelo

decorre do reconhecimento de que também há “meios de persuasão que não

envolvem fornecer razões de qualquer tipo” (HAIDT e BJORKLUND, 2008:

192). Haidt menciona interessantes pesquisas conduzidas por Shelly Chaiken, que

identificou a heurística de julgamento “concordo com pessoas que eu gosto”:

“If your friend is telling you how Robert mistreated her, there is little need for you to think systematically about the good reasons Robert might have had. The mere fact that your friend has made a judgment affects your own intuitions directly, illustrating the social persuasion link (Link 4). Only if the agreement heuristic leads to other conflicts (e.g., if Robert is a friend of yours) will your sufficiency threshold be raised above your actual level of confidence, triggering effortful systematic processing (Links 5 and 6) to close the gap” (HAIDT, 2001: 820.

Essas pesquisas mostram a presença marcante dos processos automáticos

na cognição social. Como visto acima, uma teoria de processo dual é capaz de dar

conta desses dados empíricos. No campo da psicologia moral, isso significa que

os julgamentos morais seriam o resultado da interação e competição entre esses

dois sistemas psicológicos distintos: o sistema intuitivo e o sistema deliberativo

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(CUSHMAN, YOUNG, e GREENE, 2010: 47-49). O modelo sócio-intuicionista

admite a existência de um sistema psicológico deliberativo, mas atribui primazia

ao sistema intuitivo no processo causal de formação do julgamento moral

(HAIDT, 2001: 818/820; ver também DAMASIO, 2005: 53). No entanto, isso não

deve levar à apressada conclusão de que as pessoas não sejam capazes de se

engajar em deliberação moral significativa (HAIDT e BJORKLUND, 2008: 181).

Tratando-se de uma questão de organização da mente humana, a hipótese

da modularidade ou da organização em sistemas de processamento de informação

e de tomada de decisão independe do contexto: as duas formas gerais de cognição

descritas pelos sistemas 1 e 2 operam no contexto social, seja ele moral ou

jurídico. Juízes também processam informação e tomam decisões a partir do

trabalho desempenhado pelos sistemas 1 e 2. Contudo, isso não significa que

nesses dois contextos a operação dos elos do modelo seja idêntica. A seguir,

pretendo elaborar algumas ideias sobre como os elos do julgamento intuitivo e da

persuasão social funcionam no contexto do direito.

Para analisar as possíveis relações entre o elo do julgamento intuitivo e a

atividade de tomada de decisão judicial, tentarei identificar as diferenças mais

salientes acerca dos casos enfrentados pelo juiz e do tipo de cognição deflagrada –

se automática ou deliberada. Lembre que a hipótese de que há dois tipos de

sistemas de processamento de informação na mente humana é abrangente, mas o

modelo sócio-intuicionista está interessado nas operações desses sistemas no

contexto da prática da moralidade. Examinarei as possibilidades de tomada de

decisão judicial no contexto dos casos difíceis, relacionando-as com o elo do

julgamento intuitivo, mas antes examinarei o tipo de cognição deflagrada no

julgamento de casos fáceis.

Num caso fácil, é possível que o processamento da informação se dê de

maneira intuitiva e automática, mesmo que essas intuições estejam fundadas no

conhecimento do direito. Como lembra Frederick Schauer: “Um palpite ou uma

intuição, afinal, pode ser um palpite juridicamente informado ou uma intuição

baseada no conhecimento do direito” (2009a: 128, tradução livre). A decisão é

tomada de maneira tentativa, ocorrendo em seguida uma busca no ordenamento

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jurídico pela regra que embasara a intuição. Também é possível especular sobre

uma segunda situação na qual o juiz não tem o conhecimento momentâneo sobre a

resposta que o direito oferece a certo problema. Nesse caso, o processamento das

informações relevantes será deliberado e esforçado. Após consultar os materiais

jurídicos disponíveis, o juiz encontrará a solução para o caso, mas isso não

significa que ele terá solucionado um caso difícil – não é o tipo de cognição

empregado pelo juiz que define a natureza do caso examinado.

Nos casos difíceis moralmente carregados, o juiz se verá diante dos

problemas relacionados no item 2.4, não encontrando material jurídico apto a

servir, por si só, como guia da tomada de decisão. Parece que nesses casos a

decisão inexoravelmente será tomada a partir de critérios extrajurídicos37, mas

isso nada diz sobre o tipo de sistema de processamento que entra em cena. Não

pode ser descartada a possibilidade de o juiz conscientemente identificar o caso

difícil e se engajar na busca por uma solução a partir da superação deliberada de

suas próprias intuições ou pelo acionamento de novas intuições ou pela

modificação das já existentes. Essa atividade poderia ser reportada aos elos 5 e 6

do modelo sócio-intuicionista: o elo do julgamento deliberado e o elo da reflexão

em contexto privado.

Como visto no capítulo anterior (item 3.3), o modelo sócio-intuicionista

tenta descrever os processos individuais e sociais que entram na linha causal de

tomada de decisão moral. Os dois últimos elos do modelo dizem respeito aos

processos deliberativos realizados privativamente. O elo do julgamento deliberado

sugere que as pessoas são capazes de superar suas intuições iniciais por força da

reflexão. No entanto, Haidt supõe que esse tipo de atitude é raro, além de ser

possível que a pessoa verbalize o resultado do julgamento deliberado, mas se

mantenha presa ao julgamento intuitivo. O elo da reflexão em contexto privado

sugere que as pessoas podem acionar novas intuições ou modificar as já existentes

37 É verdade que um jusnaturalista como Ronald Dworkin afirmaria que o domínio da filosofia moral e política entrariam em cena para fornecer aos juízes materiais que ele, Dworkin, considera jurídicos, próprio do direito. Nesse sentido, a decisão judicial não recorreria a critérios extrajurídicos. Não obstante, veja que o famoso debate jusnaturalismo versus positivismo jurídico não tem qualquer influência no argumento ligado à investigação da psicologia da decisão judicial em si. Portanto, um leitor partidário do jusnaturalismo pode continuar lendo o texto fazendo as adaptações que considerar relevantes para adequá-lo à sua teoria.

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por meio da reflexão em torno de um problema a partir de estratégias específicas

como a adoção da perspectiva do outro.

Pensando no contexto dos casos difíceis do direito, sem dúvida é possível

que o juiz tome uma decisão moralmente carregada após séria deliberação em

torno de suas intuições iniciais, superando-as; também é possível que o juiz acione

novas intuições ou modifique intuições existentes por força da deliberação privada

a partir de estratégias famosas como o role-taking. Esse parece ser um cenário

propício à ocorrência de uma efetiva ponderação de interesses na forma como

sugerida pela academia brasileira. No entanto, descobrir se eles realmente se

engajam nesse tipo de deliberação descrita nos elos 5 e 6 é uma questão empírica.

Acredito que o elevado volume de trabalho a que os juízes estão submetidos reduz

as chances de ocorrência da deliberação moral descrita nos elos 5 e 638 e 39. É mais

provável que essas estratégias sejam adotadas pelos juízes em certos casos,

deixando em aberto uma série de outros casos que são decididos por processos

automáticos.

Na maioria das vezes entra em cena o elo do julgamento intuitivo, que

pode ser assim conectado com o direito: ao se depararem com os elementos de

uma demanda moralmente carregada, os juízes veriam surgir na consciência, ou

na margem da consciência, um sentimento avaliativo sobre o caso como um todo,

sem qualquer consciência de se ter passado pelas etapas de busca e balanceamento

de evidências, ou pela inferência controlada de uma conclusão. Esse flash de

intuição causaria a experiência na consciência de uma condenação ou

condecoração de uma das partes incluindo uma crença na correção ou incorreção

da decisão. Esse é o julgamento moral. Tudo acontece de maneira rápida e

automática, precedendo à consulta dos materiais jurídicos.

38 É importante deixar claro que esse tipo de hipótese está longe de representar uma crítica ou avalição das faculdades mentais dos juízes, da forma como organizam os trabalhos etc. A afirmação não tem caráter avaliativo; e tem um sentido muito limitado que só pode ser entendido nestes termos: dado o elevado volume de trabalho a que se sujeitam diariamente, os juízes não têm a oportunidade de se engajarem no tipo de deliberação moral que exija o transcurso do processo multifásico já descrito nesta pesquisa. 39 Pense no elevado volume de trabalho dos ministros do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Em entrevista concedida à Revista Veja, o ex-Presidente do STF, Ministro Cezar Peluso, declarou de maneira categórica: “É humanamente inconcebível para um ministro trabalhar em todos os processos que recebe. Ninguém dá conta de analisar 10.000 ações em um ano”.

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As questões discutidas acima sugerem que há peculiaridades no ambiente

jurídico que não estão presentes no ambiente de julgamento moral cotidiano. Mas

isso não parece justificar a conclusão de que o primeiro elo do modelo sócio-

intuicionista não possa ser tomado como paradigma relevante para a compreensão

da tomada de decisão judicial no contexto dos casos difíceis moralmente

carregados do direito. Visto isso, já é possível avançar para a análise do papel do

elo da persuasão social no contexto do direito.

É lugar comum na teoria do direito constitucional e também do direito

processual civil afirmar-se que, pelo fato de o Poder Judiciário estar incumbido de

solucionar os conflitos de interesse e até mesmo exercer o controle da atividade

estatal (seja por ato da Administração, seja por ato do Poder Legislativo), a ele são

estabelecidas certas garantias que asseguram independência em relação aos

demais poderes e de imparcialidade em relação às partes (MENDES, COELHO e

BRANCO, 2008: 932; FERREIRA FILHO, 2009: 246-253; SILVA, 2011: 588-

592). A ideia de independência diz respeito ao distanciamento dos juízes em

relação a qualquer outra autoridade pública, inclusive judiciária, e a qualquer tipo

de pressão individual ou coletiva que possa comprometer sua imparcialidade

(GRECO, 2005: 251-253). Já a ideia de imparcialidade diz respeito ao

distanciamento ou indiferença do juiz em relação às partes e seus interesses em

disputa. É essa indiferença do Estado-juiz em relação ao resultado de sua

atividade que diferencia a jurisdição da administração, que é orientada a certos

fins (GRECO, 2005: 231-234).

É difícil apurar até que ponto essas garantias normativas dão forma à

complexa e matizada realidade da prática judiciária, mas seria leviano ignorar que

os juízes se preocupam com sua independência funcional e com sua

imparcialidade. Do ponto de vista teórico, é possível formular a hipótese de que

essas peculiaridades institucionais e pessoais tornam os juízes menos suscetíveis a

certas heurísticas de julgamento típicas da interação social. Por exemplo, talvez

um juiz que conscientemente dê valor à sua independência funcional e à sua

imparcialidade seja menos suscetível à opinião alheia, à heurística de julgamento

“concordo com pessoas que eu gosto”.

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No entanto, isso não explica como juízes, às vezes, se colocam em

ambientes política e moralmente polarizados. Pense no famoso embate entre, de

um lado, partidários do garantismo penal e, de outro lado, partidários do

repressivismo penal – discussão em torno dos limites do poder estatal de

criminalizar condutas (LOPES JUNIOR, 2006). Juízes costumam manter posições

fortes acerca desse debate40. Juízes também formam associações desvinculadas de

interesses corporativos e se engajam diretamente em discussões morais e políticas,

como é o caso da Associação Juízes para a Democracia (AJD). É teoricamente

plausível a ideia de que a interação social nesses ambientes altamente polarizados

seja significativa. Juízes andam e se relacionam com pessoas com quem

concordam.

Outro argumento que pode ser sustentado a favor do elo da persuasão

social diz respeito às heurísticas de julgamentos em si: elas sujeitam as pessoas a

vieses cognitivos inconscientes e involuntários. Exatamente porque esses vieses

não emergem ao nível da consciência é que talvez não se justifique acreditar na

diminuição do papel do elo da persuasão social no contexto do direito. Por mais

que se esforcem para manter a reputação de independência e de imparcialidade, é

possível que os juízes não percebam que estão fazendo julgamentos baseados em

atalhos mentais inconscientes e involuntários que operam automaticamente no

contexto das interações sociais nas quais se envolvem.

Assim como se deu em relação ao elo do julgamento intuitivo, as questões

suscitadas acima sugerem que há peculiaridades no ambiente jurídico que não

estão presentes no ambiente de julgamento moral cotidiano. Mas não ficou claro

se essas peculiaridades alteram o nível de eficácia que o quarto elo (persuasão

social) tem na dinâmica do modelo sócio-intuicionista analisado no contexto da

tomada de decisão judicial de casos difíceis moralmente carregados. Somente uma

investigação mais profunda seria capaz de revelar em que medida a interação

social pesa no julgamento moral no contexto jurídico.

40 É o caso do ex-desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Geraldo Prado (PRADO, 2006).

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Em ambos os cenários (julgamento intuitivo e persuasão social), o juiz

sabe que tem o dever de justificar as decisões, ainda que não saiba como as

alcançou. A Constituição brasileira exige que o juiz apresente fundamentação

construída a partir de materiais jurídicos existentes (art. 93, inciso IX). Portanto, a

partir do momento em que o juiz ganha consciência da decisão moral e crê na sua

correção, ele se vê diante da necessidade de justificá-la. Mas isso pode pressioná-

lo a buscar no ordenamento jurídico o primeiro farrapo de norma que embase

obliquamente a decisão tomada, o que leva à seguinte questão: que tipo de

raciocínio é desenvolvido pelo juiz? Seria do tipo desenvolvido por um cientista

na busca da verdade ou se aproximaria do tipo de raciocínio desenvolvido por um

advogado que procura razões para defender o ponto de vista de seu cliente?

Essas questões serão examinadas no tópico a seguir.

4.2

O problema do raciocínio motivado: a ubiquidade do viés

confirmatório.

O item anterior apresentou a hipótese segundo a qual a mente humana

possui módulos de processamento de informação funcionalmente especializados

que operam de maneira paralela e relativamente independente. Viu-se que o

sistema 1 processaria informações de maneira rápida e automática, informações

essas ligadas tanto aos comportamentos instintivos de manutenção de estados

corporais (propriocepção) quanto à percepção do meio social (por exemplo,

julgamento moral). Também foi visto que o sistema 1 antecede o sistema 2 do

ponto de vista da evolução (filogenia) e do desenvolvimento (ontogenia). Para

introduzir o estudo da relação entre o sistema 1 e o sistema 2 é necessário fazer

mais alguns esclarecimentos sobre esses dois sistemas de processamento de

informação.

Os processos automáticos vêm operando a vida humana e a vida dos

animais por 500 milhões de anos, e são muito bons no que fazem (HAIDT, 2012a:

45). Quando o ser humano evoluiu e passou a contar com a capacidade de

linguagem e de raciocínio, o cérebro não se reajustou para entregar ao novo e

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inexperiente sistema 2 a condução da vida humana (HAIDT, 2012a: 45-46). Sem

dúvida que importantes funções se tornaram possíveis graças ao sistema 2. Já

mencionei que o sistema 2 viabilizou o pensamento abstrato-hipotético. O sistema

2 permite ao ser humano dar sentido ao mundo físico por meio do raciocínio e da

tentativa de descobrir a verdade.

Mas a situação muda quando se analisa a atuação do sistema 2 no mundo

social. Nele as aparências são muito mais importantes do que a verdade (HAIDT,

2012a: 75) e as pessoas agem como políticos intuitivos, empenhando-se para

manter uma identidade moral atraente para os outros. Jonathan Haidt cita a

pesquisa de Philip Tetlock sobre accountability 41 , na qual as pessoas são

solicitadas a resolverem problemas e tomarem decisões. Alguns dos participantes

são avisados que terão que explicar suas decisões a outra pessoa (ou seja, parte do

que Tetlock pensa sobre accountability). Outros participantes sabem que não terão

que se explicar. Tetlock descobriu que as pessoas pensam de maneira mais

sistemática e autocrítica quando sabem de antemão que terão que se explicar para

alguém:

“Tetlock found that when left to their own devices, people show the usual catalogue of errors, laziness, and reliance on gut feelings that has been documented in so much decision-making research. But when people know in advance that they’ll have to explain themselves, they think more systematically and self-critically. They are less likely to jump to premature conclusions and more likely to revise their beliefs in response to evidence” (HAIDT, 2012a: 75-76).

Não obstante, a ideia de accountability não leva necessariamente a um tipo

de raciocínio cuidadoso orientado à verdade. Para Tetlock, existiriam dois tipos de

raciocínio cuidadoso: pensamento exploratório, que seria uma aprimorada

consideração de pontos de vista alternativos; e o pensamento confirmatório, que

seria uma tentativa enviesada de racionalizar um ponto de vista específico. O

problema é que o pensamento exploratório dependeria de condições que na

maioria das vezes não se verificam, de modo que o pensamento confirmatório

ocorreria de maneira mais abrangente: “People are trying harder to look right than

41 A tradução mais imediata do termo accountability o liga à noção de responsabilidade, mas a forma como Tetlock emprega a expressão parece aproximá-la da ideia de exame minucioso, de inquirição.

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to be right” (HAIDT, 2012a: 76). Em suma, para Tetlock, o raciocínio consciente

normalmente é empregado com a finalidade de persuadir e não de descobrir a

verdade.

Portanto, é possível responder à pergunta formulada no final do tópico

anterior: as evidências sugerem que nos casos difíceis moralmente carregados os

juízes desenvolveriam raciocínio semelhante ao de um advogado que procura

razões para defender o ponto de vista de seu cliente. O sistema 1 tomaria a decisão

e o sistema 2 se engajaria no pensamento confirmatório necessário para encontrar

elementos que tornem essa decisão aceitável perante as partes e a sociedade.

Para compreender como isso ocorre é necessário investigar o fenômeno do

viés confirmatório. O trabalho de Raymond Nickerson (1998) é referência no

assunto. Viés confirmatório é termo que conota a persistente inclinação

involuntária que as pessoas têm ao angariar e lidar com evidência na deliberação

ou argumentação para reforçar, de maneira inapropriada, hipóteses ou crenças

cuja verdade está em questão (NICKERSON, 1998: 175). O fenômeno está em

toda parte. Nickerson lista uma série de exemplos concretos de manifestação do

viés confirmatório na vida real: ciência, medicina, justificação de políticas

públicas, e até a deliberação judicial etc. (1998: 189-197).

Há pelo menos duas hipóteses que tentam explicar os resultados dos

experimentos realizados para estudar o viés confirmatório. A primeira tenta

explicar o fenômeno como uma questão motivacional: as pessoas têm um desejo

de acreditar em certas proposições, de modo que certas crenças são influenciadas

por suas preferências (NICKERSON, 1998: 197). A segunda hipótese tenta

explicá-lo como o resultado de uma falha cognitiva, uma falha de raciocínio nas

pessoas (NICKERSON, 1998: 197-199). Muitas das explicações do fenômeno se

concentram na limitação cognitiva como fator causal, mas Nickerson considera

provável que ambas as hipóteses entrem em jogo e que cada uma pode mediar

efeitos da outra (1998: 198).

O viés confirmatório se manifesta por meio de certos mecanismos. Ziva

Kunda (1990: 493) faz referência à busca enviesada de memória (biased

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searching of memory): a motivação afeta o raciocínio, mas o faz através de

estratégias cognitivas para acessar, construir e avaliar crenças. A motivação

funcionaria como um gatilho, um deflagrador do funcionamento dos processos

cognitivos que levam à conclusão desejada (KUNDA, 1990: 493). Ao elaborar a

ideia, a pesquisadora afirmou:

“I have proposed that when one wants to draw a particular conclusion, one feels obligated to construct a justification for that conclusion that would be plausible to a dispassionate observer. In doing so, one accesses only a biased subset of the relevant beliefs and rules” (KUNDA, 1990: idem).

Nickerson (1998: 198) também menciona a tendência que as pessoas têm

de angariar informação sobre apenas uma hipótese por vez; e ao fazê-lo, elas

mostram a tendência de considerar apenas a possibilidade de ela ser verdadeira ou

falsa, mas não de considerar ambas as possibilidades simultaneamente –

circunstância que ensejaria maior cautela na fixação da crença em torno da

hipótese. Tipicamente, há diversas hipóteses plausíveis para explicar certas

observações (NICKERSON, 1998: 177), mas a atenção direcionada a uma única

hipótese acaba reforçando-a mesmo que seja falsa:

“An incorrect hypothesis can be sufficiently close to being correct that it receives a considerable amount of positive reinforcement, which may be taken as further evidence of the correctness of the hypothesis in hand and inhibit continued search for an alternative” (NICKERSON, 1998: idem).

Outro mecanismo do viés confirmatório é o tratamento preferencial de

evidências que dão suporte às crenças existentes (NICKERSON, 1998: 178). As

pessoas têm a tendência de dar mais peso às informações favoráveis do que

àquelas desfavoráveis às suas crenças e opiniões. Isso é visto na tendência das

pessoas de lembrar ou ser capaz de produzir razões favoráveis ao seu lado e de

não lembrar ou ser incapaz de produzir razões desfavoráveis em torno de uma

questão controvertida. Esse fenômeno já foi chamado de my-side bias.

Esses fenômenos se ligam à estratégia de teste positivo: as pessoas tendem

a buscar exemplos ou dados que confirmem a hipótese em consideração. Muitas

pessoas não entendem o conceito de falseamento. E o problema é que esse tipo de

estratégia de teste positivo diminui as chances de se descobrir que uma hipótese

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incorreta é, de fato, incorreta. Kunda esclarece que esse tipo de mecanismo foi

identificado na solução de problemas de lógica, na tentativa de descobrir regras

governando a categorização de objetos, na avaliação de correlações, e, mais

importante, na avaliação de pessoas (KUNDA, 1990: 494).

Além disso, as ideias de primacy effect e belief persistance estão bem

documentadas na psicologia. Nickerson explica que quando uma pessoa deve

extrair uma conclusão a partir de informação adquirida e integrada no tempo, há

maior chance de a informação adquirida anteriormente ter peso maior do que

aquela adquirida posteriormente (1998: 187). As pessoas antes formam uma

opinião; as informações adquiridas em seguida são avaliadas de maneira

enviesada. Esse é o resultado do primacy effect. Uma vez que a opinião se forma

ela se torna resistente à mudança, até mesmo diante de evidências irresistíveis de

que está errada (belief persistance). Com isso, as pessoas se mostram mais

inclinadas a questionar informações conflitantes com suas crenças preexistentes

do que informações que com elas sejam consistentes (NICKERSON, 1998: idem).

Isso talvez ajude a compreender a razão pela qual as pessoas não se

esforçam adequadamente na análise de hipóteses e se satisfaçam com uma

“epistemologia do faz-sentido” (make-sense epistemology). As pessoas pensam a

respeito de uma situação apenas o necessário para dela “fazer sentido”. Nickerson

cita o trabalho de Richard Nisbett e Lee Ross. Para eles, as pessoas investigam um

problema até o ponto em que é descoberto um antecedente plausível que possa ser

conectado com uma teoria em seus repertórios. Considerando a riqueza e

diversidade desses repertórios, essa investigação será concluída rapidamente,

iniciando-se um ciclo vicioso: a facilidade de encontrar uma explicação gera

confiança na crença de que está correta; essa confiança faz com que a pessoa

encerre a busca por uma explicação assim que a encontra; com isso, fecham-se as

portas de busca por explicações não menos plausíveis.

Haidt esclarece que pesquisas sobre o viés confirmatório revelam que nem

sempre as pessoas buscam confirmar sua hipótese inicial. “No entanto, tais

demonstrações de busca pela verdade sempre envolvem hipóteses que o

participante não precisa de defender” (HAIDT, 2001: 821). Quando o problema

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envolve dilemas morais, problemas sensíveis, que tocam as opiniões fortes das

pessoas, as evidências geralmente revelam viés e raciocínio motivado (HAIDT,

2001: idem).

Não é difícil enxergar como essas descobertas se relacionam com a

primeira parte da hipótese realista e o processo de tomada de decisão judicial.

Como antecipei acima, o fato de o juiz estar obrigado a decidir e a apresentar uma

justificação para sua decisão pode pressioná-lo a buscar no ordenamento jurídico

o primeiro farrapo de norma que embase obliquamente a decisão tomada. Nesses

casos, os realistas diriam que o juiz tomaria a decisão baseada em critérios

extrajurídicos e, em seguida, a remeteria a uma norma suficientemente vaga

prevista no ordenamento jurídico. Agora está bastante claro quais são os

mecanismos psicológicos que operam por trás do que é visto no produto final.

Ao enfrentar um caso difícil moralmente carregado, a maioria dos juízes

tomaria uma decisão automática causada por uma intuição moral; em seguida, seja

por conta de uma falha cognitiva, seja por motivação, o juiz daria início a uma

busca enviesada por algum tipo de material jurídico existente capaz de embasar

com um mínimo de plausibilidade a decisão tomada. Embora no contexto da

filosofia moral o exame e discussão dos dilemas revelem infindáveis polêmicas, o

juiz tenderia a examinar o problema partindo da premissa de que sua solução está

correta, reforçando essa crença assim que encontrasse algum material jurídico.

Nesse momento, a busca seria encerrada porque a decisão “faria sentido”. A

decisão tomada de maneira automática estaria enfim fundamentada.

Uma forma de derrubar a hipótese formulada no parágrafo anterior seria

argumentar que o tipo de preparo específico a que se submetem os juízes e/ou os

anos de experiência no exercício das funções reduziria ou neutralizaria os efeitos

do viés confirmatório. Sem dúvida é uma hipótese plausível, mas essa é uma

questão empírica. Somente uma pesquisa com os próprios membros da

magistratura esclarecerá a questão.

Concluindo, retome o pensamento sobre os tipos de casos difíceis que

foram identificados no item 2.4. Quando se entende como são tomadas as decisões

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intuitivas e como funciona o processo de busca enviesada por razões,

inevitavelmente se chega a uma última pergunta: qual é o papel dos materiais

jurídicos (legislação e precedentes) na decisão formalmente apresentada? A

hipótese realista sugere que os materiais convencionais aparecem nas sentenças

como parte de racionalizações post hoc de decisões tomadas com base em outros

elementos. Examinarei esse assunto no próximo tópico.

4.3

O problema do raciocínio post hoc.

Para investigar o problema enunciado no fim do tópico anterior é

necessário retornar ao trabalho de Gazzaniga sobre o aspecto modular do cérebro

humano. Esses módulos ou sistemas podem efetivamente disparar e produzir

comportamentos humanos caprichosos, sem origem em nosso pensamento

consciente (1985: 5). O problema é que – prossegue Gazzaniga – nós “resistimos

à interpretação de que tais comportamentos são caprichosos porque parecemos

dotados de uma infinita capacidade de gerar hipóteses acerca do porquê de nos

engajarmos em qualquer comportamento” (1985: idem, tradução livre). Daí

Gazzaniga sugerir que os seres humanos têm um verdadeiro módulo intérprete,

cuja função é criar instantaneamente uma explicação para o comportamento

recém-praticado.

Argumentando a partir de seus estudos de pacientes epiléticos cujos

hemisférios cerebrais haviam sido cirurgicamente separados, Gazzaniga chama

atenção para o fato de que os seres humanos se sentem compelidos a interpretar

comportamentos reais e a construir teorias acerca do porquê de terem ocorrido.

Essa seria uma tarefa trivial se todos os comportamentos fossem causados pela

atividade consciente e linguística das pessoas (1985: 74). Mas como o cérebro se

organiza em módulos que operam paralelamente e podem causar comportamentos

cujas causas não chegam à consciência, o módulo intérprete entra em ação na

tentativa de construir teorias em torno do que causou esses comportamentos

(GAZZANIGA, 1985: 74-80). Essa é a ideia de racionalização.

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Isso não difere do que foi visto nos itens 4.1 e 4.2 acerca do

funcionamento dos sistemas 1 e 2 e as relações mantidas entre eles. O sistema 1

ou intuitivo opera fora do alcance da consciência e apenas seu produto final chega

à consciência. O essencial é que o trabalho do sistema 2 não representa uma busca

na memória pelo processo cognitivo que causou sua decisão, porque tais

processos não são acessíveis à consciência. Na realidade, trata-se de uma

racionalização baseada num conjunto de normas culturalmente ofertadas para

avaliar e criticar o comportamento alheio.

Um pesquisador adepto da tradição racionalista tentaria responder a esses

argumentos com a seguinte ideia: se os julgamentos morais são causados pelo

raciocínio ou deliberação moral, então fatores estranhos e aparentemente

irrelevantes não serão capazes de interferir no processo causal de tomada de

decisão. Eventual desvio no julgamento moral seria decorrência de falha no

raciocínio ou déficit cognitivo. Como se vê, os racionalistas formularam uma

hipótese que pode ser empiricamente testada.

Ocorre que esses testes já foram realizados e a hipótese de que as

operações do sistema 2 consistem em racionalizações post hoc parece bastante

consistente. Por meio da manipulação de elementos estranhos, por vezes bizarros,

os pesquisadores conseguiram constatar que julgamentos morais são influenciados

por fatores como a presença de um odor (SCHNALL, HAIDT, CLORE e

JORDAN, 2008), a percepção de um gosto/sabor (ESKINE, KACINIK e PRINZ,

2011), a presença ou ausência de contato físico com uma suposta vítima

(CUSHMAN, YOUNG e GREENE, 2010), a ordem de apresentação dos dilemas

morais (SCHWITZGEBEL e CUSHMAN, 2012) e até mesmo pelas palavras

empregadas na descrição desses dilemas (SINNOTT-ARMSTRONG, 2008).

A pesquisa conduzida por Eric Schwitzgebel e Fiery Cushman

(SCHWITZGEBEL e CUSHMAN, 2012) é significativa por conta da categoria de

pessoas que foram convidadas a participar. Os autores conduziram experimento

em que submeteram filósofos profissionais, acadêmicos (que não são filósofos), e

profissionais de fora da academia a testes para avaliar em que medida estão

sujeitos aos efeitos de ordem. Por efeitos de ordem se entendem as variações em

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julgamentos morais causadas em decorrência da manipulação de uma simples

variável: a ordem de apresentação de mais de um dilema moral a ser julgado pelo

participante do experimento.

Ordinariamente se poderia supor que filósofos formariam um grupo

especial de pessoas altamente qualificadas imunes às manipulações de elementos

moralmente irrelevantes nos dilemas morais que examinam. Filósofos são

conhecidos pela forma cuidadosa com que lidam com questões, pela preocupação

com a validade das inferências lógicas, com a higidez e clareza argumentativa.

Dado o seu tipo de treinamento, filósofos estariam protegidos de vieses

inconscientes e indesejados no seu campo de expertise. Como os autores apontam,

alguns filósofos se descrevem como experts em raciocínio moral

(SCHWITZGEBEL e CUSHMAN, 2012: 136). No entanto, Schwitzgebel e

Cuhsman concluíram que filósofos altamente qualificados também estão sujeitos

aos efeitos de ordem da apresentação de dilemas morais e no endosso de

princípios morais. Na análise dos dados, Schwitzgebel e Cuhsman afirmaram:

“Our analysis found no support for the view that philosophical expertise enhances the stability of moral judgment against order effects; it suggests, instead, that philosophical expertise may actually enhance post-hoc rationalization” (SCHWITZGEBEL e CUSHMAN, 2012: 147)

Será que a ideia de expertise filosófica imunizante poderia ser transportada

ao cenário do direito? Uma das características mais cultuadas do processo de

recrutamento de juízes no Brasil é a realização de um concurso público de provas

e títulos. Para ingresso na carreira, os candidatos passam por uma intensa

preparação durante anos de estudo e se submetem a um rigoroso processo

avaliativo das suas competências no campo do direito. Além do preparo técnico, o

recrutamento por concurso público seria uma das principais formas de proteger a

independência funcional dos juízes quando se compara o modelo brasileiro com o

modelo de mandato eletivo para a função judicial. Será que o treinamento

específico e a forma de recrutamento a que se submetem permitem que os juízes

manifestem um grau maior de discernimento e consciência em torno vieses

inconscientes que entram em cena no processo de tomada de decisão?

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Embora a questão formulada acima dependa de pesquisa empírica, em uma

recente pesquisa em psicologia social (DANZIGER, LEVAV, e AVNAIM-

PESSO, 2011) revelou-se que juízes experientes também estão sujeitos a

distorções/vieses psicológicos inconscientes. Em Extraneous factors in judicial

decisions, Shai Danziger, Jonathan Levav, e Liora Avnaim-Pesso analisaram

1.112 decisões proferidas no período de 10 meses por 8 juízes israelenses

incumbidos de julgar pedidos de concessão de liberdade condicional formulados

por presidiários. Após isolarem diversas variáveis (ex.: fatores como a origem,

raça, cor e sexo do apenado) os autores concluíram que há maior probabilidade de

uma decisão favorável ser proferida logo no início dos trabalhos ou após uma

pausa para refeição. Dentre os critérios propriamente jurídicos de avaliação do

pedido, apenas os antecedentes criminais e a existência de um programa de

reabilitação consistente exerceram influência estatisticamente significante nas

decisões dos juízes.

De acordo com os pesquisadores, as evidências encontradas sugerem que

os juízes revelam uma tendência crescente a decidir pela manutenção do status

quo quando tomam decisões de maneira continuada. “Esta tendência pode ser

superada ao se fazer uma pausa para um lanche, o que é consistente com

pesquisas anteriores que demonstram o efeito de um curto repouso, humor

positivo, e o reabastecimento dos recursos de glicose no cérebro” (DANZIGER,

LEVAV, e AVNAIM-PESSO, 2011: 6892). Embora não seja possível determinar

o que exatamente influenciou a decisão dos juízes a ponto de interferir nos

julgamentos, os resultados indicam que fatores estranhos podem influenciar

decisões judiciais, reforçando o crescente conjunto de evidências que aponta à

suscetibilidade de juízes experientes a distorções/vieses psicológicos

(DANZIGER, LEVAV, e AVNAIM-PESSO, 2011: 6892).

A importante informação que se extrai dessa pesquisa é a mesma que

aquela extraída por Schwitzgebel e Cushman na pesquisa anterior: juízes

experientes também são influenciados por fatores inconscientes juridicamente

irrelevantes no processo de tomada de decisão. Se os juízes às vezes não têm

consciência daquilo que os leva a tomar certas decisões, então a justificação

formalmente apresentada com roupagem jurídica não passará de racionalização

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post hoc. Na realidade, da mesma forma como foi identificado no universo

filosófico, talvez a larga experiência com a toga transforme os juízes em experts

em racionalização post hoc.

Seria leviano pretender inferir da mera leitura da pesquisa de Danziger e

seus colegas que a classe de casos examinados pelos juízes israelenses era fácil ou

difícil. De todo modo, nos casos difíceis do direito o recurso à racionalização é

quase inescapável: se os materiais jurídicos se esgotam, isto é, se são incapazes de

guiar a tomada de decisão, e tendo o juiz o dever de decidir (art. 126, do Código

de Processo Civil; e art. 4º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro),

não lhe resta alternativa que não seja o recurso a critérios extrajurídicos. Nesse

cenário, há grandes chances de que um viés inconsciente e involuntário entre no

processo de tomada de decisão judicial.

A ideia de racionalização não era estranha ao movimento realista

(LLEWELLYN, 1962/2008: 58; e FRANK, 1930/2009: 140-141). Frederick

Schauer esclarece que até mesmo a visão menos radical do realismo jurídico

sugere que a decisão judicial formalmente elaborada não representa uma descrição

dos materiais jurídicos que a causaram; ao contrário, representa a racionalização

post hoc daquilo que dá suporte ao resultado alcançado (SCHAUER, 2009a: 174).

O problema do movimento realista, especialmente em Jerome Frank, não estava

propriamente na conclusão a que chegou, mas nas premissas psicanalíticas,

premissas que simplesmente não se sustentavam. Frank acreditava que os vieses

mais constrangedores surgiam de intuitos infantis: “Our most compelling bias

have deeper roots and are far better concealed from consciousness. They often

grow out of childish aims which are not relevant to our adult status. To admit

their existence would be difficult and painful” (FRANK, 1930/2009: 31-32). As

discussões avançadas neste item e nos itens 4.1 e 4.2 oferecem base suficiente

para desacreditar esse tipo de proposição. Na realidade, fatores estranhos como

odor, gosto, contato físico, ordem e forma de apresentação dos dilemas etc.

dificilmente conectáveis à infância impactam de maneira sistemática na tomada de

decisão moral.

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Essas discussões permitem retornar à questão da ponderação de interesses.

No item 4.1 foi visto que uma forma de explicar a psicologia da ponderação de

interesses é enquadrá-la como uma instância de ocorrência dos elos 5 e 6 do

modelo sócio-intuicionista. Nesse caso, a deliberação acerca do caso difícil

moralmente carregado causa a decisão judicial. O problema surge quando se

pensa nos processos automáticos e inconscientes de tomada de decisão judicial,

tais como sugeridos nos elos do julgamento intuitivo e da persuasão social. Nesses

casos, o 2o elo do modelo (o elo da racionalização post hoc) entra em cena e a

psicologia da ponderação de interesses revela que a decisão é pré-dada, e a

deliberação se apresenta como uma racionalização post hoc.

Quando se pensa nos casos difíceis do direito brasileiro e nas teorias

normativas da tomada de decisão, alguns tópicos são recorrentemente citados:

pós-positivismo, neoconstitucionalismo, distinção entre princípios e regras,

ponderação de princípios, dignidade humana, jurisprudência dos valores etc. Esses

jargões são entendidos como o instrumental necessário para o enfrentamento e

solução racional dos casos difíceis. Contudo, nada se diz sobre como os juízes

tomam decisões, raciocinam e lidam de fato com dilemas morais, o que torna

compreensível a incongruência havida entre as proposições normativas dessas

teorias e aquilo que acontece na prática. Talvez por isso atualmente exista certo

desconforto em torno de como os juízes vêm tomando decisões e se valendo dos

princípios, tal como observou Daniel Sarmento:

“Acontece que muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e das possibilidades de, através deles, buscarem a justiça – ou o que entenderem por justiça –, passaram a negligenciar do seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta ‘euforia’ com os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulho com jargões grandiloquentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, converteram-se em verdadeiras ‘varinhas de condão’: com eles, o julgador de plantão consegue fazer quase tudo o que quiser” (SARMENTO, 2006: 200).

Feito o exame da hipótese realista a partir das contribuições das ciências

cognitivas e da psicologia moral, já é possível avançar e apresentar algumas

conclusões e tentar sugerir que pesquisas futuras podem ser conduzidas a partir da

pesquisa aqui desenvolvida.

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