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ÍNDICE

Este número da revista Crítica Económica e Social, procurando antecipar problemas e soluções num novo ciclo governativo de políticas que se inicia, aborda constrangimentos internacionais, políticos e mediáticos à governação (João Ramos de Almeida, João Rodrigues, Jorge Bateira, Ri-cardo Paes Mamede, Sandra Monteiro), preocupações com a política de rendimentos (Alexandre Abreu, Eugénio Rosa, João Ramos de Almeida, Vítor Junqueira) e questões relacionadas com re-formas na Segurança Social (Eduarda Ribeiro com Isabel Roque de Oliveira e Margarida Chagas Lopes, José Luís Albuquerque, Maria do Carmo Tavares), para além de outros aspectos como o que falta detalhar em termos de investimento e reestruturação da dívida (Francisco Louçã), de protecção do ambiente (João Camargo) e de inversão do declínio populacional (Nuno Serra)

São ainda apresentados textos que questionam a economia como ciência (Fernando Belo) e o impacto que a computorização, as qualificações e a austeridade têm no agravar da crise de em-prego (Francisco Louçã) e sobre processos no seio das Nações Unidas e em Portugal sobre rees-truturação/renegociação de dívida pública.

A revista inclui ainda análises sobre o salário mínimo nacional e a abrangência em termos de trabalhadores, massa salarial, preponderância sectorial e por dimensão de empresa, entre outros (João Ramos de Almeida, Observatório sobre Crises e Alternativas).

Ana Costa

Francisco Louçã

José Luís Albuquerque

Nota à Crítica #3 – O texto Aprender é da autoria de João Rodrigues

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EXTRATOS DOS PROGRAMAS DOS GOVERNOS PASSOS COELHO E ANTÓNIO COSTA

PROGRAMA PASSOS COELHO

PROGRAMA PASSOS COELHO

PROGRAMA ANTÓNIO COSTA

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ÍNDICE

PROGRAMA ANTÓNIO COSTA

PROGRAMA PASSOS COELHO

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ÍNDICE

1 - UM NOVO CICLO DE POLÍTICAS?

Maria do Carmo Tavares - Revisitando tentativas de introdução do plafonamento das pensões ................................................................................................................. 07

João Camargo - Alterações Climáticas: que políticas públicas para futuros governos?.................................................................. 12

Eugénio Rosa - O aumento das desigualdades em Portugal ........................................ 21

Alexandre Abreu - Pode a esquerda romper com a austeridade?................................. 26

Eduarda Ribeiro, Isabel Roque de Oliveira, Margarida Chagas Lopes - A Segurança Social nos Programas Eleitorais ....................................................................................... 28

Francisco Louçã - O que vem depois do acordo deste fim de semana entre o PS, o Bloco e o PCP? .......................................................................................... 36

João Ramos de Almeida - O que propõem eles?........................................................... 38

João Ramos de Almeida - Podes sentir, mas não provar............................................... 40

João Rodrigues - Atenção, atenção ............................................................................... 42

Jorge Bateira - O teste da “austeridade progressista” .................................................. 43

José Luís Albuquerque - Quanto às comissões de peritos ......................................... 44

Ricardo Paes Mamede - Um terreno minado por todos os lados................................... 47

Sandra Monteiro - A prova do poder................................................................................ 48

Vítor Junqueira - Qual é o seu decil? ............................................................................. 51

Vítor Junqueira -É entre os mais pobres que a crise mais se faz sentir ....................... 53

Nuno Serra - O «inverno demográfico» como pretexto .................................................. 57

Nuno Serra - Os limites da «economia do empobrecimento competitivo» ................... 58

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ÍNDICE

2. A ECONOMIA POLÍTICA, O FUTURO DO EMPREGO

Fernando Belo - A Economia Política por vir enquanto ciência terapêutica .................. 60

Francisco Louçã - O futuro do emprego: a tecnologia vai acabar com o trabalho? .............................................................................................. 70

3. NOTAS - SOBRE O ENDIVIDAMENTO DOS ESTADOS SOBERANOS E RENEGOCIAÇÃO DA DÍVIDA

Eugénia Pires - Passo a passo até ao verdadeiro resgate dos povos ......................... 74

José Maria Castro Caldas, Eugénia Pires, Paulo Coimbra - Preparar a renegociação da dívida ........................................................................................................................... 77

4. DOCUMENTO - SOBRE O SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL

João Ramos de Almeida - O Salário Mínimo Nacional e os falsos factos .................... 81

Observatório sobre Crises e Alternativas (Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra) - Salário Mínimo Nacional: até onde o queremos aumentar? .................... 85

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Revisitando tentativas de introdução do plafonamento das pensões

MARIA DO CARMO TAVARES

Na recente campanha eleitoral para as legislativas, a discussão sobre o plafonamento (tecto no valor das pensões e nas contribuições) voltou a estar presente, e consta do programa eleitoral da coligação de Direita. Aliás esta matéria ciclicamente tem estado em discussão, atingindo o seu auge aquando do Livro Branco da Segurança Social no final dos anos 90 mas, a luta da CGTP e as convergências construídas levou, felizmente, à derrota das teorias que pretendiam instituir o plafonamento.

Apesar de várias vezes esta questão ter sido levantada ainda há em geral um grande desconhecimento das pessoas sobre esta matéria.

Foi durante a governação de Cavaco Silva, que se iniciou um ataque severo ao regime Contributivo da Segurança Social, o que promoveu uma insegurança geral nos trabalhadores.

Chegou-se ao ponto de se afirmar que só era possível assegurar o pagamento das pensões de reforma por velhice durante 5 anos, dado que preconizavam a falência do Sistema de Segurança Social.

Argumentavam que o Regime vigente (de repartição) não podia pagar as pensões futuramente aos trabalhadores com rendimentos mais elevados e, por isso, se deveria limitar o seu valor (plafonamento), devendo para isso os trabalhadores acautelarem pensões de reforma complementares em regimes de capitalização. Por outro lado, o Governo de Cavaco propunha-se realizar uma reforma no cálculo das pensões, tendo em vista a sua redução e a unificação do Regime da Caixa Geral de Aposentações com a Segurança Social e, nesta altura, aumentaram a idade de reforma das mulheres.

A discussão em torno do plafonamento obrigou a expor as razões políticas, filosóficas e sociológicas sobre a Reforma do Estado Providência e as suas linhas de fractura. Os

UM NOVO CICLO DE POLÍTICAS?

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que defendiam o regime de repartição, entretanto construído após o 25 de Abril com aperfeiçoamentos nomeadamente no financiamento; e os que queriam desmantelar o Regime de Repartição e substituí-lo em parte por uma capitalização individual mercantil.

A publicação do D.L. 205/89 de 27 de Junho no 2º Governo de Cavaco Silva que estabeleceu pela primeira vez o regime de poupança reforma e do fundo de poupanças reforma, no seu preâmbulo é claro quando refere que se trata de uma orientação estratégica nas políticas macro económicas e de Segurança Social. Este diploma veio introduzir no nosso regime jurídico planos individuais de reforma privados.

Ou seja, todas as sociedades gestoras de fundos de investimentos, de fundos de pensões autorizadas por decretos leis, também eles dos Governos de Cavaco Silva, assim como as companhias seguradoras que exploravam no nosso país o ramo de vida eram, segundo o diploma, competentes para gerir os fundos de poupança reforma.

Assim o mercado financeiro tinha instrumentos e podia lançar-se nesta área de negócio.

Desde 1986, havia vários fundos de pensões constituídos mas que geriam regimes complementares profissionais de empresa, previstos nos instrumentos de regulamentação colectiva ou em regulamentos internos, nomeadamente das empresas públicas, os chamados regimes fechados. Estes regimes complementares têm como objectivo acrescer um montante determinado às pensões do regime contributivo da Segurança Social que os trabalhadores têm direito em resultado da sua carreira contributiva.

Voltando aos planos individuais consagrados por Cavaco Silva, para os implementar e proporcionar uma adesão substancial de determinados extractos sociais, o D.L. 205/89 prevê no seu art. 8º o regime fiscal a aplicar “para efeitos de IRS é dedutível ao rendimento colectável e até à concorrência deste, o valor aplicado no respectivo ano em PPR, com o limite máximo do menor dos valores seguintes: 20% do rendimento total bruto englobado e 500 contos”.

A despesa fiscal foi tão elevada face à adesão que levou o Ministro das Finanças Eduardo Catroga a ter de baixar para 250 contos, por outro lado provocou uma significativa regressão no nosso sistema fiscal.

Depois da queda de Cavaco Silva, a discussão sobre este assunto, assim como o combate contra a privatização de parte das pensões continuou, tanto mais que havia vulnerabilidades no financiamento da Segurança Social, que serviam aos adversários dado que não havia uma separação como se impunha entre o financiamento do regime contributivo e o não contributivo que devia ser suportado na integra pelo Orçamento de Estado, acabando por serem as contribuições dos trabalhadores a suportar tais despesas, o que era de todo inaceitável.

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S?Na Comissão do Livro Branco da Segurança Social criada em 9 de Março de 1996 parte dela deu continuidade ao pensamento anterior, de que o regime previdencial não tinha viabilidade e é introduzida ainda a questão demográfica.

Durante meses o debate incidiu em redor da constituição de um tecto nas contribuições enviadas para a Segurança Social e do valor do tecto das pensões futuras.

O Presidente da Comissão, Correia de Campos refere no relatório dos trabalhos que havia divergências entre os membros da Comissão em várias matérias, umas de natureza ideológica e outras de natureza técnica.

Nesta Comissão havia um forte grupo ligado ao sector financeiro que defendeu um plafonamento horizontal a aplicar a todos os novos beneficiários a partir do ano 2000 e quem tivesse menos de 50 anos de idade facultativamente. O valor proposto variou entre 5 e 8 salários mínimos da altura, porém no relatório pode ver-se que houve propostas de 2 a 3 SMN, para abranger o maior número de trabalhadores.

Para os que não estão lembrados o debate atingiu uma amplitude nacional e foi violento, com os bancos a fazerem eles próprios anúncios nos jornais diários crucificando o futuro da Segurança Social, desacreditando-a para gerar insegurança.

As propostas apresentadas por parte da Comissão foram derrotadas. Os trabalhadores discutiram-nas amplamente nas empresas e rejeitaram-nas.

Foram criadas alianças que projectaram uma alternativa “Uma Visão Solidária da Reforma da Segurança Social” subscritas por Maria Gomes Bento, Boaventura de Sousa Santos, António Maldonado Gonelha e Alfredo Bruto da Costa, elementos da Comissão dado o amplo apoio que obteve tal alternativa levou a que fossem derrotados os que pretendiam abrir a porta à privatização.

Nos trabalhos da Comissão, subscrito por estes quatro elementos pode ler-se entre outros aspectos que entre as matérias que suscitaram maior controvérsia no seio da Comissão, contam-se a introdução do plafond e a institucionalização de uma 2º pensão obrigatória.

1. «Relativamente ao plafond, alguns de nós, por nos termos debruçado há muito tempo sobre a problemática da Segurança Social e, por isso, temos acompanhado, na medida do possível, as experiencias de outros países, defenderam que a introdução de um plafond das remunerações sujeitas a contribuições levantava diversas questões entre as quais salientamos as seguintes. O “plafonamento”:

reduz a solidariedade operada pelo sistema, opondo-se a todo o verdadeiro efeito de solidariedade da segurança social;

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induz a diminuição das receitas, pelo que”para obter uma dada soma de recursos a taxa contributiva sobre os salários deve ser mais elevada. A parte do trabalhador numa contribuição (sujeita a plafond é evidentemente regressiva).»

Em 2001, no Governo de António Guterres, depois de longos meses de negociação foi firmado no CPCS um Acordo de Modernização da Protecção Social, que foi muito importante nomeadamente em matéria do financiamento da Seg. Social, tendo sido assegurada uma diversificação das fontes financiamento, assim como novo cálculo das pensões.

Os partidos de direita, com assento na Assembleia da República PSD e CDS contestaram este acordo assim como a lei de bases nº 17/2000, e comprometeram-se a mudá-la se viessem a ser governo. O Governo de Durão Barroso assim o fez e propôs à Assembleia da República a alteração da Lei de Bases existente, tendo vindo a ser aprovada a Lei nº 32/2002. Na regulamentação do seu sistema complementar quantificaram os limites contributivos previstos e assim o Ministro Bagão Félix apresentou um projecto que esteve em discussão pública fixando em 6 e 10 SMN, os limites contributivos, geridos em capitalização individual e de contribuição definida.

Havia intenções de há muito mas foi a primeira vez que foi redigido um projecto-lei sobre o famigerado plafonamento.

Todos os trabalhadores com remunerações mensais superiores a 6 SMN (na altura 2190 €) uma parte dos seus descontos (2/3 do valor dos seus descontos referente à parcela da sua remunerações que ultrapasse os 6 SMN) poderiam ser aplicados em fundos privados, e os trabalhadores com remunerações superiores a 10 SMN da altura, a totalidade dos descontos ultrapassasse os 3650 € deixariam obrigatoriamente de entrar na Segurança Social.

A contestação foi tão grande que o projecto não foi por diante, mas se este regime fosse aplicado a Segurança Social perderia imediatamente receitas cujo valor aumentaria todos os anos pondo em causa a sua sustentabilidade, só se verificando uma eventual redução das despesas quando os trabalhadores se reformassem daí a 25 ou mais anos.

Num documento apresentado pelo governo de então, é referido que impacto financeiro resultante da adesão ao sistema complementar “é positivo a partir do momento em que a diminuição das despesas com pensões é superior à diminuição das receitas com contribuições”.

Concluem que só a partir do 12º ano de pagamento das pensões plafonadas a diminuição das despesas com pensões é superior à diminuição das receitas com contribuições.

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Os autores já referidos do livro “Uma Visão Solidária da Reforma da Segurança Social” argumentavam a determinado passo que “como é evidente a criação da segunda pensão, ao pressupor a introdução de um plafond não contribuirá para o aumento da sustentabilidade da Segurança Social. Na verdade o plafond irá determinar uma redução imediata de receitas (maior ou menor conforme o nível a que o mesmo for fixado), enquanto as despesas constituídas em medida importante por pensões, permanecerão em nível equivalente ao actual não só nos curto e médio prazo mas também no longo prazo por força do princípio da garantia dos direitos adquiridos. Diversos estudos demonstram, a introdução do plafond não só não aumentaria a sustentabilidade do sistema, como, pelo contrário, iria antecipar eventuais situações de crise que, atenta à actual situação financeira e à adequada rentabilidade dos saldos poderiam nunca ocorrer”.

As propostas do plafonamento e da constituição de uma segunda pensão ao longo do tempo não diferem muito, o mesmo se pode dizer da proposta apresentada pelo PSD e CDS na campanha eleitoral. A única coisa que tem “divergido” é o valor do tecto a aplicar, mas houve economistas de direita que se encarregaram de defender a aplicação a dois ou três SMN para poder abranger um alargado universo de trabalhadores.

A capitalização individual não constitui alternativa, uma vez que o nosso regime previdencial (contributivo) tem a missão de substituir os rendimentos do trabalho e a pensão de velhice resulta de um cálculo, onde entram dois factores, a saber:

(i) Anos de contribuições pagos para a Segurança Social; (ii) e respectivas remunerações (que são revalorizadas anualmente por portaria), podendo-se afirmar que no Sistema de Repartição, tanto as contribuições a pagar como as pensões são definidas.

No Sistema de Capitalização em nome individual a contribuição a pagar é definida, mas a prestação não é definida.

A pessoa é que vai arcar com os riscos de investimento por parte da instituição financeira, ou seja, as pessoas contribuem, mas não sabem qual vai ser o montante a receber. Nesta crise, o resultado esteve à vista: os PPR chegaram a ter quebras de 30%. Este nicho de mercado para o sector financeiro é muito apetecível porque não oferece qualquer risco.

Estamos certos que os argumentos e as propostas que existem da CGTP-IN e dos Partidos de Esquerda sobre o financiamento do regime contributivo e que a melhoria da economia e a criação de emprego, bem como o aumento dos rendimentos dos trabalhadores, vão permitir continuarmos a ter uma Segurança Social Pública Universal e Solidária e derrotar mais uma vez os ditames da privatização.

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Alterações Climáticas: que políticas públicas para futuros governos?

JOÃO CAMARGO

A poucos dias do início da Cimeira do Clima, em Paris, e após a queda do governo de coligação PSD-CDS, é importante reflectir opções para as políticas públicas que mais se adequam a futu-ros governos na área da mitigação e adaptação às alterações climáticas. Embora seja uma área relativamente recente e o seu desenvolvimento muito acelerado, este tema tem um impacto tão generalizado que as medidas assumem autênticos programas completos de governo e desígnios quase civilizacionais: do ordenamento do território urbano, florestal e agrícola, ao sistema produtivo industrial, passando pelo comércio nacional e internacional, a produção de energia e todos os transportes. Mais importante, definirá como nos entenderemos de futuro enquanto espécie: em conflito permanente com a natureza ou, pelo contrário, aceitando ser parte da mesma, desenvolvendo sociedades em que os imperativos civilizacionais reconhe-cem a existência de limites concretos, que não podem ser ultrapassados à base da dinamite e da bala, mas apenas pela inteligência colectiva. Importante rombo em mitos prometeicos, as alterações climáticas devolvem-nos ao materialismo mais puro e objectivo. Os vários futuros cenarizados para a Humanidade têm todos um clima diferente, e em geral muito mais desfa-vorável do que o actual. O capitalismo e em particular o neoliberalismo manietam a espécie humana de ferramentas cruciais para preparar o planeta e mitigar ao máximo as emissões futuras, ao colocar sempre e em primeiro lugar a contínua expansão da exploração dos recur-sos e a necessidade de manter taxas de desconto elevadas a curto prazo, para remunerar as transacções mercantis à velocidade da luz. A verdade é que o planeta, o metabolismo natural e o metabolismo social não se movimentam à velocidade da luz e a impressão do ritmo das transacções financeiras ao sistema ameaça fazê-lo colapsar. O processo social decorrente das alterações climáticas implica à esquerda assumirmos a justiça climática como central: não só são os mais pobres na sociedade que sofrerão o máximo impacto das alterações climáticas como os países que menos contribuíram para a emissão de gases com efeito de estufa são aqueles que terão maiores impactos.

O acordo a surgir de Paris, que se revela até ao momento muito insuficiente para sequer atingir a limitação do aumento da temperatura a 2ºC até 2100 (valor convencionado como “seguro” embora a própria noção de aumento de temperatura seguro esteja em causa), não dá qual-quer garantia. As propostas voluntárias de redução de emissões já avançadas pelos Estados perfazem um aumento de temperatura perto dos 2,7ºC, mas como muitos países (30) com muitas emissões nem sequer apresentaram as suas propostas, os 3ºC parecem ser o mínimo de aumento de temperatura até 2100. Desenganemo-nos: este valor é catastrófico. E é um va-

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lor global, o que significa que em várias regiões do mundo este número será ainda agravado por condições próprias de estrutura geológica, correntes oceânicas e de circulação atmosfé-rica. Uma dessas regiões é o Mediterrâneo. Sendo um hotspot de alterações climáticas, aqui há uma magnificação do impacto à escala global: se o planeta aumentar 3ºC, aqui o valor de aumento deverá estar mais próximo dos 4ºC.

Para Portugal as previsões são claras: as temperaturas médias que já aumentaram 0,5ºC desde a década de 1950 (1ºC no Mediterrâneo desde o início do século) e continuarão a aumentar durante o século XXI. A frequência, duração e intensidade de épocas quentes (até 5ºC mais quente no Verão) e ondas de calor agravar-se-ão. Simultaneamente, a precipitação reduzir-se-á, colocando ainda maior pressão sobre zonas semi-áridas como algumas zonas do Algarve e Alentejo. As secas em grande escala no Mediterrâneo (de que a seca na Síria entre 2005 e 2010 é um excelente exemplo) tenderão a agravar-se, com todos os riscos agrícolas e sociais que lhe estão associados. A precipitação média cairá e a aumentará a variabilidade da precipitação durante a estação seca e quente aumentará. O número de dias com gelo diminuirá e o número de noites tropicais (dias onde a temperatura mínima diária é superior a 20ºC) aumentará. Os fenómenos climáticos extremos agravar-se-ão: tempestades mais violentas, por vezes tem-pestades tropicais, tornados em pequena escala, violência marítima, cheias rápidas. Em suma, viveremos num território mais seco, muito mais quente e exposto a fenómenos climáticos extremos, com uma pressão crescente no litoral por parte do mar em ascensão. Nada disto é uma novidade. Na verdade, os últimos anos já demonstraram que as alterações climáticas agravaram todas as fragilidades do nosso território e as vulnerabilidades das populações.

A preparação do país para um cenário e um clima diferente e muito mais adverso às activida-des desenvolvidas durante as últimas décadas é essencial. O incentivo artificial a actividades insustentáveis, desde a agricultura à floresta, da indústria aos transportes tornar-se-á ainda mais ridículo. A justiça climática será imperativa, porque não existe nenhum modo de adaptar o território e combater o aprofundamento das alterações climáticas que não implique redis-tribuição de riqueza, quebra de monopólios e a deslocação das actividades daquilo que sim-plesmente produz lucro para aquilo que é necessário à sociedade. A rejeição macroeconómica de planificar a economia reveste-se neste momento de contornos criminosos, uma vez que a própria teoria da “libertação” das forças produtivas, ignorando a base material da produção, baseou-se massivamente no monopólio e utilidade dos combustíveis fósseis e jamais aceitou reconhecer os efeitos provocados pela sua combustão na composição da atmosfera.

Geralmente as principais medidas de combate às alterações climáticas dividem-se, por conve-niência de organização mental, em dois grandes grupos: mitigação e adaptação. A mitigação tem principalmente que ver com redução de emissões de gases com efeito de estufa, assim como com a possibilidade do aumento de sumidouros de carbono (isto é, estruturas ou meca-nismos de captura de gases com efeito de estufa para evitar o seu contributo para um aumen-to da concentração do CO2 e outros gases na atmosfera). A adaptação, por seu lado, tem que ver com a adaptação territorial, produtiva e social a um novo clima, com riscos agravados e maior vulnerabilidade das populações. Há várias medidas que funcionam naturalmente como

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medidas de mitigação e adaptação – recuperando o conceito de desenvolvimento sustentável que foi capturado para fazer greenwashing e rebranding a tantas marcas que continuaram o seu business as usual, é necessária uma nova sustentabilidade, cuja mensuração não pode ser conceptual, mas material.

MITIGAÇÃO

No que diz respeito a Portugal, importa destacar os principais emissores de gases com efei-to de estufa no país: a produção de energia, de celulose, de cimento e refinarias. As centrais termoeléctricas de Sines, do Pego, de Lares e do Ribatejo, a refinaria de Sines, o Complexo Industrial da Portucel em Setúbal, a Celulose Beira Industrial (Celbi), a Fábrica da Secil do Ou-tão, a Cimpor em Souselas, a Refinaria da Petrogal no Porto, a Soporcel na Figueira da Foz e a Fábrica de Cacia da Portucel são as principais unidades industriais e energéticas responsáveis pelas emissões de gases com efeito de estufa em Portugal. Se juntarmos a estas o sector dos transportes rodoviários (com as viaturas privadas e de transportes), os incêndios florestais, a pecuária, a agricultura e os resíduos sólidos, encontramos o grosso das emissões.

ENERGIA

Nas fontes de produção eléctrica em Portugal, os combustíveis fósseis só aparecem em ter-ceiro lugar, a seguir às grandes hídricas e à energia eólica. O carvão é o principal combustível fóssil consumido, seguido pela cogeração fóssil. As outras renováveis aparecem em quinto lugar e o gás natural em sétimo. Em termos de mitigação, a aposta na desactivação das cen-trais termoeléctricas a carvão deve ser prioritária. Para colmatar o défice energético, a aposta mais óbvia é na energia solar. Portugal, com um potencial solar enorme, de 2200 a 3000 horas de sol anuais, tem a possibilidade de utilizar a enorme evolução que existiu a nível da tecno-logia dos painéis fotovoltaicos para expandir uma rede deslocalizada de produção local, com redução de perdas no transporte e aumento da resiliência dos sistemas locais de produção eléctrica. A sobredimensionada rede eléctrica gerida pela REN e o monopólio rentista da EDP são utilizados actualmente como forma de concentração de riqueza e exercício de coacção por parte da administração da empresa sobre todo o sistema habitacional e produtivo do país. A produção descentralizada, focada em energia solar, coadjuvada com microgeração eólica ou outras combinações, permitiria passar estes actores para segundo plano, como rede de apoio e segurança para eventuais falhas a nível da produção local (nomeadamente períodos de menor insolação e vento, face à dificuldade tecnológica de armazenamento destas ener-gias). Esta produção permitiria ainda uma redução de custos com a energia e das importações de energia. Importa ainda destacar que existe um potencial para poupança energética a nível nacional na ordem dos 25%.

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CELULOSE E FLORESTA

Além da produção de energia, os processos de melhoria industrial são essenciais para reduzir as emissões. A indústria da celulose tem elevada eficiência no seu processo industrial, nomea-damente no que diz respeito à energia (elevada eficiência, produção energética em excesso). Os maiores problemas associados a esta indústria são a fase a montante, nomeadamente a produção de eucaliptos, com o elevado impacto que tem em toda a floresta nacional. O euca-lipto já era em 2012 a principal árvore existente na floresta nacional, ocupando 26% do terri-tório florestal e 8,9% do território nacional (antes ainda da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 96/2013, que passou a deferir tacitamente a plantação em 82% das propriedades florestais do país). Além de Portugal ser o país do mundo com maior área de eucaliptal relativo, o território abandonado e sem dono conhecido estará na ordem dos 20%. O desordenamento do terri-tório decorrente desta realidade está na base da elevada incidência de incêndios no país, que ocorre principalmente nas áreas de pinheiro e de eucalipto desordenado. A área de eucaliptal ardido anualmente é geralmente 30% do total. O país apresenta uma situação dramática no panorama do mediterrâneo europeu: nas últimas três décadas foi o único país em que au-mentou a área ardida e o número de ignições. A composição e o ordenamento da floresta são centrais nesta realidade – além disso o risco agravar-se-á com o aumento da temperatura e a redução da precipitação.

A redução da área de eucaliptal (principalmente desordenado) é central numa estratégia para reduzir incêndios e emissões por essa via. A aposta em espécies diversas e autóctones – carva-lhos, castanheiros, cerejeiras ou sobreiros, entre outras – é uma escolha totalmente adequada a este objectivo, tendo ainda consequências secundárias positivas como a maior adequação a um clima futuro mais quente e seco e o fornecimento de matéria-prima para a indústria na-cional de móveis.

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A realização de um cadastro florestal é essencial para reduzir o desordenamento territorial, com a necessária afectação ao Estado dos terrenos abandonados ou sem dono. Portugal é o país da Europa com menor área florestal pública. A média europeia de área florestal pública é de 58,65%. Portugal tem menos de 2%, sendo ultrapassado a nível mundial apenas pelas Ilhas Cook, Barbados e Uruguai. O nível de incêndios que ocorre em Portugal é também um exemplo do falhanço da gestão privada e desordenada. Aliás, mais do que uma área florestal mal ou não gerida, é mesmo uma área abandonada. Possuindo e gerindo uma área florestal importante, o Estado deveria tornar-se um referencial de ordenamento territorial, protecção contra incêndios e gestão de floresta multifuncional, de composição mista e com espaços de conservação protegidos por um nível adequado de vigilantes da natureza.

REFINARIAS E TRANSPORTES

Uma das questões mais básicas para interagir com as actividades de produção e transforma-ção de combustíveis fósseis é cessar imediatamente todo e qualquer apoio público às mesmas, quer a nível de isenções fiscais, quer a níveis de apoios directos à importação e exportação de combustíveis fósseis. Esta proposta acarreta perguntas importantes: como mantemos uma frota de 6,1 milhões de veículos ligeiros e pesados com menos combustíveis fósseis? Como mantemos o transporte de 146 milhões de toneladas de mercadoria por meio rodoviário? E a resposta tem de ser: não mantemos.

O incentivo à utilização do transporte colectivo e à ferrovia são centrais na redução da depen-dência dos combustíveis fósseis. O investimento das últimas décadas em estradas, acompa-nhado do desinvestimento nas linhas férreas foi um erro colossal de sobredimensionamento, custos megalómanos e interesses inflacionados. A rede rodoviária nacional (itinerários princi-pais, itinerários complementares, estradas nacionais e estradas regionais) tem uma extensão de 14310 km, enquanto a rede ferroviária tem apenas 2546 km (tendo perdido mais de 1000 km de rede desde o seu pico em 1974). A ferrovia transportou em 2014 apenas 10,3 milhões de toneladas de mercadorias (catorze vezes menos do que a rodovia). Em termos de transportes de passageiros, em 2014 o sistema ferroviário pesado transportou 128 milhões de pessoas e o sistema ferroviário ligeiro (metropolitanos) transportou 202 milhões de passageiros. Já o sis-tema de transportes públicos pesados rodoviários de passageiros transportou 476 milhões de passageiros em 2014. O incentivo à utilização de transportes públicos e ferrovia no transporte de passageiros e mercadorias é uma escolha inevitável para reduzir as emissões de gases com efeito de estufa e reduzir simultaneamente o impacto a nível de emissões das refinarias nacio-nais. O encargo desta transição a nível de transporte terá de recair sobre os produtores e trans-formadores de combustíveis fósseis, devendo também haver um desincentivo à utilização do veículo individual (a utilização de uma taxa de carbono diferente da existente actualmente em Portugal, com um valor bastante acima dos 5€/tonelada, retiradas as isenções presentes, nomeadamente das instalações industriais e dos sectores que transacionam licenças de emis-sões – os maiores emissores – e cuja receita reverta na gratuitidade dos transportes públicos poderia ser uma possibilidade).

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S?As 20 concessões para processos de extracção de gás e petróleo em Portugal são uma aber-ração nos seus termos – as reservas serão minúsculas e o potencial de poluição importante. Além disso, apenas contribuição para aumentar as emissões de gases com efeito de estufa. De-vem ser cancelados os contratos que o anterior governo fez com estas empresas e consórcios: Em terra da Australis Oil & Gas na Batalha e Pombal, no Algarve da Portfuel – Petróleos e Gás de Portugal, Lda.; no mar do Alentejo, da Kosmos Energy LLC, do consórcio Hardman / Galp / Partex, do consórcio Petrobras / Galp, do consórcio ENI / Galp e da Galp, no mar do Algarve, do consórcio Repsol / Partex, do consórcio Repsol / RWE, do consórcio Repsol / Partex, e em Peniche dos consórcios Petrobras / Galp / Partex e Repsol / Galp Partex.

ADAPTAÇÃO

Teoricamente, se fosse possível travar todas as emissões de gases com efeito hoje, o problema não desapareceria. A concentração de CO2 na atmosfera esteve durante 10 mil anos (entre 8 mil A.C. e 1800) estabilizada entre as 260 e as 280 ppm (partes por milhão). Segundo o Labo-ratório Mauna Loa, no Hawai, referência mundial para o registo da concentração de CO2 na atmosfera, em Outubro de 2014 este valor atingiu o pico de 398,29 ppm. Isto significa uma coisa clara, e já visível pela subida global da temperatura de 0,83ºC desde 1750: as alterações climáticas não são uma questão do futuro e das próximas gerações. São uma realidade do presente e agravar-se-ão com o tempo (claro que quanto mais emissões existirem, maior a gravidade dos impactos sentidos, e seu prolongamento no tempo). Além disso, os principais gases com efeito de estufa podem permanecer na atmosfera até 100 anos, como é o caso do CO2, pelo que as consequências do avassalador aumento de emissões desde a Revolução In-dustrial estender-se-á no futuro.

A adaptação às alterações climáticas não é um processo técnico ou científico: é um processo social e político. Normalizar a prevalência das alterações climáticas sobre todos os processos económicos e sociais é reconhecer a centralidade das condições materiais em que nos desen-volvemos enquanto espécie, e saber que temos de ter uma adequação humanista e progres-sista da nossa civilização para a nova realidade, sob pena de nos vermos em curto prazo sob uma austeridade ou até um fascismo verde. Precisamos reconhecer a importância civilizatória do processo em que vivemos.

GESTÃO DO RISCO

As zonas de risco verão as suas condições muito agravadas. A susceptibilidade a cheias de determinados territórios tornar-se-á quase num certeza de cheias rápidas, porque apesar o cenário ser de diminuição de precipitação, existirão fenómenos de concentração de pluvio-sidade, particularmente graves porque sobrecarregam os sistemas de protecção além da sua capacidade de reacção. As “flash floods”, evidentes já nos últimos anos em cidades como Lis-boa, tornar-se-ão regra. O ordenamento urbanístico urbano terá que lidar com construções já existentes em sítios totalmente desadequados e determinar regras inflexíveis para novas

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construções: a construção nas cabeceiras dos rios e ribeiras, a impermeabilização de zonas de máxima infiltração, a destruição das galerias ripícolas, as chamadas “regularizações” dos rios e ribeiras, a construção em zonas de leito de cheia, que antes se colocavam a nível da ilegalida-de e da especulação imobiliária tornaram-se numa questão de segurança de pessoas e bens. Perante as figuras de ordenamento que durante anos foram ignoradas pela construção e pela planificação sem ter em conta as condições biofísicas do território, houve o desenvolvimento e instalação de infraestruturas e construções abundantes em locais proibitivos (e proibidos). Perante uma avaliação das cartas de risco a nível nacional será necessário desencadear acções sobre as infraestruturas (legais e ilegais) para proteger pessoas e bens nos meios rurais mas principalmente nos meios urbanos, desocupando as zonas de cheia e infiltração máxima.

As medidas “soft” são também urgentes: a desocupação de zonas de leito de cheia e de mar-gens dos rios (para que os mesmos possam galgar as margens sem problemas) devem ser uma opção importante a ter em conta. Para proteger essas zonas, os seus habitantes e infraestrutu-ras é necessário aumentar a infiltração da água no solo, alargando as zonas verdes a todos os leitos de cheia urbanos, realizando alterações também a nível das vias de comunicação e in-fraestruturas. O incentivo à implantação expressiva de infraestruturas verdes como cisternas, telhados verdes, hortas urbanas e infraestruturas verdes primárias é muito importante pela redução dos caudais de ponta e pela poupança de energia.

A reabilitação urbana deverá tornar-se chave nas políticas urbanas, com ênfase na melhoria dos materiais e no desenvolvimento de técnicas de melhoria do conforto térmico, principal-mente na estação quente.

LITORAL

A ocupação do litoral efectuou-se exactamente na altura em que começou a acentuar-se o fenómeno da erosão costeira. A proliferação dentro e fora da lei em zonas costeiras, dunares e em cima das praias acelerou o processo de erosão e os habitantes dessas zonas sofrem neste momento por causa desse processo. Infelizmente, sendo ou não legal a construção dessas infraestruturas (algumas delas oficiais e pertencentes ao próprio Estado), muitas regiões terão que ser abandonadas e devem ser tomadas medidas para deter o avanço do mar num plano mais recuado, abdicando em alguns locais da linha da costa tal como existia há alguns anos. A perda de dezenas de metros para o mar repete-se ano após ano e agravar-se-á. A actuação so-bre a zona costeira e redução dos riscos da mesma através de relocalização e em casos muito especiais acomodação é essencial.

As relocalizações das populações para zonas mais interiores devem ser feitas nas melhores condições possíveis, de maneira intermediada e participada, não como uma imposição mas sim através de um processo negocial social. O aumento do nível médio do mar só aumenta-rá a tendência à erosão costeira e a própria permanência dos habitantes na costa, perante o

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aumento dos fenómenos climáticos extremos como são as tempestades, ciclones e grandes marés que invadem a costa deve ser um factor importante no diálogo a manter para as relo-calizações das populações, que têm de ser protegidas da vulnerabilidade a estes fenómenos. Zonas como Ovar, Esposende, Caparica ou Ílhavo serão as mais afectadas e o adiamento de acções nestas localidades aumenta violentamente o risco para estas comunidades. O Grupo de Trabalho para o Litoral, criado pelo anterior governo após a tempestade Hércules em 2014, apresenta várias propostas concretas neste sentido, reforçando a proposta anterior com a so-luções técnicas de redução da erosão através da alimentação sedimentar artificial.

A questão dos sedimentos não é de desprezar: em Portugal há mais de 300 barragens e minihí-dricas concentradas nos principais rios do país (Douro, Tejo, Minho, Guadiana, Ave, Sado). Esta quantidade gigantesca de barragens degrada os rios, destrói as suas margens (Fluvissolos e galerias ripícolas) e impede a chegada dos sedimentos ao litoral, contribuindo decisivamente para a erosão costeira. O rio Douro e os seus afluentes têm mais de 60 barragens ao longo do percurso, o que se traduz em perdas de sedimentos na ordem dos 90%, chegando à foz do Douro apenas 250 mil metros cúbicos de sedimentos, quando nos anos 60 este volume era de 1.8 milhões de metros cúbicos. Como resultado, além dos graves efeitos causados pelas barragens aos rios no seu percurso, o abastecimento de areias desde o Douro até à Nazaré não se faz, com recuo da linha de costa várias metros todos os anos, em todas as praias. Nesse sentido, um programa nacional de desmantelamento de barragens

Existem em Portugal mais de 70 barragens com mais de 50 anos de idade e cerca de uma de-zena com mais de 100 anos, ainda presentes nos rios. Muitas já não servem os propósitos para os quais foram construídas. As barragens obsoletas, já muito além do fim da sua vida útil, com fadiga dos materiais, acumulação e solidificação de sedimentos a montante e no fundo das albufeiras, que constituem em muitos casos perigo público, com produção de energia irrele-vante, deverão ser demolidas num programa público destinado a esse efeito.

Além disso, o Programa Nacional de Barragens de Elevado Potencial Hidroeléctrico deve ser travado, por representar apenas 0,5% do consumo de energia primária do país, 3% da procura de electricidade e 2% do potencial de poupança energética nacional, além de se destinar a rios que já têm outras barragens, e com a previsão de agravamento da escassez de água.

AGRICULTURA

As alterações a nível de temperatura e regime hídrico, com a existência de épocas de

elevadas temperaturas e secura, assim como de eventos de elevada precipitação aumentam levar a um aumento de risco de aridez e desertificação. A alteração do regime de chuvas com aumento da precipitação no Outono e Inverno e redução na Primavera vai agravar este pro-blema. A artificialização agrícola das últimas décadas tornar-se-á cada vez mais evidente, com inputs agrícolas cada vez mais caros e insustentáveis.

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Os sistemas agrícolas altamente intensivos, com elevada dotação de rega causará um aumen-to da salinização e sodização dos solos, assim como a degradação da qualidade dos aquíferos. As alterações climáticas implicam para estes sistemas uma necessidade crescente de água, com aumento do período de rega e aumento da evapotranspiração. Isto ocorrerá num cenário em que a água estará menos disponível e terá menos qualidade.

A agricultura em Portugal, em particular no Sul, sempre utilizou técnicas de conservação de solos e água. Mas já são insuficientes. É imprescindível realizar importantes adaptações a nível dos sistemas agrícolas, alterando culturas e mantendo regadios apenas nos raros casos em que há garantias de água de qualidade (uma situação que é já rara em Portugal e tenderá a agravar-se). Os sistemas intensivos, com elevados aportes de água e químicos tornar-se-ão crescentemente insustentáveis até a nível económico (uma vez que será cada vez necessária mais água, que será cada vez mais escassa e cara), pelo que a necessidade de adaptação às novas condições deve começar imediatamente. As técnicas de mobilização mínima, a reutili-zação de culturas mais antigas e melhor adaptadas às condições semi-áridas (por exemplo o sorgo, milho-alvo, milho painço, entre centenas de outras), as forragens de corte são opções válidas que têm de ser reforçadas imediatamente com investigação aplicada e com a abertura de financiamento público para estas áreas. O aporte de químicos também deverá reduzir-se de forma a reduzir a emissão de gases com efeito de estufa, em especial no caso do azoto, recorrendo a meios biológicos de fixação e aumento da fertilidade dos solos. A maior disponi-bilidade de CO2, cuja concentração atmosférica é crescente, poderá também compensar essa falta de aporte sintético.

Para aumentar a segurança alimentar há necessidade premente de difundir a agricultura a solos abandonados e diversificação das culturas cultivadas, em particular as tradicionais e em regimes menos desperdiçadores de energia e de fertilidade do solo (orgânicos e biológicos).

A gestão da pecuária também deverá apostar crescentemente na extensificação, uma vez que os elevadíssimos custos eléctricos (que, como a refrigeração, aumentarão com o aumento da temperatura) e de saúde (que também aumentarão com a provável expansão de vectores de doenças para o território nacional), aliados à quantidade de nutrientes perdidos com as explo-rações intensivas em especial a pecuária sem terra, de poderão ser compensados na ocupação de pastagens fertilizadas directamente pelos animais em regimes livres e semi-livres.

A aposta em biocombustíveis deve ser abandonada. Além de reduzir a segurança alimentar, a aposta e o incentivo às culturas agro-energéticas compete directamente com os melhores solos para a produção do alimento e emite mais gases com efeito de estufa do que os próprios combustíveis fósseis.

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EPÍLOG0

Este breve exercício de possibilidades deixa elencados alguns pontos-chave numa estratégia pública para lidar com as alterações climáticas. Não é possível sequer equacionar cenários de business as usual, porque já não existe mais as usual. Isto significa que ser coerente e poder lidar mesmo com o nosso futuro implicará mudar todo o sistema em que vivemos. As resis-tências serão gigantescas, porque são os principais centros de poder e os principais donos disto tudo que não aceitarão ser privados da sua acumulação infinita de riqueza. Senão ve-jamos: entre as principais exportações de Portugal estão os combustíveis refinados, automó-veis (ironicamente, Volkswagen), pasta de papel, produtos agrícolas e minérios. Estas serão das principais áreas afectadas numa estratégia séria. A questão de empregos não é de todo desprezível, pelo contrário. E se esta estratégia permitisse simultaneamente combater a crise do desemprego e a crise climática? Criar milhões de postos de trabalho na conversão indus-trial, na gestão territorial, florestal e agrícola? Na investigação? Na reconversão energética? Na educação pública? Na reabilitação urbana? Não estamos a falar aqui em menos do que uma revolução que requererá milhões de braços. E este será um processo social ou não será de todo. Sindicatos, organizações de trabalhadores, partidos de esquerda, movimentos sociais, ambientalistas, movimento de soberania alimentar, entre tantas outros, terão de ganhar o es-paço, não para defenderem a natureza, mas para garantirem a sua própria defesa. E se a luta continua, e continua sempre, hoje talvez tenhamos de começar a olhar para ela não como uma corrida de fundo. É que o contrarrelógio já está a andar.

O aumento das desigualdades em Portugal, um dos problemas mais graves que o país enfrenta, sendo causa de muitos outros problemas

EUGÉNIO ROSA

(este artigo tem como base o livro publicado pela Leya/Lua de Papel, “Os Números da desigualdade em Portugal”)

A questão das desigualdades, como ponto de partida de análise dos problemas do país, permite ter um fio condutor que não só torna mais fácil a identificação dos principais problemas que enfrenta a sociedade portuguesa mas possibilita também detetar muitas das suas causas, assim como apresentar medidas adequadas para as eliminar ou reduzir e, na medida que se consegue, resolvem-se outros problemas que, à primeira vista, pareciam não ter qualquer

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relação com a questão das desigualdades. Neste artigo, devido à escassez de espaço, vamo-nos limitar a abordar apenas alguns aspetos.

O agravamento das desigualdades é um problema social grave, na medida que é causa do aumento da miséria sendo, por isso, também causa do aumento de instabilidade social e politica. E é também um problema económico, na medida que reduz o rendimento das classes mais numerosas e com maior propensão ao consumo e aumenta enormemente o rendimento das de menor propensão, criando assim obstáculos graves ao crescimento económico e ao desenvolvimento. Portanto, estudá-lo e compreendê-lo é, a nosso ver, um passo importante para resolver os problemas do país.

A PRIMEIRA CAUSA DAS DESIGUALDADES É A PROPRIEDADE

Contrariamente ao que muitos afirmam, ou pretendem fazer crer, a causa mais importante das graves desigualdades que existem numa sociedade é a propriedade e não o trabalho e as pensões. Muitos investigadores que se preocupam com o problema das desigualdades, mesmo no nosso país, têm limitado o seu estudo às desigualdades no seio dos rendimentos do trabalho ou das pensões, acabando por gerar a falsa ideia de que as principais desigualdades são estas ou se resumem a estas. Isso não corresponde à realidade. Mesmo com os poucos dados que são disponibilizados em Portugal sobre esta questão rapidamente se conclui que é a propriedade a principal causa das grandes desigualdades que existem na sociedade portuguesa.

Assim, se utilizarmos os dados disponíveis divulgados pelo INE, que embora não sejam muito rigorosos mas que são os únicos existentes, para analisar a repartição primária da riqueza criada em cada ano em Portugal entre o Trabalho e o Capital rapidamente se chega a essa conclusão. Se analisarmos esses dados, que são os das Contas Nacionais divulgadas pelo INE referentes à evolução dos “Ordenados e salários” (valor afeto à remuneração do fator Trabalho) e ao Excedente Bruto de Exploração (valor afeto à remuneração do fator capital), concluímos que, entre 2007 (ano de inicio da crise) e 2014 (último ano em que existem dados disponíveis), se verificou a seguinte evolução:

Em 2007, a parte dos “ordenados e salários” no PIB correspondia a 36,2%, enquanto a do Excedente Bruto de Exploração representava já 40,9%. E entre 2007 e 2014, esta relação agravou-se ainda mais pois a parte do Trabalho diminuiu para 34,5%, enquanto a do Capital aumentou para 43,4%. Portanto, a desigualdade na repartição primária da riqueza no nosso país agravou-se com a crise. Mas esta desigualdade ainda se torna mais chocante quando, utilizando também dados também divulgados pelo INE sobre a população empregada, se conclui que, entre 2007 e 2015, a percentagem de “Patrões” diminuiu de 5,2% para apenas 4,7% da população empregada, ou seja, desapareceram 72.000 “patrões”, ou seja “trabalhadores por conta própria com pessoal ao serviço” para utilizar a definição do INE. Portanto, a crise contribuiu para acelerar a centralização da riqueza em Portugal, concentrando numa minoria

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cada vez mais reduzida a maior parte da riqueza criada no país (a 77,9% da população empregada - trabalhadores por conta de outrem - cabia apenas 34,5% da riqueza criada, enquanto 4,7% - os patrões- apropriava-se de 43,4%), o que contribui para um enorme agravamento das desigualdades.

Esta situação foi agravada por uma rápida financeirização da economia portuguesa já que, entre 1997 e 2014, segundo o INE, o valor dos ativos financeiros aumentou 117% (cresceu de 541.716 milhões € para 1.175.778 milhões €), enquanto o PIB, a preços correntes, aumentou apenas 70,5% (passou de 102.357 milhões € para 174.549 milhões €). Isto permitiu que o Capital Financeiro se apropriasse de uma parte da mais-valia criada em setores produtivos, contribuindo para a anemia de muitos deles.

A REPARTIÇÃO SECUNDÁRIA DO RENDIMENTO AGRAVOU AINDA MAIS AS DESI-GUALDADES EM PORTUGAL

A repartição primária da riqueza criada anualmente é ainda agravada pela repartição secundária já que o rendimento disponível com que ficam as diferentes classes sociais não é o que resulta da primeira repartição. E um instrumento importante de agravamento é um sistema fiscal profundamente anti-democratico que, violando a própria Constituição da Republica (parte final do nº1 do artº 103), reparte de uma forma injusta a carga fiscal.

De acordo com os últimos dados divulgados pela Autoridade Tributária (Ministério das Finanças), que são de 2012, os rendimentos do trabalho e de pensões representavam 90,5% do total dos rendimentos declarados para efeitos de IRS, cabendo aos restantes rendimentos (capital, propriedades, mais-valias, etc.) apenas 9,5%. É evidente que a situação atual não é muito diferente. E entre 2012 e 2015, as receitas fiscais totais aumentaram 4.492 milhões €, tendo atingido, as que têm como origem o IRS, 3.628 milhões €, ou seja, representaram 80,8% do aumento verificado. Em 2015, as receitas com origem no IRS já representam 33,9% das receitas fiscais totais, enquanto em 2012 correspondiam a 28,3%. É evidente que foram os rendimentos do trabalho e as pensões os mais atingidos pela politica de austeridade, o que contribuiu para agravar ainda mais as desigualdades.

O AGRAVAMENTO DAS DESIGUALDADES TOMOU AINDA OUTRAS FORMAS EM PORTUGAL

O problema do agravamento das desigualdades não se reduz à repartição primária da riqueza criada no país, nem apenas ao sistema fiscal. Ele tem também muitas outras dimensões – prestações sociais, educação saúde, etc. – que interessa estudar para se poder tiver uma ideia clara da sua dimensão.

Assim quando se congelam ou cortam pensões, incluindo as de valores extremamente baixos

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como se verificou desde 2010 (as pensões de valor superior a 260€ não têm qualquer aumento desde aquele ano); quando se cortam nas prestações sociais (subsidio de desemprego, rendimento social de inserção, complemento solidário de idoso, abono de família, etc.), impedindo o acesso a elas de portugueses que precisam de as receber para poderem sobreviver, e os empurram para o assistencialismo da “sopa dos pobres”; quando se corta na despesa pública com a educação e com o Serviço Nacional de Saúde; quando se reduz significativamente o numero de profissionais destes serviços, o que leva inevitavelmente à redução em quantidade e qualidade destes serviços essenciais prestados à população, tudo isto contribui também para o agravamento das desigualdades, já que passarão a ter acesso a eles fundamentalmente quem tenha dinheiro para os pagar, sendo excluído do seu acesso uma percentagem crescente da população de médios e baixos recursos. Foi isso precisamente isso o que tem sucedido.

O CORTE NAS PRESTAÇÕES SOCIAIS, NA SAÚDE E NA EDUCAÇÃO ATINGIU A POPULAÇÃO DE MENORES RECURSOS AGRAVANDO AS DESIGUALDADES

Entre Novembro de 2010 e Junho de 2015, o numero de beneficiários do rendimento social de inserção diminuiu de 234.883 para 208.974 (- 25.909); o número de crianças com direito a abono de família reduziu-se de 1.392.096 para 1.140.988 (-251.108), numa altura em que o PSD/CDS fala tanto do apoio às famílias; o numero de desempregados a receber subsidio de desemprego caiu de 308.915 para 266.907 (-42.008). Como consequência, segundo o INE, a população portuguesa em risco de pobreza ou de exclusão social aumentou, entre 2011 e 2014, de 24,4% para 27,5%; em valores absolutos passou de 2.560.000 para 2.887.000. Por outro lado, a taxa de risco de pobreza após as transferências sociais subiu, no mesmo período, de 18% para 19,5%, e a taxa de privação material severa passou de 8,3% para 10,6%. Os efeitos da politica de austeridade nas classes mais desfavorecidas da população portuguesa foram dramáticos, agravando ainda as desigualdades no país.

Esta situação foi ainda mais agravada pelos cortes significativos feitos pela “troika” e pelo governo PSD/CDS na despesa pública com a educação e saúde, tornando mais difícil o acesso a estes serviços essenciais para o bem-estar dos portugueses e para a redução das desigualdades no país. Assim, entre 2010 e 2015, as transferências do Orçamento do Estado para o Serviço Nacional de Saúde diminuíram, em valores nominais, de 8.849 milhões € para 7.883 milhões € (-966 milhões € a preços correntes, o que correspondeu a um corte de 1.516 milhões € em termos reais), determinando que a despesa corrente pública em saúde a preços correntes por habitante tenha diminuído de 1.109€ para 993€ (- 10,2%) segundo o INE ; no mesmo período, a despesa pública com a educação pré-escolar e com o ensino básico e secundário sofreu uma forte redução pois passou de 5.623,9 milhões € para 4.582,9 milhões € a preços correntes (-18,5%), e a despesa pública com a ciência e o ensino superior também sofreu um corte importante pois diminuiu de 2.503,9 milhões € para 2.306,3 milhões € (-7,9% em valores nominais). Associado a tudo isto, verificou-se uma redução significativa do numero

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de professores no ensino (-23.553) e de bolsas de estudo atribuídas no ensino superior que passou, entre 2010 e 2014, de 72.022 para 45.321 (-37%), segundo o relatório de execução do Programa Operacional Potencial Humano de 2014, que as financiava, o que levou ao aumento da retenção e à exclusão e ao abandono do ensino superior por parte de muitos estudantes de classes mais desfavorecidas, o que agravou as desigualdades.

A PROPOSTA DE PROGRAMA DO GOVERNO DO PS DE COMBATE ÀS DESIGUALDADES

No capitulo VII da proposta de programa de governo com titulo “Mais coesão, menos desigualdades” (pág. 117 e seguintes”) começa-se logo por afirmar que “O combate à pobreza, à exclusão social e às desigualdades impõem-se hoje como um desígnio nacional não somente por razões de equidade e de justiça social, mas também por razões de eficiência e de coesão social” , o que resulta do reconhecimento da gravidade atingida por esta situação em Portugal. Dentro das medidas apontadas destacamos as seguintes:

a) Convergência total do Regime Geral da Segurança Social e da CGA, uma medida cujos efeitos ainda não foram suficientemente estudados;

b) Aumentar a progressividade do IRS, nomeadamente através dos aumento do numero de escalões, uma medida eventualmente positiva no combate às desigualdades;

c) Melhoria das deduções à coleta para os baixos e médios rendimentos, medida eventualmente positiva;

d) Criar um imposto sobre heranças de elevado valor, medida positiva:

e) Introdução de uma cláusula de salvaguarda que limite a 75 euros/ano os aumentos de IMI em reavaliação do imóvel, de habitação própria permanente, de baixo valor, positiva;

f ) Conversão de benefícios fiscais contratuais em IRC em benefícios fiscais de funcionamento automático, uma medida eventualmente negativa;

g) Reverter, no que toca à recente reforma do IRC, a “participation exemption” ( de 5% para o mínimo de 10% de participação social), e o prazo para reporte de prejuízos fiscais (reduzindo dos 12 para 5 anos), uma medida positiva já que esta alteração ao CIRC pelo governo PSD/CDS só tinha beneficiado os grupos económicos;

h) Proibição das execuções fiscais sobre a casa de morada de família relativamente a dívidas de valor inferior ao valor do bem executado e suspensão da penhora da casa de morada de família nos restantes casos, uma medida positiva;

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i) Aumentar o abono de família, o abono pré-natal e a majoração para as famílias monoparentais beneficiárias de abono de família e de abono pré-natal, positiva;

j) Reformular as classes de rendimento de acesso ao abono de família para que as crianças em situação de pobreza, e em particular, em situação de pobreza extrema, tenham acesso a recursos suficientes para melhorar o seu nível de vida, positiva.

A maioria desta medidas, incluindo o descongelamento das pensões anunciado, são positivas ou eventualmente positivas, embora o seu real impacto só será avaliado quando se conhecer as leis com as medidas concretas. No entanto, elas ainda não se podem considerar um verdadeiro plano de combate eficaz às desigualdades porque não tocam nas raízes das desigualdades, procuram apenas reduzi-las, mas não eliminá-las.

Pode a esquerda romper com a austeridade?

ALEXANDRE ABREU

À medida que aumenta a probabilidade de que em breve tome posse um governo apoiado numa maioria parlamentar de esquerda, ganha também maior relevância a questão dos limi-tes que se colocarão à acção deste governo em virtude das circunstâncias em que toma posse. É sabido que as regras orçamentais europeias, o serviço da dívida acumulada e a pertença à zona euro colocam constrangimentos profundos à margem de manobra de qualquer governo – e o futuro governo de esquerda não é excepção. E é também sabido que a forma como são encarados estes constrangimentos é um dos principais pontos de divergência entre os par-tidos que constituem a maioria em que assentará este futuro governo. Enquanto o Bloco de Esquerda e a CDU estão disponíveis para romper com estes constrangimentos e consideram que em última instância será necessário fazê-lo, o Partido Socialista tem recusado sempre tais posições de ruptura, apostando antes numa estratégia cooperativa que visa a obtenção gra-dual de espaço de manobra adicional e a modificação das estruturas europeias.

Dentro da nova maioria parlamentar, esta segunda posição é claramente maioritária – sen-do aliás também claramente maioritária no seio da maioria social que lhe subjaz. Não é só a maioria da sociedade portuguesa que não está (ainda) disposta a assumir a necessidade de romper com estes constrangimentos – é também a maioria do eleitorado de esquerda. A meu ver isso reflecte essencialmente o grau de maturação actual da sociedade portuguesa face aos

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constrangimentos do euro, da dívida e das regras orçamentais europeias, o qual tenderá com certeza a evoluir no futuro – mas independentemente de assim ser, é essa a realidade política presente. Ora, assim sendo, é óbvio que o programa e a acção do futuro governo de esquerda têm de ser concebidos e executados a partir desta posição maioritária, dentro dos constran-gimentos a que me tenho estado a referir. E isso corresponde exactamente às indicações que têm sido dadas por PS, BE e CDU.

Em face disto mesmo, a questão fundamental que se coloca é qual o espaço de manobra de um futuro governo de esquerda para, sem rasgar estes compromissos, implementar um pro-grama de governo que dê corpo a uma verdadeira mudança de política e permita romper com a austeridade. É uma questão importante no plano económico, claro está, mas é-o também tanto ou mais do ponto de vista político – especialmente para a direita e para a esquerda à esquerda do PS.

Para a direita, como explicou o João Rodrigues nos Ladrões de Bicicletas, é da avaliação da maior ou menor eficácia destes constrangimentos enquanto espartilho das veleidades gover-nativas da esquerda que depende a opção entre o “esperar para ver” assente numa expectativa de futilidade (“nada de relevante mudará”) ou, em alternativa, a passagem a uma ofensiva mais agressiva, sacrificando a máscara do liberalismo a bem da preservação das estruturas de privilégio e dominação. Para a esquerda à esquerda do PS, a mesma avaliação estratégica é igualmente importante, mas em sentido simétrico: a ser verdade que nada de relevante pode-rá mudar, o apoio a um governo em tais circunstâncias seria uma opção estratégica desastrosa, que não deixaria de implicar custos políticos significativos e duradouros.

Não penso ser esse o caso. Em diversos sentidos muito importantes, é possível romper de for-ma significativa com a austeridade mesmo dentro dos constrangimentos do euro, da dívida e das regras europeias. Os planos principais em que estes constrangimentos se fazem sentir são, por um lado, a pressão sobre o orçamento (directamente por via das regras e indirectamente por via do serviço da divida) e, por outro lado, o equilíbrio das contas externas (por causa da inexistência de autonomia cambial). E quer num plano quer no outro, é possível fazer diferen-te, e muito melhor, do que a direita.

No plano orçamental, vale a pena recordar que é possível alcançar o mesmo saldo com dife-rentes combinações de receita e despesa – sendo também conhecido, inclusivamente por via de análises empíricas do próprio FMI, que em contextos de forte subutilização da capa-cidade produtiva o multiplicador da despesa é muito maior do que o multiplicador da receita. Isto significa que o mesmo resultado orçamental será menos recessivo se alcançado através de aumentos de impostos do que de cortes da despesa – e mais expansivo se obtido mediante aumentos da despesa do que de cortes de impostos.

Sabendo-se entretanto que a carga fiscal é já extremamente elevada, sobretudo para a classe média, a forma socialmente mais justa e economicamente mais eficaz de fazê-lo será através do aumento da tributação sobre os mais ricos, não só em sede de IRS (que tributa o fluxo) como incidindo também sobre a riqueza (o stock). Para um mesmo saldo orçamental, conse-guir-se-á assim não apenas mais justiça social, corrigindo a iníqua distribuição dos sacrificios

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que tanto agravou a pobreza e a desigualdade nos últimos quatro anos, como um melhor desempenho macroeconómico, dado o mais elevado multiplicador orçamental da despesa e e a maior propensão para o consumo dos grupos de menor rendimento. As medidas de redis-tribuição não se limitam a promover a justiça social; são também expansivas do ponto de vista macroeconómico.

Mas a esquerda pode também fazer melhor ao nível das contas externas, mesmo dentro dos constrangimentos conhecidos. Neste domínio, a estratégia da direita (a chamada desvaloriza-ção interna) consistiu em promover a desvalorização dos salários em toda a economia (tanto no sector exportador como não-exportador), de modo a alcançar ganhos de competitividade externa, a par da redução das importações por via da compressão do poder de compra. Esta estratégia revelou-se não só socialmente nefasta e injusta, prejudicando os trabalhadores, como também em larga medida contra-producente (pois acentua a recessão, na medida em que os salários são uma componente central da procura interna). Mesmo na ausência de ins-trumentos mais adequados (designadamente a moeda própria), a actuação da esquerda deve distinguir-se por ser muito mais direccionada para o sector exportador, através do apoio à ino-vação e à inserção internacional e através da redução dos custos não-laborais. Há muito que pode ser feito para promover o equilíbrio das contas externas sem por em causa os salários.

Mas acima de tudo, a esquerda pode e deve romper com a austeridade mesmo sem por em causa os compromissos internacionais porque, em última instância, a austeridade não é uma questão meramente macroeconómica, mas uma questão de justiça e injustiça social. Mais do que um qualquer saldo orçamental, austeridade significa ataque ao estado social, redução dos apoios sociais e corte dos salários e pensões. É outro nome para o aprofundamento da desi-gualdade em benefício dos interesses particulares das elites. E se o euro, a dívida e as regras europeias limitam os ganhos que podem ser alcançados a esse nível, não impedem que se detenha e comece a inverter o rumo de degradação a que temos sido sujeitos.

(inicialmente publicado em http://expresso.sapo.pt/blogues/bloguet_economia/blogue_econ_alexandre_abreu/2015-10-28-Pode-a-es-querda-romper-com-a-austeridade-)

A Segurança Social nos Programas Eleitorais

EDUARDA RIBEIRO, ISABEL ROQUE DE OLIVEIRA, MARGARIDA CHAGAS LOPES

O Grupo Economia e Sociedade (GES) tem vindo a reflectir sobre a Segurança Social, enquan-to direito fundamental de cidadania, pilar do Estado Social e garante da coesão social. Como

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resultado desta reflexão, o GES divulgou uma Tomada de posição, em Maio do ano corrente, denominada “Reforçar a Segurança Social: uma necessidade política e uma exigência ética” aqui. A análise dos programas eleitorais nas matérias relacionadas com a Segurança Social tomou como base aquela Tomada de posição, o que permitiu retomar quase integralmente os princípios e objectivos defendidos naquele texto.

1.O DIREITO À SEGURANÇA SOCIAL

Entre as funções que cabe ao Estado assegurar nos termos da Constituição da República Por-tuguesa conta-se a de “Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e a modernização das estruturas económicas e sociais” ((artº 9º d)).

O direito à segurança social e à solidariedade encontra-se também inscrito na Lei fundamen-tal, que estabelece a competência do Estado neste domínio, bem como em diplomas legais que, ao longo dos anos, têm vindo a definir os termos em que a mesma deve ser exercida.

Bem sabemos como se revelaram importantes, sobretudo nos últimos anos, estas balizas jurí-dicas, sem as quais o argumento da necessidade de combate à crise teria servido para impor um interregno na garantia dos direitos constitucionais.

Acresce que, sendo o direito à segurança social um direito fundado na dignidade da pessoa humana, a sua realização e promoção constitui um imperativo ético (e não apenas legal) a defender em todas as circunstâncias, sobretudo quando se fazem sentir os efeitos das crises sobre as condições de vida das pessoas.

Lamentavelmente, não tem sido este o entendimento do poder político, que tem optado por privilegiar os interesses dos credores externos, ou seja, estabeleceu uma hierarquia de direitos não validada democraticamente nem eticamente defensável, onde o direito à segurança so-cial foi remetido para os níveis mais baixos.

De facto, em consequência de sucessivos cortes do Orçamento de Estado, foi prejudicado o acesso e a qualidade dos serviços públicos de Educação e de Saúde, ao mesmo tempo que se limitaram as prestações da Protecção Social do regime não contributivo, precisamente quan-do as condições de vida das pessoas se agravaram de forma severa, como o atestam as es-tatísticas nacionais. Importa esclarecer sobre alguns equívocos relacionados com a pretensa generosidade do nosso sistema de prestações sociais. A invocação dessa generosidade tem sido por vezes utilizada para, de alguma maneira, desculpar e relativizar os cortes verificados nas prestações sociais. Acontece porém que, em Portugal, não só a parte representada pelas despesas com a Segurança Social no PIB é inferior à média dos países da União Europeia, como a capitação das prestações sociais, mesmo quando medidas em paridades de poder de com-pra, atinge valores substancialmente inferiores à média europeia.

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Deve ainda ser referido que a redução das pensões de reforma do regime contributivo e o tra-tamento fiscal a que foram sujeitas – medidas estas que só não foram mais longe por oposição do Tribunal Constitucional – penalizaram uma proporção elevada da população que se incluía na classe média e abriram um precedente grave no contrato de confiança celebrado com o Estado, com impacto futuro ainda difícil de prever.

As políticas de austeridade, e o consequente retrocesso dos sistemas públicos de protecção so-cial, traduziram-se não somente num aumento da população em situação de pobreza mas tam-bém no acentuar das condições de precariedade económica e social dessa mesma população. O aumento da pobreza e da precariedade social foi igualmente acompanhado pelo acentuar das desigualdades na distribuição dos rendimentos.

Para além do que são os efeitos imediatos de tais políticas no bem-estar das pessoas, é claro que elas consubstanciam um retrocesso civilizacional, na medida em que, progressivamente, se vai diluindo a consciência dos direitos sociais e das obrigações do Estado Social, substituí-da por uma limitada visão assistencialista.

É tempo de afirmar que o modelo de sociedade que queremos construir passa pela defesa dos direitos sociais como obrigação não delegável do Estado, pelo que é incompatível com a noção de que tais direitos possam ser tomados, em qualquer circunstância, seja ela de crise, como a variável de ajustamento.

2.ALGUMAS QUESTÕES CENTRAIS DA SEGURANÇA SOCIAL

Na abordagem aos Programas Eleitorais optou-se por não analisar todas as medidas de Segu-rança Social, mas tão só chamar a atenção para as propostas relacionadas com algumas das questões que se consideraram como mais importantes e que porventura vão influenciar a condução de uma futura reforma do sistema.

2.1.SUSTENTABILIDADE

Qualquer modelo de Estado Social e, em particular, qualquer sistema de Segurança Social é susceptível de ser melhorado e o português não será excepção. O que importa é que os prin-cípios de universalidade, solidariedade e equidade social, que estão na base da sua criação, sejam sempre salvaguardados. Dito de outra forma: as reformas da segurança social devem ser ditadas pelo objectivo de acrescentar o bem- estar social, promovendo uma justa partilha de riscos entre grupos sociais e entre gerações.

Certamente que uma reforma da segurança social tem que dar atenção à sua sustentabilida-de financeira, quer incida sobre a vertente não contributiva, destinada à protecção social de cidadania, suportada pelo OGE, quer sobre o sistema previdencial, assente no princípio de so-lidariedade de base profissional, alimentado pelas contribuições de trabalhadores e empresas.

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Mas constitui erro grave, no esboço e na implementação das reformas da Segurança Social, mini-mizar a preocupação com a sua sustentabilidade social e política, por ausência ou insuficiência de um debate alargado capaz de estabelecer um compromisso democrático de longo alcance. Como é evidente, não é sob a coacção de argumentos de ordem financeira – tantas vezes tendenciosos ou pouco transparentes - e do dogma da inevitabilidade de redução de custos, que devem ser promovidas reformas em sector tão importante. Assim o exige o respeito pela legalidade constitucional e o sentido de justiça perante os que mais seriamente têm sofrido o impacto das políticas de austeridade.

Tal não prejudica que algumas medidas, de índole organizativa ou institucional, possam (e devam) ser concretizadas, com resultados em termos de eficiência dos recursos da seguran-ça social e, inclusivamente, na facilitação do acesso a prestações sociais. Uma questão que tende a ser ignorada, quando se argumenta com a insuficiência dos recursos financeiros, é a necessidade de inventariar as razões que a explicam para sobre elas actuar eficazmente. Está em causa uma questão de método, mas, acima de tudo, a inaceitável redução de apoios sociais que o Estado deve prestar a grupos particularmente vulneráveis e que têm vindo a ser particularmente afectados pelas políticas de austeridade.

A preocupação com a sustentabilidade do sistema previdencial da segurança social levaria a considerar prioritárias as questões que, a montante do sistema de pensões, estão a contribuir para a redução progressiva dos seus recursos financeiros: o já denominado “inverno demográ-fico, ”o peso crescente do desemprego de longa duração, a emigração e o encurtamento dos períodos contributivos.

Em vez de sucessivas reformas paramétricas do sistema de pensões que, a prosseguirem, redu-zem os benefícios garantidos e aumentam a desconfiança de quem efectua descontos sobre os seus salários, bem melhor seria a aposta na promoção do crescimento e do emprego e na regulação do mercado de trabalho que garantisse a  estabilidade do vínculo laboral e um sa-lário digno.

Consideramos que um sistema de pensões inspirado no ideal de solidariedade, como é o sis-tema de repartição (as contribuições dos que hoje trabalham pagam as pensões dos refor-mados), é o que se apresenta com maior potencialidade na construção de uma sociedade de bem-estar. Importa pois defendê-lo contra modelos de capitalização privada, inspirados na ideologia neo-liberal ou contra a tendência para transpor modelos de outros países sem aten-der às profundas diferenças de contexto económico e social.

Com a finalidade de salvaguardar a sustentabilidade da Segurança Social, a Coligação Portugal à Frente defende o plafonamento das contribuições para as gerações mais jovens, ou seja, que a partir de um tecto salarial (que não foi definido) os descontos dos trabalhadores que entram no mercado de trabalho sejam canalizados para capitalização em fundos privados ou mu-tualistas, o que para além de contribuir para uma redução das receitas actuais da Segurança Social, só a muito longo prazo poderia fazer baixar as despesas, numa percentagem mínima, dado o fraco peso das pensões muito elevadas no total das pensões. A Coligação advoga ain-

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da uma aposta efectiva no desenvolvimento dos planos complementares de reforma. Estas propostas traduzir-se-iam numa mudança substancial do modelo vigente, já que põe em cau-sa o princípio da solidariedade intergeracional, ou seja, aquele em que cada geração sustenta a que a antecede, ficando com o direito de ser sustentada pela seguinte

O Programa do PS defende o reforço da sustentabilidade através da tomada em consideração da idade da reforma e da esperança de vida, da evolução demográfica, de mudanças no mer-cado laboral. O PS propõe ainda uma redução temporária da TSU dos trabalhadores, como for-ma de permitir o aumento dos rendimentos das famílias e, consequentemente, a dinamização da procura e o crescimento do emprego. Considera que se devem reforçar os instrumentos de apoio à complementaridade com instrumentos individuais de poupança.

Os pressupostos que serviram para realizar os cálculos apresentados para suportar estas pro-postas não parecem contudo totalmente satisfatórios. De facto, trata-se de medidas que não estão isentas de riscos, não só do lado da recuperação das receitas como dos efeitos previstos sobre o emprego. Há ainda o risco de se fazer enfraquecer a ligação das pensões à TSU.

O programa da CDU recusa a indexação das pensões a factores demográficos e económicos às pensões; é contra o plafonamento; pretende reforçar o financiamento do sistema previdencial e combater a redução da TSU; e é a favor das transferências do OE para o regime não contri-butivo, combatendo uma visão assistencialista e caritativa. Sugere ainda que se acabe com a utilização das receitas da Segurança Social, resultantes das contribuições dos trabalhadores e das empresas, como instrumento de política económica, canalizando-as para garantir uma melhor protecção social aos trabalhadores, aos reformados e pensionistas.

O Livre – Tempo de Avançar pretende contrariar a tomada em consideração do adiamento da reforma e do factor de sustentabilidade no cálculo das pensões. Defende uma segurança so-cial pública ampliada e modernizada. Pretende reforçar a qualidade e a eficiência dos seus serviços, assegurar a sustentabilidade e a estabilidade do sistema, respeitando as normas constitucionais, preservando o regime previdencial de repartição com benefício definido e assegurando um sistema unificado, descentralizado e participado assente nos princípios da universalidade e da solidariedade.

2.2.DIVERSIFICAÇÃO E ALARGAMENTO DAS FONTES DE FINANCIAMENTO

Os Programas não estarão entretanto contra uma diversificação e alargamento das fontes de financiamento da Segurança Social, embora mantendo como suporte essencial as contribui-ções de regime previdencial, como forma de reforçar a sua sustentabilidade. Nem todos são claros a este respeito, nem apontam para medidas concretas.

A CDU sugere a criação de uma contribuição sobre as empresas com elevado Valor Acrescen-tado Líquido por trabalhador e a afectação de 0,25% do imposto a criar sobre as transacções financeiras ao reforço do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS). Pre-

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tende ainda que se promova uma gestão pública cuidada e criteriosa do FEFSS, garantindo a transferência de uma parcela entre dois e quatro pontos percentuais correspondentes a todas as contribuições (e não apenas as contribuições dos trabalhadores por conta de outrem) até que aquele fundo assegure a cobertura de despesas previsíveis com pensões por um período de dois anos.

O PS propõe, para além do imposto sobre heranças superiores a um milhão de euros, o aumen-to da TSU das empresas com precariedade elevada, o alargamento aos lucros das empresas da base de incidência da contribuição das empresas, reduzindo porém a componente que incide sobre a massa salarial dos contratos permanentes.

Para reforçar o financiamento do sistema de segurança social, o Livre – Tempo de Avançar defende que o combate à evasão contributiva na Segurança Social seja acompanhado pelo alargamento da base contributiva a outras fontes de rendimento, mantendo como suporte essencial do regime previdencial a taxa social única (TSU) e a contribuição dos rendimentos do trabalho, prevendo neste caso uma real aproximação da contribuição à remuneração total efectiva e não apenas ao salário base.

De um modo geral entendemos de apoiar a diversificação das fontes de financiamento e o alargamento da base de incidência dos descontos, bem como a discriminação positiva das empresas com melhores práticas no mercado laboral.

2.3 DERIVA ASSISTENCIALISTA E DEMISSÃO DO ESTADO

Em Portugal, a ausência de respostas públicas que cubram satisfatoriamente as necessidades das famílias mais vulneráveis tem sido compensada pela existência de um forte terceiro sector, significativamente apoiado por transferências do OE.

O papel desempenhado pelas IPSS, Misericórdias, Mutualidades e outras organizações de ca-racter não lucrativo, reveste-se de grande relevo e é revelador de uma sociedade civil acti-vamente envolvida na luta contra a pobreza e a protecção dos estratos mais desfavorecidos. Sem desmerecer a actividade destas instituições, importa porém reflectir sobre as questões de legitimidade, de eficiência e de eficácia suscitadas pela actual situação.

De facto, o aumento da taxa de pobreza em Portugal coexistiu com uma diminuição do gasto público com prestações sociais de combate à pobreza, como são os casos do Rendimento So-cial de Inserção e do Complemento Social de Idosos, que estão sujeitos a condição de recurso, ao mesmo tempo que aumentou a despesa com a acção social, muito influenciada pelo cresci-mento dos acordos de cooperação com o terceiro sector. Este, por dificuldades financeiras, não teve condições de ir além de dar respostas a situações de emergência social. Entendemos que esta deriva assistencialista decorre de uma escolha política errada por prejudicar a garantia de direitos sociais de cidadania. Pelo facto do Estado ter vindo a diminuir a sua parcela de co--financiamento, corre-se ainda o risco daquelas organizações procurarem captar preferencial-

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mente a adesão de famílias de maiores rendimentos, com o inerente risco de enviesamento.

O Programa da CDU propõe um efectivo reforço das transferências anuais do Orçamento de Estado visando garantir prestações sociais que asseguram direitos básicos aos cidadãos em situação de carência económica e defende

a responsabilidade do Sistema Público de Segurança Social na realização dos objectivos da Acção Social, quer na atribuição de apoios de carácter eventual e em condições de excep-cionalidade, quer na gestão dos equipamentos da Rede de Equipamentos e Serviços Sociais. Para tanto, importa definir a relação do Estado com as instituições de solidariedade social no respeito pela Constituição e no apoio ao seu papel complementar quanto aos objectivos da Acção social e da Rede de Equipamentos e Serviços Sociais.

O Bloco de Esquerda coloca no centro das suas propostas a requalificação das funções sociais do Estado, nas suas diversas áreas de intervenção, não desenvolvendo porém medidas concre-tas relativamente à Segurança Social.

Embora sem se referir expressamente à questão em análise, o Livre – Tempo de Avançar afirma que a condição de recursos deve servir como instrumento da satisfação responsável e rigorosa de direitos sociais e não de repressão e estigmatização dos cidadãos que recorrem às presta-ções, a pretexto de reduzir a despesa pública.

Quase todos os Programas Eleitorais advogam uma maior transparência do sistema de pres-tações sociais, o que para além das vantagens ligadas ao aumento da confiança e credibilida-de no sistema, poderia constituir um contributo importante para revigorar as relações com o terceiro sector, no contexto de escolhas políticas claras quanto à defesa dos direitos sociais de cidadania. Refira-se que o actual co-financiamento do terceiro sector pelo Estado está depen-dente de opções políticas, que variam ao longo do tempo, o que constitui um elemento de incerteza relativamente ao seu futuro.

3. AS CONDIÇÕES PARA A REFORMA DA SEGURANÇA SOCIAL

As preocupações com a Segurança Social, designadamente no que se refere à sustentabilida-de do sistema de pensões, têm estado no centro do debate sobre a capacidade de Portugal defender um modelo viável no médio e no longo prazo.

As reformas paramétricas que têm sido adoptadas mais recentemente não respondem às ne-cessidades decorrentes da manutenção e desenvolvimento exigidas por um Estado Social mo-derno e capaz de responder eficazmente aos desafios que se vão colocar no futuro.

Para além da panóplia de medidas constante dos Programa Eleitorais analisados, visando con-tribuir para mudanças no sistema vigente, há referências expressas a uma reforma global da Segurança Social nalguns dos Programas.

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O Livre – Tempo de Avançar considera que a reforma da Segurança Social pública deve assentar num intenso diálogo social e em acordos políticos alargados. Este processo deverá ser con-duzido por uma comissão genuinamente plural e os estudos produzidos por esta comissão debatidos no Conselho Económico e Social, com contributos de organizações representativas de reformados e de trabalhadores precários, e não apenas na Comissão Permanente de Con-certação Social ou no Parlamento.

O Programa do PS entende que qualquer reforma deverá resultar de estudos transparentes, disponibilizando informação estatística rigorosa e clara, escrutinada não apenas pelos parti-dos no Parlamento mas também pelos parceiros sociais em sede de Concertação Social, pela academia e pelos movimentos sociais (nomeadamente de reformados e pensionistas, de pre-cários). Para tal, haverá que avaliar com rigor a evolução do sistema de Segurança Social nos últimos anos, o impacto das medidas tomadas e os efeitos da crise económica nos equilíbrios financeiros dos sistemas de pensões, bem como os novos desafios que se colocam decorren-tes das transformações demográficas e do mercado de trabalho;

A Coligação Portugal à Frente considera que a reforma e a viabilização da Segurança Social é algo de inevitável num prazo relativamente urgente. Em virtude das dificuldades crescentes que se agudizam, entendem ser necessário levar à prática políticas reformistas que assegurem a sustentabilidade dos sistemas previdenciais de segurança social, que resultem de um debate alargado, envolvendo a sociedade civil, e necessariamente do entendimento entre todos os partidos do arco da governabilidade e que traduzam, consequentemente, a existência de um amplo consenso social e político.

Dada a necessidade de fazer escolhas e tomar decisões que vão ter influência sobre todos os estratos populacionais, entendemos que se impõe um diálogo social alargado a toda a so-ciedade, capaz de assentar as bases de um sistema que corresponda às necessidades sociais. Regista-se a vontade expressa por alguns partidos em proceder à procura de compromissos que, não obstante as dificuldades em presença, permitam um entendimento sobre o nosso futuro colectivo.

(inicialmente publicado no blog A Areia dos Dias http://areiadosdias.blogspot.pt/, Eleições 2015: Olhares Cruzados, http://fundacao-betania.org/ges/L2015/10_gES_Olhares-ER_IO_ML.pdf)

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O que vem depois do acordo deste fim de semana entre

o PS, o Bloco e o PCP?

FRANCISCO LOUÇÃ

Durante o fim de semana foi concluído o acordo entre o PS e o PCP, depois de ter sido estabe-lecido entre o BE e o PS. Há assim uma maioria no parlamento para derrotar o governo mais breve da história da democracia e para interromper a saga de Passos Coelho e de Portas. O resultado é fundamental e é histórico: depois da sangria da austeridade, começa-se a virar a página.

Nas últimas semanas, critiquei tanto a demora em fechar este acordo quanto a pouca ousadia na sua conclusão, porque só por falta de escolha de uma afirmação forte é que pode aceitar que haja dois acordos separados – dizendo aliás o mesmo – ou até três moções de rejeição distintas. Mas agora há acordo, ele é público e por isso os temas mais importantes passam a ser o seu conteúdo e a sua durabilidade, que discuto a partir do único ponto de vista que (me) interessa, o das respostas para a crise social agravada pelo tormento da austeridade.

Começo pelo conteúdo do acordo.

As três condições de Catarina no debate com Costa, o abandono pelo PS da redução da TSU patronal e da TSU dos trabalhadores com diminuição da pensão, o arquivamento do despe-dimento conciliatório e o fim do congelamento de pensões, foram, ainda antes da campanha eleitoral, o ponto de partida do acordo deste fim de semana. Perante os resultados eleitorais em que a direita perdeu a maioria, o PS aceitou estas condições. Muitos socialistas respiraram de alívio, porque não concordavam com estas três ideias do seu partido.

Mas os acordos agora revelados e incluídos no programa para o novo governo vão mais longe, até muito mais longe. Criam uma resposta de urgência com medidas de urgência mas vão mais além, com respostas duradouras na alternativa à austeridade se houver determinação para tanto.

Determinam o fim das privatizações. Não haverá mais privatizações. Incluem ainda a reversão dos recentes processos de concessão dos transportes urbanos de Lisboa e Porto. Protegem a água como bem público essencial.

Quanto aos rendimentos do trabalho, beneficiam milhões de trabalhadores. Os salários fun-ção pública são repostos (a restituição é concluída já em 2016) e todos os salários do sector privado são beneficiados (acima de 600 euros pela redução da sobretaxa, que é extinta em

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2017, abaixo de 600 euros pelo abatimento da dedução para a segurança social, sem efeito nas pensões futuras e sem reduzir o financiamento do sistema previdencial). São repostos os quatro feriados, cuja perda significava mais horário de trabalho com o mesmo salário. Todos os trabalhadores são beneficiados, são 4,5 milhões.

Todas as pensões são beneficiadas (abaixo de 600 euros pelo descongelamento e pequena recuperação, acima dos 600 euros pelo fim da sobretaxa em IRS), são dois milhões de pessoas. Em contrapartida, a direita propunha-se cortar 4000 milhões de euros na segurança social (1600 milhões por via do congelamento das pensões, 2400 por abatimento de prestações anuais de 600 milhões prometidos a Bruxelas). A diferença é gigantesca.

São estabelecidas novas normas fiscais: repor a progressividade com mais escalões no IRS, o fim do quociente familiar que favorecia as famílias mais ricas e a sua substituição por uma dedução em IRS em valor igual por cada criança, uma cláusula barreira nos aumentos do IMI, que não poderão ultrapassar 75 euros num ano, a interrupção da redução de IRC, a redução do prazo para reporte de prejuízos das empresas para cinco e não doze anos e ainda a alteração às regras de modo a reduzir os benefícios fiscais de dividendos. Finalmente, reduz-se o IVA da restauração para 13%.

Na resposta à pobreza, é aumentado o Salário Mínimo para 557 euros já em 1 de janeiro de 2017 e para 600 euros até ao fim da legislatura, e é reduzida a tarifa da electricidade para as famílias mais pobres. Um milhão de pessoas beneficia destas medidas.

São tomadas medidas para que os falsos recibos verdes passem a contratos efectivos e é re-lançada a contratação colectiva. Termina o regime de mobilidade especial na função pública, que conduzia ao despedimento.

É proibida a penhora de habitação própria por dívidas ao Estado e, quando se trata de dívida hipotecárias ao banco, a entrega da casa liquida a dívida, quando não houver outra alternativa de alteração de prazos e juros.

Foi apresentada uma lista de medidas na saúde e educação, da redução das taxas moderado-ras até à reutilização dos manuais escolares.

O PS retirou ainda a sua proposta de nova lei eleitoral com círculos uninominais.

Finalmente, fica assente um procedimento de cooperação parlamentar e de consultas mútuas, incluindo a criação de comissões sobre a sustentabilidade da dívida externa e sobre o futuro da segurança social, que devem apresentar relatórios trimestrais.

O que se consegue deste modo é estabilidade na vida das pessoas, alívio para os pensionistas, recuperação de salário, protecção do emprego e mais justiça fiscal. Por outro lado, com este aumento da procura agregada, a economia vai reagir positivamente de imediato.

O que falta então?

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Faltam ainda respostas estruturais para o investimento, para gerir a conta externa e para me-lhorar a balança de rendimentos, o que só se fará com uma reestruturação da dívida. E, sem ela, não se vê como possa haver suficiente margem de manobra para resistir a pressões exter-nas e para relançar o emprego. É preciso investimento e criação de capacidade produtiva e o Estado tem que ter um papel estratégico na resposta à prolongada recessão que temos vivido.

Além disso, não se pode ainda antecipar o que serão as condições de Bruxelas e de Berlim, do BCE ou das agências de rating, mas não serão favoráveis. É de recordar que a Comissão Euro-peia publicou um comunicado dois dias depois das eleições exigindo novas medidas para a segurança social e que o tema continuará a ser um terreno de disputa, ou que as agências de rating têm vindo a ameaçar a República Portuguesa. Finalmente, o dossier do Novo Banco vai explodir antes do Verão, com perdas importantes para o saldo orçamental ou com exigências de recapitalização, ou de um processo de resolução bancária feito segundo exigências técni-cas que protejam o bem público e abatam a dívida externa.

Estes são os problemas que nos vão bater à porta nos próximos meses e anos. A nova maioria sabe que assim é, porque assina uma cláusula de salvaguarda que garante que, perante impre-vistos orçamentais ou novas situações, a resposta nunca será o aumento de impostos sobre o trabalho ou a redução de salários e pensões. Convém então que comece já a preparar o que vai ser essa resposta porque os imprevistos chegarão mais depressa do que o novo Orçamento.

(inicialmente publicado no blog http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2015/11/09/o-que-vem-depois-do-acordo-deste-fim-de-se-mana-entre-o-ps-o-bloco-e-o-pcp/)

O que propõem eles?

JOÃO RAMOS DE ALMEIDA

Ultimamente, tenho-me apanhado a pensar - até para reduzir a ansiedade - que não se pode responder com tanto ódio ao ódio que se sente em quem critica um governo de esquerda, ou um governo do PS apoiado pela esquerda, ou um parlamento com a maioria de esquer-da. E o antídoto que encontro é perguntar-me: “Mas afinal o que propõem eles que se faça?” Que política gostaria a direita que a esquerda no poder seguisse? Eu gostava de saber. É que não vejo nada de concreto em todas as críticas que surgem. Apenas vejo irritação por a “extre-ma-esquerda” poder chegar ao poder. Repito: poder chegar ao poder.

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É voltar às políticas seguidas desde 2010 e aprofundadas desde 2011? Manter apertado o “enorme aumento de impostos” sobre o trabalho e pensões, as sobretaxas, a tributação ver-de, enquanto o Governo continua a esconder benefícios fiscais como detectou uma recente auditoria do Tribunal de Contas, que, aliás, repete o que, em 2014, outra já tinha detectado em cerca de mil milhões de euros? É manter todos os cortes nas prestações sociais? Cortar no CSI no RSI, no abono de família? É pugnar por uma “reforma de Estado” que nem a coligação de direita conseguiu fazer, nem mesmo o soundbyte Paulo Portas? É assistir ao agravamento das desigualdades sociais em que o decil mais pobre teve uma quebra de rendimento de 24% enquanto o decil mais rico teve de 8%?! É continuar a viver em estagnação económica con-tinuada e assistir à quotidiana fuga dos mais capacitados para o países do centro europeu? Mas se não é, o que é?

Ouça-se o grito de revolta de Francisco Assis, com aquela ideia tão mal construída que é a própria negação num só título. “A falsa tese da marginalização política da extrema-esquerda” é a expres-são da clara marginalização de tudo o que não seja PS, pois a esquerda à esquerda do PS tem de ser apenas “extrema-esquerda” e, como tal, radical, e como tal, mantida fora do poder. Mas leia-se o artigo e o que se percebe da política a seguir? Nada. Apenas - espante-se! - um regresso ao PREC e ao pós-25 de Novembro... Agora, vai organizar um encontro com militantes que “discordam do rumo que está a ser seguido” para mostrar que “há uma corrente interna crítica e alternativa”. Apenas irritação, medo que assume todas as formas possíveis. Primeiro, era porque se ga-nhava na secretaria o que se perdera nas eleições. Depois, porque se tornava óbvio que havia uma maioria PARLAMENTAR (ou seja, eleita pelo povo), então virou-se as baterias para o acordo. “Então não há acordo?” “Mas que acordo é esse que ninguém conhece?”. E esta vertente ainda corre até dia 9. Finalmente, quando conhecerem o acordo, vai ser: “En-tão o acordo é isto?” “Com isto, não vão longe!”. Até lá, vamos ter uma manifestação de di-reita, lado a lado com outra da CGTP no dia da apresentação do programa do Governo... Todo o reboliço é útil para justificar que o país precisa da paz entre PS e o PSD. E tudo está a ser feito nesse sentido. O PR espera que haja deputados socialistas que vo-tem com a direita. Mas se não for assim, vai ser o governo do PS torpedeado pe-los próprios socialistas aliados da direita, com um acordo - esse secreto - para re-novar o PSD, descartar o CDS e formar uma coligação que devolva a paz ao país. Mas volto à mesma: Paz para quê? Para levar a cabo que política que não seja “negativa”? Al-guém pergunta, alguém sabe?

(inicialmente publicado no blog http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2015/11/o-que-propoem-eles.html)

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Podes sentir, mas não provar

JOÃO RAMOS DE ALMEIDA

“Os que sobrevivem do chamado partido democrático, monárquicos li-berais ou integristas desgarrados, socialistas, elementos da Seara Nova, o directório democrata-social, vestígios dos partidos republicanos mo-derados, alguns novos, sedentos de mudança, e os comunistas - todos poderiam unir-se, como fizeram, mas só poderiam unir-se para o esfor-ço da subversão, não para obra construtiva”. A “impossível vitória” “das oposições” que nunca seriam uma “alternativa”, significaria “cair-se no caos, abrindo-se novo capítulo da desordem nacional”

Esta antevisão do “caos” não é visivelmente recente. Mas é reveladora da forma como se arrumam as ideias do pensamento conservador, quando se trata de cercear o acesso ao poder. A frase é de António de Oliveira Salazar e foi proferida a 1 de Julho de 1958, numa alocução ao país na sede da União Nacional (Caminho do Futuro). E no entanto, ela pa-rece adequar-se ao que se diz sobre... um possível governo de esquerda nos nossos dias. Os nossos comentadores de direita e directores de jornais não conseguem interiorizar essa nova realidade. Mas olhando para trás pouco ligaram à brutalidade com que o governo PSD/CDS entrou no país. Não sentiram na pele a sua arrogância. Não pressentiram os riscos sociais - e políticos - de um programa radical de direita. Pior: até alinharam com ele. Apoiaram tudo até perceber, em 2013, que o Governo PSD/CDS desistira de reformar o Estado, de reformar o tecido económico e deixara a austeridade atenuar-se, com os olhos nas eleições. Sentiram-se decepcionados e desiludidos. Queriam mais!

Mas esta cegueira social cola-se a outra. Depois de tudo, os mesmos comentadores estranham agora que haja já um milhão de portugueses dispostos a afastar de imediato a coligação de direita, mesmo pondo de lado, tacticamente - veja-se lá o ódio gerado! - as ideias fortes do seu pensamento. E ainda os acusam de tacticismo!

Agora, quando a esquerda quer ser poder, fala-se de “fraude eleitoral”. Democracia é apenas quando a direita ganha. Ou que qualquer ideia de esquerda terá de ser de direita (porque as propostas do PS são de direita). E até já se interpreta o sentido de voto dos socialistas (Durão Barroso: “Os eleitores socialistas não votaram no PS para um Governo com PCP e BE. Toda a

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gente sabe que não foi esse o sentido de voto dos eleitores socialistas.”) A entrada do PCP e do BE no governo só pode ser “abrupta” ou “uma golpada”. A austeridade - estúpida e, sobretudo, ineficaz - foi um aproveitamente legítimo por parte da coligação de direita, já o do PS é uma subversão às regras da UE. Uma aliança à esquerda só é própria de um desespero de um arri-vista. Nem sequer é sincero... Até a igreja sente a necessidade de considerar “mais natural” uma aliança da classe média, repartida por dois partidos.

Decidamente, a nossa direita não aprendeu nada com a social-democracia e mantém todos os traços do conservadorismo agressivo. O regime salazarista estava em nós, não foi um acaso, nem uma ditadura de um só homem. Como nunca é. Era a forma policial de um sentimento muito claro que ora se vive em Portugal: o “arco da governação” é um cinto de aço, de uma ideia retrógrada, que visa impedir certas forças da sociedade - aquelas que querem mudá-la - de chegar ao poder.

Na ditadura, podia ser-se de esquerda em pensamento. Podia procurar-se livros proibidos. Em 1972, Marx, Engels e Lenine eram vendidos em certas livrarias, cooperativas. Comprei muitos. O regime fechava os olhos a essas coisas. Pressionava, mas deixava. “Podes viver, mas não to-car; podes tocar, mas não sentir; podes sentir, mas não provar.” A repressão actuava precisa-mente quando se pensava em derrubar o regime. Quando se mexia um dedo e se pensava em ser poder. Isso estava vedado. Protegido a certas forças. Violentamente.

E tudo isso explodiu em liberdade. Como não podia deixar de ser. O fascismo forjou várias gerações de militantes anti-fascistas e anti-capitalistas que se mantêm ainda hoje no terreno.

Há uma ideia de classe em todo o pensamento actual. Nota-se na vida actual que as pessoas de certas classes já recuperaram certas posições. Até no rendimento. Não estão dispostas a voltar atrás. O pensamento refina-se. Mas a ideia subjacente é bruta: manter tudo como está.

Até o simples indicador de “competitividade”, agitado tantas vezes na comunicação social e que serviu de base ao emnpobrecimento geral, é uma forma social que o conservadorismo económico inventou para impedir a repartição do rendimento com o pessoal trabalhador. Os ditos custos do trabalho por unidade produzida (CTUP) comparam as remunerações por tra-balhador com o valor da produto per capita. A leitura é tão simples como a ideia que passa: só se pode aumentar os salários na proporção dos aumentos da produtividade do trabalho. Na realidade, o que se está a dizer é simplesmente isto: o peso dos salários no rendimento nunca pode subir. O rendimento do capital está salvaguardado para sempre.

E assim se faz Portugal. 40 anos não é nada na História das mentalidades.

(inicialmente publicado no blog http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2015/10/podes-sentir-mas-nao-provar.html)

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Atenção, atenção

JOÃO RODRIGUES

1. Atenção, atenção: não deixem de ler o artigo do Ricardo Paes Mamede no Le Monde di-plomatique - edição portuguesa deste mês – Prioridades para um governo apoiado pelas esquerdas em Portugal. Na linha do seu livro, claro e distinto, este é um artigo sobre eco-nomia e política económica nacionais que articula e desenvolve três reflexões que o Ri-cardo já fez neste blogue e que vale sempre a pena revisitar neste novo e empolgante contexto: o triângulo das impossibilidades da política orçamental; a coligação de direi-ta tem um projecto claro e coerente para o país; um terreno minado por todos os lados. 2. Atenção, atenção: o problema central, como sublinha Pedro Lains, não é um problema de fi-nanças públicas, mas sim um problema relacionado com o constrangimento externo, da balança corrente ao endividamento externo brutal, um problema de falta de instrumentos para fazer com que a dinamização necessária do mercado interno, do consumo ao investimento, não se traduza numa deterioração de um saldo externo entretanto precariamente equilibrado à custa da de-gradação das capacidades produtivas nacionais e das condições de vida das classes populares. 3. Atenção, atenção: útil análise de Francisco Louçã neste contexto – “Faltam ainda respos-tas estruturais para o investimento, para gerir a conta externa e para melhorar a balança de rendimentos, o que só se fará com uma reestruturação da dívida. E, sem ela, não se vê como possa haver suficiente margem de manobra para resistir a pressões externas e para relançar o emprego. É preciso investimento e criação de capacidade produtiva e o Esta-do tem que ter um papel estratégico na resposta à prolongada recessão que temos vivido.” 4. Atenção, atenção: estamos sobretudo dependentes do pós-democrático BCE, o sobera-no monetário, o condutor dos mercados de dívida, por muito que jornais económicos se es-forcem por destacar as reacções dos especuladores e as “análises” dos seus representantes bancários face ao efeito de um governo apoiado pelas esquerdas, disfarçando mal as suas preferências ideológicas (vejam como noticiam as subidas nos juros no mercado secundá-rio e como noticiam as descidas): como sublinhou, o Nuno Teles, os vossos desejos não são notícia; isto não quer dizer que não possa existir algum efeito modesto; mal seria, aliás... 5. Atenção, atenção: está um golpista e sabotador em Belém. Neste momento, é a fonte prima-cial de instabilidade política.

(inicialmente publicado no blog http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2015/11/atencao-atencao.html)

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O teste da “austeridade progressista”

JORGE BATEIRA

O governo da direita caiu. Evidentemente, não passava pela cabeça dos líderes da coligação PàF que, tendo ganho as eleições, não pudessem governar o país. Muito mais reveladora foi a reacção dos media, com destaque para os jornalistas das televisões, que mandaram às malvas o seu código deontológico sem qualquer pudor ou disfarce. A falta de pluralismo na televisão é um problema que se arrasta há muitos anos. Porém, a viragem à esquerda do PS suscitou uma histeria que ultrapassou tudo o que já tínhamos visto. Recuperar o pluralismo nos media exige uma reforma estrutural que o novo governo – esperando que o bom senso prevaleça em Belém – deve iniciar no imediato, a bem da higiene no espaço público e da saúde da nossa democracia.

A conclusão de um acordo de incidência parlamentar que permita ao PS governar com o apoio da esquerda iluminou o rosto de muitos portugueses. Na expectativa do desanuviamento que se avizinha, é manifesta a alegria que invadiu inúmeras famílias de baixos rendimentos, para não falar dos militantes de base dos partidos da nova maioria e dos cidadãos que sempre so-nharam com a “unidade das esquerdas”. Em largos sectores da população, a sensação de beco sem saída que os anos de chumbo da austeridade produziram na sociedade portuguesa, uma verdadeira anomia, está a ser substituída por um sentimento de esperança em melhores dias. Há até sinais de alguma euforia que só não é mais evidente porque ainda não conhecemos a decisão que vai tomar o Presidente da República.

Admitindo que a Constituição da República Portuguesa será respeitada, teremos em breve um governo a braços com uma tarefa muitíssimo pesada: a de virar a página da austeridade através de uma política orçamental que respeite os limites impostos pelas regras da zona euro. Como disse Mário Centeno, o muito provável novo ministro das Finanças, trata-se de seguir a trajectória exigida por Bruxelas, embora a um ritmo mais lento. O modelo dos economistas do PS diz-nos que a nova versão do seu programa mantém o saldo orçamental abaixo dos 3%, uma condição essencial para não despertar a fúria da Comissão Europeia, do Eurogrupo e das agências de rating. Por outro lado, sabe-se que os partidos da nova maioria aceitam rever as suas escolhas orçamentais para acomodar os impactos da crise bancária que se avizinha ou de outros imprevistos. Não acredito que a curto prazo surjam tensões sérias entre os signatários do acordo.

A maior dificuldade que o novo governo terá de enfrentar reside na orientação que Bruxelas dará ao Orçamento português. Admitindo que na actual conjuntura será aceite um desliza-mento nas metas do défice, não parece muito difícil alcançá-las se o governo puder executar

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uma redistribuição dos sacrifícios da austeridade que resulte num aumento do rendimento disponível das classes sociais com maior propensão ao consumo. Contudo, não é seguro que Bruxelas aceite facilmente esta mudança para uma “austeridade progressista”. Importa lembrar que o ordoliberalismo inscrito nos tratados, e na prática da CE e do Eurogrupo, não aceita esta política económica com o argumento de que um crescimento económico apoiado no con-sumo agrava o desequilíbrio externo através do aumento das importações. Claro que o novo ministro pode sempre contra-argumentar que esse aumento do consumo ocorrerá sobretudo nas classes de rendimentos mais baixos, onde o conteúdo em importações será mais modesto. Mas, dado o enviesamento político dos economistas do eixo Bruxelas-Berlim-Frankfurt, não se espera um acolhimento favorável ao primeiro Orçamento português. Bem pelo contrário.

Acresce o facto de, no âmbito da supervisão dos orçamentos nacionais, a CE estar agora man-datada para exigir a execução de reformas estruturais que, do seu ponto de vista neoliberal, seriam favoráveis ao potencial de crescimento da economia portuguesa. A CE assumiu um compasso de espera nas suas exigências de reformas para favorecer a eleição da PàF mas, sur-preendida e desagradada com o volte-face no governo do país, irá certamente voltar à carga com exigências que a esquerda dificilmente poderá aceitar.

Assim, o rumo que o país tomará nos próximos anos vai depender crucialmente da forma como a nova maioria vier a enfrentar o “mau ambiente” em Bruxelas e das escolhas que o go-verno alemão, com Merkel em baixa e Schäuble em alta, vier a fazer no quadro de uma quebra das exportações alemãs para os chamados países emergentes. Pretenderá recuperar o merca-do europeu? Haverá tolerância para uma “austeridade progressista” na periferia?

(inicialmente publicado no blog http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2015/11/o-teste-da-austeridade-progressista.html)

Protecção Social

JOSÉ LUÍS ALBUQUERQUE

No grupo de trabalho sobre Segurança Social defendemos um consenso social e político alar-gado em torno da promoção e defesa da sustentabilidade da Segurança Social e, em particu-lar, do sistema de pensões, assente num conjunto de princípios e propondo linhas de reforma.

O sistema de Protecção Social deve ser forte, coerente, justo, capaz de assegurar sustentabi-lidade do sistema numa tripla dimensão financeira, económica e social; recusamos redu-toras apreciações meramente contabilísticas ou orçamentais: não estamos a falar de reformas

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consistentes se estivermos perante medidas que penalizam duplamente reformados, sejam a CES ou a Contribuição de Sustentabilidade, o novo factor de sustentabilidade ou o aumento da idade normal de reforma.

Reconhecemos nas prestações sociais um papel importante no combate à pobreza e na re-dução das desigualdades, atenuando ainda as consequências sociais da recessão e sendo componentes fundamentais do desenvolvimento económico e social dum país sem rupturas.

As prestações não contributivas devem aperfeiçoar condições de recursos na sua atribuição e a abordagem assistencialista ou caritativa não se deve sobrepor aos direitos de cida-dania; um modelo igualitário minimalista pode conduzir ao risco de se tornar num modelo residual e selectivo de cariz liberal.

Existem problemas económicos conjunturais que são os principais responsáveis pelos défices actuais da Segurança Social – a austeridade, o desemprego, a emigração, a desvalo-rização salarial -, mas não o envelhecimento da população ou o valor das pensões; as políticas económicas contribuem para a sustentabilidade da Segurança Social, enquanto fomentem o crescimento da produtividade e do emprego e reduzam o desemprego, mas sem o reverso da precariedade, da facilitação de despedimentos e da política de baixos salários.

Os trabalhadores precários devem estar protegidos pela Segurança Social, a responsa-bilidade social do Estado e das empresas não pode permitir o crescimento generalizado do trabalho precário. Combater a fraude e a evasão contributiva mas também prestacional, e a sinistralidade laboral, devem resultar em acções que antecipam resultados positivos para o sistema e reforçam a protecção de trabalhadores.

Deve também ser avaliada a eficácia e a eficiência do sistema de Segurança Social, quer ao nível da cobrança de contribuições, quer ao nível da atribuição de prestações sociais.

Políticas de apoio às famílias devem ter em conta a conciliação do trabalho com a vida pes-soal e familiar, serem igualitárias e não discriminarem as mulheres; não devem circunscrever--se apenas ao apoio à maternidade porque acabam por segregar ainda mais o acesso e a pro-gressão das mulheres no mercado de trabalho; devem ainda ter em atenção e incluir as novas expressões familiares e acabar com a actual discriminação das famílias monoparentais ou não heterossexuais. (mas não se pense que por si só terão efeitos com precariedade no mercado de trabalho e baixos salários).

Deve ser reconhecida a importância da diversificação das fontes de financiamento, e efec-tuada uma avaliação da implementação do Código Contributivo, equacionando, complemen-tarmente, componentes de receita alternativas, mas mantendo o sistema previdencial anco-rado na TSU.

Defendemos a convergência dos sistemas, tendo em conta o seu contexto histórico, fi-nanciamentos passados e clarificando responsabilidades futuras, avaliando aspectos

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próprios do financiamento decorrentes duma política recente de forte desvalorização salarial, redução do emprego, e não assumpção de compromissos das entidades empregadoras.

O maior custo do plafonamento/capitalização/privatização, qualquer que seja o nome pelo qual os querem embrulhar, não é o do período de transição, mas sim não ser redistributivo, não estar imune a constrangimentos económicos nem ao envelhecimento demográfico, cau-sar incerteza no valor da pensão a receber; por outro lado, sendo a Segurança Social um Di-reito Humano, quem deve garantir a universalidade quando o mercado não pode exprimir preferências sociais, é o Estado enquanto representante da comunidade.

O envolvimento dos Parceiros Sociais é fundamental ao nível da negociação, mas também da participação e da gestão do sistema, tal como defende a Constituição. A participação dos Parceiros Sociais nos diferentes níveis do Sistema de Segurança Social, seja de discussão ou gestão, não pode nunca ter um papel meramente consultivo.

Qualquer reforma deve resultar de estudos transparentes, disponibilizando informação estatística rigorosa e clara, escrutinada não apenas pelos partidos no Parlamento mas tam-bém pelos Parceiros Sociais em sede de Concertação Social, pela Academia, pelos movimen-tos sociais (nomeadamente de reformados e pensionistas, de precários) e pela imprensa.

Finalmente, a reforma adoptada deve ter uma implementação gradual não prejudicando a confiança no sistema, observar direitos adquiridos e em formação, respeitar o contrato social, preservar a solidariedade inter-geracional. É fundamental recuperar a confiança das várias ge-rações no sistema, que tem sido fortemente abalada pelo discurso deste Governo e pelas alte-rações abruptas que este tem provocado. Esse é um papel do qual não podemos abdicar. Esse é o desígnio para o qual queremos contribuir, nós, todas e todos, que defendemos uma Segu-rança Social pública universal e solidária, em defesa do trabalho, dos salários e das pensões.

Referências em iniciativas e documentos: Congresso Democrático das Alternativas (5 de Outubro de 2012), debate Vencer a Crise com

a Segurança Social (13 de Abril de 2013), conferência Vencer a Crise com o Estado Social e com a Democracia (11 de Maio de 2013),

conferência Em Defesa da Segurança Social Pública: A Questão das Pensões (5 de Abril de 2014), livro Estado Social, de Todos para

Todos (Maio de 2014)

(inicialmente publicado no blog http://www.congressoalternativas.org/2014/09/democracia-trabalho-e-direitos-sociais.html)

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Um terreno minado por todos os lados

RICARDO PAES MAMEDE

Ao surgir como actor incontornável de qualquer solução governativa, o PS parece ter sabido transformar uma derrota eleitoral numa vitória política. No entanto, quem julga que os socia-listas estão numa posição negocial confortável, desengane-se.

Nas negociações com a direita, dá a entender que o PS conseguiu quase tudo. As direcções do PSD e do CDS mostram-se disponíveis para acolher as principais bandeiras eleitorais dos socialistas: redução do IVA da restauração, maior celeridade na reposição dos salários da fun-ção pública e na eliminação da sobretaxa do IRS, recusa do plafonamento da segurança social e defesa da diversificação das fontes de financiamento, recusa do cheque-ensino, reposição dos feriados civis, entre outras. Depois de ter acusado o PS de ter um programa irresponsável e demagógico, os partidos da direita acabam por reconhecer que existem mesmo alternativas à sua própria governação.

Também nas negociações à esquerda o PS parece ter conseguido o impossível. PCP e BE pas-saram grande parte da campanha eleitoral a distanciar-se do PS, enfatizando as semelhanças entre o programa socialista e as orientações fundamentais da direita. Agora parecem estar dispostos a pôr de lado a oposição de sempre às regras orçamentais europeias e a exigência de reestruturação da dívida, em nome de uma solução que retire a direita do poder.

No entanto, há muito por esclarecer.

Apesar da sua aparente conversão às alternativas, PSD e CDS lá vão dizendo que aceitam tudo para continuar no governo, desde que não seja posto em causa o limite de 3% do PIB para o défice orçamental. Os jornais e os comentadores acreditam que há aqui espaço para aproxi-mar posições, uma vez que até agora o objectivo do governo era atingir um défice de 1,8% em 2016. Acontece que o FMI prevê que o défice seja de 2,8% (e não de 1,8%), isto num cenário relativamente optimista para a economia mundial. A ser assim, a margem de negociação fica reduzida, na melhor das hipóteses, a 0,2%.

E se os cenários menos optimistas dos que os do FMI (aqueles que prevêem uma desacele-ração acentuada do crescimento económico global em 2016) se concretizarem? Nesse caso, as finanças públicas irão degradar-se ainda mais e o cumprimento das metas vai exigir novas medidas de austeridade. E o que fará o PS se estiver na oposição? Se aceitar essas medidas, será acusado de compactuar com a austeridade (o que disse que não faria); se não as aceitar e forçar a queda do governo, será acusado de querer desrespeitar as regras europeias (o que também disse que não queria).

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Os riscos das soluções à esquerda não são menores. Mesmo que PCP e BE reduzam ao mínimo as suas condições para viabilização de um governo do PS, caso a situação económica se de-grade essas condições vão contribuir para colocar as metas orçamentais em risco. Nesse caso, o PS terá de optar entre regressar à austeridade ou desrespeitar os “compromissos europeus”. E se o PS se decidir pela a austeridade, que farão PCP e BE: deixar-se-ão co-responsabilizar pela adopção de políticas austeritárias (destruindo o espaço político que ocuparam nos últimos anos) ou retirarão o tapete ao PS (sendo responsabilizados pela instabilidade política)?

Ou seja, na perspectiva do PS, o sucesso de qualquer das possíveis soluções negociais depen-de crucialmente da evolução da economia nos próximos anos (o mesmo se aplica ao PCP e ao BE na solução de governo do PS). Alguns observadores atentos afirmam que estamos já a caminho de uma recessão económica mundial. A quebra recente das exportações alemãs é um mau prenúncio para o que se passará na Europa. Num contexto destes, a política mais acertada consistiria em adiar o esforço de consolidação orçamental até que o crescimento económico regresse de forma robusta. Mas nada indica que as lideranças europeias estejam disponíveis para mandar às malvas as regras orçamentas absurdas que insistem em aprovar e fazer cumprir. E não é nada claro que o PS esteja disponível para o fazer à revelia das lideranças europeias, tendo em conta o que tem vindo a afirmar.

O PS e os partidos à sua esquerda marcaram muitos pontos na última semana, mas ainda é muito cedo para fazer a festa. A viabilização de uma alternativa duradoura à governação de direita ainda vai exigir muito destes partidos, mais do que os passos corajosos que já foram capazes de dar.

(inicialmente publicado em http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2015/10/um-terreno-minado-por-todos-os-lados.html)

A prova do poder

SANDRA MONTEIRO

Para todos os que têm criticado as políticas neoliberais da austeridade, e sofrido com as suas devastadoras consequências, a possibilidade de haver um governo em Portugal com base num acordo de incidência parlamentar determinado a repor os rendimentos da maioria dos trabalhadores e pensionistas, a recuperar o emprego, a combater a precariedade e a defender o Estado social e os serviços públicos, só pode ser motivo de esperança. Uma esperança há demasiado tempo negada e, por isso mesmo, mais urgente e saborosa.

Porém, ela surge a par de uma grande incerteza sobre a capacidade que um tal governo terá de ser bem sucedido, face a diversos constrangimentos internos e externos. É certo que um tal acordo para a governação entre o Partido Socialista (PS), o Bloco de Esquerda (BE), o Partido Comunista Português (PCP) e o Partido Ecologista «OS Verdes» (PEV), inédito em quarenta

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anos de democracia, e que existe também por força da dimensão da crise, significa que foi desbloqueado um grande nó que paralisava a esquerda parlamentar: se parte dela não tinha uma estratégia para participar na governação, a outra parte não tinha uma estratégia política para defender a sustentabilidade económica dos valores e princípios que dizia defender.

O simples facto de este nó começar a ser desfeito suscita já reacções por parte de quem contava que o sistema poderia esmagar continuadamente os povos sem que a representação política, fortemente condicionada por media sem real pluralismo de perspectivas, deixasse de estar solidamente acantonada à direita. No campo mediático, vê-se uma invasão do comentário conservador, liberal e manipulador. No campo político e institucional, sucedem-se as declarações alarmistas de quem convive mal com a democracia, com o vice-primeiro-ministro Paulo Portas a invocar um «PREC II» ou, muito mais grave, com o presidente Aníbal Cavaco Silva, no discurso de 22 de Outubro de indigitação do governo de Pedro Passos Coelho – decisão em si mesma inquestionável –, a recorrer a argumentos inaceitáveis à luz da Constituição e dos poderes que esta lhe atribui. Por muito que Cavaco Silva gostasse, a crítica aos tratados ou à moeda única, e muito menos a acordos por discutir e assinar como o Tratado Transatlântico, não é impedida pela Constituição. Nem ela lhe permite afastar da governação as forças políticas que os combatem. Razões de sobra, aliás, para os defensores da democracia estarem atentos quando surgem propostas de incluir na Constituição aspectos como o cumprimento do défice estrutural ou dos tratados europeus (lembram-se?).

Os neoliberais criaram com a austeridade um edifício político-ideológico tão rígido, radical e absoluto que, além de não aceitarem alternativas à sociedade que querem construir, não se conformam com o legítimo debate democrático. Repetem por isso que o regime, a sua preciosa estabilidade (das desigualdades socioeconómicas) e a sua preciosa fluidez (dos movimentos dos capitais) estão sob a ameaça de uma «extrema-esquerda» prestes a intervir na governação. É curioso, vindo de quem tem tido como missão reconfigurar de alto abaixo os pilares que sustentam a sociedade (democracia, Estado social, serviços públicos, leis laborais). Mas é sobretudo irónico, quando se olha para os pontos em que deverão assentar as negociações destes partidos (BE, PCP, PEV) com o PS. É «extremista» um acordo que não põe em causa compromissos externos e se limita a encontrar soluções para substituir a austeridade por outras fontes de receita e por políticas de emprego capazes de fomentar a procura interna, diminuir as despesas sociais geradas pela própria austeridade? Ou o «extremismo» é desmascarar a austeridade como um conjunto de medidas para retirar rendimentos ao trabalho e às pensões, apoiando-se na pressão do desemprego, da precariedade, da dívida, do défice e dos constrangimentos do euro?

Só duas preocupações – além da já referida vontade de esconder a sua própria agenda radical para melhor a manter – podem justificar o afã com que os neoliberais agitam o fantasma dos «extremistas de esquerda». Uma delas poderá prender-se com a expectativa de os próximos anos serem mais difíceis do que 2015, em vários aspectos. Do agravamento do esforço que representará, a montantes e juros actuais, o pagamento da dívida, até novos aumentos do preço do petróleo e revalorização do euro, passando pelos efeitos do abrandamento do

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crescimento chinês, não é de contar com facilidades. E isto poderá acelerar a tomada de consciência dos cidadãos e das forças partidárias quanto à necessidade de rever a estratégia de «moderação» com que podem neste momento encarar as políticas indispensáveis à defesa de rendimentos dignos, de serviços públicos universais e tendencialmente gratuitos, da coesão social e territorial do país. Nessa altura, serão prejudicados interesses e negócios hoje florescentes, a começar pelas privatizações, concessões e parcerias público-privadas na educação, na saúde ou nos transportes.

Mas os defensores da austeridade europeia podem estar a manifestar uma segunda preocupação. Se acontecer, como na Grécia com o primeiro governo de Alexis Tsipras, que as instituições europeias e os credores reajam a medidas tecnicamente inatacáveis (por não comprometerem saldos orçamentais) como sendo politicamente inaceitáveis (por porem em causa os verdadeiros objectivos a austeridade), será cada vez mais claro, para uma esmagadora maioria, que o problema não está em vivermos acima das nossas possibilidades, nem em quaisquer estratégias arrogantes de confronto, como se disse do governo grego, mas numa arquitectura europeia e monetária onde a solidariedade é um mito e o radicalismo da liberalização total (do comércio, dos fluxos financeiros, das relações sociais e laborais) é rei. Nessas condições, adivinha-se que os países deficitários do Sul europeu estariam condenados ao empobrecimento e a crescentes desigualdades. Com essa resposta europeia é que poderá confirmar-se, qual profecia auto-realizada, a radicalização de esquerdas por agora disponíveis para governar a favor dos cidadãos dentro dos constrangimentos europeus.

Haverá ou não margem de manobra de negociação e governação? Ninguém pode, neste momento, ter a certeza. Talvez os neoliberais estejam convictos de que essa margem não existirá e estejam já, com os seus alarmismos, a preparar eleições antecipadas para colocar o ónus do fracasso numa experiência tentada à esquerda, vacinando os povos contra repeti-la. Significa isto que é às esquerdas no seu conjunto, e não apenas aos seus representantes políticos, que compete trabalhar desde já para dar força aos benefícios em cascata que advirão da reposição de rendimentos, do reequilíbrio das relações de trabalho, do combate ao desemprego e da defesa do Estado social universal e tendencialmente gratuito. Tal como lhe compete desmascarar os constrangimentos das instituições neoliberais e de uma moeda estruturalmente mal desenhada e pressionar no sentido da regulação dos sistemas financeiro e comercial, tantas vezes anunciada mas sempre adiada. Se não o fizermos, um eventual fracasso político, de facto causado pelas regras neoliberais, vai servir sobretudo para culpar as esquerdas e para as manter duradouramente fora do poder.

(inicialmente publicado em http://pt.mondediplo.com/spip.php?article1078)

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Qual é o seu decil?

VÍTOR JUNQUEIRA

Temos todos uma ideia acerca da nossa posição na distribuição de rendimento na socieda-de portuguesa. Temos o quê?, perguntarão alguns. Queria dizer que todos sabemos dizer se somos pobres ou se somos ricos, mesmo que a maior parte de nós se queixe de ser pobre e que apenas alguns, talvez se contem pelos dedos da mão, admitam ser ricos. O senso co-mum ajuda à resposta, mas, como qualquer economista lhe dirá, o senso comum está so-brevalorizado. Vamos então aos factos (ou à representação deles, para sermos rigorosos). Todos os anos, o INE realiza o Inquérito às Condições de Vida e Rendimentos (ICOR, ou EU--SILC, na denominação inglesa). É a partir deste retrato das famílias portuguesas basea-do nos seus rendimentos anuais e nas suas condições de conforto (ou na falta delas) que se constroem indicadores como a taxa de pobreza ou a taxa de privação material. É a par-tir desta fonte, também, que se define a distribuição de rendimento da população resi-dente em Portugal. Ou seja, podemos por esta via saber quanto ganham os 10% ou os 20% mais pobres ou os 10% ou os 20% mais ricos, estudar as desigualdades ao longo da distribuição, comparar com outras sociedades europeias, entre muitas outras coisas. A informação do ICOR/EU-SILC ajuda-nos, então, a perceber onde nos colocamos na distribui-ção de rendimento. Se somos muito ou pouco pobres, se somos pouco ou muito ricos, sempre por comparação às outras pessoas que connosco partilham residência em Portugal. E o leitor pode também sabê-lo, porque o Eurostat atualizou até 2013 os valores dos decis da distribui-ção. O quê? Explicando:

O DECIL Imagine que dispõe por ordem crescente do seu rendimento anual todos os indivíduos residentes em Portugal. Imagine ainda que divide essa longa fila em 10 pedaços iguais (ou seja, cada pedaço terá mais ou menos um milhão de pessoas). Há quem chame decil a cada um desses pedaços (como na pergunta do título deste post). De maneira mais restrita, em linguagem estatística, o decil é o valor do indivíduo que está junto à fronteira em cada um daqueles pedaços.

Mas o que importa aqui saber é que o valor do decil publicado pelo Eurostat o vai ajudar a perceber em que posição da distribuição se encontra. E, para tal, vai ter que seguir estes passos para chegar ao “rendimento por adulto equivalente” do seu agregado:

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01. UM NOVO CICLO DE POLÍTICAS?

1. Considere todas as pessoas que vivem consigo e que consigo partilham as despesas funda-mentais, sejam parentes ou não.

2. Calcule o número de “adultos equivalentes” = 1 (para o primeiro adulto) + 0,5 por cada um dos restantes indivíduos com 14 ou mais anos + 0,3 por cada criança com menos de 14 anos.

Exemplos

- Um casal com uma criança de 10 anos. Número de adultos equivalentes = 1 + 0,5 + 0,3 = 1,8. - Dois adultos, sem qualquer ligação de parentesco. Número de adultos equivalentes = 1 + 0,5 = 1,5. - Um indivíduo que vive sozinho. Número de adultos equivalentes = 1.

3. Some os rendimentos líquidos anuais de todas estas pessoas.

4. Divida o rendimento total obtido pelo número de adultos equivalentes calculados no passo 2. Parabéns, chegou ao seu “rendimento por adulto equivalente”. Não é mais do que uma es-pécie de rendimento per capita.

Fica a faltar apenas ver em que ponto da distribuição se encontra, afinal. E, para isso, tem os decis publicados pelo Eurostat e reproduzidos no quadro abaixo.

Por exemplo, se o seu “rendimento por adulto esquivalente” for 10 mil euros anuais, o seu decil é, em linguagem corrente, o 7.º. Ou seja, naquelas 10 secções em que dividiu a longa fila de pessoas residentes em Portugal e ordenadas pelo seu rendimento, encontra-se na 7.ª. Há pelo menos 60% da população que é mais pobre.

Surpreendido pela posição que ocupa face aos seus vizinhos?

Agora pense nos que estão atrás de si na tal fila.

(inicialmente publicadono blog http://buracosnaestrada.blogspot.pt/2015/10/qual-e-o-seu-decil.html)

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É entre os mais pobres que a crise mais se faz sentir

VÍTOR JUNQUEIRA

Se fez o teste que propus há dias, para saber por si mesmo em que posição da distribuição de rendimentos se encontra, talvez tenha ficado surpreendido com o resultado. Talvez não imaginasse que estaria tão “bem colocado”. Talvez não imaginasse haver assim tanta gente em situação pior que a sua. E o choque pode ser ainda maior se ficar a saber que foi nessas posições mais desfavoráveis que a crise mais se fez sentir. Vamos, uma vez mais, aos factos. Os indicadores da pobreza e da desigualdade já o vinham demonstrando, bem como os relatos daqueles que trabalham no terreno junto dos mais necessitados: são os mais pobres aqueles que mais são afetados pela crise. Com a recente publicação pelo Eurostat de apuramentos mais desagregados do Inquérito às Condições de Vida (ICOR/EU-SILC) que o INE realizou em 2014, ficámos a conhecer ainda melhor a realidade das famílias portuguesas durante o ano de 2013. Ficámos a saber, por exemplo, que entre os 10% mais pobres, o rendimento médio caiu 22,7% por comparação com 2009, atingindo valores que já não se conheciam desde 2004.

RENDIMENTO MÉDIO POR ADULTO EQUIVALENTE DO 1.º DECIL – VARIAÇÕES FACE A 2009

Fonte: Eurostat, EU-SILC

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01. UM NOVO CICLO DE POLÍTICAS?

Repare que estamos a falar do primeiro decil, dos 10% mais pobres, ou seja, de cerca de um milhão de indivíduos, e de rendimentos na ordem dos 2400 euros ao ano (valor estimado para 2013) [*]. É rendimento anual. E é uma média, implicando que há muitas pessoas em situação ainda pior. E foram estes que mais foram abalados pela crise.

[*] 2400 euros para o caso de um indivíduo sozinho, o que é equivalente, para um casal com dois filhos, por exemplo, a valores anuais próximos dos 5000 euros (para toda a família!). O que torna estas duas situações equivalentes é a aplicação de uma escala (conforme fez no cálculo do rendimento por adulto equivalente do seu agregado, no teste de há dias).

Foram estes 10% os únicos a perder rendimento? Longe disso. A quebra de rendimentos fez--se sentir ao longo de toda a distribuição, mas a intensidades diferentes. E é precisamente nos escalões de rendimento mais baixos que a intensidade da quebra é mais elevada. O gráfi-co seguinte volta a mostrar a redução nos rendimentos médios do primeiro decil, mas agora junta-a à verificada no último decil, ou seja, junto dos mais ricos. Se os 10% mais pobres per-diam 22,7% do rendimento, os indivíduos situados no extremo oposto da distribuição, apenas perdiam... 7,6%.

RENDIMENTO MÉDIO POR ADULTO EQUIVALENTE DOS 1.º E DO 10.º DECIS – VARIAÇÕES FACE A 2009

Fonte: Eurostat, EU-SILC

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Se ao grupo dos 10% mais pobres juntarmos os 10% imediatamente seguintes, continuamos a verificar fortes discrepâncias face ao que se tem vindo a suceder na zona superior da distri-buição. O gráfico seguinte coloca em perspetiva todos os quintis (isto é, grupos de 20% da população, ordenados pelo rendimento), fazendo-os partir de um índice idêntico em 2009. Os 20% mais pobres chegam a 2013 com um rendimento médio a valer 83,5% do que tinham em 2009 (perdem 16,5%, portanto). Os 20% mais ricos chegam ao mesmo ano com um rendimen-to médio que vale 93,9% do de 2009 (perdem apenas 6,1%).

EVOLUÇÃO DO RENDIMENTO MÉDIO POR ADULTO EQUIVALENTE, POR QUINTIS, 2009-2013 (2009=100)

Fonte: Eurostat, EU-SILC

O que aconteceu, no âmbito deste processo complicado a que chamamos crise, para que te-nha ocorrido este desequilíbrio e esta desproporção de impactos? Podemos especular, à falta de um estudo mais aprofundado, com os cortes induzidos em algumas prestações sociais di-rigidas a esta população mais desfavorável, como ocorreu no Rendimento Social de Inserção ou no Complemento Solidário para Idosos. O desemprego também terá desempenhando um papel determinante, senão o papel mais importante, ao ter feito deslocar um grande número de pessoas para posições inferiores na distribuição de rendimento. Será seguramente o caso de algumas das transições entre decis que os dados permitem apurar e que são mostradas no seguinte gráfico. Por referência ao decil que os indivíduos ocupavam em 2010, mostra-se a proporção de casos em que houve uma queda de dois decis ou mais, de um decil, se houve manutenção ou ainda se houve subida de um ou de mais decis.

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01. UM NOVO CICLO DE POLÍTICAS?

TRANSIÇÕES ENTRE DECIS DE RENDIMENTO POR ADULTO EQUIVALENTE, 2010-2013

Fonte: Eurostat, EU-SILC

Ficamos desde logo a saber que quase metade do primeiro decil não se mexeu. 49% dos in-divíduos que ali estavam em 2010, assim permanecem em 2013. E mesmo que o indicador esteja construído na lógica da transição entre 2010 e 2013, com base nos decis de partida, podemos ainda assim identificar grande parte daqueles que vieram parar ao primeiro decil. Aos 49% que permanecem, devemos somar os 18% que desceram desde o segundo decil (podemos somar à vontade, dado que os decis têm dimensões semelhantes, mais ou menos um milhão de pessoas em cada). E podemos ainda somar os 14% que caíram dois decis a par-tir do terceiro. Ou seja, ficamos com cerca de 19% de casos em que a queda foi ainda maior. São perto de 200 mil indivíduos que, pelo desemprego ou outros motivos, caíram dos de-cis acima do terceiro. Podemos ainda ver que a maior turbulência se dá nos decis centrais (é aqui que as manutenções são menos frequentes), o que pode também atestar as rápidas e intensas mutações no mercado de trabalho, tradicionalmente associado à classe média. É um gráfico com muita informação, ainda que incompleta. Um último detalhe, que fica para outras leituras: o último decil, o dos 10% mais ricos, é um dos que menos quedas e mais per-manências regista.

(inicialmente publicadono blog http://buracosnaestrada.blogspot.pt/2015/10/e-entre-os-mais-pobres-que-crise-mais.html)

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O «inverno demográfico» como pretexto

NUNO SERRA

No seu programa de governo, a direita agora minoritária no parlamento volta a insistir na ideia de que o «inverno demográfico» se instalou no nosso país «há mais de três décadas», su-gerindo acrescidamente que a recente sangria migratória nada tem que ver com austeridade nem com o «ajustamento», constituindo apenas uma espécie de prolongamento natural da dinâmica demográfica registada «ao longo da última década».

Procurámos já demonstrar (por exemplo aqui e aqui) que as políticas de austeridade agrava-ram de forma muito significativa o problema demográfico português, que passou a acumular - a partir de 2011 - saldos naturais e migratórios negativos. A queda a pique do saldo demo-gráfico, responsável pela diminuição da população residente em 1,5% na passada legislatura, apenas seria invertida em 2014, sobretudo graças ao travão colocado pelo Tribunal Consti-tucional ao desejo do governo em proceder a mais cortes e sacrifícios e assim aprofundar a austeridade «além da troika», «custe o que custar»

Não se iludam porém quanto às reais motivações do ainda governo para inscrever, entre os cinco pontos essenciais do seu programa, o «combate ao “inverno demográfico”». A receita não é nova e destina-se apenas, sob o manto de propaganda em torno de uma súbita sensibilidade social, a prosseguir a agenda neoliberal de transformação da economia e da sociedade por-

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01. UM NOVO CICLO DE POLÍTICAS?

tuguesa. Do iníquo quociente familiar em sede de IRS (dirigido às famílias numerosas, sem ter em conta o seu nível de rendimento), ao aumento da cobertura na rede de creches «nomeada-mente através da rede social e solidária», passando pela flexibilização de horários, pelo reforço do «voluntariado intergeracional» e até (pasme-se) pela reabilitação do programa VEM, está lá tudo, nas linhas e nas entrelinhas.

A ideia é convencer as pessoas de que basta fazer umas cócegas ao dito «inverno demográfi-co» para ele se ir embora. Sem enveredar por loucuras próprias da social-democracia ou até da democracia cristã como a subida do salário mínimo, o combate à pobreza e à exclusão, a redução das desigualdades nos rendimentos ou a generalização do horário de trabalho de 35 horas semanais. E, de caminho, continuar a estiolar o mercado de trabalho, transferir recursos para as IPSS e fingir que se está a promover o regresso ao país daqueles que foram forçados a partir nos últimos quatro anos.

(inicialmente publicadono blog http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2015/11/o-inverno-demografico-como-pretexto.html)

Os limites da «economia do empobrecimento competitivo»

NUNO SERRA

Duas ou três notas adicionais, a propósito do «inverno demográfico» como pretexto para prosseguir a agenda dos baixos salários e do empobrecimento competitivo, em que a maioria de direita se empenhou ao longo dos últimos anos, sob a manto das «imposições» do memo-rando de entendimento assinado com a troika.

1. Para se ter uma noção mais precisa de como a crise e a austeridade tiveram um impacto relevante na demografia, acelerando e agravando de modo muito significativo tendências de evolução anteriores, compare-se o valor da emigração a que se chegou em 2014 (cerca de 135 mil), com as estimativas do valor que se teria previsivelmente atingido nesse mesmo ano sem políticas de austeridade (109 mil) e sem crise nem austeridade (85 mil).

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2. Um dos aspectos que tem talvez sido pouco sublinhado, quando se analisam as dinâmicas demográficas recentes, decorre justamente do facto de essas dinâmicas ilustrarem os próprios limites da «economia do empobrecimento competitivo», que a direita gostaria de aprofundar nos próximos anos. O Luís Gaspar já o disse há uns tempos com notável clareza: «Baixam-se os salários no pressuposto que o trabalho é demasiado caro. O trabalho vai-se embora. Mesmo para o mais ortodoxo dos economistas, isto deveria querer dizer que o trabalho não estava caro. A única transformação estrutural da economia arrisca-se a ser esta: em vez de serem os salários que se “ajustam” à economia, é a economia que se ajusta aos salários baixos.»

3. Isto quer dizer que o aumento do salário mínimo «não é apenas uma questão de decência e dignidade, mas também de bom senso económico», como sublinha o Alexandre Abreu em arti-go de leitura imprescindível, no Expresso de hoje. Em linha, aliás, de um comentário recente do Mário Estevam, a propósito das conversações à esquerda para virar a página da austerida-de: «Não sei se o salário mínimo vai chegar aos 600 euros ou não... O que não podia continuar a acontecer era ter pessoas honestas a trabalhar e a viver na miséria porque o salário mínimo não paga o custo de vida.» Não perceber isto é não perceber o que aconteceu nos últimos quatro anos e, pior que isso, querer insistir numa receita desastrosa para o país.

Adenda: É inqualificável a decisão governamental de acabar com o financiamento do Observa-tório da Emigração por este ter revelado, em Setembro, os números relativos a 2014 (constantes do relatório anual concluído em Julho), quando o governo apenas os pretendia divulgar depois das eleições. A decisão de corte do financiamento foi comunicada já depois do dia 4 de Outubro, atra-vés de uma carta dirigida ao reitor do ISCTE–IUL. O relatório mostra que a emigração se manteve em patamares muito elevados, contrariando assim a tese governamental em torno de um suposto abrandamento das saídas, em ano de «retoma económica». Decisões deste teor não causam es-tranheza, apenas repulsa, quando provém de um governo que só foi sobrevivendo graças a uma poderosa máquina de desinformação e propaganda.

(inicialmente publicadono blog http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2015/11/os-limites-da-economia-do.html)

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02. A ECONOMIA POLÍTICA, O FUTURO DO EMPREGO

A Economia Política por vir enquanto ciência terapêutica

FERNANDO BELO

(Comunicação ao Colóquio Vivre en Europe, Philosophie, Politique et Science aujourd’hui, org. de Diogo Sardinha, Instituto Franco-Português, em Lisboa, 29-31 outubro 2007, Actas publicadas em março de 2010, L’Harmattan; texto inédito em português)

Todas as ciências sociais dignas desse nome foram instituídas a partir (além da geometria) da matriz filosófica herdada pela Europa da Grécia e das universidades medievais, matriz com a qual tiveram que romper como condição da sua autonomia científica, tanto teórica quanto metodológica e experimental. Foi Kant quem teorizou filosoficamente essa ruptura e conce-deu autonomia às ciências que se instituíram barulhentamente nas universidades europeias do sec. XIX. Mas não podendo darem-se conta dos motivos teóricos e práticos adquiridos a partir dessa ruptura, não podendo justificarem-se epistemologicamente, as ciências guardam do seu nascimento uma espécie de umbigo filosófico que o seu desenvolvimento histórico reelaborará sem que os seus cientistas dêem por ela. É verdade das ciências da matéria e da energia, as primeiras e romper desde Galileu e Newton, das ciências dos vivos, das sociedades, da economia enquanto ciência social. É este umbigo inacessível aos economistas que, sem que eu o seja, me interessará aqui: abordá-lo-ei a partir do que chamei filosofia com ciências ou fenomenologia reformulada, sem poder detalhar aqui esses meus pressupostos.

AS ‘LEIS ECONÓMICAS’ DEPENDEM DOS CONTEXTOS SOCIAIS

Começarei citando dois economistas, cuja competência releva de economias exteriores ao es-paço euro-americano. Primeiro, o japonês Taichi Sakaiya, que trabalhou no célebre Ministério do Comércio e Indústria Internacionais (MITI), aonde foi o responsável pela Expsição Mundial

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de Osaka 1970 e pela Exposição Internacional do Oceano de Okinawa 1975. “A experiência do Japão moderno, sobretudo depois da guerra, é cheia de excepções ao que, a nível mundial, é considerado como um corpus de leis económicas. Por exemplo, o Japão conseguiu um cresci-mento económico rápido ao mesmo tempo que os diferenciais dos rendimentos diminuíam de forma considerável. As empresas cresceram e os seus empregados tornaram-se mais leais para com elas. O leque salarial reduzido e o sistema de emprego para a vida inteira não fizeram diminuir a competição para a promoção nas empresas. Ainda que as diferenças entre os rendi-mentos e as posições baseadas em diplomas académicos sejam menores do que em qualquer outro país, a competição nos testes e exames é intensa. Quando os níveis de rendimento au-mentam, os trabalhadores não baixam o ritmo do trabalho. A urbanização crescente foi segui-da duma diminuição das taxas de criminalidade. Uma transição para o sector dos serviços na actividade económica não produziu um aumento da economia subterrânea” (Sakayia, p. 151). O que implica que este “corpus de leis económicas” muda segundo as diferenças antropológi-cas (históricas ou sociológicas), o que o autor ilustra seguindo o percurso histórico do Japão.

A uma conclusão semelhante – a alteração das leis económicas segundo os contextos sociais – chegou o economista francês Jacques Sapir, que acompanhou in loco desde os anos 80 a economia soviética primeiro e russa em seguida, ensinando a ciência económica em Mosco-vo. É a sua competência excepcional sobre “o fracasso repetido das políticas inspiradas, ou sugeridas, pelas organizações internacionais e pelos seus colegas que gozam da melhor re-putação na profissão” (Sapir, p. 9) que torna preciosa a citação que encerra a discussão condu-zida sobre “quatro dos principais paradigmas da acção económica contemporânea [que] nos deixa perceber o campo de ruínas em que se tornou o pensamento económico dominante. [...] 1. As vantagens e desvantagens dum crescimento da concorrência, da descentralização, da flexibilidade ou dum reforço da propriedade privada [são os quatro paradigmas discutidos], são contingentes aos contextos institucionais, estruturais e técnicos em que essas decisões devem ser tomadas. Não pode pois haver nenhuma regra geral, mas uma análise caso por caso, e a contribuição dos economistas pode residir numa análise concreta de situações concre-tas. 2. A economia, enquanto disciplina científica, não pode fundar na sua totalidade uma tal decisão, seja em que sentido for. Há uma parte irredutível de escolha social e ética que implica que a decisão não seja de técnicos, juristas, mas que ela empenhe a representação política da comunidade em questão” 1.

CIÊNCIA SOCIAL OU CIÊNCIA DA SOCIEDADE ?

É que a economia não é uma ‘ciência da sociedade’ na sua globalidade, ela é apenas uma ‘ciên-cia social’, tal como a linguística, o direito ou a demografia, ou mesmo a medicina, isto é, uma ciência que trata de certas estruturas das sociedades contemporâneas, as que dizem respeito

1 — Sapir, pp. 263-4 (sublinhado meu).

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02. A ECONOMIA POLÍTICA, O FUTURO DO EMPREGO

ao mercado, enquanto que a ciência que deveria dar conta da globalidade das estruturas des-sas sociedades, a sociologia, é manifestamente incapaz de o fazer, parecendo limitar-se a cer-tos campos – sociologia da educação, da família, da cultura, dos médias, eleitoral, e por aí fora –, como uma ‘ciência social’ entre outras, confessando-se implicitamente incapaz de atingir a maneira muito complexa como essas diversas estruturas se imbricam umas nas outras, algu-mas (a língua, escola e médias, administração política e mercado) atravessando todas as ou-tras. O que penso é que, assim como no tempo da organização moderna dos Estados nações, coube ao direito o papel indispensável de ‘ciência da sociedade’ global, também é hoje, nestes tempos de globalização dos mercados, a economia que supre uma sociologia incapaz de as-sumir esse papel que teoricamente lhe competiria. E como estar-se-á facilmente de acordo que esse papel seja cumprido pela economia enquanto a sociologia não estiver à altura dele, a questão que há que colocar é a das escolhas que ela tem que fazer, dada, como dizia Sapir, “a parte irredutível de escolha social e ética que implica que a decisão não seja tomada por téc-nicos, juristas”, os técnicos em questão sendo aqui claramente os economistas. Estas escolhas, na medida em que elas relevem de abordagens científicas, deveriam ser primeiro objecto das investigações da sociologia, é a ela que os políticos, os activistas e os cidadãos deveriam pedir esclarecimentos. Também os economistas: que estatísticas ter em conta, o que é que há que preservar de social à partida?

A LEI DA SELVA E A LEI DA GUERRA

Para perceber o que é que com efeito é problemático na globalização dos mercados e das tec-nologias, incluindo os médias, há que fazer uma breve digressão recordando como a evolução foi dominada pela lei da selva, ligada a razões bioquímicas precisas (1II. 4-5). As espécies mais evoluídas, os artrópodos entre os invertebrados e as aves e os mamíferos entre os vertebrados, chegaram a endogamias estritas para defenderem o que as torna diferentes das que estão mais próximas, mormente o sistema neuronal que articula em torno do cérebro os órgãos de percepção e locomoção, quer para a preensão das presas, quer para se defenderem dos pre-dadores. Foi por isso que nós, os humanos, herdámos músculos e cérebros de espécies hábeis para se desenvencilharem sob a violência da lei da selva. Se a invenção da agricultura e da criação de gado representou a domesticação pelas sociedades humanas da lei da selva, esta já se tinha deslocado para uma outra forma de lei, a lei da guerra entre elas, sociedades, P. Clastres tendo demonstrado a existência de uma fronteira dentro da qual se trocam mulheres e pre-sentes, fora da qual se guerreia. A explicação passaria aqui por um factor que se dirá antropo--químico, ‘vontades’ (envies) com base hormonal que, por um lado, pedem regras morais, usos e costumes, a começar pelo interdito do incesto, para os moderar ‘ad intra’ e, por outro lado, empurram para a guerra ‘ad extra’. De forma muito geral, como vimos, trata-se da ‘vontade’ de fazer como os outros, essencial à dinâmica de toda a espécie de aprendizagem, mas que facil-mente se pode tornar ‘vontade’ (envie) de ser invejado (envié) pelos outros como o mais forte e hábil. Ora, a agricultura e a domesticação de gado, ao mesmo tempo que controlavam a lei da selva, também tornaram possível a acumulação de riquezas não perecíveis que fizeram mudar

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a natureza da guerra, a tornaram guerra de conquista – de espólios e despojos, de escravos, de sociedades reduzidas à vassalagem –, as castas nobres sendo em todo lado a dos guerreiros.

O COMÉRCIO GLOBAL CONTRA A GUERRA GLOBAL

O livro notável do socialista não marxista Karl Polanyi, La Grande transforma tion. Aux origines politiques et éco no miques de notre temps, escrito em 1944, após as suas primeiras palavras – “a Paz de cem anos. A civilização do século XIX desabou” (p. 219) – prossegue um pouco adiante: “no século XIX produziu-se um fenómeno sem precedentes nos anais da civilização ociden-tal: os cem anos de paz de 1815 a 1914. À parte a guerra da Crimeia, acontecimento mais ou menos colonial, a Inglaterra, a França, a Prússia, a Itália e a Rússia não fizeram guerra umas às outras senão dezoito meses no total” (p. 23), apesar da enorme quantidade de conflitos ‘locais’ que balizaram o século2. Eis o seu diagnóstico: “o comércio estava agora ligado à paz. No passado, a organização do mercado tinha sido militar e guerreira. Era um auxiliar do pirata, do corsário, da caravana armada, [...] dos mercadores com espada, da burguesia urbana em armas, dos aventureiros e exploradores, dos senhores das plantações e dos conquistadores, dos caçadores de homens e dos traficantes de escravos, e dos exércitos coloniais das compa-nhias. Tudo isso agora estava doravante esquecido. O comércio dependia agora dum sistema monetário internacional que não podia funcionar durante uma guerra geral. Exigia a paz, e as grandes Potências esforçavam-se por a manter” (p. 36). Isto era escrito a quente: a primeira glo-balização, após uma centena de anos de paz, acabava de sofrer durante 30 anos uma implosão inenarrável, é o que o seu livro procura explicar. A tese é a seguinte: o mercado auto-regulador (promovido pelo liberalismo inglês) foi a causa das duas grandes guerras, na medida em que de-sencadeou proteccionismos de defesa que degeneraram em nacionalismos. Eis o ponto deci-sivo da sua argumentação: ‘mercadoria’ sendo empiricamente definida como objecto produzi-do para ser vendido no mercado e ‘mercado’ como os contactos efectivos entre vendedores e compradores, resulta na prática que deve haver mercados para todos os produtos da indústria; este postulado, diz Polanyi, é falso no que diz respeito à força de trabalho, à terra e à moeda, já que nenhum foi produzido para ser vendido, nenhum é pois ‘mercadoria’. Os três devem ser preservados do estatuto mercantil que o liberalismo lhes atribuiu.

“O CAPITALISMO PROSPERA; A SOCIEDADE DEGRADA-SE”

Não é aqui o lugar (nem eu teria competência para tal) de discutir esta tese, que nos pode em todo o caso servir de indicador sobre um ponto essencial da nossa actualidade: o liberalismo

2 — Guerras civis, revoluções e contra-revoluções, intervenções diver sas da Santa Aliança, recuo europeu do império otomano, novas nações europeias, nomeadamente a Alemanha e a Itália unificadas, Rússia e Estados Unidos que se tornam potências mundiais, guerras abertas da Ingla terra e da França na Ásia, Índia ou África (p. 24).

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02. A ECONOMIA POLÍTICA, O FUTURO DO EMPREGO

acérrimo, regressado há uns 30 anos, corre o risco de destruir as estruturas da própria socieda-de global, já que “o capitalismo prospera; a sociedade degrada-se”, constatam numa fórmula lapidar Luc Boltanski e Ève Chiapello. Quer dizer que novas formas de implosão podem per-filar-se no horizonte. Em todo o caso, parece que, apesar da frequência de conflitos locais, os 65 anos de paz global desde 1945 devem ser contados como a retomada da que durou todo o século XIX. Seremos libertados então da lei da guerra? Claro que não. Enquanto as instituições e tratados de direito internacional prosseguem a busca do seu controle, ela simplesmente des-locou-se para outro lado, sem cessar o seu jogo para onde rivalidades e raivas se manifestam, isto é, onde quer que haja humanos. Além dos conflitos locais e regionais, ela é bem visível, por exemplo em que as regras a tornam ‘simbólica’, como se diz, na organização espectacular dos desportos, tanto na áspera competição dos atletas como na paixão dos seus adeptos. Por outro lado, o que aqui nos interessa, ela tem um papel fundamental em economia que, no domínio financeiro, está cada vez mais dependente duma verdadeira guerra dos capitais. Tal-vez haja só os economistas para não se darem conta, por razões ideológicas do ofício, já que é evidente para qualquer observador honesto, isto é cujo objectivo na vida não é enriquecer, é evidente que a lógica profunda da economia mundial nos últimos 30 anos é a duma guerra de números, que busca os números cada vez maiores. Números que se tornam astronómicos, por-tanto abstractos: que sejam maiores do que os dos concorrentes. É certo que esses números traduzem-se em poder comprar unidades sociais, nomeadamente no estrangeiro, territórios a ‘conquistar’ como no colonialismo clássico, agora por meio de capitais e tecnologia, mas tam-bém aí o que se procura é o aumento dos números. É o momento de procurarmos abordar o coração da ciência económica.

A MOEDA E A REDUÇÃO CIENTÍFICA EM ECONOMIA...

Por onde o fazer, da maneira ‘fenomenológica’? Digamos que os economistas não fazem nada para nos facilitar a tarefa. Num belo texto de 1969, Numismatiques, uma espécie de teoria filosófico-lacaniana das moedas, J.-J. Goux aborda a economia pela teoria da moeda e da mer-cadoria do Capital de Marx. O ponto decisivo é que o papel de qualquer equivalente geral de circulação de mercadorias, o ouro na época, implica que ele seja excluído, retirado do seu es-tatuto de mercadoria, para se tornar – sob a forma de moeda – susceptível de ser trocado por qualquer tipo de mercadoria, segundo preços expressos por cada uma em valor monetário. Para os estabelecer, é preciso, é certo, contar os seus diversos custos de produção industrial, mas uma vez isso feito, o produto torna-se mercadoria durante o tempo da sua circulação no mercado, o seu valor de uso sendo reduzido, ignorado pelos números do mercado, como condição estrutural da própria troca, do próprio mercado, e portanto também da economia enquanto ciência. Esta trabalha com números estatísticos: preços e quantidades de mercado-rias, pagamentos e vendas, custos e lucros. Esta redução é a operação propriamente científica da economia, tal como a mutação em linguística estrutural ou as medidas de distância, tem-po, peso, temperatura, etc., em física. Ela torna possível a constituição de arquivos estatísticos como laboratório científico da ciência económica, fora da cena propriamente dita do mercado

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e do seu aleatório indefinido, torna possível instituir ‘fenómenos económicos’, no sentido de susceptíveis de ‘experimentação científica’. Trata-se de fragmentos (laboratoriais) que a teo-ria – organizadora da experimentação – deve reunir, unificar, afim de poder em seguida ge-neralizar. Como vimos (III. 45-47), qualquer laboratório científico de qualquer ciência reduz por definição, por estrutura, a ‘coisa’ a analisar, retirando-a do seu contexto na cena da dita realidade: a comutação linguística reduz o ‘sentido’ das unidades linguísticas analisadas para constituir os seus paradigmas, como o físico reduz a ‘qualidade’ dos fenómenos para não reter senão as dimensões requeridas para a experimentação. O que significa que há uma ‘cegueira’ desta redução que é a ranção da cientificidade ganha, cegueira sobre a cena ‘real’, sobre a singularidade dos seus jogos incessantes, sobre as suas indeterminações. É esta cegueira dos laboratórios dos engenheiros que explica, por exemplo, os efeitos de poluição das suas máqui-nas, efeitos que o laboratório teve que reduzir, deixar fora do laboratório. Quando uma dada teoria económica tem como finalidade compreender, ou mesmo ‘prever’, tais agenciamentos macroeconómicos, não se pode tratar nem das ‘predições’ sobre o comportamento de tal ou tal agente económico, nem das suas incidências noutros factores sociais reduzidos pela redu-ção científica. Por exemplo, se tal política económica pode prever os limiar es do aumento do desemprego que será consequência da sua aplicação, não pode todavia saber, por ela mesma, se haverá ou não em consequência uma explosão social, ou algo semelhante, que possa pôr em causa o aspecto económico que essa política visava regular.

... ESCONDEM A POLÍTICA DENTRO DAS ESCOLHAS ECONÓMICAS

O que é problemático, é que é esta redução de tudo o que não é mercado pela moeda, esta operação científica da economia, que justifica, parece-me, a viragem monetarista dos anos 70 para o neo-liberalismo de que hoje constatamos os efeitos de crise sobre as sociedades3. Contradição do meu discurso? Pelo contrário, é a sua confirmação: a economia não é uma ciência da sociedade, é apenas uma ciência social, a que diz respeito à estrutura social que é o mercado e, para sê-lo, tem que reduzir tudo o que nas sociedades modernas não é susceptível de mercado, que ela não pode senão ignorar, devido à cegueira metodológica dessa mesma redução, limites do seu laboratório. Foi assim que este neo-liberalismo monetarista expulsou a economia política de Keynes que tornou possíveis os famosos 30 gloriosos anos de 47-73, a expulsou com argumentos próximos das ‘evidências científicas’ ligadas a esta redução. A moe-da presta-se a isso, com efeito: o capital (qualquer que seja a sua forma jurídica de proprieda-de, privada, fundos de pensões, estatal) seria o único factor social que não é reduzido, já que ele se exprime em unidades monetárias, enquanto que os trabalhadores são reduzidos a salá-rios que são facilmente ‘escondidos’ como ‘custos de produção’4, fáceis de suprimir em nome da produtividade, isto é, da concorrência entre capitais, sem que o desemprego seja ‘visível’

3 —Ocidentais, agravada pelas deslocalizações industriais para regiões de fracos salários.

4 — O que parece dar razão a Polanyi, como também a especulação financeira sobre os capitais e a maneira como o neo-colonialismo explora as terras das antigas colónias, expulsando os camponeses indígenas com argumentos económicos.

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nas contas. Outra consequência é a chamada flexibilidade que visa diminuir, senão anular, o que foi uma das principais apostas liberais nos séculos clássicos (Locke e Rousseau), a noção de contrato social entre homens de palavra, como alternativa filosófica às relações hierárquicas sacralizadas do Antigo Regime, e que representa a única defesa social, jurídica e não económi-ca nem directamente política, de quem ‘produz’ aquilo de que o capital colhe os frutos. Coisas que a economia enquanto ciência ignora.

O que desaparece nesta maneira liberal de fazer as contas económicas é um dos pontos in-contornáveis da análise socialista: a distribuição das mais valias da produção industrial, após abaterem-se os custos em materiais e energia e pagos os impostos e juros de financiamento, esta redistribuição – entre o conjunto dos salários de todos os que trabalham na empresa, por um lado, e os lucros do capital – permanece essencialmente aleatória. Ela não é susceptível de uma regra científica ou dum critério aritmético intrínseco, é sempre o efeito duma apropria-ção. É óbvio que ela não é independente da cena do mercado e da sua instabilidade estrutural, a montante como a jusante. Nomeadamente depende de que os salários deverão permitir a reprodução quotidiana dos trabalhadores e das suas famílias (precavendo-se as futuras gera-ções) que habitualmente, pelo efeito da própria revolução industrial que concentrou as popu-lações nas grandes cidades, não dispõem já dos recursos de auto-consumo (hortas e galinhas) e têm portanto que comprar tudo aquilo de que precisam. Mas estas precisões, por outro lado, também são aleatórias e não têm limites: pelo jogo disseminante da própria publicidade das marcas, fomentado pelo valor de uso em vista de melhorar o valor de troca no mercado, há sempre coisas de mais a querer comprar, viajar, etc. A distribuição entre salários e lucros cons-titui uma aporia, entre ‘vontades’ (envies) mais ou menos invejosas (envieuses), aquilo a que os marxistas chamam ‘luta de classes’: não havendo solução racional, esta não pode pois ser senão política. Marx teorizou-a como contradição entre capital e trabalho, tendo decidido politica-mente5 eliminar um dos factores, com a consequência de restrições à liberdade que se viram. O neo-liberalismo tende a fazer a ‘decisão’ inversa, a ‘ignorar’ o factor trabalho, como se disse (‘custos’ e não ‘contratos’), ou seja a ignorar a ‘sociedade’(“a sociedade não existe”, disse Mrs. Thatcher): a crise financeira recente, ao provocar a devastação das próprias economias, mostra bem o erro da ministra. Estes dois séculos de industrialização capitalista contam como a solu-ção da aporia foi sempre política, através quer de greves e de lutas mais ou menos selvagens, quer de concertações mais ou menos sob a égide do Estado. É este carácter essencialmente político da economia ser apagado pela redução monetária, que dá boa consciência liberal – trata-se sempre da lei da guerra – aos generais, oficiais e sargentos, aos quadros das grandes empresas, cuja finalidade é a de enriquecerem, os seus salários costumando ser negociados nos bastidores.

O imperativo da poupança dos custos (economia no sentido corrente da palavra) que hoje se generaliza – em nome da sacrossanta competitividade, da guerra dos capitais – tem assim um alvo imediato, evidente, os salários da infantaria (chamam-se assim os que não têm palavra

5 — No Manifesto do Partido Comunista, a abolição da propriedade privada não vem no capítulo teórico, mas no segundo, o do programa do partido.

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– in-fans – na guerra), o seu despedimento e readmissão facilitados, ‘flexíveis’. O outro alvo diz respeito ao domínio da produção, submetido à competência do engenheiro e não do econo-mista gestionário. Com efeito, há um duplo laço nas empresas, um técnico, que liga máquinas, matérias primas e trabalhadores no processo de produção (as “forças produtivas” de Marx) e o outro, mercantil, que liga ao mercado (as “relações de produção”), as suas duas leis são indis-sociáveis (não há trabalho sem capital e mercado) mas também têm aspectos inconciliáveis, numa aporia articulada à outra, o engenheiro sendo sistematicamente submetido à pressão de baixar os preços, com os riscos de qualidade da produção. Já que o engenheiro, aludiu--se acima, também opera uma redução laboratorial com a respectiva cegueira estrutural, por exemplo tudo o que diz respeito ao ambiente, quer o interno do fabrico e das condições de trabalho, quer o exterior, a chamada poluição. Aqui, a pressão da poupança dos custos, cega do ponto de vista da ciência económica, opera-se sobre uma outra cegueira ‘científica’, o pe-rigo tornando-se duplo e devendo ser também evitado politicamente, corrigido por outros critérios, como sucede na confecção dos orçamentos nacionais ou municipais, isto é, por ins-tâncias essencialmente locais, cada vez mais impotentes diante da multinacionalidade do ca-pital e da tecnologia.

A CEGUEIRA ESTRUTURAL DUMA CIÊNCIA SOCIAL QUE SE TOMA POR CIÊNCIA DA SOCIEDADE

Em resumo, a redução monetária, própria da economia enquanto ciência social, é incompatível com o lugar por ela ocupado duma ciência da sociedade, já que esse lugar tem que ter em conta o que é reduzido, deveria articular as diversas reduções das diversas ciências sociais. É certo que não é fácil dizer o que seria, o que será? essa ciência global da sociedade6, mas insista-se. As pessoas podem ser mais ou menos avisadas, inteligentes e sensíveis à ecologia e ao social, esta cegueira estrutural da economia enquanto ciência tem efeitos sobre as suas hipóteses teóricas, sobre a sua maneira de seleccionar as estatísticas a ter em conta, permite compreen-der as diferenças de concepção (ideológicas, de boa consciência) entre os diversos actores, tanto económicos como políticos. A questão que haveria que levantar: faltando uma socio-logia como ciência das sociedades globais que servisse de guia à economia enquanto ciên-cia do mercado, podem-se encontrar critérios susceptíveis de consenso científico, que não o duma ‘ciência normal’ (Kuhn) cega? À maneira, por exemplo, da ciência jurídica, que recebe as questões sobre as quais trabalhar – a escravatura, o aborto, a pena de morte, a eutanásia, a pedofilia – do debate político democrático: não é ela, ciência social terapêutica, que decide das respostas a dar-lhes. Seja outro exemplo duma ciência positiva terapêutica, a biologia dos mamíferos humanos enquanto ciência, isto é, a medicina. Sendo uma ciência positiva, visa mais do que o conhecimento fundamental em anatomia e fisiologia humanas, visa as suas doenças, tem por finalidade as curas singulares. Foram as doenças, desde Hipócrates pelo me-nos, que puseram as questões a que a medicina tenta responder: ninguém negará que, tal

6 — O mais que consegui em Belo, 2007, 4.61-8.

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como o direito, a medicina é uma ciência essencialmente terapêutica. Ora, acontece que, nas sociedades modernas, hospitais, indústria farmacêutica, consultas médicas, clínicas variadas, pertencem às unidades sociais de que a economia se deve ocupar, dos seus custos, salários, lucros, etc., fazendo face à aporia de decidir entre curar e poupar, lucrar. Há muito tempo que os médicos sabem que a alimentação, tanto a quantidade quanto a qualidade, é essencial para a saúde das populações: se se encontrarem diante duma situação de fome acelerada, diante dum desemprego crescente, por exemplo, devido a uma crise económica grave, corre-se o risco de se porem problemas insolúveis de custos de tratamentos que farão agravar a crise. Se esta for económica, não se pode pretender que se trate duma questão exterior à economia enquanto ciência, já que ela diz essencialmente respeito, antes de tudo o mais, a gente que come (como justificar os salários se não for assim?). O que significa que a fome é uma questão social que se põe à economia antes de se por à medicina, conclusão sem dúvida inesperada: a economia tem que ter em conta a biologia nas suas hipóteses teóricas de base, esta conclusão faz parte da ‘unificação dos saberes’.

A TAREFA DA ECONOMIA POLÍTICA: CONTROLAR A LEI DA GUERRA DOS CAPITAIS

Invoquemos para terminar um outro economista não alinhado com o pensamento único da Escola de Chicago. Segundo o canadiano Gilles Dostaler, a designação clássica de economia política faz “referência a uma tradição multidisciplinar de abordagem dos problemas económi-cos e sociais, em oposição a uma abordagem mais fechada ou especializada que postula que a sociedade é composta duma soma de agentes racionais. [... ] [hoje] convidam-se os economis-tas na praça pública como técnicos que teriam uma resposta técnica a um problema técnico [...] podendo ser tratado matematicamente e de forma determinista. [...] Keynes denunciou esta hiper-matematização, ele dizia que o ciclo económico é um processo político, social, psi-cológico, ideológico, tão complicado que não se o pode por numa equação e dizer: ‘é assim! Se se passa isto, vai suceder aquilo...’. Keynes dizia que o economista deve ser humilde como um dentista [um terapeuta], um tecnicozinho. Ora, [...] hoje dá-se à economia um estatuto análogo à física ou à biologia”7. Através da redução operada pela moeda, a eco-nomia deve ser a ciência da habitação (oikos, a casa, nomos, o seu governo), tal como a medicina é a ciência das doen-ças através da redução operada pelos laboratórios bioquímicos. É óbvio que não tenho nada a dizer de minimamente preciso a respeito do que deve ser esta economia enquanto ciência terapêutica da habitação humana na Terra, das suas maneiras de ter em conta as questões ecológicas8, a fome, a pobreza, o desemprego, como chegar a esse controle da lei da guerra no que diz respeito ao capital financeiro especulativo. A ‘especulação’, do latim speculum, espelho, é um exemplo flagrante dos efeitos da cegueira monetária: nas bolsas, só se dá atenção ao

7 — “Qu’est-ce que l’économie politique? Entrevue de G. Dostaler” por Forgues e Thériault, in www.unites.uqam.ca./aep/dostaler.html

8 — A ecologia é outra ciência da habitação, complementar da economia e de outras ciências sociais.

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que mostram os ecrans, os números dos capitais, lucros e perdas, sem se saber directamen-te nada da realidade empresarial e económica, dos trabalhadores e das poluições, excepto pelos seus efeitos nos números do espelho. Os mesmos Gregos que inventaram a economia, inventaram também a democracia como maneira política, através de debates e votação de leis, de impedir que as casas poderosas não absorvam ou esmaguem as casas mais fracas. Os Romanos inventaram o direito por razões semelhantes, mas dando lugar ao direito de uso e abuso da propriedade aos cidadãos ricos, que gozavam do imperium, dum poder de expansão por via militar que porventura estará na raiz remota dos números astronómicos que servem de alvo na guerra dos capitais, cuja única condição parece ser a de ser maior do que os dos concorrentes. Ora, assim como camiões TIR, carros de luxo e carros utilitários usam as mesmas estradas devendo sujeitarem-se à regulação do código da estrada, assim também os Estados devem regular, criar regras democráticas às economias nacionais. A sua impotência crescente diante das finanças multinacionais, exibida na crise que essa especulação provocou sobre as economias americana e europeias será uma outra razão para a ciência económica assumir a necessidade de regulação política dos mercados. Já que se ela não serve para evitar este con-flito entre finanças e economia, que ciência é ela?

A questão é que isso implica uma viragem epistemológica que não se vê como acontecerá, quem ou o quê poderá estar na sua origem. Um exemplo histórico relativamente recente, o da economia política de Keynes nos anos 30, poderá dar alguma luz. Do pouco que sei, pode--se pensar que, vendo a crise de 1929 e compreendendo as lições do New Deal de Roosevelt, ele procurou repensar a sua ciência no sentido do que seria necessário para remediar à crise, responder-lhe terapeuticamente. “Não pode pois haver nenhuma regra geral, mas uma aná-lise caso por caso”, dizia Sapir, como é o caso das ciências terapêuticas, ‘cada caso é um caso’, diz-se habitualmente em medicina e reabilitação, na jurisprudência ou no projecto duma bar-ragem ou duma ponte em engenharia civil. Haverá sem dúvida já jovens economistas que buscam trabalhar nesse sentido. Admitindo que cheguem a resultados susceptíveis de apli-cação terapêutica, o problema será: e como fazer para que estas novas concepções penetrem nas universidades de pensamento único, se tornem, senão dominantes ou maioritárias, pelo menos admitidas à exposição magistral, à discussão? Como pretender que essas discussões possam contribuir para o que Boltanski e Chiapello chamaram o “novo espírito do capitalismo”, cheguem a ter efeitos na guerra dos capitais? O exemplo de Keynes é paradoxal: a sua teoria só teve êxito entre os economistas e os políticos após a guerra de 39-45, foi preciso um cata-clismo pavoroso para que a viragem da ciência económica fosse viável. Ora, eu escrevi isto em 2007, depois houve uma crise fortíssima que justificou, infelizmente, aquilo que aqui escrevi (a especulação sobre as ‘subprimes’ desencadeou falências de bancos e desmoronou nume-rosas economias fundadas em créditos estrangeiros) e somos obrigados a constatar que, nem economistas, financeiros ou dirigentes políticos nem eleitores (a votarem à direita), ninguém parece ter aprendido nada! Não havia Keynes nenhum? Ou o cataclismo não foi suficiente? Há, é certo, correntes alter-mundialistas e ecologistas muito variadas, mas para deixarem de ser minoritárias, precisarão duma crise mais forte? Um texto como este não podia terminar bem.

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O futuro do emprego: a tecnologia vai acabar com o trabalho?

FRANCISCO LOUÇÃ

A identificação do problema foi feita por muitos: a conjugação de desemprego estrutural com emi-gração crescente e com transferência de rendimentos do trabalho para o capital é um problema democrático fundamental.

Mas, como muitos leitores têm sugerido a discussão do tema, neste post discuto a mesma ques-tão do ponto de vista do futuro: o que é que vai acontecer ao emprego com o desenvolvimento de novas aplicações tecnológicas? Há soluções ou vamos piorar? Não há uma resposta simples a esta questão. Em estudos recentes, 47% dos empregos nos EUA são considerados sob ameaça de extinção por substituição tecnológica. E em Portugal? Haverá emprego no futuro ou estaremos condenados a um purgatório de dependência das esmolas do Estado?

Talvez neste interregno da formação do governo (qual?), valha a pena tratar de outras questões essenciais.

A CRISE DO EMPREGO NÃO VAI SER RESOLVIDA, VEIO PARA FICAR

Analisando a crise do emprego, a OIT publicou um relatório sobre Portugal em que regista três factores de agravamento da crise social: um quinto da população expressa a sua vontade de emi-grar; havia então 56% dos desempregados que estão há mais de um ano sem trabalho (e aproxi-madamente a mesma percentagem que não recebe qualquer apoio); e, ainda, que a reforma de negociação coletiva de 2011 conduziu à degradação da cobertura pelos contratos e portanto à fragilização das relações laborais.

Neste relatório, a OIT apresenta uma simulação do efeito de políticas favoráveis ao emprego, a par-tir de duas condições: a redução da taxa de juro em 1,5 pontos, para favorecer o investimento, e o desenvolvimento de políticas ativas, muito dirigidas para os jovens e para as famílias em que não há emprego. Segundo esta simulação e nestas condições, seria possível criar 108 mil postos de tra-balho até final de 2015 e assim conseguir uma queda do desemprego em 2,3 pontos percentuais.

Ora, a orientação seguida pelo governo Passos-Portas tem sido a contrária, acentuando os factores de redução dos salários e pensões e da procura interna, e estimulando as regras que facilitam o desemprego, excepto quando foi obrigado a fazer o contrário pelo Tribunal Constitucional. En-tretanto, o emprego criado é predominantemente precário, ou seja, mais vulnerável a qualquer variação conjuntural.

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QUANTO EMPREGO VAI DESAPARECER COM A COMPUTORIZAÇÃO?

Temos então uma crise e uma política que acentua a crise. Mas teremos também um problema de sustentabilidade tecnológica do emprego? É o que vamos ver a partir de três estudos recentes e aplicados à realidade da economia norte-americana.

Dois dos artigos procedem a análises históricas sobre a evolução do emprego ao longo das suces-sivas revoluções tecnológicas. E perguntam-se se os economistas do século XIX e XX tinham razão ao anteciparem que a sofisticação da tecnologia e das máquinas viria a substituir cada vez mais trabalho humano. Esse era o ponto de vista de David Ricardo (no seu capítulo XXXI dos Princípios de Economia Política e Tributação), de Karl Marx e, mais tarde, de John Maynard Keynes.

Ora, a estrutura produtiva evolui com a adoção de novas tecnologias ou formas de organização e, por isso, a aplicação de trabalho humano varia muito ao longo dos tempos: na imagem reproduz--se uma fábrica de alfinetes, como aquela a que se teria referido Adam Smith no seu livro de 1776, o  Inquérito sobre a Riqueza das Nações: hoje esta fábrica seria igual? Mas, se for diferente, como certamente será, o que é que mudou?

Lawrence Katz (Universidade de Harvard, economia) e Robert Margo (Universidade de Boston, eco-nomia) fizeram uma investigação histórica sobre a relação entre as qualificações dos trabalhadores e as vagas de novas tecnologias para poder quantificar esses efeitos. A hipótese tradicionalmente aceite era que no século XIX, com a revolução industrial, a evolução tecnológica teria favorecido o emprego de trabalhadores menos qualificados como operadores dos equipamentos, ao contrário do que se teria passado a partir desse período. Mas os autores tiram a conclusão contrária: apesar do desaparecimento dos artesãos (qualificados) com a industrialização, foram sendo necessários outros trabalhadores qualificados, além dos operadores das máquinas, para serem afectos a fun-ções mais sofisticadas fora da linha de produção, o que conduziu a um importante e persistente aumento de emprego qualificado. Essa seria a base histórica da criação do que se veio a chamar mais recentemente de “classe média”, nos EUA e noutros países.

No livro que escrevi com Chris Freeman, “As Time Goes By” (na tradução portuguesa, “Crises e Ciclos no Capitalismo Global”, Afrontamento, 2009), esses processos são analisados no mesmo sentido.

O segundo artigo é de David Autor (MIT, economia) e David Dorn (CEMFI, Madrid) e foi publicado na American Economic Review em 2013. Os autores estudam unicamente o crescimento do traba-lho pouco qualificado entre 1980 e 2005, para verificarem a tese que afirma que o aumento da de-sigualdade salarial estará relacionado com a mudança tecnológica que favorece as qualificações. Mas a sua conclusão é surpreendente: ao passo que durante os vinte e cinco anos o emprego e os

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02. A ECONOMIA POLÍTICA, O FUTURO DO EMPREGO

salários de trabalhadores pouco qualificados se têm vindo a degradar, o mesmo não acontece com os trabalhadores dos serviços. A parte destes trabalhadores entre os empregados que não têm formação universitária aumentou muito, mais de 50%. E cresceram os seus salários. Numa palavra, recuperaram poder contratual mesmo durante o período de redução do crescimento e das reces-sões dos anos oitenta e noventa.

A interpretação destes autores é que a computorização substituiu por máquinas os trabalhadores com tarefas rotineiras e que a rápida redução do preço da tecnologia computacional estimulou essa substituição. Por isso, os trabalhadores terão passado para os serviços, que são mais difíceis de automatizar e onde teriam encontrado cada vez mais empregos.

O último destes artigos é de Carl Frey (Universidade de Oxford, filosofia) e de Michael Osborne (Universidade de Oxford, engenharia) e estuda a persistência ocupacional desses serviços. E é aqui que a porca torce o rabo. Os autores estudam 702 profissões e o impacto previsível que a computo-rização pode ter no número de postos de trabalho, para concluírem que 47% dos empregos estão em risco, isto é, têm grande probabilidade de serem extintos nas próximas duas décadas.

Para chegarem a esta conclusão, Frey e Osborne distinguem os trabalhos que são intensivos em atividades rotineiras dos que exigem mais criação, e são portanto mais difíceis de conduzir por uma máquina com um algoritmo mesmo que sofisticado. Para isso, dão o exemplo do sucesso da Goo-gle em 2010, quanto conseguiu aplicar em Toyotas Prius um processo de condução totalmente au-tomatizado, sem condutor (os estados norte-americanos da Califórnia e Nevada estão atualmente a alterar a legislação para permitirem automóveis sem condutor). Apesar do grande número de factores envolvido em cada decisão na condução de um automóvel, a Google conseguiu reduzir esse processo a rotinas e aprendizagens (o que não quer dizer que o carro automático esteja dis-ponível comercialmente a curto prazo). Mas essa capacidade não se aplica (ainda) em casos muito mais complexos com grande intensidade cognitiva.

Se conjugarmos esta análise com a de Autor e Dorn, então deduzimos que são precisamente os serviços onde mais aumentou o emprego para trabalhadores pouco qualificados que estão agora em risco com a computorização. Os exemplos das suas listagens de profissões com 99% de proba-bilidade de perderem grande parte do emprego são os operadores de telemarketing, os reparado-res de relógios, os processadores de fotografias, os bibliotecários, os processadores de seguros, os agentes de cargas e fretes, os analistas de crédito, os motoristas, secretárias, operadores de rádio, operadores de telefone, vendedores, inspetores fiscais, analistas de orçamentos, técnicos em geo-logia e petróleo, cozinheiros, empregados de mesa, pedreiros, técnicos de equipamentos celulares, joalheiros, tratadores de animais e muitos outros. Por outras palavras, a qualificação será a base do emprego, mas só no caso de algumas qualificações.

PORTUGAL EM RISCO

É certo que, em Portugal, a redução dos salários desincentiva a curto prazo esta substituição de trabalho por processamentos computacionais. Para a redução de custos das empresas, atacar o

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salário é sempre uma vantagem. Mas a margem é muito estreita e essa vaga de alterações tecno-lógicas chegará em pouco tempo. Teremos assim uma dupla crise: a do desemprego criado pela destruição salarial e pelas regras facilitistas, e a do desemprego criado pelo reajustamentos dos processos produtivos e de gestão de serviços.

Sendo Portugal um dos países com menores qualificações da força de trabalho, esse desincentivo é evidente. No relatório do Conselho Nacional de Educação esses dados são evidentes nas com-parações de níveis de qualificação em 2011: a parte da população que atingiu pelo menos o 12º ano é em Portugal de 31,9% (Espanha 52,6% e UE27 72,7%) e a que terminou o ensino superior é em Portugal de 15,4% (Espanha 30,7% e UE27 25,7%). Os salários são mais baixos e o trabalho é portanto mais barato.

Nesse sentido, a evidência demonstra que também nos sectores mais qualificados tem aumentado o desemprego.

Assim, nesta era da austeridade, são os diplomados do ensino superior que sofreram as maiores quebras de emprego em 2012 e 2013. Mais uma vez, isso demonstra que a procura de redução de custos com salários se concentra nos sectores mais bem pagos, ou que poderiam vir a ser mais bem pagos. Como muitos desses desempregados emigraram, temos então uma dupla armadi-lha. Em primeiro lugar, a redução de salários e o desemprego dos trabalhadores mais qualificados provoca perda de capacidade, emigração e exclusão do trabalho. Em segundo lugar, esta situação cria menos incentivos para a qualificação de quem chega à idade de estudar e trabalhar. Ou seja, perdem-se as qualificações existentes e perdem-se as qualificações futuras. Por outro lado, a evo-lução tecnológica sugere que no futuro próximo se vão perder muitos empregos em profissões rotinizadas de baixa qualificação.

Em analogia com os estudos atrás citados, o risco de um processo de substituição de trabalho pode abranger mais de 50% dos trabalhadores nos sectores mais vulneráveis (serviços financeiros, ener-gia, consultoria, comércio, armazenamento, distribuição, educação e outros). Mesmo que o resulta-do não seja uma computorização tão extensa como a referida pelos estudos para os EUA, não deixa de ser uma ameaça imensa. A ela soma-se ainda a situação corrente da austeridade: há um grande número de empregos em trabalhos por conta própria, que dependem da procura interna e são por isso a primeira fronteira da austeridade. Eles também estão a desaparecer em grande velocidade.

Por outras palavras, com austeridade não teremos medidas ativas para o emprego. E com a combi-nação entre autoridade tecnológica e submissão social teremos um regime apontado para viver na base de desemprego de massas, permanente e sem apoio. Não conhecemos nenhuma democra-cia assim. Mais vale prepararmo-nos para nos subjugarmos a este regime autoritário ou para viver para lutar contra ele, e para o vencer.

(http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2015/10/18/o-futuro-do-emprego-a-tecnologia-vai-acabar-com-o-trabalho/)

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03. NOTAS

Passo a passo até ao verdadeiro resgate dos povos

EUGÉNIA PIRES

(artigo de opinião para a revista digital mediotejo.net, publicado a 29 setembro 2015)

O problema da resolução do excesso de endividamento dos estados soberanos foi levado pela mão da Argentina, vítima dos “vampirescos” fundo abutre, à 68º Assembleia Geral das Nações Unidas em Setembro de 2014. Nessa altura foi deliberado criar um mecanismo multilateral no seio das Nações Unidas que conferisse o enquadramento legal e os meios técnicos capazes de assegurar a atempada e adequada restruturação de dívida pública1.

Esse mecanismo ainda não foi criado dadas as pressões do sector financeiro sobre as autorida-des dos países desenvolvidos e a conivência das autoridades desses países. Porém, no passado dia 10 de Setembro, a 69º Assembleia Geral das Nações Unidas votou a Resolução A/69/L.84 aprovando por substancial maioria (136 países favoráveis, 6 contra e 41 a absterem-se) os Prin-cípios fundamentais a observar num processo de restruturação de dívida soberana2.

A versão final dos documentos não está disponível porque tem o acesso vedado. Porém, de acordo com a versão da comissão ah doc criada para este efeito os nove princípios são: - sobe-rania, boa-fé, transparência, imparcialidade, tratamento equitativo, imunidade soberana, legi-timidade, sustentabilidade e restruturação majoritária.

Portugal com uma dívida pública de 227 mil milhões de euros, equivalente a 128.9% do PIB3, uma despesas em juros orçada em 7.4 mil milhões de euros, quase idêntica ao orçamento da saúde (8 mil milhões de euros), e o maior devedor ao FMI deveria ser o primeiro a alegrar-se

SOBRE O ENDIVIDAMENTO DOS ESTADOS SOBERANOS E RENEGOCIAÇÃO DA DÍVIDA

1 — Disponível aqui: http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/68/304

2 — Um draft de 29 Julho, disponível aqui: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N15/238/00/PDF/N1523800.pdf?OpenElement

3 — Boletim estatístico Banco de Portugal, dados de Junho 2015.

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com estas notícias, a participar activamente no comité ad hoc criado para o efeito, e a despo-letar um processo de restruturação da dívida à luz destes princípios.

Na verdade, estes princípios representam a possibilidade de Portugal beneficiar de uma restru-turação liderada pelo devedor que, em alternativa ao empobrecimento generalizado, fruto da abordagem austeritária que reduz os portugueses a meros registos contabilísticos, opusesse uma abordagem holística e humanista que leva em linha de conta a obrigação constitucional de proteger os direitos fundamentais dos cidadãos portugueses, dando prioridade ao desen-volvimento económico sustentado, partilhando responsabilidades entre o povo português, e os credores privados e oficiais, porém protegendo os pequenos aforradores, e protegendo o estado português da actuação predatória de fundos abutres e da litigância perversa em tribu-nais estrangeiros.

Parece-lhe, portanto, que estes princípios e o mecanismo multilateral de resolução consti-tuem um passo fundamental para a resolução do problema de dívida impagável de Portugal, certo? Porque foi então que as autoridades Portuguesas nunca falaram disto? Como foi que Portugal acompanhou e votou este processo?

Portugal absteve-se em Setembro de 2015, tal como havia feito em Setembro de 2014. Além disso, recusou-se a participar nas reuniões do comité ad hoc constituída para avaliar o proble-ma e conceber o mecanismo de restruturação. Convém salientar duas coisas. Primeiro, referir que ao adoptar este comportamento Portugal viola a sua soberania para seguir a posição co-mum imposta pelo Conselho da União Europeia (UE), um órgão sem poder legislativo com-posto pelos chefes de estado dos estados-membros, o presidente da Comissão e o presidente da União Europeia, apesar desta ser contrária ao interesse da maioria da população. Segundo, que à luz do interesse público e dos princípios de solidariedade nacional não se compreende o boicote da UE a este projecto. Ela é tão trágica quanto o facto desta falta de apoio ter moti-vado o adiamento da criação do mecanismo, e de se ter optado, como passo intermédio, pela aprovação dos 9 princípios fundamentais.

À actuação concertada da UE não é estranho o facto da Alemanha fazer parte dos países repre-sentantes da comunidade financeira de credores que tem consolidado a sua participação glo-bal através do sistema financeiro, e que votaram contra a ambas a resoluções: EUA, Alemanha, Reino Unido, Japão, Canadá e Israel4. O que é assaz preocupante é que esta actuação desvirtua e empobrece a democracia pois transfere automaticamente para uma entidade supranacional não sujeita ao escrutínio democrático a tomada de decisões com implicações directas sobre a qualidade de vida dos seus cidadão. No caso da Grécia a violação da democracia foi ainda mais longe. As autoridade gregas participaram na terceira reunião do comité ad hoc, em linha com o programa sujeito ao escrutínio democrático pelo qual foram eleitos, para posterior-

4 — Note-se que a Austrália, República Checa, Finlândia, Hungria e Irlanda haviam sido contra, demarcaram-se dessa posição para agora se absterem.

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03. NOTAS

mente serem desautorizadas e obrigadas a votarem concertadamente, embora esta mesma tomada de posição não tenha sido imposto à Alemanha, que votou alinhada com os interesses do seu sector financeiro, continuamente resgatado pelos governos alemães e periféricos.

Por outro lado, embora a UE tente manter algum distanciamento ao impor a “abstenção” e não o voto contra, a sua recusa em participar nas negociações tem por base uma argumentação imbuída de forte défice democrático e de privilégio ao sector financeiro,5 nomeadamente:

1. consideram que as NU não são o fórum adequado, remetendo para o FMI, onde existe maior poder de influência a UE, o tratamento desde debate, relegando para segundo pla-no o problema dos conflitos de interesse deste credor multilateral que leva a que as solu-ções por si preconizadas fiquem aquém das necessidades dos devedores, nomeadamente a preferência por uma abordagem contratual “amiga do mercado”, que limita a resolução do endividamento à dívida soberana transacionada em mercado secundário e convenien-temente excluindo a partilha de responsabilidade entre os credores oficiais encarregues dos programas de estabilização macroeconómica.

2. os princípios impedem a intromissão externa: ‘todas as instituições e actores que partici-pam na restruturação’ incluído o envolvimento de representantes de aglomerados regio-nais devem abster-se de influenciar o processo e os seus actores ou abster-se de participar em acções que possam dar origem a conflito de interesses. Ora acontece, como muito bem sabemos que as instituições europeias não-democráticas, têm conflito de interesses quando assumem o papel de autoridade macroeconómica responsável pelo desenho das políticas fiscais e monetárias em simultâneo com o papel de credor, não tendo, por isso, pejo em desvirtuar a democracia…especialmente invocando o poder regional, para assim proteger os seus interesses próprios.

3. os princípios não concedem tratamento privilegiado entre credores. Acontece que o FMI, o BCE e a CE querem preservar o seu estatuto de super-senioridade sobre os credores privados e os cidadãos de um país, apesar de tal implicar uma maior penalização sobre os últimos.

4. As decisões de restruturação obtidas por maioria não podem ser ameaçadas ou invalida-das por outros estados soberanos ou tribunais de jurisdições externas. Ora acontece que quando se emite dívida nos mercados de capitais internacionais esta tem jurisdição ha-bitualmente em Nova Iorque, Londres ou Luxemburgo e estes países não querem perder esta estatuto de jurisdição financeira amigável.

Por último, importa salientar que no âmbito das Nações Unidas, apenas as decisões do Conse-lho de Segurança têm poder vinculativo pelo que os princípios, ainda, não tem poder vincula-tivo. Uma insuficiência que o perito independente das NU para o impacto do endividamento externo e outras obrigações financeiras internacionais sobre os direitos humanos pretende

5 — Documento de 7 de Setembro do Conselho da Europa http://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-11705-2015-INIT/en/pdf

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ver corrigida em breve dada a sua pertinência para o cumprimento em pleno dos direitos eco-nómicos, sociais e culturais das populações.

Em suma, a atempada restruturação da dívida portuguesa, impagável em 2011 e em 2015, poderia ter impedido a transferência de empresas e serviços públicos lucrativos para o sector privado, o desinvestimento na educação, saúde e investigação, a saída de cerca de meio mi-lhão de portugueses, a falência de milhares de empresas, o despedimento generalizados, a precarização das relações laborais e o empobrecimento dos portugueses. Apesar disto tudo, este problema financeiro ainda não está resolvido, ao contrário daquilo que o governo neoli-beral quer fazer crer.

Assim, a aprovação dos 9 princípios para uma restruturação de dívida constitui um instrumen-to fundamental para a tardia, mas ainda necessária, resolução do excesso de endividamento público. Era bom que eles fossem utilizados para defesa do povo português e que não fossem desperdiçados, para assim proteger o interesse do sector financeiro internacional e dos credo-res oficiais. Estes princípios constituem, ainda assim, uma vitória, não obstante o desmesurado poder económico dos credores que, pouco a pouco, vão ficando mais sós... Pouco a pouco a igualdade entre povos triunfará!

Preparar a renegociação da dívida1

JOSÉ MARIA CASTRO CALDAS, EUGÉNIA PIRES, PAULO COIMBRA

A petição “Pobreza não paga a Dívida: Reestruturação Já!”, submetida à Assembleia da Repúbli-ca a 30 de janeiro deste ano, instava o Parlamento a: (a) pronunciar-se a favor de um processo de renegociação da dívida pública; (b) promover a criação de uma Entidade para acompanhar a auditoria à dívida pública bem como preparar e acompanhar o seu processo de renegocia-ção; (c) garantir que essa Entidade assegura isenção de procedimentos, rigor e competência técnicas, participação cidadã qualificada e condições de exercício do direito à informação de todos os cidadãos e cidadãs.

A mensagem principal da petição era simples: o Estado português deve preparar-se para a renegociação da dívida pública. Passado quase um ano, esta mensagem, ou apelo, é ainda mais premente.

1 — É devida uma palavra de agradecimento na preparação desta intervenção a toda a equipa da IAC (http://auditoriacidada.info/) por três anos de partilha de ideias e combates.

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03. NOTAS

1 - A preparação da renegociação da dívida tornou-se ainda mais premente, em primeiro lugar, porque o processo de endividamento não foi revertido. Os stocks de dívida externa e privada deixaram de crescer, mas a dívida pública continua a aumentar (ver figura 1).

Entretanto, a capacidade privada e pública de servir essa dívida deteriorou-se. Entre 2010 e 2013, o Produto Interno Bruto perdeu 11 mil milhões de euros em termos reais, 400 mil em-pregos desapareceram, a população residente diminuiu em 200 mil pessoas, mais 85 mil por-tugueses passaram a viver abaixo da linha de pobreza e mais 180 mil passaram a viver em condições consideradas de privação material severa. A maioria das empresas continua desca-pitalizada e, tal como as famílias, endividada. O Estado está cada vez mais pressionado pelas restrições impostas pelo serviço da dívida.

Quatro anos de austeridade produziram como resultado a mesma dívida externa, uma dívida pública maior, um peso maior dos juros e menos rendimento público e privado. A troika e o memorando não resgataram Portugal do endividamento. Resgatados, na realidade foram, em primeiro lugar, os bancos portugueses. Os bancos eram em 2007 o sector institucional mais

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endividado no exterior. Hoje esse lugar é ocupado pelo Estado (administração pública e Banco de Portugal) (ver figura 2).

Foi precisamente porque os bancos viram o seu acesso ao crédito internacional cortado que a crise de endividamento externo se transformou, em Portugal e noutros países sujeitos a resgates, em crise da dívida soberana. Privados de acesso ao financiamento externo, os muito endividados bancos portugueses teriam falido em 2011. Mas o Estado português decidiu ofe-recer-se em garantia. A consequência, como não podia deixar de ser, foi a extensão do corte do acesso ao crédito internacional ao soberano tornado fiador.

Os bancos foram resgatados. O Estado português emitiu, desde 2009, garantias públicas que lhes permitiram emitir dívida. O BCE deu-lhes acesso a abundantes fundos em troca de ativos financeiros (colateral) de duvidosa qualidade. O resgate pôs à sua disposição 15% do total dos créditos do memorando.

Resgatados foram também os bancos internacionais mais expostos à dívida portuguesa, ban-cária e soberana (ver figura 3). Em dezembro de 2010, 64% da dívida pública era detida por cre-dores externos privados, em dezembro 2013, a parte destes credores havia descido para 23%. Neste período credores externos libertaram-se de 55 mil milhões de euros de dívida soberana portuguesa que consideravam tóxica. Só as compras de dívida soberana pelo BCE permitiram à banca dos países do centro libertarem os seus balanços de ativos portugueses “indesejáveis” na ordem dos 23 mil milhões de euros. Entretanto os credores oficiais, isto é o FMI, os fundos da União Europeia e o BCE, passaram a deter 43% da dívida pública. 

2 - A preparação da renegociação é agora ainda mais premente, em segundo lugar, porque as perspetivas de recuperação da economia europeia e portuguesa têm vindo a deteriorar-se. Mais do que o crescimento anémico, o problema agora, particularmente em Portugal, é a de-flação. A aritmética mais simples mostra que mesmo com taxas de juro nominais moderadas

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03. NOTAS

(em torno de 4%), para taxas de crescimento nominais inferiores a 3%, garantir a sustentabi-lidade financeira da dívida, implicaria saldos orçamentais primários exorbitantes. Mais difícil ainda, na realidade impossível, seria obter os saldos orçamentais requeridos pelo Tratado Or-çamental, de forma a reduzir em vinte anos a dívida pública a 60% do PIB.

A dinâmica da dívida, isto é a evolução do rácio dívida/PIB ao longo do tempo, tal como é nor-malmente analisada pelos economistas, depende das taxas de juro médias da dívida, da taxa de crescimento do PIB em termos nominais e do saldo orçamental primário em percentagem do PIB. A figura 4 representa com uma reta azul a fronteira que delimita o espaço das taxas de crescimento do PIB (nominal) e do saldo orçamental primário (em percentagem do PIB) que garantiriam a sustentabilidade financeira da dívida (isto é, o não crescimento do rácio PIB/dí-vida), assumindo que as taxas de juro se vão manter em 4%. À direita dessa reta está o “espaço de sustentabilidade” e à esquerda o de “insustentabilidade”. A reta vermelha representa o mes-mo tipo de fronteira para as condições de cumprimento dos requisitos do Tratado Orçamental. Entre 2000 e 2013 há apenas dois anos em que o requisito de sustentabilidade se verificou (2000 e 2007) e nenhum em que se tenham cumprido as condições do Tratado.

Na zona euro a catorze, tomando as médias de 2000 a 2013, apenas três países (a Bélgica, a Finlândia e Luxemburgo), cumpriram os requisitos de sustentabilidade, e apenas um - o Lu-xemburgo - os do Tratado Orçamental, tal como se configuram para Portugal nos próximos anos (ver figura 5).

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3 - Na aritmética simples das simulações de sustentabilidade obtêm-se os resultados preten-didos com facilidade, manipulando pressupostos acerca do crescimento e do saldo orçamen-tal primário. Para obter números compatíveis com o Tratado Orçamental considera-se com o maior à vontade o pressuposto de um orçamento equilibrado em 2019. Num contexto de crescimento anémico e deflação, isto só é possível com a continuação de violentos cortes. Pode-mos ter uma noção da violência desse aperto se tivermos em conta que para obter um orçamento equilibrado em 2015 seriam necessários cortes na despesa ou incrementos da receita fiscal de cer-ca de 5 mil milhões de euros.

A perspetiva de prolongamento dos cortes orçamentais num contexto de crescimento anémico e deflação suscita a questão de outras sustentabilidades para além da financeira. O que efetivamen-te está em causa quando se antecipam cortes orçamentais ainda mais profundos e prolongados no tempo é saber se o serviço da dívida e os compromissos assumidos face aos credores devem ter precedência sobre todos os outros compromissos do Estado. O que está em causa, é uma escolha entre serviço da dívida e Direitos Humanos. O que está em causa é a sustentabilidade social da dívida e, em última análise, política.

É preciso por tudo isto que o Estado português desencadeie um processo de renegociação da dívi-da pública. Deve faze-lo antes que os próprios credores, face à manifesta insolvência do credor e o risco de perdas radicais, concluam que devem ser eles a tomar a iniciativa. Nessa altura será tarde.

Desejavelmente, a renegociação deveria decorrer no enquadramento institucional da União Euro-peia. É nesse enquadramento, em articulação com outros estados membros, que o governo por-tuguês deveria tomar a iniciativa. No entanto, a reestruturação da dívida não pode ser prostergada indefinidamente. Em caso algum deverá qualquer governo hipotecar a prerrogativa soberana, re-conhecida pelo direito internacional, de desencadear uma renegociação por iniciativa própria, caso o contexto internacional não seja favorável no futuro próximo a um processo multilateral.

Em qualquer caso, o Estado português deve preparar-se.

(Comunicação apresentada na Conferência Parlamentar sobre Dívida Pública, Assembleia da República, 16 de dezembro de 2014, http://auditoriacidada.info/)

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04. DOCUMENTO - SOBRE O SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL

O Salário Mínimo Nacional e os falsos factos

JOÃO RAMOS DE ALMEIDA

Na edição de hoje do Expresso, Pedro Santos Guerreiro enumerou algumas das medidas que estarão no acordo entre o PS, o PCP, o Bloco e os Verdes. E a certa altura diz: “Os trabalhadores com salário mínimo são os mais beneficiados, têm aumentos por duas vias”. Pelo aumento do SMN e pela redução da sua TSU. “O seu rendimento disponível aumenta. As empresas gastam mais. O emprego pode diminuir. O Estado recebe menos.” E mais adiante, a meio texto, remata: “Já vou em seis parágrafos e ainda não escrevi uma única linha de opinião. Mas provavelmente você, caro leitor, já formou a sua”.

O problema dos nossos directores de jornais é que tomam as suas opiniões por factos. E re-petem-nos, repetem-nos, tornam-nos como falsos sensos comuns, uma falsa sabedoria que apenas entronca numa certa maneira de olhar, tida como factos estabilizados. E que nunca é explicada tecnicamente.

Dito de outra maneira: não nenhuma indicação de que um aumento do salário mínimo leve a mais desemprego.

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E não há porque os níveis salariais são muito baixos. Tão baixos que qualquer aumento de umas dezenas de euros no SMN abrange um número considerável de trabalhadores. Um au-mento para 600 euros abrangeria 44% dos trabalhadores nacionais!!

E ainda assim, o aumento do SMN tem efeitos não excessivos na Massa Salarial paga pelas em-presas, embora os seus trabalhadores sintam subidas consideráveis do seu rendimento. E isso passa-se mesmo em actividades com uma grande concentração de trabalhadores a receber o SMN. Qual a razão do paradoxo? A extrema desigualdade salarial reinante em Portugal.

Veja-se um estudo que o Observatório sobre Crises e Alternativas, divulgado ontem, feito com base na única base de dados sobre os quais é possível estimar, de forma segura, o impac-to de um aumento do SMN - os Quadros de Pessoal das empresas.

Mesmo uma subida de 505 para 600 euros - uma subida de 18%, considerado como sendo excessiva - levaria a uma subida de apenas 2,9% da Massa Salarial da economia. Se for para 532 euros (uma subida de 5,3%), a subida da Massa Salarial será de 0,65%!!

No sector do vestuário ou do calçado - em que três quartos dos trabalhadores recebem o SMN - a subida de 505 para 532 euros implicaria numa subida de 3,1% da massa salarial do sector e para 548,50 euros de 4,8%. Se fosse para 600 euros, subiria para 11,3%.

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04. DOCUMENTO - SOBRE O SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL

Recorde-se que os gastos com pessoal representam cerca de um quinto do valor da produção. Ou seja, mesmo um aumento de 11% na Massa Salarial de um sector reflete-se em 2% do valor da produção. São estes valores condizentes como uma situação de desemprego iminente? En-tão de onde vem essa ideia?

O mesmo se passa com as micro, pequenas e médias empresas. Veja-se o que se passaria para um aumento do SMN nos diversos cenários.

Um aumento para 532 euros representaria um aumento de 1,5% da massa salarial das micro empresas (até dez trabalhadores). E seria de 0,8% nas pequenas empresas (entre 10 e 49 tra-balhadores). E de 0,5% na massa salarial das médias empresas (de 50 a 250 trabalhadores). Aumente-se o SMN para 546,50 euros e isso representa uma subida de 2,4% da sua massa sala-rial. Parece um cenário absurdo? Estamos a falar de menos de 550 euros...O limiar de pobreza em 2014 foi de cerca de 410 euros, sendo que, nesse mesmo ano, o salário mínimo líquido foi de 431 euros.

E mais: de onde vem a ideia de que o Estado (não deveria ser dito “Segurança Social” e não “Estado”?) vai perder dinheiro? A Segurança Social só perde dinheiro com uma subida do SMN se a principal parte da TSU for devolvida aos empregadores, com descontos à sua TSU. Caso contrário, a Segurança Social receberá 34,75% dessa subida...

A ideia do Pedro Santos Guerreiro é a mesma linha de raciocínio defendida pelo governo da coligação de direita para justificar o congelamento do SMN durante 3 anos. Uma linha de raciocínio que foi rapidamente posta de lado, ao dar luz verde a uma subida do SMN, a vigorar de Outubro de 2014 a finais de 2015, de 485 para 505 euros, embora pagos substancialmente pela Segurança Social (através de descontos da TSU). O aumento foi justificado com a melho-ria da economia. Na verdade, todos os problemas estruturais da economia não mudaram e, pela mesma ordem de ideias, o Governo de direita deveria ter mantido - ou mesmo descido - o SMN. Mas não o fez.

Por que não se a medida iria provocar desemprego? E o Estado iria perder dinheiro?

(inicialmente publicadono blog http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2015/11/o-salario-minimo-nacional-e-os-falsos.html)

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Salário Mínimo Nacional: até onde o queremos aumentar? Um aumento do Salário Mínimo Nacional (SMN) em 2016, para valores situados entre 532 e 600 euros mensais, atingiria de forma imediata um número considerável de trabalhadores – entre 30 a 44% dos assalariados no sector privado, respetivamente. Cada um desses trabalhadores teria, em média, um aumento do rendimento base entre 4,0% e 11,5%.

O aumento do SMN tem um impacto nos custos salariais de todas as empresas, tanto maior quanto mais baixas as remunerações praticadas na empresa. Mas esse impacto, em termos médios, é muito reduzido. Com um aumento do SMN para 532 euros a massa salarial global aumentaria apenas 0,65%. Com um aumento para 600 euros, esse acréscimo seria de 2,9%.

As remunerações e outros gastos com o pessoal, como as contribuições patronais para a Segurança Social, representam, segundo os dados fornecidos ao INE pelas empresas (Sistema de Contas Integradas das Empresas – SCIE), cerca de 20% do valor dos custos de produção, pelo que uma subida do SMN entre 532 e 600 euros teria um impacto entre 0,13 e 0,6% do custo total de produção. Em termos agregados a subida do SMN teria como efeito direto uma transferência do excedentes gerados pelas empresas – o excedente bruto de exploração (EBE) – a favor das remunerações dos trabalhadores situada entre 1,1% e 4,9%. Registe-se ainda que o peso dos gastos com pessoal no conjunto dos custos das empresas é bem mais pequeno do que os gastos com serviços externos que incluem energia, comunicações e outros.

Um aumento do SMN beneficiaria sobretudo os trabalhadores mais jovens, os que têm até dois anos de antiguidade na empresa, os de mais baixos níveis de escolaridade, e os que trabalham em atividades como o comércio ou nas indústrias de vestuário, têxteis, couro e calçado, mobiliário, agricultura e silvicultura, indústrias alimentares e restauração. E esse aumento seria sentido sobretudo na massa salarial das empresas destes sectores e das micro e pequenas empresas em geral.

Há outros efeitos não estimados que têm impactos positivos significativos. Um aumento do SMN para um número tão considerável de trabalhadores, a par do efeito potencialmente negativo nos custos de produção do sector exportador, frequentemente enfatizado, refletir-se-ia positivamente num aumento da procura interna. Fruto dessa evolução, o aumento do SMN beneficiaria atividades viradas para o mercado interno, desenvolvidas pela maioria das micro e pequenas empresas. Isto significa que este grande conjunto de empresas só aparentemente seriam as mais prejudicadas com uma subida do SMN. Por outro lado, há um efeito positivo nas contas da Segurança Social.

Remuneração base Remuneração base - montante ilíquido em dinheiro e/ ou géneros pago aos trabalhadores no período de referência e correspondente às horas normais de trabalho, independentemente de terem faltado ou não por férias, parentalidade, greves, formação profissional, doença e acidentes de trabalho por tempo igual ou inferior a um mês.

Remuneração mensal ganho Remuneração base, prémios e subsídios regulares e remuneração por trabalho suplementar.

Quadros de pessoal Dados fornecidos pelas empresas, entregues entre março e abril de cada ano, relativamente ao período anterior e que abrangem todas as entidades com trabalhadores por conta de outrem, à exceção da Administração Pública, entidades que empregam trabalhadores rurais não permanentes e trabalhadores domésticos.

Barómetro das Crises

06-11-2015 | Nº 14

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1. Introdução

O aumento do salário mínimo nacional (SMN) é uma das medidas que combatem, de forma mais eficaz, os riscos

de pobreza entre os trabalhadores. Esta é precisamente uma das orientações da Organização Internacional do

Trabalho (OIT), visando um Trabalho Digno. Esta orientação foi, nos últimos cinco anos e em particular desde

2011, posta de lado em Portugal, já que as políticas seguidas foram precisamente no sentido contrário.

Em 2006, a orientação seguida pelo Governo Sócrates foi a de quebrar a relação até aí existente entre a

evolução das pensões e a do SMN, por forma a permitir uma mais rápida subida do salário mínimo. No âmbito

do acordo tripartido, firmado na concertação social a 5 de dezembro de 2006, foi fixada uma progressão do

SMN até 500 euros em 2011, o que permitiu uma recuperação do poder de compra do SMN, perdido ao longo

dos anos. Mas a partir daí, diversas medidas foram tomadas em sentido contrário. Primeiro, no rescaldo da crise

de 2007/08 e já sob forte pressão da Comissão Europeia, o SMN ficou nos 485 euros em 2011, aquém da meta

acordada. Em segundo lugar, e, já sob a aplicação do Memorando de Entendimento com a troika, o SMN foi

“congelado” durante três anos, alegadamente como forma de dar maior competitividade às empresas, através da

redução dos custos do trabalho. Em 2014, já próximo das eleições legislativas de 2015, o Governo Passos

Coelho aumentou o SMN para 505 euros com efeitos entre 1/10/2014 e 31/12/2015. Este aumento foi

parcialmente financiado com verbas da Segurança Social, através da redução da Taxa Social Única.

Esta política, com um marcado cunho ideológico e ao arrepio das orientações da OIT, foi traçada sem estudo de

impacto conhecido. Até à atualização de 2011, as confederações patronais e sindicais acertavam uma progressão

para o SMN com base num trabalho técnico elaborado em conjunto com serviços do Estado. Desde aí, esses

estudos técnicos discutidos pelas confederações patronais e sindicais deixaram de ser realizados de forma

tripartida. É por essa razão que, em torno do debate sobre o SMN, se formaram falsos sensos comuns que não

têm em conta o facto de o SMN pesar relativamente pouco nos custos salariais das empresas portuguesas,

embora tenha um forte impacto no poder de compra dos assalariados abrangidos e, consequentemente, nas suas

condições de vida e no equilíbrio social. E isso verifica-se mesmo entre as empresas de reduzida dimensão ou

nos sectores com uma elevada densidade de trabalhadores a receber o SMN. Se o Governo Passos Coelho se

tivesse respaldado em estudos técnicos, teria concluído que aumentar o SMN para 505 euros em 2012

abrangeria mais 7,2% dos trabalhadores por conta de outrem (a tempo completo e com remuneração

completa). Os trabalhadores abrangidos teriam um aumento médio do seu rendimento de 3%, enquanto as

empresas registariam uma subida de apenas 0,36% da massa salarial nacional, correspondente a 0,07% dos custos

de produção, algo como 7 euros por cada 10000 euros.

Os resultados das recentes eleições legislativas permitem uma alteração na política salarial a seguir no futuro em

articulação com um novo leque de medidas de combate à pobreza. É importante, portanto, ter neste momento

uma noção dos reais custos e impactos de medidas como o aumento do salário mínimo.

Com base nos Quadros de Pessoal do Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social (MSESS) de

2012i, é possível traçar diversos cenários e os seus impactos, mesmo não considerando todos os efeitos

possíveis.

2. Pressupostos de análise

Não há dados recentes sobre a estrutura dos rendimentos dos trabalhadores assalariados que permitam uma

análise aprofundada dos impactos de uma subida do SMN. Os elementos mais recentes, com carácter exaustivo,

ainda são os fornecidos pelas empresas no âmbito dos seus Quadros de Pessoal, relativos a 2012. Os de 2013, já

entregues pelas empresas em março/abril de 2014 foram divulgados de forma agregada e, por isso, não

permitem análises mais finas.

i Dados consultados ao abrigo do protocolo estabelecido com o GEE/ME, já divulgados numa primeira fase no Barómetro das Crises nº

12, sendo as conclusões da responsabilidade do Observatório sobre Crises e Alternativas do CES.

3

Outros dados complementares, como os números sobre os descontos para a Segurança Social ou os relativos

ao IRS – que possuem um carácter exaustivo do universo dos assalariados – não são trabalhados de forma a

permitir uma análise dos impactos ou nem sequer estão disponíveis. Os primeiros porque são apenas

disponibilizados ao INE e ao Banco de Portugal (sendo divulgados no Boletim Estatístico do Banco Central

apenas valores globais de número de trabalhadores e de descontos efetuados, sem discriminação de escalões de

rendimento). Os dados fiscais – nomeadamente os relativos a 2013 – não são conhecidos porque o Ministério

das Finanças não os disponibilizou ainda, apesar de haver um despacho em vigor que obriga a administração fiscal

a fazê-lo até março do ano seguinte ao da sua entrega pelos contribuintes.

Tentando dissipar esta opacidade estatística que um futuro governo deve corrigir, torna-se forçoso estabelecer

pressupostos que, de alguma forma, permitam fixar um cenário para 2015 que tenha adesão à realidade.

Gráfico 1

Variação do nº de assalariados com descontos, face a dezembro de 2012

Fonte: Banco de Portugal, boletim estatístico.

Desde dezembro de 2012, o número de assalariados com descontos feitos para a Segurança Social sofreu uma

quebra significativa que se manteve até fevereiro de 2014 (ver Gráfico 1). A partir daí, a diferença do número de

assalariados com descontos face a dezembro de 2012, atenuou-se e, desde maio de 2015, começou a superar

esse valor. Teve esta alteração no emprego alguma influência na distribuição salarial dos assalariados?

Observando a desagregação do número de trabalhadores empregados por grau de habilitação – constante dos

dados do INE, no seu Inquérito ao Emprego - verifica-se que, do último trimestre de 2012 ao 1º trimestre de

2014, o peso dos empregados com um nível até ao ensino básico se reduziu 3 pontos percentuais (de 57,6 para

54,6%). A recuperação ligeira do emprego verificada desde fevereiro de 2014 tão-pouco mudou

substancialmente este cenário. Do 2º trimestre de 2014 até o 2º trimestre de 2015, desceu mais dois pontos

percentuais (52,4%). A essa descida corresponde a subida do peso dos trabalhadores com qualificações

correspondentes ao ensino secundário (de 21,1 para 25,6%) e ao superior (de 21,3 para 25,5%). Segundo os

dados do INE, e para o mesmo período, cerca de dois terços do emprego criado foi para trabalhadores com

qualificações superiores, o que poderia indiciar uma melhoria salarial significativa. Mas essa maior componente

4

das qualificações parece não se traduzir num nível salarial significativamente mais elevado, pelo menos a julgar

pelos valores salariais objeto de descontos para a Segurança Social (ver Gráfico 2).

Gráfico 2

Variação homóloga das remunerações médias declaradas

Fonte: Banco de Portugal, boletim estatístico.

Ou seja, o período de 2012 usado como referência nos cálculos (por serem os dados mais recentes dos

Quadros de Pessoal) poderá parecer alterado pela evolução recente do emprego e do desemprego. Mas caso se

tenha em conta a evolução do emprego e do desemprego desde 2012, as estimativas baseadas nos Quadros de

Pessoal referentes a 2012 poderão, sim, sobrevalorizar o número de pessoas que atualmente recebem o SMN, o

que poderá, por sua vez, sobreavaliar o alcance da medida e, com ela, os seus efeitos na Massa Salarial. Por

outro lado, tendo em conta os valores de descontos efetuados para a Segurança Social, não é de supor uma

alteração significativa na distribuição dos níveis salariais em 2015 face a 2012, o que permite ter alguma

segurança na análise baseada nos Quadros de Pessoal, como uma amostra significativa para avaliar os impactos

de um aumento do SMN. Em conclusão, os valores que se obtêm através dos Quadros de Pessoal de 2012

poderão medir o grau de alcance da medida e os seus impactos na Massa Salarial atual, ainda que por excesso.

3. Salário Mínimo e pobreza

Partindo dos Quadros de Pessoal das empresas do continente em 2012, que agregam os dados de 1,911 milhões

de trabalhadores por conta de outrem a tempo completo e com remuneração completa, verifica-se que 30% dos

trabalhadores têm uma remuneração base não superior a 535 euros e apenas 25% recebem mais de mil euros

mensais. O valor da mediana (ponto da distribuição que a divide exatamente em duas partes iguais) era de 784

euros. Por isso, e apesar dos baixos valores do SMN, o número dos trabalhadores abrangidos pelo SMN tem

vindo a subir significativamente (ver Gráfico 3).

5

Gráfico 3

Remuneração base e ganho por percentis, em 2012 (euros mensais)

O baixo nível de SMN fica igualmente patente nas comparações internacionais (ver Gráfico 4).

Gráfico 4

Valores mensais do Salário Mínimo em diferentes países (em euros)

Fonte: Eurostat.

Quanto à eventual influência do SMN no combate à pobreza, os valores mais recentes, relativos a 2014, revelam

que em Portugal persistem níveis de pobreza dos mais elevados entre os países da OCDE e que esse cenário se

acentuou durante o período de aplicação do Memorando de Entendimento, fruto das medidas de contenção e

desvalorização salarial, de aumento da tributação dos rendimentos do trabalho e dos pensionistas, de

desarticulação da contratação coletiva, de forte redução dos apoios sociais e do aumento da precariedade e do

desemprego. Os indicadores de pobreza são particularmente gravosos mesmo entre as pessoas que têm

emprego. Em 2013, ainda se registava uma taxa de pobreza de 10,7% entre os empregados, e a intensidade de

pobreza neste universo era de 28% (INE, ICOR, 2014). Esta realidade é consonante com uma elevada

desigualdade na distribuição salarial (ver Gráfico 3).

6

Com o aumento para 505 euros mensais o SMN passou a abranger 23% dos trabalhadores (30,3% das

trabalhadoras e 17,3% dos trabalhadores).

Por idades, o novo SMN passou a abranger 48% dos trabalhadores até 25 anos, 23% dos trabalhadores

entre 25 e 34 anos, 20% dos trabalhadores entre 35 e 44 anos, 22% entre 45 e 54 anos e 20% dos

trabalhadores com mais de 55 anos.

Por antiguidade, o novo SMN passou a abranger 38% dos trabalhadores com menos de 1 ano de “casa”,

32% dos trabalhadores entre 1 a 2 anos de antiguidade, 25% entre 3 e 4 anos, 21% entre 5 e 9 anos, 16%

entre 10 e 14 anos, 13% entre 15 e 19 anos e mesmo 11% dos trabalhadores com mais de 20 anos de

casa.

Por tipo de contrato, abrangeu sobretudo contratos a prazo – 35% desses contratos, mas igualmente um

quinto dos trabalhadores com contrato sem termo e 31% dos contratados com termo incerto.

Por habilitações, o novo SMN abrangeu sobretudo pessoal de baixas qualificações: 77% de todos os que

recebiam SMN tinham até ao ensino básico e 19% até ao ensino secundário. Mas apesar disso, teve um

alargado grau de penetração: abrangia 4% dos licenciados e 5% dos doutorados.

Por regiões, localiza-se sobretudo no norte (47% dos que recebiam SMN) e centro (23%). Lisboa tinha

apenas 20% do total.

Por atividade e em valores absolutos, o comércio é de longe o sector que mais contribuiu para o

universo dos contratados a SMN: 19% do total dos assalariados a receber SMN estavam no comércio.

Mas a penetração do SMN é elevada também noutros sectores: 75% dos trabalhadores na indústria do

vestuário recebem SMN, 54% dos trabalhadores na indústria têxtil, 49% couro e curtumes, 46% no

mobiliário, 43% dos trabalhadores agrícolas, 40% na silvicultura, 39% na restauração, 36% nas indústrias

alimentares, 29% na promoção imobiliária, 27% no comércio a retalho, 26% na construção, 23% na

indústria de madeiras.

Por dimensão de empresas, o SMN atinge sobretudo as empresas de pequena dimensão: 41% do

emprego das empresas com menos de 10 trabalhadores, 24% do emprego de empresas entre 10 e 49

trabalhadores. Mas igualmente 11% em empresas entre 500 e 999 trabalhadores e 10% das empresas

com mais de mil trabalhadores.

É este universo de trabalhadores abrangidos pelo SMN que importa ter em atenção ao medir os impactos de um

aumento do SMN. A análise que se segue visa medir os impactos dos seguintes aumentos:

Para 532,03 euros = salário mínimo de 1974 (3.300$00), a preços de 2012

Para 537,50 euros = salário mínimo de 1974, a preços de 2015

Para 546,50 euros = salário mínimo de 1974, a preços de 2012, embora atualizado com inflação e

produtividade até 2015

Para 600 euros = primeiro limiar acima do SMN usado nos dados publicados pelo MSESS.

4. Impactos dos aumentos do SMN

Caso o SMN suba em 2016 do valor atual de 505 euros para os valores assumidos atrás, a percentagem dos

trabalhadores abrangidos pelo novo SMN no total dos assalariados subirá: passará dos atuais 23% para, uma

percentagem situada entre 29,7% e 44% do total dos assalariados, consoante o valor fixado (ver Gráfico 5). De

igual forma, a Massa Salarial correspondente ao esse universo de trabalhadores abrangidos pelo SMN subirá em

2016 e representará uma parcela superior na Massa Salarial global: passará dos 12,5% da Massa Salaria total

atuais para uma parcela que pode variar, respetivamente, entre 16,2% a 25,3% do total (ver Gráfico 6).

7

Gráfico 5

Alcance (% de trabalhadores)

Gráfico 6

Massa Salarial abrangida (% do total)

Sublinhe-se a discrepância observada: mesmo no caso de uma subida do SMN para 600 euros em 2016, cerca de

44% dos trabalhadores receberia apenas 25,3% da Massa Salarial global. É essa discrepância que explica que

mesmo um aumento mais pronunciado do SMN represente, em termos médios, uma subida da Massa Salarial

pouco expressiva. No caso em análise, o aumento da Massa Salarial sentida pelos empregadores oscilaria entre

0,65 e 2,9%. Mas para cada um dos muitos trabalhadores abrangidos significaria um aumento considerável dos

seus rendimentos (entre 4% e 11,5%) (ver Gráfico 7).

8

Gráfico 7

Subida da Massa Salarial (variação face à SMN = 505 euros)

Apesar da reduzida dimensão dos aumentos da Massa Salarial, no cômputo geral da economia que impacto teria

para o custo de produção? Essa avaliação pode ser feita através da estrutura de custos das empresas, apurada

graças aos dados fornecidos pelas próprias empresas, no Sistema de Contas Integradas das Empresas (SCIE).

Com base nesses dados estatísticos, é possível estimar que as remunerações representavam cerca de 20% dos

custos de produção em 2013. Ou seja, um aumento da massa salarial entre 0,65% e 2,9% representaria um

aumento dos custos de produção globais entre 0,13 e 0,6% do custo total de produção. Repartindo-se o valor

acrescentado bruto (VAB) entre o excedentes brutos de exploração (EBE) e as remunerações, e admitindo-se

que essa repartição se mantém constante conforme o estimado pelo INE para 2013, o aumento do SMN

representaria uma subida da remuneração dos trabalhadores e, consequentemente uma descida do EBE do

mesmo valor situada entre 1,1% e 4,9%.

Os cálculos apurados para a evolução da Massa Salarial não avaliam aquilo que é habitualmente sublinhado como

um “efeito de arrastamento” da subida do SMN na estrutura de salários. Os empregadores seriam obrigados a

um aumento generalizado dos salários por forma a manter os equilíbrios relativos na empresa. Ora, se é difícil

medir este efeito – dado ser necessário isolar, de um período para outro, apenas o efeito da subida do SMN na

evolução dos dados do emprego – é de admitir que o “efeito de arrastamento” seria despiciendo em toda a

estrutura salarial, embora possa ser sensível nos salários imediatamente próximos do novo salário mínimo, não

implicando agravamentos substanciais nos custos salariais.

9

Gráfico 8

Características dos trabalhadores abrangidos, por idade

(% dos trabalhadores com SMN em cada grupo etário)

Um aumento do SMN beneficia sobretudo os trabalhadores mais jovens. Se o SMN subir para 532 euros,

abrangerá 60% dos jovens com idades até 25 anos. Mas se subir em 2016 para 600 euros, já chegará a 77% desse

escalão etário. Ainda assim, um aumento do SMN levará a que trabalhadores com idades mais elevadas passem a

ser igualmente abrangidos: mesmo com uma subida de apenas 532 euros, cerca de 30% dos trabalhadores entre

25 e 34 anos serão abrangidos (ver Gráfico 8).

Gráfico 9

Características dos trabalhadores abrangidos, por antiguidade

(% dos trabalhadores com SMN por anos de "casa")

Uma subida do SMN, mesmo para valores como 532 euros mensais, fará com que 46% dos trabalhadores com

menos de um ano de “casa” passem a estar abrangidos pela medida (ver Gráfico 9). Caso a subida seja de 600

10

euros mensais, essa parcela aumenta para 62%. O grau de penetração do SMN entre os diversos grupos de

antiguidade tende a descer à medida que aumenta o tempo de “casa”. Apesar disso, o aumento do SMN ainda

atingiria um número considerável dos trabalhadores com mais de 20 anos de antiguidade. Um aumento do SMN

em 2016 mesmo para 532 euros mensais abrangeria 14% dos trabalhadores desse grupo. E essa percentagem

aumenta para 23,5% caso o SMN suba para 600 euros em 2016. Ainda assim, entre os trabalhadores que

recebem o SMN, a maior parte – ao redor de 47% – estará nos dois primeiros grupos de antiguidade (menos de

2 anos de “casa”).

Gráfico 10

Características dos trabalhadores abrangidos, por habilitações (% dos trabalhadores com SMN em cada grupo)

No universo dos trabalhadores que recebem o SMN e qualquer que seja o aumento a decidir, nada altera a

realidade seguinte: a esmagadora maioria deles tem entre o ensino básico ou menos (ao redor dos 76%) ou o

ensino secundário (ao redor dos 19%) (ver Gráfico 10). Dos restantes 5%, cerca de 60% são licenciados. Esta

elevada concentração não obsta a que o aumento do SMN atinja – e de forma significativa - trabalhadores com

todo o tipo de habitações académicas. Obviamente, atingirá de forma mais intensa os que tenham menos que o

ensino básico (entre 58 e 76% desse grupo de pessoas, consoante o aumento seja entre 532 e 600 euros

mensais), os que tenham o ensino básico (entre 40 e 58% desse grupo), os que tenham o ensino secundário

(entre 24 e 38% desse grupo). Mas abarcará igualmente os que tenham o ensino pós-secundário (entre 20 e 31%

desse grupo), os que tenham licenciaturas (entre 5 e 9% desse grupo), os que tenham mestrados (entre 3 e 5%

desse grupo) ou mesmo doutoramentos (entre 5 e 7% desse grupo).

11

Gráfico 11

Características dos trabalhadores abrangidos, por atividades

(% dos trabalhadores com SMN em cada atividade)

São muitas as atividades económicas que dependem do trabalho remunerado com o SMN (ver Gráfico 11). Na

impossibilidade de enumerar todas, assinalam-se apenas aquelas em que o aumento do SMN poderá ter maiores

impactos entre os seus trabalhadores. Caso o SMN aumente para 532 euros em 2016, essa medida abrangerá

cerca de 79% dos trabalhadores da produção de vestuário. E caso aumente para 600 euros, apenas abrangerá

mais 6% dos trabalhadores (além dos 79% já mencionados). Assinale-se que, em atividades como a indústria de

vestuário, de couro e peles (inclui calçado), têxteis, restauração, agricultura, um aumento mesmo para 532 euros

mensais abrangeria mais de 50% dos trabalhadores desses sectores.

Gráfico 12

Características dos trabalhadores abrangidos, por dimensão de empresa (% dos trabalhadores com SMN em cada grupo)

12

Se as empresas com menos de dez trabalhadores concentram cerca de 40% dos trabalhadores que recebem

SMN, as empresas entre 10 e 49 pessoas contratam 28% de quem recebe SMN, as empresas com entre 50 e

249 trabalhadores contratam 19% dos trabalhadores que recebem SMN. Ou seja, mais de quatro quintos dos

trabalhadores que recebem o SMN. Mas as empresas com mais de mil trabalhadores contratam tanto (7%) como

as que têm entre 250 e 499 e entre 500 e 999 trabalhadores (4,4% e 2,6% respetivamente) (ver Gráfico 12). Este

facto revela que o impacto de uma medida como o aumento do SMN poderá ter transversal a toda a economia.

Caso o SMN suba para 532 euros em 2016, essa medida abrangerá 47% dos trabalhadores das empresas com

menos de dez trabalhadores, cerca de 31% dos trabalhadoras das empresas com pessoal entre 10 e 49

trabalhadores, cerca de 26% do pessoal das empresas entre 50 e 249 pessoas, cerca de 20% do pessoal das

empresas entre 250 e 499 pessoas, cerca de 16% do pessoal das empresas com pessoal entre 500 e 999 pessoas

e mesmo 17% dos trabalhadores das empresas com mais de mil pessoas ao serviço. Essas percentagens de

penetração aumentam substancialmente caso o SMN suba para 600 euros mensais: respetivamente, para 63%,

48%, 40%, 33%, 29% e 27% do pessoal de cada um dos grupos de dimensão.

5. Casos de estudo: sectores com baixas retribuições

A indústria do vestuário é a das atividades com maior concentração de trabalhadores a receber o SMN. Que

impacto teria um aumento do SMN na sua folha de salários?

Gráfico 13

Indústria do vestuário (variação face à SMN = 505 euros)

Ao avaliar o impacto num sector como o do vestuário, o que se verifica é que um aumento do SMN para 532

euros mensais – que representaria um aumento dos rendimentos de 78,5% do conjunto de trabalhadores do

sector – teria um impacto na Massa Salarial global do sector de 3,1%. Um aumento do SMN para 537 euros

mensais representaria um aumento da Massa Salarial global do sector de 3,7%, e os trabalhadores abrangidos –

79% por trabalhadores do sector – sentiriam uma subida de rendimento de 5,6%. Já um aumento do SMN para

600 euros mensais teria um impacto na Massa Salarial global do sector de 11,3% e os trabalhadores abrangidos –

cerca de 80% – sentiriam um acréscimo médio de rendimento de 15,6%. (ver Gráfico 13).

E o que pode acontecer a empresas de pequena dimensão, em que a Massa Salarial assume um peso considerável

na lista de custos de produção? Serão comportáveis os aumentos colocados como hipótese?

13

O que se verifica é que as micro empresas, pela concentração de pessoal de baixa retribuição – 40% do seu

pessoal recebe o SMN de 505 euros – são o grupo de empresas em que mais se sente a medida, embora com

baixos valores de variação. Se o SMN aumentar para 532 euros mensais, as micro empresas terão uma subida da

Massa Salarial de 1,49%. Mas o impacto do aumento do SMN seria de 0,76% para as pequenas empresas (entre

10 e 49 trabalhadores) – que têm ao redor de 25% de pessoal a receber o SMN – e de 0,52% para as médias

empresas (entre 50 e 244 trabalhadores) – que têm uma parcela de 19% de pessoal a receber o SMN. Um

aumento do SMN para 600 euros mensais representaria um aumento da Massa Salarial de 6,13% nas micro

empresas, de 3,46% nas pequenas empresas e de 2,42% nas médias empresas (ver Gráfico 14).

Gráfico 14

Aumento da Massa Salarial (variação face à SMN = 505 euros)

Esta evolução deverá ser, contudo, apreciada no contexto dos custos de produção das empresas. Ainda segundo

o INE, o peso dos gastos de pessoal no conjunto do valor da produção oscilou em 2013 entre 25% nas micro

empresas, 27% nas pequenas empresas, 22% nas médias e 16% nas grandes empresas. Mas, por exemplo, os

gastos com serviços externos contratados pelas empresas (energia, comunicações, etc.) é superior aos gastos

com pessoal em todo o universo empresarial. Variam desde 40% nas micro empresas, 38% nas pequenas

empresas, 36% nas médias empresas e 30% nas grandes empresas. Ou seja, um aumento dos preços dos serviços

contratados semelhante aos aumentos considerados do SMN tem um impacto muito superior nos custos das

empresas.

14

6. Outros impactos do aumento do salário mínimo

Um aumento do SMN para um número tão considerável de trabalhadores como os estudados refletir-se-á

forçosamente numa subida do consumo privado e consequentemente no investimento privado, atenuando

aquela que é indicada, nos Inquéritos aos Empresários do INE, como a principal razão para não investir (as

baixas perspetivas de vendas). E isso beneficiará atividades viradas sobretudo para o mercado interno, como é

precisamente o caso da maioria das micro e pequenas empresas – que representam a esmagadora maioria das

empresas – e que aparentemente seriam as mais prejudicadas com uma subida do SMN.

Por outro lado, um aumento do SMN refletir-se-á igualmente nas contas da Segurança Social. Com o acréscimo

da massa salarial, as contribuições sociais subiriam entre 91 e 406 milhões de euros conforme o aumento do SMN

seja entre 532 e 600 euros.

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