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UNIVERSIDADE SO FRANCISCO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU EM
EDUCAO
EDILAINE RODRIGUES DE AGUIAR MARTINS
ERA UMA VEZ... HISTRIAS INFANTIS NA
APRENDIZAGEM MATEMTICA:
POSSIBILIDADES DE PROBLEMATIZAO
Itatiba
2011
EDILAINE RODRIGUES DE AGUIAR MARTINS
ERA UMA VEZ... HISTRIAS INFANTIS NA
APRENDIZAGEM MATEMTICA:
POSSIBILIDADES DE PROBLEMATIZAO
Dissertao de Mestrado apresentada ao
Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em
Educao, da Universidade So Francisco, sob
orientao da Prof Dr Regina Clia Grando,
para obteno do ttulo de Mestre em Educao,
na linha de pesquisa: Matemtica, Cultura e
Prticas Pedaggicas.
Itatiba
2011
Ficha catalogrfica elaborada pelas bibliotecrias do Setor de
Processamento Tcnico da Universidade So Francisco.
371.399.51 Martins, Edilaine Rodrigues de Aguiar.
M342e Era uma vez... histrias infantis na
aprendizagem matemtica: possibilidades de
problematizao. / Edilaine Rodrigues de Aguiar
Martins. -- Itatiba, 2011.
145 p.
Dissertao (mestrado) Programa de Ps- Graduao Stricto Sensu em Educao da
Universidade So Francisco.
Orientao de: Regina Clia Grando.
1. Histrias infantis. 2. Problematizao.
3. Educao matemtica. 4. Resoluo de
problemas. 5. Ldico. I. Grando, Regina Clia.
II. Ttulo.
Oliveira. I I. Ttulo.
MARTINS, Edilaine Rodrigues de Aguiar. Era uma vez... Histrias Infantis na Aprendizagem Matemtica: possibilidades de problematizaes. Dissertao defendida e aprovada no Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Educao,
Universidade So Francisco em 18 de Fevereiro de 2010 pela banca examinadora
constituda pelos professores:
_________________________________________________________
Prof Dra. Regina Clia Grando (Orientadora)
Universidade So Francisco
_________________________________________________________
Prof Dra. Adair Mendes Nacarato (Examinadora)
Universidade So Francisco
_________________________________________________________
Prof Dra. Maria Auxiliadora Bueno Andrade Megid (Examinadora)
Pontifcia Universidade Catlica
4
Dedico este trabalho ao querido Marcelo,
meu marido, amigo e companheiro
incondicional nesta caminhada.
A todos os educadores que refletem sobre
sua prtica e buscam, juntamente com as
crianas, a melhor forma de aprender.
5
AGRADECIMENTOS
A DEUS, razo da minha existncia, por estar sempre presente ao meu lado no
decorrer dessa trajetria, fonte de Sabedoria. ELE o grande responsvel por esta vitria.
Em especial, agradeo Dr Regina Clia Grando, orientadora desta pesquisa e amiga
sempre presente, pelas observaes e orientaes no desenvolvimento deste trabalho, por
compartilhar momentos de ansiedade e alegria. Sem voc este sonho no teria sido realizado.
Obrigada por tudo!
A professora Dr Adair Mendes Nacarato, pelo carinho e pelo ensino desde a
graduao. Obrigada pela leitura cuidadosa e pelas contribuies no exame de qualificao, o
que proporcionou um novo olhar para a concluso deste trabalho.
A professora Dr Maria Auxiliadora Bueno Andrade Megid (Dora), pelas indicaes
no exame de qualificao, valiosas para o aperfeioamento desta pesquisa.
Ao Supervisor de Cultura de Vrzea Paulista, Eufraudsio Modesto, pela amizade e por
valorizar o meu esforo e acreditar neste trabalho, oferecendo-me apoio incondicional.
s crianas participantes do projeto, por compartilharem momentos de interao e
envolvimento na contao das histrias, que ficaro registrados em minha memria e no meu
corao.
Aos companheiros e aos professores do curso de ps-graduao da Universidade So
Francisco, em especial ao professor Dr. Moyss Kuhlmann Jnior, que me ensinou sobre a
histria da Educao Infantil, assunto pertinente a este trabalho.
minha me Elza, pela ajuda, pelas oraes, pelas palavras de incentivo e por tudo
que fez para que pudesse realizar este curso. senhora, meu imenso amor e minha gratido.
A todos os amigos e familiares que acompanharam e incentivaram o meu crescimento.
Ao meu amor Marcelo (M), pela ajuda recebida no decorrer desta batalha, por todo
incentivo, pela pacincia, pela compreenso e pelo amor nos momentos difceis e alegres. Voc
meu porto seguro!!! Te amo!
Capes, que proporcionou o financiamento para a realizao desta pesquisa.
6
Sonho Impossvel
Sonhar mais um sonho impossvel
Lutar... Quando fcil ceder
Vencer... O inimigo invencvel
Negar... Quando a regra vender
Sofrer... A tortura implacvel
Romper... A incabvel priso
Voar... Num limite improvvel
Tocar... O inacessvel cho.
minha lei, minha questo
Virar esse mundo, cravar esse cho
me importa saber, se terrvel demais
nas guerras terei que vencer
Por um pouco de paz.
E amanh, se esse cho que eu beijei
For meu leito e perdo
Vou saber que valeu delirar
E morrer de paixo,
E assim, seja l como for
Vai ter fim a infinita aflio
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossvel cho.
(Chico Buarque)
7
RESUMO
MARTINS, Edilaine Rodrigues de Aguiar. Era uma vez... Histrias Infantis na Aprendizagem Matemtica: possibilidade de problematizaes. Dissertao de Mestrado, Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Educao, Universidade So
Francisco, Itatiba-SP. 145p.
A presente pesquisa buscou investigar a possibilidade de aprendizagem matemtica pela
criana durante o desenvolvimento de um projeto de Contao de Histrias Infantis em
um Espao Cultural no tutelado. Objetivamos analisar as potencialidades das histrias
infantis como mobilizadoras para a resoluo de situaes-problema e aprendizagem
matemtica pelas crianas, a partir do movimento de contao de histrias, das
problematizaes e das diferentes estratgias utilizadas (jogo simblico) pelas crianas.
A pesquisa foi desenvolvida numa abordagem qualitativa. Como fundamentao
terico-metodolgica para o desenvolvimento e a anlise, adotamos a perspectiva
histrico-cultural. O espao em que as atividades foram desenvolvidas no formal: um
Parque Municipal no municpio de Vrzea Paulista/SP, que dispe de um espao
cultural frequentado por crianas de diferentes idades. O projeto foi desenvolvido em
dois finais de semana, em que foram contadas seis histrias, pela prpria pesquisadora.
A documentao foi composta por videogravao das contaes de histrias; registros
pictricos e grficos das crianas; e dirio de campo da pesquisadora. Os dados so
apresentados por meio de episdios compostos pelas histrias. As anlises evidenciaram
que as crianas so capazes de resolver as situaes-problema, se considerarmos a
perspectiva problematizadora que adotamos nesta pesquisa. A articulao da
matemtica com as histrias infantis possibilitou o desenvolvimento do pensamento
matemtico e destacou tambm o aspecto cultural e a situao fantstica e/ou o imaginrio, na resoluo das situaes-problema pelas crianas.
Palavras-chave: histrias infantis; problematizao, educao matemtica; resoluo
de problemas; ldico.
8
ABSTRACT
The present survey tried to investigate the possibility of Math learning by the children
during the development of a project of Storytelling for Children in a no-tutoring
Cultural Place. We had the aim of analyzing the potentialities of storytelling for
children as a tool for resolutions of problem-solving and Math learning through story-
telling , problem solving and different strategies used (symbolic game) by the children.
The survey was developed in a quantitative approach. As a methodological basis for
development and analysis we have adopted the historical and cultural perspective. The
space where the activities were developed is a no-formal one: a public park in the city of
Vrzea Paulista/S.P., which has a cultural space for children of different ages. The
project was developed during two weekends when six stories were told by the
researcher. The documentation was done by storytelling video recording, pictorial and
graphical registers of the children and diary notes of the researcher. The register is
presented by the episodes composed by the stories. The analysis shows that the children
are able to solve the problem situation, if we consider the problematical perspective we
have adopted in this research. The articulation of Math with storytelling for children
enabled the Math thought and also highlighted the cultural aspect and the imaginary
situation in the resolution of problem solving by the children.
Key words: story for children; problematization; math education; problem solving;
playful.
9
SUMRIO
ERA UMA VEZ... O Caminho Percorrido at a Definio da Pesquisa...............................10
Um novo desafio... uma grande conquista...................................................................................12
Tecendo o caminho da pesquisa...................................................................................................14
1. SENTA QUE L VEM A HISTRIA...
1.1. O desenvolvimento da criana na perspectiva histrico-cultural....................................21
1.2. Estou de saco cheio de estudar... prefiro brincar........................................................30
1.3. Ento vamos brincar! um mundo de fantasias e imaginaes.........................................38
1.3.1. As histrias infantis como passaporte para o imaginrio................................................38
1.3.2. A arte da contao de histrias........................................................................................41
2. FOI QUANDO APARECEU... A RESOLUO DE PROBLEMAS SEM NMEROS
2.1. Crianas resolvem problemas?............................................................................................. 43
2.2. Na infncia, resolvedor de situaes problema... no futuro, um possvel sujeito
emancipado
......................................................................................................................................................47
2.3. E assim... a resoluo de problemas sem nmeros................................................................50
3. DE REPENTE... Procedimentos Metodolgicos
3.1. Questes, objetivos e abordagem da pesquisa.......................................................................55
3.2 Da idealizao realizao: o Projeto contao de histrias..............................................56
3.2.1. O Parque das Orqudeas.....................................................................................................57
3.2.2. Participantes do projeto......................................................................................................57
3.3. Concretizando o projeto........................................................................................................58
3.4. Anlise dos dados .................................................................................................................64
4. CONTANDO A HISTRIA... RESOLVENDO PROBLEMAS: Possibilidades de
Problematizao a partir das histrias infantis.
Episdio 1 Que ronco insuportvel!..........................................................................................67
Episdio 2 As aparncias enganam...........................................................................................77
Episdio 3 O que tem depois da curva?....................................................................................91
Episdio 4 Brincando com caixas.............................................................................................95
Episdio 5 O sumio das bananas...........................................................................................104
Episdio 6 Tenho apenas uma sacola......................................................................................111
Produzindo e (re) significando as problematizaes com histrias infantis em uma brincadeira
de contao de histrias no parque.............................................................................................115
UM OLHAR SOBRE OS CAMINHOS DA PESQUISA......................................................119
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS...................................................................................126
10
ERA UMA VEZ...
O CAMINHO PERCORRIDO AT A DEFINIO DA PESQUISA
O passado no o antecedente do presente,
a sua fonte. (Bosi, 1987)
Ao refletirmos sobre nossa trajetria, temos a ideia de movimento e do processo
dialtico que ocorre, cada vez que produzimos conhecimento e cada vez que olhamos o
mundo por um prisma diferente. Esse movimento desperta-nos para o sentido de que o
homem no esttico e de que o mundo tambm no estamos constantemente em
processo de construo e de formao.
Em minha vida1, este processo iniciou-se no dia 08 de fevereiro de 1984, no
municpio de Vrzea Paulista/SP.
Ao recorrer memria, sinto aflorar em mim a infncia. Como toda criana, eu
adorava brincar. As brincadeiras eram variadas: roda, esconde-esconde, amarelinha,
pega-pega, mame da rua, correr, pular, inventar, imaginar, fazer de conta. Como
menciona Verssimo,
no existia o Playstation, nem o Nintendo... No tinha TV a cabo, nem
videocassete, nem computador, nem internet... Tnhamos
simplesmente, amigos. [...] A gente andava de bicicleta ou a p. amos
casa dos amigos, tocvamos a campainha, entrvamos e
conversvamos... (LUS FERNANDO VERSSIMO, Os
sobreviventes2)
Eu acrescentaria aos dizeres de Verssimo que amos casa dos amigos,
entrvamos e brincvamos. Porm, quando evoco da memria o brincar na escola,
constato inquietaes. O brincar restringia-se hora do recreio, e ainda com limitaes.
A sala de aula era apenas para estudar, movimentar-se significava indisciplina, como se
o corpo fosse separado da mente. Provavelmente no tinham cincia de que uma criana
pode dizer muito quando est brincando.
1 O texto inicial est em primeira pessoa, uma vez que se refere histria de vida da pesquisadora.
Quando a referncia for pesquisa desenvolvida, optamos pela primeira pessoa do plural, incluindo a
pesquisadora, sua orientadora, bem como as vozes dos diversos autores de que pudemos nos apropriar durante a produo da pesquisa. 2 Disponvel em: www.catavento-pr.com.br.
11
No entanto, tal situao no nos tirava o prazer de brincar. As brincadeiras eram
inventadas, criadas a partir da realidade que vivamos. Os brinquedos que tnhamos
eram poucos, mas dvamos significados a eles conforme a brincadeira e a imaginao.
Nesse sentido, Brougre (1995) enfatiza: o brinquedo no condiciona a ao da
criana.
Com a brincadeira de escolinha eu vibrava, imitava minhas professoras, cada
qual em suas particularidades. Acredito ter desejado e almejado essa profisso desde a
infncia, uma vez que, segundo Pimenta (2008), ser professor um processo que se
desenvolve no tempo, comea antes de iniciar o processo de formao e prolonga-se ao
longo da vida, atravessando mltiplos contextos, vivendo vrios dilemas, construindo
conhecimento em vrios domnios. um processo que atravessa toda a vida.
Quando os alunos chegam ao curso de formao inicial, j tm saberes
sobre o que ser professor. Os saberes de sua experincia de alunos
que foram de diferentes professores em toda sua vida escolar.
Experincia que lhes possibilita dizer quais foram os bons professores,
quais eram bons em contedos, mas no em didtica, isto , no
sabiam ensinar. Quais professores foram significativos em suas vidas,
isto , contriburam para sua formao humana. Tambm sabem sobre
o ser professor por meio da experincia socialmente acumulada, as
mudanas histricas da profisso, o exerccio profissional em
diferentes escolas, a no valorizao social e financeira dos
professores, as dificuldades de estar diante de turmas de crianas e
jovens turbulentos, em escolas precrias; sabem um pouco sobre as
representaes e os esteretipos que a sociedade tem dos professores,
atravs dos meios de comunicao. (PIMENTA, 2008, p. 20).
Na adolescncia, aos 17 anos, a vida reservou-me uma surpresa nada agradvel.
Meu pai foi acometido, de repente, por dores abdominais e, dentro de pouco tempo,
veio a bito. Com esse acontecimento, meu mundo desabou. Os sonhos foram
desaparecendo, fazer faculdade tornou-se um objetivo inatingvel.
Consegui meu primeiro emprego; logo em seguida, conclu o Ensino Mdio e
busquei um curso tcnico, pois no tinha condies financeiras para assumir os custos
de uma universidade. Durante o curso tcnico, o sonho de ingressar em uma
universidade comeou a florescer novamente, mas as condies no possibilitavam.
Passei a buscar estratgias, a fim de alcanar meu objetivo. Um milagre aconteceu; digo
milagre porque foi algo extraordinrio. Mesmo meus chefes discordando da minha
12
opo, comprometeram-se a dar uma ajuda de custo para que pudesse fazer o curso
escolhido por mim Pedagogia.
Como mencionei, o brincar foi muito marcante na minha infncia, assim como
na adolescncia; sempre tive um jeito moleque. Acredito que se faz necessrio ser
assim. Como diz um trecho da msica de Milton Nascimento, h um menino, h um
moleque morando sempre em meu corao, toda vez que o adulto fraqueja, ele vem pra
me dar a mo. Isto muito real: muitas vezes o adulto se sente amedrontado diante de
algumas situaes, mas a criana enfrenta tudo, vive intensamente. Infelizmente,
quando nos tornamos adultos, muitas vezes, essa essncia se perde.
Nos momentos de conversa com minha famlia, eu sempre mencionava o meu
interesse em ser professora, mas queria ser professora de crianas. Na minha concepo,
no seria um trabalho de verdade: dar aula para as crianas seria um momento
prazeroso, com muitas brincadeiras esta era minha concepo. Na poca, eu ainda
no tinha nenhum embasamento terico referente ao assunto, mas, hoje, professora da
Educao Infantil e inserida neste contexto de pesquisa, vejo que minha concepo no
estava to equivocada.
O brincar, nessa faixa etria, de extrema importncia: por meio do brincar as
crianas aprendem a comunicar-se e inserem-se no contexto social e cultural, assim
como exploram o mundo e suas possibilidades, de maneira espontnea e divertida. E
desse modo vo se desenvolvendo.
Com base nesses pressupostos, iniciei o curso com muita garra e degustava
cada momento dele com muito prazer. Tudo tinha um sabor especial, de quero mais,
at que surgiu uma nova oportunidade, que considero ter sido um novo desafio, como
relato a seguir.
Um novo desafio... Uma Grande Conquista
As circunstncias se matizam, se
renovam, se transformam. E junto com elas, na
dialtica de existir, o prprio eu se matiza, se
renova e se transforma. Na busca incessante da
auto-atualizao, no desejo de chegar a ser
cada vez mais o que se .(MASLOW, 1975, p.
65).
13
O desafio surgiu no decorrer do curso de graduao, no momento em que me foi
solicitado pela universidade um pr-projeto para o Trabalho de Concluso de Curso
TCC . Resolvi criar um projeto voltado para a rea do ensino da Matemtica. Meu
objetivo era pesquisar se a concepo dos professores polivalentes sobre a Matemtica
influenciava no seu ensino na Educao Infantil, pois meu interesse pela Matemtica
havia sido despertado ao acompanhar minha irm, quando esta cursava a licenciatura
em matemtica.
Aproximei-me das professoras formadoras3 do Grupo IniciAo Matemtica4,
com a inteno de obter alguns esclarecimentos sobre a rea da Educao Matemtica, e
elas me convidaram para participar dos encontros quinzenais do grupo.
Nesse espao, desenvolvi duas pesquisas no mbito do Programa de Iniciao
Cientfica, enfocando a problematizao de histrias infantis. Na primeira, investigamos
como as professoras (do Grupo Iniciao Matemtica) refletem e produzem saberes
sobre o ensino de matemtica na Educao Infantil, a partir das anlises dos registros
produzidos pelas crianas na elaborao e na resoluo das situaes-problema
propostas, a partir de histrias infantis. Na segunda, tambm investigamos a
aprendizagem docente das mesmas professoras, mas, especificamente, o processo de
apropriao de saberes sobre a geometria e seu ensino pelas educadoras, no momento
em que elaboram atividades coletivamente, aplicam-nas e analisam-nas, uma vez que as
histrias infantis que estavam sendo problematizadas naquele momento s crianas
possibilitavam esse olhar. Essas pesquisas possibilitaram-me conhecer a prtica das
professoras da Educao Infantil na contao de histrias e pudemos, em grupo,
imaginar possibilidades de problematizao em matemtica a partir de tais histrias e
investigar o movimento das professoras no processo de contao e problematizao de
histrias infantis.
Como subproduto desse processo das prticas compartilhadas e das atividades
desenvolvidas no grupo IniciAo Matemtica, foi publicado o livro De professora
3 Professoras Regina Clia Grando e Adair Mendes Nacarato, docentes do Programa de Ps-Graduao
Stricto Sensu em Educao- USF. 4Grupo de trabalho colaborativo de professoras da rede do municpio de Itatiba e graduandas dos cursos
de Pedagogia e Matemtica, que discutiam a matemtica na Educao Infantil.
14
para professora5, que registra a histria do grupo constitudo por professoras
acadmicas, educadoras da infncia, alunas da graduao em Matemtica e em
Pedagogia da Universidade So Francisco-USF/Itatiba.
O livro mescla narrativas individuais de professoras sobre suas experincias com
a matemtica em sala de aula de Educao Infantil e textos de um dos quais sou
coautora: A problematizao em matemtica atravs de histrias infantis sobre
aspectos relevantes no trabalho pedaggico com a matemtica da Educao Infantil.
As pesquisas possibilitaram-nos observar a riqueza das problematizaes na
Educao Infantil. As crianas so capazes de resolver situaes do cotidiano ou
mesmo imaginrias (histrias infantis) que so problematizadas, sem necessariamente
utilizar clculos, mas atravs de resolues que consideram seus saberes prticos e
culturais de forma ldica.
Esses momentos de estudos e discusses sobre a matemtica na Educao
Infantil levou-nos a pensar no desenvolvimento desta pesquisa, que considero uma
grande conquista.
Ingressar no mestrado era apenas uma utopia que, em 2009, tornou-se realidade.
A partir de ento, minha vida revolucionou-se, meu olhar mudou de direo. As
diversas leituras interessantes, as ricas discusses nas aulas e as reflexes pessoais
foram me transformando.
Houve momentos de crise, por desestabilizar-se meu pensamento, e, ao
mesmo tempo que esta crise parecia um obstculo, eu percebia que uma oportunidade
se abria para um novo olhar. Foram muitas desconstrues, reconstrues e construes,
mas foram esses momentos que possibilitaram um processo reflexivo tanto sobre esta
pesquisa quanto sobre a educao no seu mbito geral.
Tecendo o Caminho da Pesquisa
Tecer, segundo o dicionrio Aurlio (1989, p.491), significa entrelaar fios,
fazer teias, armar, compor (obra que exige trabalho e cuidado). Este foi nosso objetivo:
5 GRANDO, Regina Clia; TORICELLI, Luana; NACARATO, Adair Mendes. De professora para
professora: conversas sobre IniciAo matemtica. So Carlos: Pedro & Joo Editores, 2008.
15
procuramos cuidadosamente entrelaar os fios os pressupostos e os objetivos , a
fim de compor uma trama, que esta pesquisa.
Sabemos que existem inmeras formas de realizar o trabalho com a matemtica
na Educao Infantil. No entanto, muitas vezes, ela ensinada de forma desarticulada
da realidade, utilizando uma linguagem com a qual os alunos no esto habituados, por
ser muito formal e abstrata, dificultando ainda mais o seu aprendizado.
Smole, Diniz e Cndido (2000) assinalam que os educadores necessitam levar
em conta que todo o trabalho realizado com contedos matemticos no pode ser
ocasional ou fortuito. As propostas tm de ser mltiplas, variadas e relacionadas com a
linguagem, com as diferentes formas de expressar-se.
As autoras reforam a ideia da conexo natural entre a matemtica e a lngua
materna: aproximar a linguagem matemtica e a lngua materna permite emprestar a
primeira a oralidade da segunda e, nesse caso, a oralidade pode significar um canal
aberto de comunicao, aqui compreendida como partilha de significados (Ibidem,
p.67).
A diversidade de situaes em que possvel explorar a matemtica
incalculvel e muito rica. O uso de diversas expresses permite a interiorizao de
muitos conceitos matemticos, sem que as crianas se deem conta.
Nesta pesquisa, a temtica est centrada na problematizao para a matemtica
atravs de histrias infantis, com vistas a investigar a resoluo de situaes-problema
pela criana a partir da histria contada, em uma relao com o jogo simblico.
Defendemos que a histria infantil possibilita criana envolver-se no jogo
simblico, refletindo sobre as aes dos personagens nela envolvidos. A contao de
histrias faz parte do cotidiano de algumas crianas, dentro e fora da escola. Acredita-se
que a problematizao de tais histrias pode vir a contribuir para a aprendizagem
matemtica das crianas em uma perspectiva ldica, ou seja, pode tornar o momento da
contao de histria uma brincadeira.
Compreendemos que as crianas, no contato com as histrias infantis, dialogam
com o mundo subjetivo e cultural, pois o faz de conta e o brinquedo so utilizados pelas
crianas para relacionarem-se com os significados, o que contribui para o entendimento
dos diversos papis desempenhados na sociedade, alm de ampliar a imaginao e
construir significados e representaes.
16
Neste aspecto, tomamos como base o trabalho de Rocha (2005), intitulado No
brinco mais, em que a autora estabelece um dilogo crtico com Vygotsky, Leontiev e
Elkonin e polemiza o declnio do jogo do faz de conta e o desenvolvimento do jogo de
regras, procurando apontar a importncia de ampliao e reformulao de alguns
aspectos tericos, necessrios para a compreenso da atividade ldica, um dos quais,
acreditamos, pode vir a ser o conhecimento matemtico.
Smole et al. (2004, p.2) afirmam que
integrar a literatura nas aulas de matemtica representa uma
substancial mudana no ensino tradicional da matemtica, pois, em
atividades desse tipo, os alunos no aprendem primeiro a matemtica
para depois aplicar na histria, mas exploram a matemtica e a histria
ao mesmo tempo.
Na concepo das autoras, a conexo entre a matemtica e a literatura infantil
pode ser usada para o desenvolvimento da fantasia, fonte de interpretao da realidade.
Para Vygotsky (2000b, p. 10), a imaginao e a fantasia so a base de toda a
atividade criadora e manifestam-se por igual em todos os aspectos da vida cultural
possibilitando a criao artstica, cientfica e tcnica.
Leontiev (2010a) considera este momento da imaginao e da fantasia, da
brincadeira do faz de conta como a atividade principal para o desenvolvimento
infantil, no no sentido de predominncia, mas como a atividade que possibilita o
desenvolvimento psquico do sujeito.
nesse contexto, em que os alunos so envolvidos na fantasia e no sonho das
histrias e so levados pela imaginao, que queremos investigar a aprendizagem
matemtica.
Na rea da Educao Infantil ainda h escassez de pesquisas que articulam
literatura infantil e a matemtica. Lopes (2003, p.32) afirma que as pesquisas
realizadas com educadores matemticos que atuam na Educao infantil ainda
constituem um universo pequeno.
Indo em busca de estudos que interligam a resoluo de situaes-problema com
as histrias infantis, encontramos vrios deles que sugerem essa conexo, mas
geralmente priorizam histrias em que a matemtica est evidente e nos quais a
resoluo das situaes-problema se d com o uso de algoritmos.
17
A fim de evidenciar como o presente estudo se insere nesse campo de pesquisa
em Educao Matemtica com as histrias, citaremos algumas pesquisas que tiveram as
histrias infantis e a matemtica como foco. Nosso objetivo, porm, no foi estabelecer
um estado da arte de tais trabalhos.
Carneiro e Passos (2007) trabalharam a resoluo de problemas com uma
histria que conta de amigos que foram jogar futebol e queriam saber, no momento da
formao dos times, se alguma das equipes ficaria com mais jogadores; para isso,
realizaram a operao de diviso; e assim, sucessivamente. O objetivo dos autores foi
trabalhar a matemtica por meio de histrias infantis, mas tinham um contedo
predeterminado como objetivo a atingir operao de diviso; e, assim, trataram dos
algoritmos.
Neuenfeldt (2006), em sua dissertao de mestrado, trabalhou a
interdisciplinaridade por meio das histrias infantis, e as noes dos contedos de
matemtica que procurou alcanar foram de ordem; de grandezas e medidas; de
geometria (principalmente quadrado, crculo e tringulo); de fraes; de
correspondncia; de adio e subtrao; de lgica matemtica. Da mesma maneira que a
pesquisa anterior, o autor fez a conexo da literatura com a matemtica, porm para
trabalhar a matemtica formal, com objetivos preestabelecidos.
Lopes e Correa (2007) utilizaram a literatura como metodologia para o ensino de
matemtica. Propuseram aos participantes que buscassem obras da literatura infantil,
disponveis no mercado, que apresentassem - de forma implcita ou explcita -
possibilidades de explorao de conceitos matemticos. O estudo foi realizado na
disciplina de Teoria e Metodologia do Ensino de Matemtica e aplicado em Prtica
Pedaggica e Investigao Educativa, no curso de Pedagogia da Universidade do Oeste
de Santa Catarina, campus de Campos Novos. A segunda etapa desse trabalho foi a
elaborao, pelas acadmicas, de livros infantis em que a matemtica interagisse com a
literatura. Todos os livros produzidos tiveram a inteno de destacar um contedo
matemtico. Neste caso, o contedo formal tambm esteve presente.
Silva (2003), em seu trabalho de mestrado, buscou fazer interagir a matemtica
com a literatura infantil por meio da resoluo de problemas, assim como a nossa
pesquisa, mas buscou atingir o conceito de multiplicao e procurou histrias que
possibilitassem essa explorao.
18
A dissertao de Souza (2008) utilizou a conexo da literatura com a matemtica
para investigar de que maneira os alunos do Ensino Fundamental se apropriaram dos
contedos escolares e como se relacionavam com esses conhecimentos. Assim como
nas demais pesquisas j citadas, houve a presena da matemtica formal.
Passos e Oliveira (2007) trabalharam de forma integrada a construo de
narrativas infantis e contedos matemticos. Nessas histrias, o contedo matemtico
sempre est presente. O objetivo das autoras auxiliar o aluno, por meio das narrativas,
a explicitar o entendimento relativo ao tema estudado e possibilitar ao futuro professor a
aprendizagem sobre a construo de material didtico pedaggico.
O estudo de Andrade (2006) investigou as potencialidades pedaggicas das
histrias virtuais do conceito na perspectiva da resoluo de problemas nas aulas de
matemtica. Para cada histria havia um objetivo previamente traado, a fim de
desenvolver um conceito matemtico. Os algoritmos tambm estiveram presentes.
O trabalho de Smole et al. (2004), por ser um dos pioneiros, constitui uma
grande referncia nesta rea da conexo da matemtica com a literatura infantil. As
autoras buscaram histrias em que seja possvel explorar algum conceito matemtico,
em um processo mais sistematizado, e propem que o educador tenha os objetivos
previamente traados em relao aos contedos preestabelecidos.
Em nossa pesquisa, as histrias no foram escolhidas pensando em um
determinado conceito matemtico que seria possvel atingir. Nosso nico objetivo foi
explorar a resoluo de situaes-problema de forma ldica, por meio das
problematizaes, da brincadeira, do jogo simblico. As situaes-problema no
envolvem algoritmos nem a matemtica formal explcita. A matemtica surge como
uma das possibilidades de resoluo para a situao-problema proposta, em meio a
outras solues no matemticas. Dessa forma, so exploradas situaes-problema a
partir de histrias infantis que no possuem necessariamente um contedo matemtico
explcito.
Visando contribuir com a ampliao desta linha de investigao, ou seja, com o
preenchimento de um pequeno espao da lacuna que ainda existe, propusemo-nos a
investigar: quais so as possibilidades de aprendizagem matemtica pela criana
durante o processo de Contao de Histrias Infantis e problematizao em um espao
cultural no tutelado?
19
Definimos como nosso objetivo: identificar, a partir do movimento de contao
de histrias e das diferentes estratgias utilizadas (jogo simblico) pelas crianas, as
potencialidades das histrias infantis como mobilizadoras para a resoluo de
situaes-problema e aprendizagem matemtica pelas crianas, em um espao no
escolar.
Como fundamentao terico-metodolgica para o desenvolvimento e a anlise
desta pesquisa, adotamos a perspectiva histrico-cultural.
O espao em que essas atividades foram desenvolvidas no formal. Trata-se de
um Parque Municipal (Parque das Orqudeas), no municpio de Vrzea Paulista/SP, que
dispe de um espao cultural frequentado por crianas de diferentes idades, a grande
maioria pertencente comunidade de um bairro prximo, na periferia da cidade.
Propusemos o projeto Contao de Histrias, e as crianas das escolas de Educao
Infantil pertencentes ao bairro foram convidadas a frequentar o projeto nos finais de
semana.
Desenvolver uma atividade cultural como essa - contar histrias para a
comunidade local possibilita observar manifestaes de livre pensamento
matemtico, uma vez que esse espao no formal e, portanto, no tutelado, o que
evidencia que a aquisio de conhecimento matemtico no acontece somente nas
escolas. Porm, acreditamos que algumas atividades desenvolvidas nesta pesquisa
podero trazer contribuies para os professores que esto atuando na sala aula.
Definido o foco do trabalho, organizamos o texto em cinco captulos, quais
sejam:
No primeiro, abordaremos o desenvolvimento da criana, em uma perspectiva
terica histrico-cultural, assim como a importncia do brincar nessa faixa etria e as
histrias infantis como instrumentos desse processo.
No segundo captulo, discorreremos sobre a possibilidade de as crianas
resolverem situaes-problema. Exporemos as problematizaes como um caminho
para resolv-las, para a construo dos conceitos e para a emancipao do sujeito; e, por
fim, abordaremos algumas formas possveis de problematizar.
No terceiro captulo, exporemos o percurso metodolgico da pesquisa, a
apresentao dos seus participantes, bem como a proposta de anlise.
20
No quarto captulo, traremos a descrio dos dados produzidos e as anlises.
Optamos pela anlise de episdios em cenas para cada histria contada.
Finalmente, traremos nossas snteses, destacando elementos que emergiram da
anlise, discutindo em que medida os objetivos da presente pesquisa foram ou no
atingidos.
21
CAPTULO I
SENTA QUE L VEM HISTRIA
Neste captulo discutiremos teoricamente o processo de desenvolvimento da
criana em uma perspectiva histrico-cultural. Em seguida, discorreremos sobre a
importncia do brincar para o desenvolvimento da criana e de considerar o momento
da contao de histrias como uma brincadeira, um momento ldico, que d prazer, que
encanta e diverte. Buscaremos entender todo esse processo, apoiando-nos nas ideias de
Vygotsky e seus seguidores.
1.1. O Desenvolvimento da Criana na Perspectiva Histrico-Cultural
Ser preciso admitir que os homens no so
homens fora do ambiente social, visto que
aquilo que consideramos ser prprio deles,
como o riso ou o sorriso, jamais ilumina o
rosto das crianas isoladas.
(Lucien Malson, Les enfants sauvages)
Para uma anlise do desenvolvimento da criana na perspectiva histrico-
cultural, tomamos como base a teoria vygotskyana, assim como os estudos
desenvolvidos por seus seguidores e tericos dessa teoria, como Pino (1992) e Leontiev
(2010a).
Para compreender o desenvolvimento humano, preciso buscar suas razes, sua
histria, compreender o aspecto filogentico, ontogentico e microgentico, superando
as dicotomias entre social e biolgico. Para Vygotsky (1991), no aceitvel analisar o
homem de forma fragmentada, ora como ser biolgico, ora como ser social. Uma
anlise fracionada, como se todos independentemente de sua formao biolgica,
histrica, social e cultural pensassem, agissem e sentissem da mesma maneira, a
partir dos acontecimentos da vida cotidiana, restringiria a complexa e dialtica relao e
22
constituio social do homem a um conjunto de fatores previsveis, objetivos e
mensurveis, o que, dentre outros fatores, anularia uma das principais caractersticas da
sua constituio como ser humano: a sua singularidade.
Nessa perspectiva terica, o sujeito um ser que se constitui e constitudo nas
constantes interaes sociais, ou seja, pelas relaes que estabelece com os outros que
o homem se constitui como ser humano. Em contato com a natureza, o homem, ao
desenvolver sua atividade prtica o trabalho , cria instrumentos, ou seja, formas de
relaes sociais com outros homens (como, por exemplo, a linguagem) e cria ideias,
formas de pensar, que vo auxili-lo em novas transformaes. Isso significa que o
homem no se limita sua condio biolgica. Essencialmente, ao travar relaes
sociais, constitui uma nova realidade cultural, faz histria, pois transmite suas
experincias a outras geraes por meio da linguagem e da prpria civilizao.
Segundo Vygotsky (1991), o sujeito se desenvolve por meio de trs formas de
mediao: a instrumental, a semitica e a social. So essas trs formas de interao que
o diferenciam da espcie animal e, apesar de serem elas fator de grande importncia na
teoria vygotskyana, no nos aprofundaremos na anlise dessas trs formas de mediao
nesta pesquisa, uma vez que no ser esse o objeto de nossa investigao.
Os instrumentos so elementos mediadores no processo de desenvolvimento
humano, na concepo de Vygotsky, para quem o homem somente se constitui na sua
relao com o mundo. Porm, essa relao nunca ocorre de forma direta, mas sempre
mediada por produtos culturais humanos, como o instrumento.
Dessa forma, instrumento um elemento que possibilita a transformao da
natureza, um objeto mediador da relao entre o indivduo e o mundo, serve como
condutor da influncia humana sobre a atividade externa (VYGOTSKY, 1991, p.73).
A segunda mediao a semitica, que so os signos. Estes so semelhantes aos
instrumentos, porm, contribuem para solucionar um problema psicolgico,
diferentemente dos instrumentos, que possibilitam a soluo de problemas prticos,
como provocar mudanas nos objetos.
O signo considerado por Vygotsky como instrumento psicolgico: sua
funo auxiliar o sujeito nas suas atividades psquicas, como, por exemplo, lembrar,
comparar, escolher, etc. So ferramentas culturalmente construdas, que auxiliam nos
processos psicolgicos, e no apenas aes concretas, como os instrumentos.
23
Na concepo de Clot (2006), um sujeito que utiliza uma ferramenta no faz
necessariamente dessa ferramenta um instrumento psicolgico. As ferramentas s se
tornam instrumentos psicolgicos, se elas puderem servir aos objetivos a que esse
sujeito se deu, no somente aos objetivos que se lhe deram, mas aos objetivos que ele se
deu. Ele no a fonte (la source), a ferramenta apenas o recurso (la ressource) da
atividade (CLOT, 2006, p.6).
Para Vygotsky,
a diferena mais essencial entre signo e instrumento [...] consiste nas
diferentes maneiras com que eles orientam o comportamento humano.
A funo do instrumento servir como um condutor da influncia
humana sobre o objeto da atividade; ele orientado externamente,
deve necessariamente levar a mudanas nos objetos. Constitui um
meio pelo qual a atividade humana externa dirigida para o controle e
domnio da natureza. O signo, por outro lado, no modifica em nada o
objeto da operao psicolgica. Constitui um meio da atividade
interna dirigido para o controle do prprio indivduo; o signo
orientado internamente (VYGOTSKY, 1991, p.62).
Mediante a inveno dos sistemas de signos, o homem deu natureza e a si
mesmo uma nova forma de existncia, uma existncia cultural. Atravs do uso desses
signos, os homens produzem estruturas de comportamento novas e especficas, que
alm das tradies e do desenvolvimento biolgico tambm os diferenciam: criam
processos psicolgicos mais estruturados, enraizados na cultura (PINO, 1992).
Dentre os signos existentes, destaca-se a linguagem, instncia fundamental para
a compreenso das relaes humanas. por meio dela que ocorre a terceira mediao
a social e que o ser humano se constitui enquanto ser histrico-cultural, modificando
os seus processos psquicos, pois a linguagem possibilita o intercmbio social entre os
indivduos de uma sociedade.
A mediao social, presente desde o nascimento da criana, nada mais que a
participao do outro na constituio do sujeito, e por meio dela que a criana se
desenvolve. No possvel o sujeito desenvolver-se segundo a perspectiva histrico-
cultural, sem o contato social. H um exemplo bem claro da limitao do
desenvolvimento humano no filme Menino selvagem6.
6 O filme Lenfant sauvage dAveryon (O menino selvagem de Averyon), de Franois Truffaut,
baseado num caso verdico, relata a histria de uma criana que vivia na floresta, pois tinha sido
abandonado desde beb pelos seus pais e no sabia falar nem tinha comportamentos humanos, por
24
neste aspecto que a perspectiva histrico-cultural difere da perspectiva
maturacionista: no considera que o desenvolvimento humano se d apenas pelo aspecto
maturacional, ou seja, que ele ocorra linearmente, mas entende o desenvolvimento como
um processo dialtico e muito complexo.
A formao do ser humano est intimamente ligada ao contexto cultural. Por
exemplo, o beb, logo que nasce, possui uma atividade psicolgica elementar, baseada
na herana biolgica, mas, aos poucos, devido s interaes com seu grupo social e com
os objetos de sua cultura, vai adquirindo controle sobre seu comportamento e
desenvolvendo seu pensamento. Com a ajuda do adulto, a criana desenvolve
conhecimentos e habilidades que foram construdos pelo seu grupo cultural ao longo da
histria. por meio das constantes intervenes dos adultos que os processos
psicolgicos mais complexos comeam a formar-se (VYGOTSKY, 1991).
Neste aspecto, podemos retomar uma passagem do texto Manuscrito de
Vygotsky, de 1929 (2000b), que diz que a interao entre a criana, enquanto ser em
desenvolvimento, e o adulto, enquanto ser desenvolvido, a principal fonte
impulsionadora do desenvolvimento cultural da criana.
A importncia do outro, na concepo de Vygotsky, vital. uma condio
para o desenvolvimento, tanto que o autor declara que atravs dos outros constitumo-
nos (VYGOTSKY, 2000b, p.24).
Rocha (2005) complementa que
a mediao social no pode ser vista apenas como um processo
exclusivamente favorecedor de desenvolvimento, em que o sujeito e
o(s) outro(s) se complementam, harmonicamente. O outro tambm se
ope, impede aprendizagens, mostra indiferena, se omite, etc.
(ROCHA, 2005, p. 35).
De qualquer forma, o processo de desenvolvimento est inextricavelmente
ligado s relaes sociais, pois considera-se que houve realmente desenvolvimento
quando as relaes sociais so convertidas em funes mentais, ou seja, quando ocorre
estar em constante contato com os animais da selva. Quando se soube da sua existncia, comearam as
buscas para encontr-lo. Caadores conseguiram captur-lo. O garoto foi levado para a civilizao,
mais propriamente, para um colgio de surdos-mudos, mas, como ele no falava, no conseguia se
comunicar com as outras crianas nem com os adultos que o interpelavam.
25
o processo de internalizao, quando a se criana apropria da cultura do seu grupo
social.
Vale lembrar que esse processo de internalizao no se resume reproduo do
plano externo para o plano interno, trata-se de algo subjetivo. A criana, por exemplo,
internaliza aquilo que importante para o seu psiquismo. Todo esse processo de
internalizao denominado por Vygotsky (1991) funes superiores.
Na concepo de Clot (2006, p.6), o sujeito s se apropria de ferramentas se
essas ferramentas responderem aos conflitos em jogo em sua atividade. Ele se apropria
das ferramentas se e somente se essas ferramentas responderem aos conflitos travados
em sua atividade.
Segundo o autor, h em Vygotsky uma teoria da apropriao e no uma teoria
da internalizao. Apropriao e interiorizao/internalizao no so a mesma coisa. A
apropriao um processo de reconverso dos artefatos em instrumentos, um
verdadeiro processo de recriao. (CLOT, 2006, p.6). O processo de apropriao ganha
significao a partir do contexto social, da situao de enunciao e da troca entre os
sujeitos. Assim, temos um verdadeiro processo de apropriao, quando as relaes se
tornam do sujeito, e no apenas quando o sujeito as internaliza.
Alm das trs mediaes j citadas, existe a mediao pedaggica, que ocupa
um lugar de destaque na educao, pois medeia o desenvolvimento e o aprendizado do
aluno.
O desenvolvimento, o aprendizado e as vivncias do meio social esto
profundamente imbricados. Portanto, compete instituio escolar e aos professores
considerar este pressuposto e, por meio da mediao pedaggica, fazer do meio
educativo um ambiente para o ntegro desenvolvimento do sujeito, que a funo da
escola nestes tempos de intensas e significativas transformaes no mbito social,
poltico e econmico do mundo contemporneo. No entanto, no se pode ignorar que o
aluno, ao ingressar na escola, j inserido num meio social em que ocorrem trocas de
conhecimentos e impresses, traz consigo inmeras e significativas aprendizagens.
Nesse sentido, Vygotsky afirma que o aprendizado acontece muito antes de a
criana frequentar a escola - um ambiente escolar sistematizado. Ela traz consigo um
conhecimento prvio, que o conceito espontneo, porm este difere do conhecimento
escolar, por no ser um conceito cientfico.
26
Segundo Vygotsky (2008), o desenvolvimento de ambos os conceitos compe
partes diferentes do mesmo processo. Nos dois casos, um longo caminho percorrido
at a generalizao, que a transferncia do conceito, pelo sujeito, para situaes novas.
Esse processo depende do desenvolvimento psquico, que se amplia ao longo da vida
atravs de diferentes fases, que englobam diversos processos mentais. Um desses
processos a formao de conceitos, cuja gnese ocorre na infncia, momento em que o
sujeito adquire capacidades de conceituao, mas amadurece e constitui-se apenas na
adolescncia.
Segundo Vygotsky (2008), ao longo do desenvolvimento psquico, para chegar
ao pensamento conceitual, a criana passa por trs fases bsicas: a primeira delas o
sincretismo, em que a criana no forma classes entre os diferentes atributos dos
objetos, mas apenas os agrupa de forma desorganizada, formando amontoados. Por
exemplo, quando solicitada a formar grupos com diferentes objetos (flores, carros,
objetos de cozinha, etc.), poder colocar juntos objetos que no possuam relao entre
si, como: carros e objetos de cozinha. A criana agrupa ao acaso ou por contiguidade no
tempo ou no espao.
Uma segunda fase o pensamento por complexos. O agrupamento, nessa fase,
no formado por um pensamento lgico abstrato, e, sim, por ligaes concretas entre
seus componentes, que podem ser os mais diferentes possveis. Por exemplo, a criana
agrupa por qualquer relao percebida entre os objetos ou por caractersticas
complementares entre si. Num estgio mais evoludo dessa mesma fase, a criana
comea a orientar-se por semelhanas concretas visveis e a formar grupos de acordo
com suas conexes perceptivas. Vygotsky (2008, p.76) destaca:
Quando a criana alcana esse nvel, j superou parcialmente o seu
egocentrismo. J no confunde as relaes entre as suas prprias
impresses com as relaes entre as coisas um passo decisivo para se afastar do sincretismo e caminhar em direo ao pensamento
objetivo. O pensamento por complexos j constitui um pensamento
coerente e objetivo, embora no reflita as relaes objetivas do mesmo
modo que o pensamento conceitual.
Segundo o autor, a principal diferena entre o complexo e o conceito que
27
complexo um agrupamento concreto de objetos unidos por ligaes
factuais. Uma vez que um complexo no formado por um
pensamento lgico abstrato, as ligaes que o criam, assim como as
que ele ajuda a criar, carecem de unidade lgica; podem ser de muitos
tipos diferentes. Qualquer conexo factualmente presente pode levar
incluso de um determinado elemento em complexo [...] Enquanto um
conceito agrupa os objetos de acordo com um atributo (VYGOTSKY,
2008, p.77).
Quando o pensamento por complexo se encontra em um estgio avanado, antes
de chegar ao pensamento conceitual, h um complexo denominado pseudoconceito,
cujos resultados so semelhantes aos obtidos no pensamento conceitual, porm por um
processo mental diferente do que ocorre no pensamento conceitual. A criana j
alcanou este estgio quando, por exemplo, j consegue agrupar, os carros em um grupo
e as flores em outro.
Vygotsky (2008, p. 84) enfatiza que o pseudoconceito desempenha um papel
predominante no pensamento da criana na vida real, e importante como um elo de
transio entre o pensamento por complexos e a verdadeira formao de conceitos. O
autor reala que est no pseudoconceito a semente que far germinar um conceito.
Desse modo, a comunicao verbal com os adultos torna-se um poderoso fator no
desenvolvimento dos conceitos infantis (VYGOSTKY, 2008, p.85-86).
A importncia da comunicao reside no fato de as funes psquicas superiores
serem mediadas por signos, o meio indispensvel para domin-las e dirigi-las. Na
formao de conceitos, o signo a palavra, que a princpio tem o papel de meio para
centrar ativamente a ateno, abstrair determinados traos, sintetiz-los e,
posteriormente, simboliz-los (VYGOTSKY, 2008).
A terceira fase da formao de conceitos o pensamento conceitual
propriamente dito. O grau de abstrao possibilita a simultaneidade da generalizao
(unir) e da diferenciao (separar). Segundo Vygotsky (2008, p.98), somente o
domnio da abstrao, combinado com o pensamento por complexos em sua fase mais
avanada, permite criana progredir at a formao dos conceitos verdadeiros.
Essa fase exige uma tomada de conscincia da prpria atividade mental, porque
implica uma relao especial com o objeto, internalizando o que essencial do conceito,
e a compreenso de que ele faz parte de um sistema. Inicialmente formam-se os
28
conceitos potenciais, baseados no isolamento de certos atributos comuns; e, em seguida,
formam-se os verdadeiros conceitos. Essa abstrao ocorre na adolescncia.
No entanto, mesmo depois de ter aprendido a produzir conceitos, o
adolescente no abandona as formas mais elementares; elas continuam
a operar ainda por muito tempo, sendo na verdade predominantes em
muitas reas do seu pensamento. A adolescncia menos um perodo
de consumao do que de crise e transio (VYGOTSKY, 2008, p.98-
99).
Vygotsky (2008) esclarece que a formao de conceitos um processo muito
complexo. Porm, o pensamento conceitual leva o sujeito a intensas transformaes no
contedo do seu pensamento. Nascem novos estmulos, que o impulsionam ao
desenvolvimento e aos mecanismos formais de pensamento.
Um conceito mais do que a soma de certas conexes associativas
formadas pela memria, mais do que um simples hbito mental;
um ato real e complexo de pensamento que no pode ser ensinado por
meio de treinamento, s podendo ser realizado quando o prprio
desenvolvimento mental da criana j tiver atingido o nvel necessrio
(VYGOTSKY, 2008, p.104)
Como mencionado anteriormente, existem dois tipos de conceitos: o conceito
espontneo e o conceito cientfico. O primeiro intuitivo, formado a partir das
experincias realizadas na vida cotidiana da criana, ou seja, adquirido por meio de
interaes sociais. O segundo assimilado por meio da colaborao sistemtica entre o
professor e a criana. Porm, Vygotsky (2008) afirma que os dois processos se
relacionam e se influenciam constantemente.
Ainda segundo Vygotsky (2008), o conceito cientfico traz importantes
implicaes para a educao e o aprendizado. Uma das formas de a criana apropriar-se
do conceito cientfico atravs da zona de desenvolvimento proximal, que consiste na
distncia entre a condio atual de desenvolvimento da criana, determinada pela sua
capacidade atual de resolver problemas individualmente, e o nvel de desenvolvimento
potencial, determinado atravs da resoluo de problemas sob a orientao de adultos
ou em colaborao com sujeitos mais experientes. Essa interferncia do adulto no
mundo infantil pode ser caracterizada como mediao. Vygotsky (1991, p. 113) afirma
que
a zona de desenvolvimento proximal permite-nos delinear o futuro
imediato da criana e seu estado dinmico de desenvolvimento,
propiciando o acesso no somente ao que foi atingido atravs do
29
desenvolvimento, como tambm aquilo que est em processo de
maturao.
O autor sintetiza que a zona de desenvolvimento proximal so aquelas funes
que ainda no amadureceram, mas esto em processo de maturao, funes que
amadurecero, mas que esto presentemente em estado embrionrio (VYGOTSKY,
1991, p.113).
Para Moura, a zona de desenvolvimento proximal representa a possibilidade
mxima de aprendizagem em determinada etapa da vida da criana; representa o limite
superior de seu desenvolvimento e, assim, a referncia necessria para o processo
educativo. (MOURA, 2010, p.124).
Portanto, podemos dizer que, no processo educativo, o professor constitui-se no
sujeito mais competente, que poder criar um ambiente propcio para que as crianas
possam desenvolver estratgias e resolver os problemas de modo independente. Os
colegas de turma, em tempos diferentes de aprendizagem, ao dominar um conceito,
tambm podem auxiliar os menos experientes no assunto, por meio das
problematizaes.
Na concepo de Vygotsky (1991), por meio da zona de desenvolvimento
proximal que ocorre tambm a imitao, por meio da qual as crianas so capazes de
demonstrar seu nvel de desenvolvimento mental, pois s conseguiro imitar aquilo que
estiver de fato no seu nvel de desenvolvimento.
Entretanto, cabe ressaltar que, na concepo do autor, os momentos de imitao
no so considerados meramente um fazer mecnico: ele d imitao um sentido
amplo considera-a o alicerce sobre o qual ocorre a apropriao do conhecimento e o
desenvolvimento do ser humano, compreendido na perspectiva histrico-cultural, como
uma atividade humana carregada de intencionalidade e de elaborao intelectual.
Dessa forma, o papel do adulto e, no caso particular, do professor oportunizar
situaes cotidianas no simplesmente no mbito escolar, mas em espaos alternativos,
como parques e espaos culturais, para que as crianas possam construir seu
conhecimento e apropriar-se do conceito cientfico. A capacidade intelectiva da criana
ser ampliada na medida em que houver maior interveno do professor como mediador
e organizador do processo de aprendizagem, ou seja, na zona de desenvolvimento
proximal.
30
A responsabilidade pelo desenvolvimento da atividade ldica tambm
atribuda ao professor, que o organizador do cotidiano escolar: cabe a ele oferecer
atividades que explorem a capacidade imaginria e ldica da criana, possibilitando a
ela ricas experincias, que contribuam para transformaes do psiquismo, uma vez que
a infncia uma fase em que a ludicidade impreterivelmente necessria. No prximo
item abordaremos esta questo.
1.2. Estou de Saco Cheio de Estudar... Prefiro Brincar!
Brincar com criana no perder tempo, ganh-lo; se triste ver meninos sem escola, mais triste v-los sentados enfileirados em salas sem ar, com exerccios estreis, sem valor para a formao do homem.
(Carlos Drummond de Andrade)
Provavelmente, quando Drummond escreveu essa frase, reportava-se ao que
ouvia dizer, quando se tratava de brincar com uma criana. muito comum algumas
pessoas fazerem referncia ao brincar como uma perda de tempo; muitas vezes, at
reforam para as crianas que, se ficarem brincando, no vo aprender.
Provavelmente, se soubessem o valor do brincar, no se ouviria esta frase.
A criana apropria-se do mundo por meio das brincadeiras. O brincar faz parte
da constituio da criana, porque, enquanto brinca, outras funes esto sendo
desenvolvidas.
Brincar experimentar-se, relacionar-se, imaginar-se, expressar-se,
compreender-se, confrontar-se, negociar, transformar-se, ser. A
brincadeira prtica social, atividade simblica, forma de interao
com o outro. Acontece no mago das disputas sociais, implica a
constituio do sentido. criao, desejo, emoo, ao voluntria
(FONTANA, 1997, p.139).
Se o brincar tudo isso, por que no inclu-lo com mais frequncia nas
atividades educacionais e culturais?
Nesta pesquisa abordaremos o brincar, apresentando os principais pontos de
vista de alguns pesquisadores e tomando como fontes principais Vygotsky, Leontiev e
31
Elkonin, alm do trabalho de Rocha (2005), que estabelece um dilogo crtico com os
trs autores. Com todos eles realizaremos nossa interlocuo a respeito do brincar das
crianas.
Como j mencionado no item anterior, a psicologia histrico-cultural atribui ao
jogo de faz de conta papel central para o desenvolvimento psquico da criana.
Vygotsky (1991), Leontiev (2010) e Elkonin (1998) so os principais autores que
estudaram este assunto.
Para os tericos, a cultura o fator que modula o desenvolvimento humano e
consideram as vises metafsicas, a-histricas e apriorsticas - que pontuam que a
motivao para o brincar da criana provm de instintos biolgicos e essencialmente
individuais - como obstculos para o avano da pesquisa psicolgica sobre o jogo7.
Essas concepes apresentam o defeito de no levar em conta a dimenso
social da atividade humana que o jogo, tanto quanto outros comportamentos, no podem
descartar. Brincar no uma dinmica interna do indivduo, mas uma atividade dotada
de uma significao social (BROUGRE, 2002, p.20).
Leontiev (2010b) pontua que cada estgio do desenvolvimento psquico
caracterizado por um tipo dominante de atividade, designado como atividade
principal. Por exemplo, na infncia, a atividade principal o brincar; na adolescncia,
o estudo; e, na vida adulta, o trabalho.
A atividade principal no caracterizada no sentido quantitativo, ou seja, no a
frequncia das atividades que determina que sejam consideradas principais, mas, sim, o
fato de possibilitarem o desenvolvimento psquico do sujeito.
A criana pr-escolar no brinca mais do que trs ou quatro horas por
dia. Assim, a questo no a quantidade de tempo que o processo
ocupa. Chamamos atividade principal aquela em conexo com a qual
ocorrem as mais importantes mudanas no desenvolvimento psquico
da criana e dentro da qual se desenvolvem processos psquicos que
preparam o caminho da transio da criana para um novo e mais
elevado nvel de desenvolvimento. (LEONTIEV, 2010b, p. 122)
A atividade principal possui os seguintes atributos (LEONTIEV, 2010b, p.64):
7 O termo jogo, que ser utilizado nesta pesquisa, refere-se ao jogo protagonizado, ao jogo de papis, ao
jogo de faz de conta, brincadeira.
32
Permite o surgimento, no cerne de sua prpria estrutura, de novos tipos de
atividades, que so diferenciadas dentro dessa estrutura.
Possibilita que os processos psquicos particulares tomem forma ou sejam
reorganizados.
a atividade em que ocorrem as principais mudanas psicolgicas da
personalidade, em uma dada fase do desenvolvimento.
Dentro dos atributos destacados, Leontiev (2010b, p.64) explica que, na infncia,
esses atributos concretizam-se por meio da brincadeira: a criana comea a aprender de
brincadeira; e, com o passar do tempo, os processos psquicos vo sendo estruturados,
ou seja, as funes sociais vo sendo assimiladas; os padres de comportamento,
apropriados; e a personalidade da criana, desenvolvida.
Sintetizando, a atividade principal ento a atividade cujo desenvolvimento
governa as mudanas mais importantes nos processos psquicos e nos traos
psicolgicos da personalidade da criana, em um certo estgio de seu desenvolvimento
(LEONTIEV, 2010b, p.65). O autor acrescenta que a criana se encontra em um mundo
criado e transformado pela atividade humana das geraes precedentes. Porm, nem
todos os processos devem ser designados como atividade. Para que um processo se
configure como atividade humana, fundamental que tenha uma intencionalidade, um
motivo pelo qual o sujeito se dispe a agir. Corroborando as ideias de Leontiev,
acreditamos que, na infncia, a atividade em que a criana est mais disposta a agir a
ldica.
Neste sentido, Moura (2010b, p. 127) destaca que
as atividades ldicas mantm a sua importncia como atividades que
permitem a explicitao das relaes de apropriao/objetivao,
sendo, contudo, atividades secundrias para os adultos, mas essenciais
para as crianas. As atividades ldicas, entre elas o jogo de papis, so
fundamentais na vida da criana por significar, dentro de suas
especificidades especificidades fsicas ou relacionadas posio social -, as suas possibilidades mximas de apropriao do mundo
adulto, isto , do mundo de relaes, objetos, conhecimentos e aes
historicamente criados pela humanidade. O jogo a forma principal
de a criana vivenciar o seu processo de humanizao, uma vez que
a atividade que melhor permite a ela apropriar-se das atividades
(motivos, aes e operaes) culturalmente elaboradas.
Na concepo de Rocha (2005), a atividade ldica e o brincar esto
fundamentalmente ligados a trs categorias: (1) objetos, cuja representatividade de
33
objetos reais est intimamente ligada cultura na qual a criana est inserida; (2) aes
(no sentido do uso competente dos primeiros), lembrando que das aes que deriva o
jogo simblico; e (3) mediao social - a presena do outro, do sujeito mais experiente
na constituio da capacidade ldica.
Para uma melhor compreenso das trs categorias, diramos que, num primeiro
momento, os objetos so explorados pelas crianas em uma espcie de imitao do que
realizou acompanhada de um adulto, mas, com o passar do tempo, a prpria criana
consegue lidar com as significaes dos objetos. Nesse momento, podemos dizer que as
aes foram concretizadas, ou seja, a criana comea a jogar, a fazer suas
representaes simblicas, dando significado substitutivo aos objetos que lhe esto
disponveis. Tais significados advm da cultura da criana, com a qual ela lidou desde o
seu nascimento. Nesse processo, importante lembrar que
a presena do outro fundamental. A criana se depara com pessoas
que provocam e propem as mais diversas aes, entre as quais se
encontram aes simblicas; atravs da fala tambm interpretam como
ldicas aes executadas pela criana com os objetos, que talvez,
inicialmente, no tivessem essa natureza. Da mesma forma que na
constituio do gesto, em que os adultos aderem ao ato motor uma
dimenso semitica, operam, possivelmente, uma transformao na
inteno da criana, de agir para brincar, fazer de conta (ROCHA, 2005, p. 63).
O brincar da criana caracteriza-se como uma atividade ldica em que as
crianas tm a capacidade de objetivar e constituir-se a partir do mundo dos objetos
humanos. Essa capacidade determina o contedo de suas brincadeiras (LEONTIEV,
2010b).
comum vermos, no jogo de faz de conta, as crianas experimentarem
necessidades que no podem ser satisfeitas na vida real, das quais se apropriam atravs
da atividade ldica, do brinquedo, do jogo (ROCHA, 2005). Ao tomar conscincia dos
objetos que utiliza no seu mundo, a criana age sobre eles de maneira a domin-los,
mesmo que estejam alm de sua capacidade fsica, sendo a imaginao a fora
propulsora.
Vygotsky (1988) considera o brincar como a zona de desenvolvimento proximal.
Ao brincar, a criana passa a representar um personagem alegrico, age com objetos
que simbolizam o que ainda lhe proibido e interage com padres que ainda lhe so
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distantes, ultrapassa limites, se comporta alm do comportamento habitual de sua
idade, incorporando a sua cultura (Ibidem, p.134). E acrescenta que
a ao na esfera imaginativa, numa situao imaginria, a criao de
intenes voluntrias e a formao dos planos da vida real e
motivaes volitivas tudo aparece no brinquedo, que se constitui, assim, no mais alto nvel do desenvolvimento infantil. A criana
desenvolve-se, essencialmente, atravs da atividade do brinquedo.
(VYGOTSKY, 1988, p.117)
nesse dinamismo do brincar, na seleo dos objetos, na tomada de conscincia
do mundo ao redor e das formas de control-lo que se constitui a efetivao de uma
atividade ldica para a criana. Segundo Rocha (2005, p. 66-67), a atividade ldica ,
assim, uma das formas pelas quais a criana se apropria do mundo, e pela qual o mundo
humano penetra em seu processo de constituio enquanto sujeito histrico.
Diante das consideraes dos autores sobre a importncia da atividade ldica,
refuta-se a concepo de alguns tericos, como, por exemplo, Chateau (1987), que
considera o brincar apenas como uma atividade livre, sem regras, que d prazer, e
afirma que existe uma separao entre o que real e o que imaginrio para a criana.
Neste aspecto, Vygotsky (1991), Elkonin e Leontiev (1998) trabalha(m) no
sentido contrrio, procurando revelar que esse limite entre as esferas do real e do
imaginrio altamente permevel, ocorrendo movimentos dialticos constantes, de
mtuas implicaes (ROCHA, 2005, p.71).
Os momentos de brincadeiras so direcionados com um objetivo que no
necessariamente o simples prazer, o brincar pelo brincar um momento rico, no qual
o jogo do faz de conta d a sua importante e essencial contribuio para a formao da
criana, uma vez que esta, nos seus jogos, reelabora e ressignifica aquilo que observa
dos adultos ou das outras crianas; cria e combina novas realidades, de acordo com suas
necessidades.
Portanto, o brincar no mediado apenas pela fantasia, pois a realidade tem
sobre ele grande influncia. O brincar no surge de uma fantasia artstica,
arbitrariamente construda no mundo imaginrio da brincadeira infantil; a prpria
fantasia da criana necessariamente engendrada pelo jogo, surgindo precisamente
neste caminho, pelo qual a criana penetra a realidade (LEONTIEV, 2010b, p.130).
Neste sentido, Vygotsky aborda o brincar como
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uma atividade dependente do que ele chama de um tipo de impulso
especfico, o qual denomina criativo. O impulso criativo aquele que
permite ao sujeito reordenar os elementos extrados da realidade em
novas combinaes. Estabelece entre o real e o criativo (que pode se
expressar em diversas atividades do indivduo, entre as quais se
encontra a ldica) relaes e interpretaes constantes. (VYGOTSKY
apud ROCHA, 2005, p.71).
Na concepo do autor, h trs nveis de relao entre o real e a fantasia. Em
primeiro lugar, tudo o que o sujeito cria deriva de elementos j experienciados, da
realidade, mas submetidos a modificaes por meio da imaginao. Por outro lado,
existem momentos em que a experincia se apoia na imaginao; por exemplo, quando
uma pessoa consegue imaginar algo apenas descrito por outra, mesmo sem conhecer
concretamente, apropria-se da experincia alheia. E, por fim, a fantasia pode representar
algo totalmente novo. E, assim,
completa-se o crculo das relaes entre fantasia e realidade, em que
os elementos do real, apropriados e reorganizados, constituem a
fantasia, cujas imagens constantemente materializam-se e passam a
interferir e modificar a realidade, ao se transformarem em elementos
constituintes desta. (ROCHA, 2005, p.72).
Quando o processo mencionado anteriormente comea a ocorrer, significa que a
atividade ldica est sendo desenvolvida. O brincar, ao longo do desenvolvimento da
criana, altera seus aspectos estruturais e torna suas aes mais complexas. Nas relaes
existentes, ocorrem modificaes de papis. Os objetos e as aes que constituem o
ldico vo se modificando. Por exemplo: primeiro a criana apenas toma o leite; depois
passa a dar leite para a boneca. Na brincadeira, a criana tambm pode dar outros
sentidos aos objetos, ou seja, a criana pode transformar e produzir novos significados,
como, por exemplo, usar uma colher para simbolizar uma mamadeira.
Outra mudana significativa refere-se s aes da vida real, quando a criana
assume certo papel e, de acordo com o contexto, imagina uma temtica. As temticas
que as crianas escolhem para suas brincadeiras tambm se originam de parcelas da
realidade que elas observam e/ou experimentam em sua vida cotidiana (ROCHA,
2005, p.77).
Convm destacar que o desenvolvimento da atividade ldica no ocorre de modo
linear, sistematicamente, de acordo com a idade cronolgica. um processo
desenvolvido mediante o psquico de cada sujeito. A atividade criadora da imaginao
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encontra-se em relao direta com a riqueza e a variedade de experincia acumulada
pelo sujeito, porque essa experincia o material com que se constri a fantasia. Quanto
mais vasta a experincia humana, tanto mais amplo ser o material de que dispe a
imaginao.
Apesar de a atividade ldica no ser sistematizada, o jogo de faz de conta
extensamente marcado por regras, que regulam as atividades reais dos sujeitos.
O real estabelece os parmetros, tanto da escolha de objetivos, quanto
da configurao das aes ldicas, duas instncias sempre articuladas;
a escolha de objetos substitutivos tem como critrio a possibilidade do
gesto (da ao generalizada), colado ao real. O objeto ldico tem
que comportar a ao ldica. Objetos disponveis so recusados como
substitutos de outros, medida que se mostrem precrios como
suportes da ao que se deseja representar. Nem tudo pode ser tudo.
Neste processo de substituio de objetos, mais importante que o grau
de similaridade genrica entre um e outro, a possibilidade do gesto
representativo da ao real. (ROCHA, 2005, p.76)
Vygotsky (1988, p.124) exemplifica: a criana imagina-se como me e a
boneca como criana e, dessa forma, deve obedecer s regras do comportamento
maternal. O que diferencia as regras do jogo de faz de conta dos demais jogos que, na
maioria das vezes, as regras no so formais e explcitas, e o atributo essencial do
brinquedo que uma regra torna-se um desejo (VYGOTSKY, 1988, p.131).
Rocha (2005, p.80) considera a atividade ldica complexa, pelo fato de que,
como outras atividades humanas, ela reflete em sua estrutura de funcionamento uma
relao dialtica entre o j dado e o inovador, entre o imaginado e o conhecido. De
acordo com a autora, no jogo de faz de conta existem muitas contradies. Apontamos,
entre outras: o jogo no nem pura fantasia, nem pura realidade transposta; os objetos
utilizados podem ter novos significados ou podem ter suas funes reais; as aes
podem ser generalizadas, substitutivas ou concretas, literais; h momentos em que
determinadas caractersticas de um objeto devem ser ignoradas e, ao mesmo tempo,
consideradas, para que seja possvel a ao substitutiva; ocorrem insubordinao a
algumas regras e subordinao a outras; o jogo realiza-se no tempo e no espao
simblico, embora existam o tempo e o espao fsico; a criana deixa o eu real e
convive com o eu desdobrado. Todas, porm, so caractersticas do jogo de faz de
conta, configuradas a partir do social,
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o que permite criana que brinca dois tipos de movimentos opostos:
a libertao do e a imerso no real. Tanto um quanto outro movimento
se modificam medida que a criana vai desenvolvendo sua
capacidade para brincar, dentro das condies histrico-culturais de
que dispe. (ROCHA, 2005, p. 81, grifos da autora)
Todo esse processo de desenvolvimento da atividade ldica permeado pela
linguagem.
Atravs da palavra, a criana garante a participao de objetos, aes e
gestos ausentes [...] a palavra surge como o instrumento que
possibilita criana criar e agir com objetos ausentes, sem nenhum
suporte material, compor personagens que na verdade esto ausentes
do jogo e relacionar-se com eles, coordenando aes que podem ser
apenas indicadas. (ROCHA, 2005, p.86).
A importncia do brincar, ainda que apontada por tericos como Vygotsky,
Elkonin, Leontiev, entre outros, parece encontrar resistncia, principalmente em funo
do nvel de escolarizao: medida que as crianas vo ascendendo nos nveis de
escolarizao, menos brincadeira passa a haver na escola. Ainda existem pessoas que
veem o brincar sob a tica da pouca seriedade8, da no utilidade, da oposio trabalho
versus brincadeira, ou seja, no veem a importncia do brincar no momento da
aprendizagem. Rocha (2005) afirma:
Neste processo de constituir sujeitos adaptados ao sistema mais
amplo, o jogo de faz-de-conta e o imaginrio podem representar mais
facilmente o espao da criao, e isto no tem sido muito desejado em
nossos sistemas escolares e sociais. Como o jogo no uma atividade
produtiva (no sentido capitalista do termo), ele um campo em que a
criana est livre, de certa forma, do controle de produo, de
avaliao e da determinao estrita dos caminhos que se pode/deve
percorrer. Como j vimos, no jogo a criana se orienta pelo processo,
e no pelo produto (ROCHA, 2005, p.177).
Quando a criana brinca, ela o faz de modo bastante compenetrado. E essa
concentrao que a criana tem no momento em que est brincando ocorre devido
flexibilidade que existe na brincadeira, o que propicia um ambiente favorvel para que
ela busque modos alternados de ao. O mesmo, porm, muitas vezes, no ocorre em
atividades no recreativas, devido ao seu rigor, ou quando as brincadeiras so
intencionalmente criadas pelo adulto, com o objetivo de alcanar certo contedo
8 A concepo do jogo como oposio ao que srio nasceu na Idade Mdia, por sua associao ao jogo
de azar, bastante praticado na poca.
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programtico. Neste caso, deixa de ser ao voluntria da criana, deixa de ser
brincadeira, pois surge a dimenso educativa. Isso no significa que o professor jamais
possa trabalhar um jogo com o objetivo de desenvolver um conceito novo ou de aplicar
um j dominado. Existem os jogos pedaggicos, que, segundo Grando (1995), alm de
educativos tm o seu carter ldico. A atividade ldica e a aprendizagem, portanto, no
so divorciadas.
Huizinga (1971) destaca que ldico significa iluso, simulao; assim,
podemos dizer que, quando a criana est inserida em uma atividade ldica, ela est
apartando-se do mundo dos adultos, simulando outro mundo s para si, onde pode
exercer sua soberania: pode ser pai, bombeiro, professor, rei; ou seja, nesse momento
lhe so oferecidas novas competncias. No jogo e na brincadeira, a criana cresce,
isentando-se do domnio sob o qual ela era nada mais que um subordinado e, como se
sente pequena, tenta realizar-se no seu mundo ldico, evadir-se da realidade.
Dessa forma, podemos considerar contar e ouvir histrias como uma atividade
ldica, pois, quando contamos uma histria, a criana pe-se em movimento, posiciona-
se como um personagem, e seus gestos baseiam-se na cultura na qual est inserida.
possvel a ela penetrar em seu processo de constituio enquanto sujeito histrico
(OLIVEIRA, 2007).
No prximo tpico abordaremos as histrias infantis uma brincadeira que
possibilita uma viagem totalmente gratuita e prazerosa no mundo da imaginao.
1.3. Ento Vamos Brincar! Um Mundo de Fantasias e Imaginaes
Nesta seo traremos a importncia das histrias infantis e destacaremos alguns
aspectos que o contador de histrias precisa levar em considerao para obter sucesso
na contao.
1.3.1. As Histrias Infantis Como Passaporte Para o Imaginrio
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Quem no se lembra de alguma histria que ouviu na infncia? Quem ao menos
uma vez no disse conta de novo...?. E por que ser que as crianas gostam tanto de
ouvir histrias? Por que no se importam de ouvir a mesma histria por diversas vezes?
Tudo isso acontece porque a histria uma magia, ela aquieta, serena, prende a
ateno, informa, socializa, educa (COELHO, 2004, p.12), alm de ser importante
alimento para a imaginao.
O contador de histrias, por um longo perodo de tempo, foi extremamente
importante nas comunidades e recebeu diversos nomes.
Era o rapsodo para os gregos; o griot para os africanos; o bardo para
os celtas; ou simplesmente o contador de histrias, o portador da voz potica. Era um sujeito que se valia da narrao oral como via para organizar o caos, perpetuar e propagar mitos fundacionais das suas
culturas. Um sujeito que mantinha vivo o pensamento do seu povo por
meio da memria prodigiosa e que o divulga por meio da arte. Sua
forma de expresso, a voz manifestada por meio de um corpo
receptivo e malevel (BUSATTO, 2006, p.18).
Entretanto, no mundo contemporneo, em alguns momentos temos a impresso
de que as histrias esto perdendo seu espao para o mundo tecnolgico e de que contar
histrias se tornou uma arte morta, mas, na realidade, a contao de histrias no
morreu, apenas houve uma mudana de foco.
Hoje as imagens acabam vindo prontas para as crianas pelo meio eletrnico, o
que deixa as histrias contadas em segundo plano. Muitas crianas no deixam de jogar
seu playstation, no abrem mo de seus momentos no Orkut ou no MSN para ouvir
histrias.
Indo um pouco adiante, notamos que at mesmo as brincadeiras tradicionais tm
atrado mais as crianas do que ouvir histrias. Em um dos dias em que realizamos o
projeto de contao de histrias no Parque das Orqudeas, enquanto espervamos o
horrio para iniciar as atividades, convidamos algumas crianas que estavam brincando
de pega-pega no campo de futebol de areia para participarem do projeto, e a reposta foi:
Ns no temos mais idade para isto. Muito intrigada, questionei a idade daquelas
crianas. Para minha surpresa, as crianas que j no se sentiam mais crianas tinham
entre 7 e 8 anos de idade, ou seja, a resposta da criana havia sido apenas uma desculpa.
Logo, outra garota respondeu: Eu j estou de saco cheio de estudar, no gosto de
estudar.
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Por que o ouvir histrias foi relacionado com o estudar? Acreditamos que este
fato se deva pouca existncia da prtica de ler e ouvir histrias. Os momentos de
contao de histrias, na maioria das vezes, limitam-se rotina escolar, o que, por ser
algo imposto, acarretar a perda do carter ldico.
Ressaltamos que a arte de contar histrias ainda viva nos dias atuais e continua
sendo um extraordinrio meio de conservao e propagao da cultura; no entanto, de
forma diferente, em virtude da complexidade da sociedade moderna. Podemos citar o
exemplo da TV, meio de comunicao em que a contao de histria est presente.
Neste sentido, Caf (2000) destaca que as crianas desde pequeninas passam a ser
dominadas pelos meios de comunicao, absorvem as informaes e as imagens que
lhes esto sendo impostas em quantidade alucinante. Porm, a rpida ingesto das
imagens traz distrbios metablicos (CAF, 2000, p.3) e, como consequncia, a
criana deixa de pensar por si prpria; perde a capacidade de raciocinar, de resolver
situaes-problema; seu pensamento, sua imaginao, cognio e criatividade so
mobilizados.
As histrias infantis possibilitam suscitar o imaginrio, o que contribui para o
desenvolvimento da criticidade da criana, do adolescente e do adulto. A partir das
histrias, a criana comea a reconhecer e a interpretar situaes da vida real.
Na concepo de Vygotsky (1992, p.128), a imaginao um momento
totalmente necessrio, inseparvel do pensamento realista. O autor afirma que, na
imaginao, a direo da conscincia tende a afastar-se da realidade. Esse
distanciamento da realidade por meio de uma histria, por exemplo, essencial para
uma compreenso mais profunda da prpria realidade: afastamento do aspecto externo
aparente da realidade dada imediatamente na percepo primria possibilita processos
cada vez mais complexos, com a ajuda dos quais a cognio da realidade se complica e
se enriquece (VYGOTSKY, 1992, p.129).
Para que o imaginrio da criana seja suscitado e o momento da contao de
histria torne-se uma viagem prazerosa, existem alguns detalhes que precisam ser
levados em considerao pelos contadores de histria. o que vamos abordar no
prximo item.
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1.3.2. A Arte da Contao de Histrias
Contar uma histria
dar um presente de amor.
(Lewis Carrol)
O sucesso na contao de histrias depende de vrios fatores. Alm de outros,
indicamos: fazer uma boa escolha da histria a ser contada respeitando a faixa etria
das crianas; o contador encantar-se primeiramente com a histria escolhida; realizar
um bom estudo dela; escolher a maneira como a histria ser apresentada s crianas.
Na concepo de Busatto (2006), o contador de histrias do sculo XXI um
artista, um performer9, que necessita ter conivncia com o ouvinte. Ele se expressa pela
voz, pelo corpo e pelas expresses faciais. No momento da hist