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ReVista LusóFona de ciência das ReLigiões – ano X, 2013 / nn. 18-19 173 a arte da segunda metade do séc. XVi, poderá ser identificada com o termo lato «maneirismo», onde se enquadra, por exemplo, a produção artística de Miguel Ângelo, sobretudo na sua expressão mais tardia de pro funda melancolia e religiosidade. não é por acaso que este artista é também a fonte mais relevante da teo- ria de arte e do pensamento estético de Francisco de Holanda (1517- 1585), constituindo pois uma referência fundamental. a actividade artística desta fase, vulgarmente no- meada «Maneirismo», não obstante as suas diferentes cambiantes, ou manieras, tem como denominador comum um aspecto decisivo: o domínio político e reli- gioso da arte exercido através do concílio de trento, nomeadamente, através do decreto da sessão XXV, do dia 4 de dezembro de 1563: «de invocatione, venera- tione, et Reliquiis, sanctorum, et sacris imaginibus» 1 em poucas palavras, pode dizer-se que a partir deste mo mento, através da execução dos decretos conciliares, a igreja adquire um domínio semelhante ao que teve durante no período medieval. a certos dogmas do humanismo e classi- cismo, como a autonomia crescente do pensa- mento artístico e da realização pessoal, a igreja 1 João Baptista Reycend, O Sacrossanto e ecuménico Concílio de Trento em latim e portuguez, Lisboa, 1781, p. 350. Apesar de Holanda ter colocado sempre Deus no centro da sua obra, como modelo e exemplo da actividade artística, e ter reforçar a importância do uso das imagens como veículo democrático de passar a narrativa religiosa, este arauto do neoplatonismo em Portugal, usa por vezes uma linguagem pouco ortodoxa e até hermética, o que terá talvez contribuído para o posterior silenciamento da sua obra. teresa lousa Doutorada em Ciências da Arte i d e n t i d a d e s r e l i g i o s a s Francisco de Holanda e a teoria da arte pós-conciliar pp. 173-184_Teresa Lousa:RLCR 01-06-2014 22:50 Page 173

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  • ReVista LusFona de cincia das ReLigies ano X, 2013 / nn. 18-19 173

    a arte da segunda metade do sc. XVi, poder seridentificada com o termo lato maneirismo, onde seenquadra, por exemplo, a produo artstica de Miguelngelo, sobretudo na sua expresso mais tardia depro funda melancolia e religiosidade. no por acasoque este artista tambm a fonte mais relevante da teo-ria de arte e do pensamento esttico de Francisco deHolanda (1517- 1585), constituindo pois uma refernciafundamental.

    a actividade artstica desta fase, vulgarmente no-meada Maneirismo, no obstante as suas diferentescambiantes, ou manieras, tem como denominadorcomum um aspecto decisivo: o domnio poltico e reli-gioso da arte exercido atravs do conclio de trento,nomeadamente, atravs do decreto da sesso XXV, dodia 4 de dezembro de 1563: de invocatione, venera-tione, et Reliquiis, sanctorum, et sacris imaginibus 1

    em poucas palavras, pode dizer-se que a partir destemo mento, atravs da execuo dos decretos conciliares,a igreja adquire um domnio semelhante ao que tevedurante no perodo medieval.

    a certos dogmas do humanismo e classi-cismo, como a autonomia crescente do pensa-mento artstico e da realizao pessoal, a igreja

    1 Joo Baptista Reycend, O Sacrossanto e ecumnico Conclio deTrento em latim e portuguez, Lisboa, 1781, p. 350.

    Apesar de Holanda ter colocado sempre Deus

    no centro da sua obra,como modelo e exemplo

    da actividade artstica, eter reforar a importnciado uso das imagens como

    veculo democrtico de passar a narrativareligiosa, este arauto do neoplatonismo em

    Portugal, usa por vezesuma linguagem pouco

    ortodoxa e at hermtica, o que ter talvezcontribudo para

    o posterior silenciamentoda sua obra.

    teresa lousaDoutorada em Cincias da Arte

    i d e n t i d a d e s r e l i g i o s a s

    Francisco de Holanda e ateoria da arte ps-conciliar

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  • contrapunha o predomnio do pensamento teolgico e tico e a dissoluoda satisfao hedonista no colectivo- no fundo opunha Verdade Beleza. (pe-reira, 1999, p. 48)

    numa perspectiva artstica e intelectual tambm se pode concluir que houve umcerto retrocesso relativamente s conquistas do humanismo e do alto Renascimento.a axiologia humanista viria a ser esmagada pelo peso de uma hierarquia de valoresteolgicos de inspirao feudal. as resolues que adviram da contra Reforma nopodiam estar mais nos antpodas do pensamento humanista, se pensarmos porexemplo no poder coercivo e de atenta vigilncia que a igreja exercia e que encon-trar em portugal um terreno frtil pela mo do monarca Joo iii, o mesmo rei queiro nicamente, durante uma curta fase humanista, ter mandado Francisco de Ho-landa numa viagem de estudo a itlia, com o fito de este trazer notcias das prticasartsticas e arquitectnicas desse local que era ento o centro do mundo em termosartsticos. esta viagem que consolidar o seu gosto pelo antigo mas tambm pelapintura italiana que era para Holanda o modelo da boa pintura. desta contingn-cia, marcada pela contradio, ou sbita mudana, do prprio Rei que protegiaFrancisco de Holanda, que este autor ser vtima mas tambm activo protagonista.apesar do esquecimento a que esta figura de vulto foi votada durante mais de doiss culos, largamente reconhecida hoje a sua importncia. as experincias extraor-dinrias que marcam a sua vida, tero sem dvida contribudo para uma existnciampar no mapa portugus do sculo XVi. a teoria da arte de Francisco de Holandaacaba por ser marcada por plos opostos que correspondem aos dois perodos da suaproduo terica e artstica mais activa. o primeiro, da sua juventude, marcado peloviagem a itlia e pelos referenciais humanistas, poca na qual redigiu o seu princi-pal tratado: o Da Pintura Antigua e o segundo perodo, o da maturidade, marcadopor uma profunda melancolia e vivncia dos valores religiosos, que coincide com operodo ps tridentino, no qual redigiu o Da Cincia do Desenho e o tratado de urba-nismo Da Fbrica que falece cidade de Lisboa. existe ainda o De Aetatibus Mundi Ima-gines, complexo cdice ilustrado acerca das 6 idades do mundo segundo as Sagradases crituras, obra que prepassa estas duas fases.

    podemos ento perguntar, em que aspecto ter efectivamente o conclio detrento afectado a produo artstica no geral, e em que medida ter afectado Fran-cisco de Holanda em particular? o aspecto que viria a ter consequncias mais de-terminantes foi o da a exigncia de clareza e exactido sugerida nos decretos detrento, que induz a uma produo e uma interpretao demasiado literal da obrade arte no que respeita s suas fontes biblcas e sagradas. a exigncia de decoro vemrefrear as liberdades e excentricidades conquistadas pelo Renascimento e que o Ma-neirismo comeava a revelar. um exemplo desta circunstncia o da censura ao JuzoFinal de Miguel ngelo, na capela sistina, que levar a que certas partes da mesmasejam repintadas e cobertas com panos negros, essencialmente devido presena denus. o telogo gilio da Fabriano, telogo ps tridentino, interessou-se e escreveu es-pecificamente sobre os supostos erros dos pintores e referindo-se ao caso de Mi-guel ngelo, critica entre vrias coisas, por exemplo, o facto de este ter pintadoanjos sem asas (no Juzo Final) e defende o decoro e a moral da pintura religiosa atra-vs de uma anlise crtica a esta e a outras obras, de modo totalmente literal no querespeita aos textos das sagradas escrituras, revelando uma total ausncia de crit-

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  • rios estticos na apreciao da obra de arte, num texto que se pode situar na trata-dstica de arte ps-tridentina. 2

    apesar deste contexto apontar por um lado para um retrocesso ao nvel das li-berdades artsticas, por outro lado o facto de a arte ser usada como propaganda re-sultou num aumento da encomenda artstica, ainda que esta fosse maioritariamenteeclesistica, como testemunha o caso portugus. a consequncia desta vivncia pa-radoxal a de um grande conflito espiritual e esttico, bem patente na arte ambguae perturbadora deste perodo: se por um lado a tradio clssica e pag, no podiaser ignorada, por outro a nova vivncia de religio e as suas limitaes para a pro-duo artstica viriam a pr em causa valores como: o prestgio e a independnciados artistas enquanto criadores intelectuais, estatuto esse que em itlia j ia sendoreconhecido, mas o mesmo no se poderia afirmar do caso portugus. esta que foiuma das principais causas e preocupaes da obra de Holanda: o reconhecimentoda superioridade e da dignidade do pintor, via-se agora numa situao de aindamaior vulnerabilidade. na intimidade paradoxal desse conflito, entre a conscin-cia intelectual do pintor e as foras externas que exigem comportamentos pr-esta-belecidas, que se encontra a conturbada persona de Francisco de Holanda, e desseconflito que nascem as diferentes cambiantes que se podem pressentir na sua obra,que iremos de seguida analisar brevemente.

    Relativamente produo terica e artstica de Holanda, o Da Fbrica que Falece Cidade de Lisboa e o Da Sciencia do Desenho, as suas obras mais tardias, terminadasem 1571 so as principais fontes de informao sobre a sua actividade e biografia notempo que se seguiu redaco do Da Pintura Antiga. destacamos tambm o De Ae-tatibus Mundi Imagines, prodigioso cdice de 154 imagens, que tendo sido iniciadoem 1545, passa por um interregno de mais de 20 anos e retomada em cerca de 1573,pouco depois da concluso das obras acima mencionadas. este longo intervalo entre1545 e 1573 ser responsvel por alteraes profundas na Histria e na cultura donosso pas e simultaneamente no destino do nosso autor:

    Quando retoma a obra em 1573, o contexto j no o mesmo. peranteuma inquisio que acaba de prender damio de gis e que se torna cadadia mais ameaadora para os intelectuais e os antigos estrangeirados, acen-tua, quando pode, o lado apologtico da obra e d ao seu cdice um fron-tespcio glria da igreja catlica. (deswarte, 1987, p. 62)

    Quando Holanda regressa ao seu cdice encontra-se numa fase de particular cria-tividade que o leva produo das ltimas imagens que se referem essencialmente paixo e semana santa. Holanda recebe proteco da Rainha dona catarina comquem manteve excelentes relaes, e tambm por esta altura, que chega a acalen-tar esperanas de deixar portugal e ir para espanha servir o Rei Filipe ii, o que nochegaria a acontecer por desinteresse desse Rei, no obstante a proposta ter chegadoa ser efectivamente feita pelo prprio e as diversas tentativas insistentes que foramfeitas por parte do embaixador don Juan de Borja, amigo e protector de Holanda.o cdice, tem a sua dedicatria dirigida igreja catlica, e no ao Rei espanhol nemao portugus, como se poderia esperar. certo que esta magnfica obra acabar por

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    2 andRea giLio da FaBRiano, Due dialoghi degli errori dei pittori (1564) apud, anthony Blunt, p. 112.

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  • ir parar ao el escorial em Madrid, devido certamente tomada de posse do Rei Fi-lipe ii, do trono portugus. tratando-se de uma obra em imagens, onde toda a suariqueza est no poder narrativo e mstico das mesmas, podemos intuir que Holandaprocurava tambm ir ao encontro da poltica de reforo das imagens veiculada peloconclio de trento, esperando encontrar nesta dedicatria uma hiptese de ver a suaobra impressa no seu pas pela primeira vez, o que no chegaria a acontecer.

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    Figura 1

    contra capa do Da Aetatibus Mundi Imagines de Francisco de Holanda, onde metaforicamente um Louva-a-deus representa a sua devoo igreja catlica

    a 22 de Janeiro de 1572, dia de so Vicente, Francisco de Holanda escreve umacarta a Filipe ii, um ano depois de terminar a redaco das suas ltimas obras. estacarta um testemunho da frustrao que sentiu nestes ltimos tempos em que pe-rante a indiferena de d. sebastio, afirma desejar servir ao Rei Filipe ii. Mencionaainda nesta carta o facto de seu pai ter j servido o imperador carlos V, de como re-tratou a imperatriz, o imperador, e de como imagem de seu pai, deseja servi-lo:

    donde eu fiquei obrigado com o meu piqueno talento, a desejar de ser-vir V. M. como fez meu pai ao imperador Vosso pai e por estar longe nuncapude cumprir este desejo () (Holanda, 1984, p. 257)

    Holanda oferece os seus servios a Filipe ii e essa atitude perfeitamente com-preensvel, tendo em conta o desprezo de d. sebastio pelo artista. por outro lado,no deixa de ser um facto que vem contradizer o seu habitual patriotismo, uma vezque, nas suas palavras, tanto Holanda como seu pai, j teriam recusado ir trabalharpara a corte de carlos V, apenas por lealdade ptria portuguesa:

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  • Mas Filipe ii, que, decerto o admirava, no nos esqueamos que levouo seu livro para a Biblioteca do escorial. (segurado, 1970, p. 247)

    no se sabe ao certo os motivos que tero levado a corte portuguesa a margina-lizar Holanda, mas apenas fortes motivos t-lo-iam levado a oferecer-se coroa es-panhola. sabe-se que Holanda era pouco apreciado pelo cardeal d. Henrique du-rante a sua regncia de 1562 a 1568. sabe-se tambm que d. sebastio no tinha qual-quer interesse pelas artes nem pelas obras pblicas, da que tenha votado ao desprezoo Da Fbrica que Falece Cidade de Lisboa e na sua imaturidade se tenha empenhadoapenas na invaso de Marrocos. Jos stichini Vilela aponta para uma possvel ex-plicao:

    parece poder-se crer, contudo, que no era bem recebido junto de d. se-bastio, possivelmente em consequncia de alguma afirmao sobre a dig-nidade dos pintores. (Vilela, 1982, p. 51)

    neste contexto que Holanda v renovadas as suas energias, na esperana v depoder voltar a ser til e minimamente reconhecido pelo seu talento. este novo flegope fim a um longo silncio que durava desde a concluso do seu tratado da pin-tura e expressa um Francisco de Holanda talentoso, original, maduro, melanclicoe amargurado, mas ainda assim sempre voluntarista e consciente das suas capaci-dades. o seu entusiasmo juvenil d lugar a uma melancolia que procura o seu ant-doto na f. no fim da sua vida, acaba por revelar uma atitude espiritual, relativa-mente contrria linha do humanismo renascentista, sendo marcado por uma po-sio cada vez mais conservadora, em que a espiritualidade e a salvao da alma setraduzem como principais inquietaes.

    a matriz do seu pensamento classicista mas tambm tridentina. a esta mudanacorresponde tambm a passagem do entusiasmo dos primeiros tempos, a um de-sencanto posterior. pode-se dizer que a vida e obra de Holanda profundamentemarcada pelo contexto histrico, social e religioso em que est inserido, de tal formaque tambm Holanda parece verdadeiramente ter substitudo a vivncia libertina dohumanismo, por uma vivncia espiritual e asctica.

    apesar de Holanda ter colocado sempre deus no centro da sua obra, como mo-delo e exemplo da actividade artstica, e ter reforar a importncia do uso das ima-gens como veculo democrtico de passar a narrativa religiosa, este arauto do neo-platonismo em portugal, usa por vezes uma linguagem pouco ortodoxa e at her-mtica, o que ter talvez contribudo para o posterior silenciamento da sua obra. ape-sar do interesse inegvel das obras mais tardias, o valor terico menor e ao nvelconceptual ou filosfico no apresenta nada que no tivesse sido j, de certa maneira,dito no Da Pintura Antiga. aquilo que absolutamente novo o tom melanclico easctico destes textos.

    Quanto ao contedo, o Da Fbrica que Falece Cidade de Lisboa, um tratado de ur-ba nismo ilustrado onde prope uma srie de obras para a capital do Reino. depoisda morte do Rei d. Joo iii, Holanda est consciente que perdeu protagonismo, masmantm vivo o desejo de, com os seus conhecimentos poder voltar a servir o Reinoe contribuir para uma maior segurana e aprimoramento arquitectnico de Lisboa.nesta obra de preocupaes arquitectnicas, Holanda tenta dar alguma dignidade

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  • cidade de Lisboa, semelhana do que viu in loco nas cidades italianas por ondepassou, vinte e nove anos antes, aquando da viagem que marcou definitivamente asua vida. o livro, dirigido a dom sebastio, no obteve mais do que o desprezo dojovem monarca. nenhum dos seus projectos para Lisboa se materializou.

    o caso torna-se ainda mais interessante e estimulante para a nossa ima-ginao porquanto tudo aquilo que escreveu e desenhou nunca passou depapel, sendo, portanto, para os nossos espritos, desde logo, um caso de ar-quitectura e urbanismo do domnio da utopia. (duarte, 2007, p. 42)

    esta obra foi, em 1576, sujeita censura habitual pelo Frei Bartolomeu Ferreira,censor da inquisio, que deu o seu parecer favorvel, mas ainda assim nunca che-gou a ser impressa no seu tempo, tal como nenhuma outra obra sua.

    esta uma obra que revela bem a mudana de mentalidade ps conclio detrento que se vivia e as suas consequncias para o pensamento artstico. Holandacomea a sua obra com uma metfora que caracteriza estes tempos. em jeito de ora-o ou exerccio religioso e espiritual afirma a importncia e a prioridade da fortifi-cao da cidade da alma, e o reino do seu esprito por comparao fortificao daci dade material. nestas palavras podemos pressentir algumas das suas principaisfontes, como por exemplo santo agostinho e santo incio de Loyola.

    enquanto arquitecto, Holanda revela nesta obra preocupaes que abrangem aar quitectura militar, civil, religiosa, a higiene, a esttica e o trfego, manifestandoassim uma viso prtica, altamente precursora, dinmica e de carcter global para acidade de Lisboa. Revela tambm nos seus projectos as influncias que recebeu dasua viagem a itlia, nomeadamente ao nvel das fortificaes, fontes, cipos comnomes de ruas e monumentos. curiosamente reserva para o final da obra, qual ep-teto sagrado, o desenho de dois edifcios religiosos, a igreja de s. sebastio e a ca-pela do s. sacramento, simbolizando estas a proteco espiritual da cidade, ao passoque as muralhas e fortalezas simbolizariam a proteco militar, da qual a cidade deLisboa estaria muito carenciada na sua opinio.

    podemos dizer que esta obra constitui uma espcie de introduo artstica obraterica que se lhe segue e que se encontra no mesmo volume: o Da Sciencia do Dese-nho: texto onde recupera muitos conceitos do Da Pintura Antiga na tentativa de mos-trar ao Rei, a utilidade e a nobreza do desenho. aqui descreve com tom saudosistaas vrias funes que exerceu junto do Rei dom Joo iii e do infante dom Lus, etenta, em vo, despertar em dom sebastio o interesse pelos seus conhecimentos ar-tsticos. Lembrando a nobreza da pintura aproveita para afirmar o quo pouco bementendida e estimada, neste () reino de Portugal. (Holanda, 1985, p. 13)

    o interesse biogrfico desta obra, prende-se com as circunstncias que as marcam:depois das mortes do infante dom Lus em 1555, e de dom Joo iii em 1557, Ho-landa perde a proteco real e entra num perodo de declnio social, acabando porperder a posio de prestgio de que beneficiou outrora. Viver tempos de certa de-cadncia aps a morte de d. Joo iii, d. Maria, sua irm e de d. catarina, sua vivamas sobretudo quando o seu neto d. sebastio sobe ao poder, dando incio a umbreve reinado que termina com a sua morte em alccer Quibir. o cardeal dom Hen-rique assume o trono e em 1581 e Filipe ii entra em Lisboa, trazendo a perda da in-dependncia portuguesa, mas em contrapartida, traz tambm um novo gosto e uma

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    Figura 2

    Francisco de Holanda, projecto da igreja de so sebastio, Da Fabrica que falece cidade de Lisboa, f. 27

    Figura 3

    Francisco de Holanda, projecto da capela de s. sacramento, Da Fbrica que falece cidade de Lisboa, f. 30

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  • atitude culturalmente mais apta que se fazia sentir j em espanha, e que parece re-novar as expectativas de Francisco de Holanda em relao a uma oportunidade devoltar ribalta.

    a seguinte citao da concluso de Da Sciencia do Desenho bem elucidativa dodesprezo de d. sebastio pelas artes:

    tudo isto que tenho escrito, Muito alto e cristianssimo Rei e senhor,para que Vossa alteza saiba (j que lho outrem no lho diz nem lembra) deque serve o entendimento daquela cincia e arte que em mim morre to de-sestimada e esquecida; em um Mato e Monte que est entre sintra e Lisboa,somente de no haver em que eu possa servir. (Holanda, 1985, p. 45)

    pode dizer-se que o Da Sciencia do Desenho uma ltima tentativa, j pouco es-peranada, de fazer ver a d. sebastio a importncia da cincia do desenho e a su-perioridade da pintura. ainda a oferta de servios de quem trabalhou sempre juntoda corte e a quem foram reconhecidos os mritos.

    esta ltima fase de Holanda marcada por uma lamentao e conformao mr-bida que atribui vontade divina, o desprezo pelo seu talento e mrito. este tipo delinguagem muito virada para um catolicismo fantico, que em nada se assemelha do jovem Holanda acabado de chegar de itlia, deve-se sem dvida a circunstnciashistricas: o conclio de trento e suas consequncias, tanto para a redaco de tex-tos quanto para o entendimento da pintura.

    no Da Cincia do Desenho so duas as passagens que nos remetem para as deter-mi naes tridentinas: refere a importncia de advertir os Bispos, como manda osanto conclio, para a anlise da pintura e da escultura, e ainda no final desta obra,rea firma como a sua obra foi sujeita a ser emendada pela ortodoxa e catlica f, con-forme manda o conclio tridentino. so tempos difceis os que marcam esta ltimafase da sua produo terica, em que podemos naturalmente intuir que algumacoisa ficou por dizer, ou que parte do que dito no corresponda necessariamenteao seu verdadeiro pensamento esttico, mas antes a um discurso pr-concebido deforma a passar pelo crivo do conclio. um dos aspectos centrais da sua teoria da arte,a sua concepo de artista como ser privilegiado, detentor de um talento ou dominato e de uma graa divina, ser repudiado pelos censores da inquisio:

    Bartolomeu Ferreira na sua censura da Fabrica que falece h cidade deLysboa e sciencia do desenho escreve em 1576: se h de declarar que a ditaarte ou sciencia he natural e acquirida por meo natural e industria humanae no he dom infuso o sobrenatural. (deswarte, 1987, p. 28)

    Longe vo os tempos em que a dignidade estava no centro das preocupaes hu-manistas e materializada na arte do Renascimento. a dignidade humana tal comoera brilhantemente entendida por pico della Mirandola, por exemplo, d lugar a umaviso mstica mais prxima do vocabulrio medieval, em que a existncia humanano passa de um depositrio das misrias e culpas da sua condio e finitude. paraas artes, as consequncias do conclio de trento contribuem para uma rpida des-trui o de algumas das conquistas culturais do Renascimento.

    a arte surge, assim, como uma das armas desta renovao ideolgica, assumin -do-a nas suas caractersticas temticas e formais. a igreja catlica quis marcar o con-

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  • traponto sobriedade e iconoclastia do protestantismo, levando os artistas a criarobras que se destinavam a emocionar e a incrementar a devoo, mais atravs dasemoes do que da razo. como consequncia do reforo da iconografia crist, ne-nhuma melhoria na qualidade artstica se verificou, pelo contrrio, passa a dar-se ummaior relevo ao significado da obra de arte do que qualidade formal da mesma,ou seja, o que interessa no tanto a obra de arte em si, mas a essncia ou o smboloque essa obra representa. para se defender dos perigos da idolatria, a igreja lembraa importncia de afastar os aspectos terrenos do caminho, como tal, a imagem re-presentada no carece de nenhum modelo real.

    a imagem pois um duplo de essncias no terrenas, circunstncia queanula desde logo a possibilidade de um modelo real a captar pela seme-lhana. () a sua mo coloca-se ao servio de imagens onde o rigor icono-grfico deve suplantar a qualidade artstica, uma pouco suprfula na sua in-til materialidade. (pereira, 1999, p. 49)

    nenhum rosto mortal seria necessrio ou suficiente para captar a santidade, porexemplo, da Me de cristo. este aspecto vai totalmente contra um dos principais pos-tulados do Renascimento, a importncia de captar e representar o que real, o que visvel, aspecto que se revelou tambm fundamental para a teoria artstica de Holanda,dedicando a este tema inclusivamente o pequeno tratado: Do Tirar polo natural 3, di-logo em que o principal objectivo reforar a importncia do retrato a partir de mo-delo natural.

    por outro lado, o facto da arte maneirista no se basear tanto na cpia rigorosado mundo natural, permite tambm que o artista trabalhe mais a partir do seu mun -do interior, desenvolvendo faculdades como a memria e a imaginao e no tantoa mimesis de rigor matemtico e geomtrico. em vez de uma reproduo fiel da rea-lidade, os artistas, mesmo que presos s determinaes tridentinas, acabam por teruma pequena nuance de liberdade, que o da interpretao subjectiva, mediada poruma srie de sentimentos, como a melancolia, o terror, a piedade ou a vulnerabili-dade, que vo caracterizar o Maneirismo como uma das mais enigmticas pocas daHistria da arte.

    a contra Reforma enquanto poltica de imagem, de incitamento piedade, mo-dstia e humildade, de intenso sentimento religioso rejeita as habilidades ilusio-nistas de profundidade ou perspectiva que apenas parecem servir para desviar aateno da mensagem espiritual. o que se pretende precisamente o contrrio: umaiconografia simples e de leitura bvia. o processo de contra Reforma expressou osseus propsitos atravs da arte, buscando a legitimao e a exaltao dos seus fei-tos. exerceu sobre os artistas e as suas obras uma rigorosa vigilncia e censura.

    in fact, in many ways the Mannerists are nearer to the artists of the Mid-dle ages than to their immediate predecessors. and this is true not only ofmatters of technique but also of the subjects which artists seem to choosepreference () the theological or supernatural aspects. (Blunt, 1956, p. 106)

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    3 FRancisco de HoLanda, Do Tirar polo natural, Lisboa: Livros Horizonte, 1985

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    certo que Holanda ter sido sempre remunerado at ao final da sua existncia,pelo Rei d. Joo iii, pela Rainha d. catarina, d. sebastio, e d. Filipe ii, ainda assim,Jorge segurado defende que no fim de sua vida este teria deixado algumas dvidas,possivelmente motivadas por despesas feitas no Monte, onde no se deve ter furtadoa erguer aposentos dignos do seu estatuto:

    ao morrer estaria endividado, pois, um ano antes, o Rei Filipe i de por-tugal, fez-lhe merc para, por sua morte, trespassar suas tenas a sua mulhere: depois de sua morte mais dous annos pera pagar as dividas que diz que tem..(segurado, 1970, p. 247)

    Morre em 1584, com sessenta e seis ou sessenta e sete anos, em circunstncias des-conhecidas. no se sabe ao certo se ter morrido em Lisboa, no seu Monte, ou emsantarm. Jorge segurado defende que o mais provvel que Holanda estivesse emsantarm pela altura da sua morte, isto porque, o seu irmo vivia l e era a que seencontrava a sua viva.

    Francisco de Holanda uma figura controversa que domina o nosso sc. XVi.teve o mrito de ter sido o primeiro que em Portugal escreveu sobre bellas-artes (castro,p. 6), todavia, em portugal a sua obra no chegou a ser impressa no seu tempo, porfora dos factos polticos que norteavam o final da sua existncia, e essa ter sido tal-vez a sua maior amargura e desiluso.

    podemos questionar a sua vida e obra a vrios nveis: o seu verdadeiro lugar navida artstica portuguesa, a real influncia junto de d. Joo iii, a amizade com Mi-guel ngelo, a autenticidade das palavras de Miguel ngelo nos Dilogos em roma,os desenhos do lbum das Antigualhas feitos in loco, a existncia real das suas obrasar tsticas e o seu papel na introduo do Renascimento em portugal. a polmica emvolta de Holanda deve-se talvez ao facto de termos acesso sua vida principalmen -te atravs dos seus prprios relatos, e por certa incoerncia na evoluo da sua vida.

    a sua biografia extraordinria e paradoxal: de jovem corteso entre prncipese reis, a artista da Renascena que privou com Miguel ngelo, na sua estadia em it-lia, sua queda depois da morte do infante dom Lus e de d. Joo iii. at sua mor -te, Holanda viver retirado da vida social no seu monte em sintra, entregando-se avalores religiosos e contemplativos. Holanda acaba os seus dias numa espcie de ex-lio de inspirao crist. H uma fuga da vida social para uma vida rural, mais pr-xima dos valores iniciais do cristianismo, para uma busca da pureza e da natureza.numa desiluso amarga mas resignada, de ndole monstica e contemplativa, Ho-landa retira-se para uma espcie de auto-reflexo.

    desde o seu queixume a d. sebastio, no seu tratado em 1571, at morte do arquitecto, em 1584, decorreram cerca de treze anos, final amargoe triste para o mais importante artista da Renascena em portugal. (segurado,1983, p. 32)

    esta retirada da vida cortes identifica-se com um tipo de bucolismo presenteem certas figuras do classicismo portugus, que encontraram talvez a sua inspira-o em clssicos como tecrito ou Virglio. o facto que o exlio campestre de Fran-cisco de Holanda no caso nico e constitui uma das facetas do Renascimento por-tugus. a contra Reforma e o neoplatonismo enquanto exigncia de espiritualidade

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  • so tendncias presentes nesta opo. Figuras incontornveis da cultura portuguesado sculo XVi como: gil Vicente, antnio Ferreira e s de Miranda, assumem no fimde vida a mesma fuga buclica e espiritual de Francisco de Holanda.

    Holanda, consciente da sua idade avanada e da falta de interesse do Rei pelasartes, afirma que talvez depois de morto este o venha a lembrar, e a servir-se da pin-tura, mas nem isso sucedeu, pois d. sebastio morre muito antes de Francisco de Ho-landa, e nem assim o seu desejo se concretizar.

    no Da Cincia do Desenho, com amargura que termina a obra recorrendo a umaexpresso extremamente enigmtica:

    e no me queixo mais do tempo. porque me vai sua divina majestadechegando a um, em que o maior mal que me o mundo pode fazer fazer-meo seu bem; e o maior bem fazer-me o seu mal. (Holanda, 1985, p. 45)

    a melancolia parece ser o sentimento que domina Holanda nestes tempos ps -conclio de trento, na variante generosa ou produtiva (nas palavras de Ficino). da suareligiosidade marcada por um misticismo desconcertante, ser o seu enigmtico c-dice, a sua melhor testemunha. Holanda, como verdadeiro homem do seu tempo,exer ce um papel de ponto de confluncias, onde espiritualidade, f, orao, estudosbblicos, misticismo e neoplatonismo tendem a complementar-se.

    tambm o seu auto-retrato no fim do Livro De Aetatibus Mundi Imagines onde sere presenta na presena das trs virtudes teologais, f, esperana e caridade, segu-rando nas mos este mesmo livro e oferecendo-o malcia do tempo, simbolizadapor um co que abocanha o livro com ferocidade, revela a sua auto conscincia, daqual d por vezes indcios nos seus textos. esta surge aqui materializada numa per-turbadora imagem, que poder representar a sua amargura por, como qualquer ar-

    FrAnCISCO De HOLAnDA e A TeOrIA DA ArTe PS-COnCILIAr

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    Figura 4

    auto-retrato de Francisco de Holanda, De Aetatibus Mundi Imagines, f. 89r

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  • tista, desejar que a sua obra supere o seu tempo, e simultaneamente aperceber-se dequo pouco valorizado e estimado foi o seu trabalho.

    podemos concluir que as vicissitudes que marcam o final da sua vida e as difi-culdades que surgem de uma vigilncia coerciva na produo artstica acabaram porcontribuir para criar em Francisco de Holanda uma desafiante produo tanto te-rica como artstica, onde entre uma vazia obedincia ao modelo tridentino e uma realinteriorizao dos seus modelos (presente na vivncia dos mais puros valores cris-tos e na retirada da vida cortes), este autor produz aqueles que so os textos dasua maturidade e tambm os seus ltimos desenhos, reflexos da melancolia inquie-tante, prpria de um gnio incompreendido.

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