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Cornelius a Lapide, sj (1597-1637) + DEMORA NA CONVERSÃO 1 Tradução por Uyrajá Lucas Mota Diniz Necessidade de não adiar nossa conversão É preciso converter-se, e converter-se logo. É preciso apressar nossa marcha, correr para nossa conversão, diz São João Crisóstomo: Cum opus est, et vehementi cursu (Homil. ad pop.). É preciso dispor-nos prontamente a seguir nossa viagem, porque o caminho é longo e a vida é curta. A vocação 2 de Deus insta-nos; há perigo no adiamento! Não tardes em converter-te ao Senhor, não adies (a tua conversão) de um dia para o outro, diz o 1 O assunto pode ser completado pela leitura do artigo “33 - CONVERSÃO” já publicado (Nota do tradutor) 2 O chamado...

45 - DEMORA NA CONVERSÃO

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Texto de Cornélio à Lápide traduzido da Obra "TESOROS DE CORNELIO Á LÁPIDE" - Tomo I, por Uyrajá Lucas Mota Diniz.

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Page 1: 45 - DEMORA NA CONVERSÃO

Cornelius a Lapide, sj (1597-1637)+

DEMORA NA CONVERSÃO1

Tradução por Uyrajá Lucas Mota Diniz

Necessidade de não adiar nossa conversão

É preciso converter-se, e converter-se logo. É preciso apressar nossa marcha,

correr para nossa conversão, diz São João Crisóstomo: Cum opus est, et vehementi

cursu (Homil. ad pop.). É preciso dispor-nos prontamente a seguir nossa viagem,

porque o caminho é longo e a vida é curta. A vocação2 de Deus insta-nos; há perigo

no adiamento!

Não tardes em converter-te ao Senhor, não adies (a tua conversão) de um dia

para o outro, diz o Eclesiástico: Non tardes converti ad Dominum, et ne differas de

die in diem (Eccli. V, 8). Quem é aquele que, tendo apanhado uma víbora, não a

solta imediatamente? Quem teria em sua casa um inimigo capital, um assassino?

Quem aguentaria sustentar o fogo na mão? O pecado mortal é uma víbora, um

assassino, um fogo devorador. Por conseguinte, assim que o sintamos em nosso

coração, devemos expulsá-lo.

1 O assunto pode ser completado pela leitura do artigo “33 - CONVERSÃO” já publicado (Nota do tradutor)2 O chamado...

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Santo Agostinho declara, com amargas lágrimas, o tempo que tardou em

converter-se: “Ó Formosura, sempre antiga e sempre nova, exclama ele, quanto

tardei em vos amar!” (Lib. Confess.).

Por que, pergunta-nos o Senhor no Eclesiástico, por que vós vos atrasais?

Vossas almas estão ardendo de sede? Qui adhuc retardatis? Animae vestrae sitiunt

vehementer (Eccli. LI, 32).

Aquele que concede perdão, diz Santo Agostinho, abre-vos a porta; o que

aguardais? Deverias vos regozijar se Ele vos abrisse no dia em que vós O

chamásseis. Não chamastes ainda, e já vos abre; e, sem embargo, permaneceis do

lado de fora! Portanto, não vos detenhais. Tende compaixão de vossa alma, e tratai

de agradar a Deus! Dai essa esmola à vossa alma; não vos dizemos que deveis lhe

dar alguma coisa, senão que, pelo menos, não recuseis a Mão que lhe dá3.

PARA CONVERTER-SE É PRECISO...

1º Tempo

Aquele que trata de adiar sua conversão fundamenta-se no tempo que lhe

resta para viver; espera ter ocasião de fazer penitência: duas coisas muito incertas,

e, todavia, duas coisas absolutamente necessárias. Aquele que promete perdão, diz

São Gregório, não promete outro dia ao pecador: Qui poenitenti veniam spopondit,

pecandi diem crastinum non promisit (Homil. XII in Evang.).

Deus vos promete, diz Santo Agostinho, que no dia em que vos converterdes,

há de olvidar os pecados cometidos; porém, Ele jamais vos prometeu outro dia de

vida: Promisit tibi Deus quoniam quo die conversus fueris, obliviscetur mala tua

praeterita; sed numquam vitam crastini diei promisit tibi (Homil. XII, inter 4). Não

conhecemos nosso último dia, a fim de que empreguemos santamente toda a nossa

vida, afirma o mesmo Santo em outra parte (Serm. XXXIX).

3 Ecce indulgentiae dator aperit tibi ostium: quid moraris? Gaudere deberes si aperiret aliquando pulsanti; non pulsasti, et aperit; et foras remanes? Ne ergo differas. Miserere animae tua; placens Deo. Exhibe animae tuaeeleemosynam. Non dicimus ut tu ei des, sed ne repellas manum dantis (Homil.).

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Deus, que promete indulgência ao pecador arrependido, acrescenta aquele

ilustre Padre da Igreja, não prometeu outro dia para quem dilata sua conversão: Qui

poenitenti promisit indulgentiam, dissimulante diem cratinum non spopondit

(Sentent. LXXI).

Não vos glorieis de coisa alguma que deveis fazer no dia de amanhã, dizem

os Provérbios, pois não sabeis o que o dia seguinte dará de si: Ne glorieris in

cratinum, ignoramos quid superventura parial dies (Prov. XXVII, 1). Cada dia

deve estar disposto como se houvesse de ser o último, diz Sêneca: Omnis dies

tamquam altimum ordinandus (Epist. XII).

Não tardes em converter-te ao Senhor, não adies (a tua conversão) de um dia

para o outro, diz o Eclesiástico: Non tardes converti ad Dominum, et ne differas de

die in diem (Eccli. V, 8). Comentando esta passagem, diz São João Crisóstomo:

Ninguém sabe o que o espera no dia que ainda não amanheceu; há perigo em

demorar, e devemos temer agir assim! A salvação não é certa e nem segura, razão

pela qual não seja adiada: Nescit quid paritura sit superventura dies; periculum

enim et metus est in differendo, salus vero certa et secura, si nulla sit dillatio

(Homil. II, in Epist. II ad Cor.).

O pecador diz: “Amanhã! Amanhã, converter-me-ei”: Cras, Cras, convertar!

Este adiamento, observa-o Santo Agostinho, mata a muitos; dizem “Amanhã!,

Amanhã!” e a porta se lhes fecha inesperadamente; ficam de fora, dando gritos de

corvo, porque não souberam gemer com a pomba4.

Filhos rebeldes, convertei-vos a mim, diz o Senhor por boca de Jeremias:

Convertemini, filii, revertentes, dicit Dominus (Jer. III, 14).

É preciso apressar-nos a empregar os meios que Deus nos dá para nossa

conversão, temerosos de que nos falte o tempo, se tardamos, diz Santo Agostinho5.4 Ipsa res est quae multos occidit, cum dicunt: Cras, cras: et subito ostium clauditur; remansit foris cum voce corvina qui non habuit gemitum columbinum (Serm. XVI de Verbis Dom.).5 Remedia conversionis ad Deum nullis cunctationibus sunt differenda, ne tempus correctionis pereat tarditate (Sentent. LXXI).

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Estai atentos, acrescenta aquele grande Doutor, e compreendei que é preciso

que não nos descuidemos de trabalhar a vinha do Senhor, nem confiemos em que

temos de receber a recompensa se somente começamos ao meio dia, ou quase ao

terminar a jornada. Se Ele nos prometeu, em verdade, o pagamento, proibiu-nos,

entretanto, de ser retardatários. O que haverá de dar e o que haverá de fazer o dono

da vinha? Isto preocupa a ele! Quanto a vós, acudi quando sois chamados. Não

quereis trabalhar cedo, e ignorais se vivereis até às onze horas! Chamam-vos às

seis? Acorrei. Porque despedis Aquele que vos convida? Estai seguros do salário,

afirmo isso. Porém, não estejais seguros do dia. Tende cuidado de não vos privar,

com vossa demora, daquilo que vos está prometido, se vos apressardes (Serm.

LXXXVII de Verbis Evang.).

O pecador que adia sua conversão contando com o tempo, imita a temeridade

de Pedro, a quem Jesus Cristo disse: Pedro, tu me renegarás. – Não, Senhor, eu não

vos renegarei...

Jesus Cristo disse-nos formalmente a todos: Se não vigiais sem cessar, Eu

vos surpreenderei. E atrevemo-nos a responder-Lhe: Não, Senhor, dormiremos a

nosso gosto, e Vós não nos surpreendereis; porque estaremos prevenidos; e quando

quisermos voltar a Vós, uma Confissão feita com pressa no momento da

enfermidade, ou à véspera do dia da morte, salvar-nos-á de vossa Ira.

O quê...? O Filho de Deus declarou que a ciência do tempo e dos instantes

concedidos ao homem é um dos segredos mais secretos que o Pai reservou a Si: Non

est vestrum nossse tempora ver momenta quae Pater possuit in sua potestate (Act. I,

7). E queremos nós descobrir este impenetrável segredo; e fundaremos nossas

esperanças em um ponto oculto que se esconde completamente a nossos

conhecimentos! Enganamo-nos e, zombando-nos, seduzimo-nos grosseiramente a

nós mesmos!

Não vos fieis do tempo que vos engana, é um perigoso impostor; rouba-vos

sutilmente, e não vos apercebeis de seu roubo. Por conseguinte, não conteis os dias

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que Deus vos pode dar, senão apenas aqueles que Ele vos pode tirar; não

considereis somente que Deus pode vos perdoar, senão que também pode vos

castigar. Não fundeis a vossa esperança nem se baseie o vosso porvir em uma coisa

oculta.

O pecador que adia sua conversão, porque conta com o tempo, trata de se

enganar; e o tempo ajuda-o em seu engano. Não adverte que o tempo passa

rapidamente; porque, ainda que eternamente varie, quase sempre apresenta o

mesmo aspecto. Somente os longos anos descobrem a impostura do tempo. A

debilidade, os cabelos grisalhos, a alteração visível do temperamento, forçam-nos a

notar que uma grande parte de nosso ser evaporou-se e aniquilou-se; porém, o

tempo, para enganar-nos, despoja-nos pouco a pouco, e leva-nos tão docemente aos

extremos opostos, que chegamos a eles sem os perceber. Assim é que a malignidade

do tempo faz correr insensivelmente a vida; e não pensamos em nossa conversão.

Caímos, de repente, e sem acreditar, nos braços da Morte, e somente sentimos nosso

fim quando o tocamos (Bossuet, Sobre a necessidade de trabalhar para nossa

salvação).

Até quanto, filhos dos homens, exclama o mesmo bispo, deixareis agravar

vossos corações? Até quando vos deixareis enganar pela ilusão do tempo? Quando

reconhecereis de boa fé que a vida é curta? Quereis aguardar o último suspiro? Mas

em qualquer estado em que vos acheis, vossa idade já está em flor.

Em sua força, o Apóstolos diz a todos que o tempo se aproxima. Os dias

empurram-se uns aos outros: adiamos nossa conversão, e, ao final, não a

encontramos.

“Ainda temos tempo... pequemos ainda mais”: aí está o escolho em que se

perdem os temerários. E, sem embargo, o último dia está oculto (Ibid.).

Nada depende menos do homem que o tempo futuro; é, pois, uma cegueira

terrível diferir nossa conversão, contando com o tempo. Ter segurança naquilo que

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está absolutamente fora de nosso poder é a mais insígne loucura: a loucura que tem

consequências mais impressionantes e irreparáveis.

O tempo compõe-se do passado, do presente e do porvir; o passado já não

existe; o presente voa e desaparece, e o incerto porvir, todavia, não chegou. Talvez

não chegue para nós; porém, se chega, desde aquele mesmo momento, não mais

existe.

Assim, pois, se ouvires hoje a voz do Senhor, diz o Salmista, guardai-vos de

endurecer vossos corações: Hodie, se vocem ejus audieris, nolite obdurare corda

vestra (Psalm. XCIV, 8).

Que faz o pecador que demora a converter-se? Dá a Deus um tempo que há

de chegar, um tempo que o pecador não tem, que não lhe pertence, que talvez não

terá nunca como um tempo no qual não poderá se converter; porque, diz

Bourdaloue, somente podemos nos converter no tempo presente; e o pecador

emprega para si o presente; tem o tempo presente, e jamais o dá a Deus. Jamais quer

se converter no tempo em que sempre se pode, que é a hora atual; mas insiste

sempre em o querer fazer no tempo em que nunca pode, que é o dia de amanhã.

Se aquele que vos deve uma grande quantidade de dinheiro dissesse, quando

lho cobrais, amanhã te pagarei, e sempre desse a mesma resposta, deixaríeis de

cobrar? Contentar-vos-ia com esse “amanhã”? Logo, faríeis ver que o devedor

zomba de vós. Eis aqui, pois, a conduta daqueles pecadores que sempre retardam o

momento de sua conversão.

“Para amanhã os negócios!” dizia um rei cego e entregue à suas paixões e

às de seus cortesãos. Ora, aconteceu que o assassinaram naquela mesma noite. Para

que, rei estúpido, guardas para amanhã os negócios? O mesmo dizes também, ó

pecador: “Amanhã converter-me-ei”; e esta noite, dentre de uma hora, dentro de

um instante talvez, Deus pedirá tua alma! Aguarda, pois, o amanhã para tratar o

negócio de tua salvação, e verás o resultado!

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Tudo é incerto no tempo que está por vir: sua existência, sua duração, suas

condições: é um abismo de incerteza e de obscuridade; e, sem embargo, continuais

dizendo: “Amanhã, eu me converterei,... amanhã tratarei do importante negócio de

minha salvação! É certo que sou pecador; sendo assim, é também certo que tenho

necessidade de fazer penitência, que necessito de uma penitência certa; e tomo o

futuro, que é muito duvidoso, para dedicar-me a esta penitência, da qual não me

posso dispensar!

Se hoje ateia-se fogo em vossa casa, aguardareis até amanhã para pedir

socorro e apagá-lo? Se caís hoje na correnteza de um rio aguardareis até amanhã

para sair do conflito?

Senhor, diz o pecador, retardando sua conversão, Senhor, sois meu Deus,

meu Amor, e quereis que eu volte hoje para Vós; porém, Senhor, tende paciência,

eu quero dar ao mundo, aos prazeres e ao demônio o meu corpo, meu coração,

minha alma, minha salvação e minha eternidade, entretanto, somente por algum

tempo. Quero lhes dar minha juventude e a idade viril; então, dar-vos-ei minha

velhice, meus cabelos brancos e os surrados restos de minha vida. Estou certo de

que Vós vos contentareis com isso, Senhor, porque sois muito bom. Que insulto?

Não equivaleria isso a imitar aos flageladores de Jesus Cristo? Não seria isto cuspir-

Lhe o rosto, dar-Lhe bofetadas, acoitar-Lhe etc.? E, contudo, desejais, ó pecadores

insolentes e loucos, que Deus sofresse semelhantes ultrajes, e que, depois de uma

vida tão criminosa, Ele vos desse a coroa da vida prometida tão somente aos que

legitimamente combatem!

Quantas almas perderam o dia de amanhã! E ainda quando tivésseis este dia,

saberíeis aproveitar-vos dele para vos converterdes? Não!

Porque não começais hoje? Temeis que vossa penitência seja demasiado

demorada por um dia? Sois criminosos, e quereis seguir sendo-o! Sempre quereis

tempo, e sempre o perdeis!

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Contais com o tempo para vos converter. Ah! Temerários, tereis, tereis

tempo bastante? Tereis tempo favorável? Tereis tempo de abrir, enfim, os olhos,

fazer uma boa Confissão e arrepender-vos? Tereis sempre à vossa disposição todos

os meios necessários para vos converter? Assim, pois, é um grave erro contar com o

tempo que é tão incerto, e retardar o momento de converter-se.

PARA CONVERTER-SE É PRECISO...

2º A graça

Somente o tempo, ainda que supondo que o tivéssemos, não basta para levar

a cabo uma conversão. Pecando mortalmente, matamo-nos para a eternidade. E um

morto não pode se ressuscitar a si mesmo. A morte do pecado é eterna por sua

natureza; e não pode o pecador voltar por si mesmo à vida. Para operar semelhante

prodígio, o maior de todos os prodígios, é necessariamente preciso a mão do

Onipotente, a graça eficaz.

Deus é a própria Bondade; nossa confiança Nele deve ser grande,

inquebrantável. Porém, não se deduz disso, diz o célebre Bourdaloue, que tenhamos

direito a contar com Ele, ainda mais se em prejuízo Seu. É certo que sua bondade

jamais poderá servir de fundamento à nossa temeridade. Mas, este é, sem embargo,

o falso princípio, porque por ele o pecador se lisonjeia de conseguir, um dia, a graça

da penitência. Prometer-se esta graça para manter-se no costume do pecado é

querer:

1º que Deus seja fiel àquele que O despreza;

2º é querer que Deus seja fiel, à expensas de sua glória, de seu serviço e de

seus interesses, e volte contra Si as próprias armas;

3º é querer Lhe atacar e combater-Lhe com o mais amável de todos os Seus

atributos, que é sua Misericórdia; e

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4º finalmente, é querer que Sua fidelidade torne-O prevaricador e promotor

de nossa iniquidade, apesar de ser Deus quem É.

Explicando...

1º É querer que Deus seja fiel aquele que o despreza; porém Deus disse: Ai

daqueles que me desprezam! Não vos desprezarei Eu mesmo, por minha vez?

Vae, quis pernis! Nonne et ipse sperneris? (Isai. XXXIII, 1). Desprezais a

Deus, pecadores, quando, resistindo a suas inspirações, continuais a cadeia

de vossas iniquidades; quando, depois de Ele haver chamado à porta de vosso

coração, vós a mantendes constantemente fechada etc. Deus vos abandonará

a vossa própria sorte.

2º diferir a conversão contando com a graça, é querer que Deus seja fiel à

despeito de seus interesses. Com efeito, nós queremos converter-nos quando

sejamos um descarte do mundo etc. É assim como há de se tratar a um Deus?

É assim como haveremos de atrair-nos e merecer Sua graça?

3º Adiar nossa conversão contando com a graça, é atacar também a

misericórdia de Deus. Como? Não o vês? Pecar contra Deus porque Deus é

bom; não parar de O ultrajar. Aguardar e dizer: Não quero, todavia, mudar de

vida, porque Deus é misericordioso... ainda tenho tempo... Isso não é zombar

Dele? Se Ele fosse inflexível, apressar-nos-íamos em deixar o pecado e a

voltar a Ele; e, contudo, sendo Bom, temos adiado! Não é justo e muito

natural que um coração que assim zomba da graça, esgote seus mananciais,

para abrir a si, de repente, os mananciais das vinganças? (Bourdaloue, Sobre

a demora na conversão).

4º adiar a conversão porque contamos com a graça, é querer que Deus torne-

se promotor e cúmplice de nossas desordens. Com efeito, nós quereríamos

um Deus cego, insensível, débil, que deixasse impune o pecado e nos

permitisse o deleite, a ira, a intemperança, o esquecimento e a infração de

suas leis (Bourdaloue, Sobre a demora na conversão).

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É preciso nos servir da graça quando Deus a oferece. De outra sorte, não

conseguiremos mais que justiça!

Santo Efrém diz: Ninguém vende suas mercadorias depois de encerrada a

feira; e o soldado que não aparece no campo de batalha senão depois de findo o

combate, não receberá a coroa, nem louvores; antes, pelo contrário, é desprezado e

condenado. Aquele que aguarda para se converter na hora da morte, não é mais que

um soldado covarde que merece somente o desprezo de Deus e sua condenação

(Trat. de Morte).

Contais com a graça; porém, quanto mais tardais em vos converter, mais

obstáculos lhe opondes, multiplicando vossos pecados e aumentando vosso

endurecimento; e quanto mais obstáculos vós opondes à graça, menos deveis contar

com ela!

PARA CONVERTER-SE É PRECISO...

3º a vontade

O pecador que adia sua conversão não pode contar com o tempo, nem com a

graça. Com que poderá contar? Com sua vontade? Façamos-lhe ver que esta

esperança não é menos enganadora que as outras.

É um efeito do pecado, diz Bourdaloue, que nem sequer possa o homem

assegurar-se de sua própria vontade. De todas as coisas mundo é a mais deveria

estar sob seu poder, e, entretanto, é aquela de que menos ele pode dispor. Melhor

podermos contar com a graça que com a própria vontade; porque os socorros de

Deus partem de um princípio imutável, enquanto a nossa vontade inclina-se

perpetuamente às mudanças. Deus quer uma vontade iluminada, firme e eficaz; e

nós, muitas vezes, nem sequer sabemos o que queremos (Bourdaloue, Sobre a

demora na conversão).

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“– Quereis vos converter um dia, ou perecer desgraçadamente na

impenitência? A partida final liga-vos com o Inferno, e naquilo que quereis.

Quereis, pois, vos converter?”

“– Porém, converter-se é arrepender-se e mudar de vida!”.

“– Se quereis vos converter um dia, porque não hoje?

“– Eu bem quisera que fosse hoje, porém, não posso – dizeis – tenho tal

empresa, tal ou qual negócio etc.!”.

“– Quereis, pois, cultivar e lisonjear alguma paixão, crendo que tereis

vontade de arrepender-vos? Quem já ouviu falar de tal prodígio alguma vez?”

“– Porém, não posso eu dispor de minha vontade?”

“– Sim. E isto é o que nos deve fazer tremer, porque de vós depende... e se

vossa vontade é hoje tão ligeira, tão pouco resoluta, tão caprichosa; hoje, que sois

menos pecador, menos escravo, e estais menos comprometido etc... Se não vos

quereis converter, todavia, vós o podereis querer mais tarde, quando mil obstáculos

novos se oponham a isso? Que absurda contradição! Vós o quereis, sereis mais

fortes, e vos achareis mais dispostos, quando as paixões vos dominarem

inteiramente, e uma cadeia de iniquidades mais abrangente, mais forte e mais

pesada vos subjugar dos pés à cabeça? Quando há somente algumas quedas, vós

titubeais; que fareis, pois, quando o costume vos possuir? Que loucura deixar que

se fortifique um inimigo a quem podemos vencer atualmente, e que será

provavelmente invencível mais tarde!

Dois obstáculos, quase invencíveis, impedem-nos de ser donos de nossa

vontade: a inclinação e o hábito.

A inclinação faz o vício amável; o hábito o faz necessário. Não temos em

nosso poder o princípio da inclinação, nem o fim do costume. A inclinação

acorrenta-nos e lança-nos em um cárcere; o costume afunda-nos nele, fecha a porta

e a janela, para não deixar nenhuma saída.

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Adulamo-nos de poder vencer tal costume, de poder sair, quando o

queiramos, do triste estado do pecado... Que ilusão, que erro!

Com um antigo costume, arraigando-se o crime no coração, a alma não faz

mais que débeis e vãos esforços para levantar-se; e tornando sempre a cair sobre

suas próprias chagas, sente-se tão extenuada, que a mudança de seus costumes e o

seu retorno ao caminho reto, os quais achava tão fáceis, começam a parecer-lhe

impossíveis.

Assim é que esta conversão, que, embora não a querendo, vos convenceis de

levardes a cabo mais tarde, vós a querereis no porvir ainda menos do que agora. Se

não quereis vos converter agora, quando estais ligados por débeis laços, vós o

querereis quando vos achardes ligados com indissolúveis laços, e quando tenhais

perdido vossas forças e os mil meios que hoje tendes, e mais tarde não os tereis?

Por outro lado, jamais podereis ter vontade de vos converter se Deus não vos

ajudar a inclinar esta vontade depravada e endurecida, até alcançardes a vossa

salvação. Deus porventura tornou-Se vosso devedor de tal auxilio? Ele vo-lo

concederá? Vós o mereceis depois de O terdes crucificado todos os dias? E se Deus

Se retirar, não estará tudo perdido para vós? Se Deus Se retirar, jamais voltareis a

ver nem encontrareis vossa pretendida vontade que hoje se retira. Desprovidos,

então, de tempo, de graça e de vontade, vivendo sem Deus, morrereis sem Deus,

morrereis na impenitência final, e o Inferno será o prêmio terrível, muito merecido,

enfim, pela fatal demora em vossa conversão.

Desgraças que a demora na conversão ocasiona

Pecadores, vós que evitais vossa própria conversão, não escapareis dos

terríveis e justos castigos do Céu...

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Qual é o Deus, pergunta Santo Agostinho, que pareça para vós tão

misericordioso, que não vejais Nele sua Justiça? Quando tiverdes amontoado

tesouros de Ira para o dia das vinganças, não achareis a justiça Daquele cuja

bondade haveis desprezado? Non sic tibi videatur Deus misericors, ut non videatur

et justus. Cum tibi thesaurizaveris iram in die irae, nonno experieris justm quem

contempsisti benignum? (Serm.).

Deus é paciente porque é eterno. Porém, como disse São Jerônimo, a flecha é

arrojada com tanto mais vigor quando mais esticada estiver a corda do arco; assim

sucede com o juízo de Deus: quanto mais adiado parece, mais tremendo será no

Juízo, para o pecador obstinado e endurecido: In arcu quanto longius trahitur

chorda, quanto de eo districtior exibit sagitta, sic exremi judicii dies, quanto

longius differtur ut veniat, tanto, cum venerit, de illo districtior sententia procedet

(Comment. in Espist. ad Rom.).

A cólera divina avança a passos lentos para exercer a vingança, diz São

Lourenço Justiniano; porém, compensa o adiado castigo com a gravidade do

suplício: Lento gradu ad vidinctam tui procedit ira divina; tarditatemque supplicii

gravitae compensat (In Ligno Vitae, c. IV).

O Altíssimo, acrescenta aquele Santo, é paciente para castigar; porém,

condena mais severamente, por não se haverem convertido, aqueles que Ele espera

por longo tempo para que se convertam. E, quanto mais Ele os aguarda, a fim de

que se corrijam, com menos misericórdia os julgará por não terem querido mudar

de vida6.

Não vos queirais enganar a vós mesmos, diz São Paulo aos Gálatas: Deus

não pode ser zombado: Nolite errare; Deus non irridetur (Gal. VI, 7). Não digais:

Ó, a misericórdia do Senhor é grande; Ele perdoará nossos muitos pecados. Porque

tão prontamente como exerce sua misericórdia, exercerá sua indignação; e, com

esta, Ele tem fixos Seus olhos sobre o pecador7.6 Altisimum enim est patiens redditor; quia , quos diu, ut convertantur, tolerat, nom conversos durius damnat; et quanto expectat ut emmendetur, tanto gravius judicabit, si neglexerint (Ut supra). 7 Et ne dicas: Miseratio Domini magna est: multitudinis peccatorum meorum miserebitur. Misercordia enim et ira ab illo cito proximant, et in peccateores respicit ira illius (Eccli. V, 6-7)

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Não confieis em vossas riquezas para prescindir de Deus, e não digais: Tenho

tudo aquilo de que necessita minha vida; porque basta isso para vos condenar no

tempo da vingança.

Tendes com que viver; porém, tendes com o que morrer? De que serve ao

homem, diz Jesus Cristo, o ganhar o mundo inteiro se vier a perder a sua alma?

Quid prodest homini si mundum uiversum lucretur, animae vero usa detrimentum

patiatur? (Matth. XVI, 26). De que serviram ao ímpio Baltasar suas riquezas e

grandezas quando foi pesado e considerado demasiado leve para o Céu? Appensus

est in statera, et inventus est minus habens (Dan. V, 27).

Não sigais, achando-vos com força, os maus desejos de vosso coração; nem

digais tampouco: “Que poderoso sou!” ou “Quem me obrigará a dar contas de

minhas ações?” Porque o Deus vingador Se fará justiça. Não digais: Pequei, e que

mal me sucedeu? Não tardeis em vos converter ao Senhor, e não adieis isso dia após

dia; porque Sua ira virá de repente; e, no dia da vingança, vos perderá8.

Pecadores impenitentes, escutai estas terríveis palavras do Apóstolo das

Nações: Desprezais as riquezas da bondade de Deus, de sua paciência e de sua larga

tolerância? Ignorais que a bondade de Deus vos convida à penitência? E, sem

embargo, pela dureza de vosso coração e por vossa falta de arrependimento,

amontoais um tesouro de cólera para o Dia da Ira e da manifestação do justo juízo

de Deus, que dará a cada qual segundo suas obras, premiando com a vida eterna

aqueles que, com a perseverança das boas obras, buscam a glória, a honra e a

imortalidade; porém, sobre os espíritos de contenda e de obstinação, que não

obedecem à verdade e creem na iniquidade, cairão a ira e a indignação, a tribulação

e a angústia9.

8 Ne sequaris in fortitudine tua concupiscentiam cordis tui, et ne dixeris: Quomodo potui? aut Quis me subjiciet propter facta mea? Deus enim vindicans vindicabit. Ne dixeris: Peccavi, et quid mihi accidit triste? Non tardes converti ad Dominum, et ne differas de die in diem. Subito enim veniet ira illius, et in tempore vindictar disperdet te (Eccli. V, 2-9).9 An divitias bonitatis ejus, et patientiae, et longanimitatis contemnis? Ignorans quoniam benignitas Dei ad paenitentiam te adducit? Secundum autem duritiam tuam et impoenitens cor, thesaurizas tibi iram in die irae et revelationis iusti iudicii Dei, qui reddet unicuique secundum opera ejus. His quidem, qui secundum patientiam boni operis, gloriam, et honorem et incorruptionem quaerunt, vitam aeternam; iis autem qui ex contentione, et qui non adquiescunt veritati, credunt autem iniquitati, ira et indignatio, tribulatio et angustia

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Pecadores, ó vós que diferis vossa conversão, não vos lisonjeeis da

impunidade que pareceis desfrutar; com um Deus tão justo, nada fica sem

recompensa ou castigo. Ademais, a impunidade atual da qual vos gabais é o mais

terrível castigo que Deus pode vos impor; porque esta impunidade atual e aparente é

a cegueira espiritual e o endurecimento do coração; castigos quase tão terríveis e

tremendos como os mesmos fogos do Inferno.

Mesmo que não veja nem sinta nenhuma pena, a alma pecadora convence-se,

diz Santo Agostinho, de que Deus não a julga. Enquanto que, pelo contrário, abusar

da paciência de Deus, e não querer compreender a bondade Daquele que não nos

castiga no momento, já é uma espantosa condenação10.

Deus, diz Boécio, é muito paciente; parece que não nota as atrozes ofensas e

as blasfêmias dos pecadores, pois é onipotente em Si mesmo e em todas as coisas;

porque a paciência é a potência em ação; enquanto que a impaciência é sinal de

impotência (Lib. III. de Consolat.).

Deus reina nos homens somente de duas maneiras: reina nos pecadores

convertidos, porque se submetem voluntariamente; reina nos pecadores

condenados, porque os submete, a seu pesar. Naqueles há um reino de paz e de

graça; nestes, um reino de rigor e de justiça; porém, em todas as partes há um reino

soberano de Deus, porque os convertidos praticam o que Deus manda, e os

condenados sofrem o suplício que Deus lhes impõe. Deus recebe homenagens dos

primeiros, e faz justiça aos outros.

Pecadores a quem Deus chama à penitência, e ainda resistis à Sua voz, vós

vos achais entre dois extremos; não fazeis nem sofreis aquilo que Deus quer,

desprezais a Lei, e não sofreis a pena; desprezais o atrativo, e não vos sobrecarrega

a ira. Desafiais até a Bondade que vos atrai, até a Paciência que vos aguarda: viveis

como donos absolutos de vossas vontades, independentes de Deus, sem

(Rom. II, 4-9).10 Animus sibi male conscius, dum videtur sibi nullam poenam pati, credit quia non judicet Deus cum abuti patientia Dei, et non intelligere parcentis benignitatem, jam sit magna damnatio (Sentent. CXXXVIII).

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observâncias particulares, sem sofrer nada delas, e Ele não reina sobre vós, nem por

vossa obediência voluntária, nem por vossa sujeição forçada. É um estado violento,

eu vo-lo digo, que não pode subsistir por muito tempo. Deus tem pressa em reinar

sobre vós. Vede, com efeito, como Ele vos pressiona.

Quantos doces convites?

Quantas terríveis ameaças?

Quantas secretas advertências?

Quantas nuvens distantes?

Quantas tempestades próximas?

Observai como Ele desconsidera vossas desculpas; não permite nem que isto

termine Seus negócios, nem que aquele outro venha a fechar Seus olhos de Pai

(Luc. IX, 59).

Outro disse-lhe: Eu vos seguirei, Senhor; porém, permiti despedir-me

primeiramente de meus parentes. Jesus respondeu-lhe: Aquele que põe a mão no

arado e volta os olhos para trás, não é apto para o reino de Deus (Luc. IX, 61-62).

Toda tardança é importuna: tanta pressa tem de reinar sobre vós! Se não reina

por sua bondade, está bem;... contudo, mais rápido do que pensais, Ele quererá

reinar por sua justiça, porque Seu é o império, e Se pertence a Si mesmo, e é próprio

de sua grandeza estabelecer logo seu Reino (Bossuet).

Obstáculos na conversão e causas da demora para atendê-la

Há três classes de homens que adiam sua conversão:

1º alguns nunca pensam nela;

2º outros esperam sempre; e

3º os terceiros somente cuidam muito debilmente deste assunto.

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E eis aqui três grandes obstáculos para sua conversão. Estas três classes de

homens desprezam sua verdadeira conversão.

Os primeiros, endurecidos em seus crimes, julgam sua conversão como coisa

impossível, e não cuidam de dedicar-se a ela.

Os segundos iludem-se que a conversão é demasiadamente fácil, e adiam-na

de dia em dia, como obra que estivesse ao alcance de suas mãos, e que a farão

quando bem lhes parecer.

Os terceiros, convencidos do perigo que produzem os adiamentos, começam;

porém, começando com frouxidão, deixam-na sempre imperfeita. Eis aqui três

terríveis defeitos que é preciso evitar e destruir.

Ouvi o que diz Santo Agostinho acerca dos obstáculos que lhe impediam de

converter-se: os vazios dos vazios e as vaidades das vaidades me continham:

Retinebant me ungae ungarum, et vanitas vanitatum (Lib. VIII, Confess., c. XI).

Minhas antigas amigas (os deleites) agitavam minha veste carnal, e diziam-me com

um doce murmúrio: Tu nos abandonarás? E, se assim o fazes, que será de nós sem

ti? E, se assim o fazes, não te será mais permitido isto... nem aquilo...? E que cruéis

eram para mim as palavras isto e aquilo. Ah, Senhor, vossa misericórdia afaste para

longe de minha alma o que aquelas amigas me sugeriam: quantas infâmias tratavam

de inspirar-me, quantas torpezas! Eu as escutava, todavia, um pouco. Não me

faziam guerra frontalmente; porém, elas murmuravam por trás de mim; e, enquanto

eu me afastava, tratavam de fazer-me voltar a cabeça para que, entretanto, as

olhasse. Eu titubeava para arrancar-me delas, sacudir seu jugo, e ir-me aonde Deus

me chamava; elas detinham-me, e o violento hábito me dizia: Pensas que poderás

passar e viver sem elas? Porém, sua linguagem era néscia e fastidiosa para mim11.

11 Antiquae amicae meae succutiebat vestem meam carneam, et submurmurabant: Dimittis ne nos? Et a momento isto inon erimus tecum ultra in aeternum? Et a momento non tibi licebat hoc et istud ultro in aeternum? Et quam suggerebat i eo hoc et istud? Quae suggerebant, Deus meus, avertat ab anima servi tui misericordia tua. Quae sordes suggerebant atque dedecora! Et audiebam eas longe minus quam dimidius, non tamquam libere contradicentes, eundo in obviam, sed veluti a dorso inussitantes, et discedentem quase furtim vellicantes ut respicerem: retardabant tamem me cunctantem abripere atque excutere ab eis, et transiliri quo vocabar, cum diceret mihi consuetudo violenta: Putasne sine istis poteris? Sed jam tepidissime hoc dicebat (Lib. VIII, Confess., c. XI).

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Aquele que conheça as trevas de sua cegueira, diz São Gregório, aquele que

conheça a luz eterna que lhe falta, grite desde o fundo de suas entranhas como o

cego de nascença: Jesus, Filho de Davi, tem piedade de mim! Porém, ouçamos o

que o Evangelho acrescenta falando deste cego que levantava a voz: E aqueles que

O acompanhavam repreendiam-lhe para que se calasse: Et qui praeibant,

increpabant eum, ut taceret (Luc. XVIII, 39).

O que significam aqueles que precedem a Jesus que chega, senão a multidão

de nossos desejos carnais, e o tumulto dos vícios? Antes que Jesus Cristo entre em

nosso coração, estes desejos agitam nosso espírito com tentações, e turbam a voz de

nossa alma na oração. Porém, ouçamos o que fazia, então, aquele cego que desejava

recobrar a vista. Gritava muito mais forte: Filho de Davi, tem piedade de mim!12.

Façamos o mesmo em todas as ocasiões em que queiram nos deter quando nos

dirigimos a Deus (In hoc versu Evang.).

O que temos de fazer para apressar nossa conversão?

Sigamos escutando a Santo Agostinho: Se, por um lado, diz ele, os vazios

dos vazios, as vaidades das vaidades, minhas antigas amigas, o poder do cruel

costume, tratavam de deter-me na escravidão e desgraça; por outro lado, no lugar

para onde voltava meus olhares e onde desejava ardentemente chegar, a esta

dignidade da continência, plena de serenidade e de carícias celestes, instava-me

para que acorresse a ela, tirando-me toda dúvida e vacilação, e alargava-me para

receber e abraçar seus piedosos e santos braços carregados de almas plenas de bons

exemplos. Aqui, apresenta-me uma multidão de jovens e donzelas, uma juventude

numerosa; ali, todas as idades, e respeitáveis viúvas, e todas as virgens, e, em todos,

uma castidade, uma pureza fecundas. Manifestava-se para mim aquela divina

continência como uma mãe fecunda que concebeu e deu vida a esta numerosa

família de eleitos, e ela concebe-os de vós, ó Senhor, de vós, seu divino Esposo. E

zombava de mim com um sorriso de doce exortação, dizendo-me: Então, não hás de

poder tu aquilo que estes e estas podem? Podem eles fazer, por si mesmos, aquilo

que fazem? O Senhor Deus entregou-me a eles para fazer almas para o Céu. Porque

12 Ipse vero multo magis claabat: Filii David, miserere mei (Luc. XVIII, 39)

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titubeias e não te postas solidamente? Lança-te a Ele; nada temas, Ele não se

retirará, não te abandonará para deixar-te cair. Lança-te pleno de segurança e de

confiança em Seu seio; Ele te receberá e te curará. E eu, que escutava ainda as

loucuras e bagatelas, envergonhava-me de minhas vacilações. A continência

prosseguia: Fecha os ouvidos, não atendas a esses membros impuros, a esta carne de

pecado; mortificai-os; falam-te de prazeres mentirosos que não estão vinculados à

Lei do Senhor, e que não são nada, comparados com o prazer do cumprimento desta

Lei. Este combate das paixões contra as virtudes que tinha lugar em mim, era obra

minha contra mim mesmo (Lib. VIII, Confess. c. CXI).

É certo que o pecador que adia sua conversão experimenta o mesmo

combate que experimentava Santo Agostinho, ainda pecador.

Por um lado, a concupiscência, as paixões, os prazeres, a carne, o mundo e o

demônio querem detê-lo; por outro lado, a formosura da virtude, os remorsos, a

Palavra de Deus, as santas inspirações, a graça, o temor da morte, do juízo e do

Inferno, a felicidade do Céu e a duração da eternidade, pressionam-lhe a que se

converta.

Assim, pois, aquilo que temos de fazer é voltar a Deus, é fechar os ouvidos e

o coração à voz enganosa e sedutora da concupiscência, das paixões, do demônio,

do mundo e da carne, e abrir-lhes à voz da virtude, da graça etc.; não titubear, e

querer, com uma vontade firme e decidida, como o filho pródigo, Davi, São Paulo...

Ainda quando os pecadores tenham caído por própria culpa, é preciso não

lhes deixar perecer: tenhamos compaixão deles, demos-lhes a mão. E como é

necessário que os ajudemos também com um grande esforço. Para dar-lhes

suficiente valor, façamos, sobretudo, desaparecer de sua mente a falsa ideia de que

não se podem vencer as inclinações e os hábitos viciosos. Convençamos-lhe de que

sua conversão é possível com a graça e a vontade.

Segundo Santo Agostinho, duas coisas são necessárias para que o homem

possa levar a cabo um empreendimento. É preciso:

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1º que tenha em si mesmo um poder, uma força, e uma virtude proporcionada

à execução; e

2º que o objeto lhe agrade. Com efeito, não podendo operar o coração do

homem sem algum atrativo, pode-se dizer, de certo modo, que aquilo que não

lhe agrada é-lhe, de fato, impossível (Homil.).

Disso decorrem as duas razões que levam a maior parte dos pecadores

endurecidos a desesperar de sua conversão. Primeiramente, seus maus costumes,

tantas vezes vitoriosos de seus bons desígnios, fazem-lhe crer que não há força

contra eles. Logo, supondo que creiam poder vencê-los, esta vida prudente e

moderada que se lhes propõe, parece-lhes insípida, sem atrativo e sem nenhuma

doçura, de maneira que não se sentem com bastante valor para abraçá-la.

Pecadores, a graça do Senhor dá força e poder para vencer as más

inclinações. Ânimo! Esta graça destruirá vossa repugnância, e fará com que leveis

com felicidade uma vida nova.

A boa vontade, a oração, a Confissão, eis aqui os meios que nos guiarão a

Deus, e alcançarão vossa conversão e o perdão. Esses meios dar-vos-ão as delícias

que se experimentam na paz de uma consciência inocente, e eles vos assegurarão a

felicidade do Céu.