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UNIVERSIDADE DO PORTO FACULDADE DE MEDICINA 0 RESPEIT O NO CUIDAD O DE ENFERMAGEM : PERSPECTIVA DO DOENT E TERMINAL . Cristina Maria Correia Barroso Pinto Porto, 2003

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  • UNIVERSIDADE DO PORTO FACULDADE DE MEDICINA

    0 R E S P E I TO NO C U ID A DO DE E N F E R M A G E M: PERSPECTIVA DO D O E N TE T E R M I N A L.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto

    Porto, 2003

  • UNIVERSIDADE DO PORTO

    FACULDADE DE MEDICINA

    O RESPEITO NO CUIDADO DE ENFERMAGEM: PERSPECTIVA DO DOENTE

    TERMINAL

    Dissertao apresentada Faculdade de Medicina da

    Universidade do Porto por Cristina Maria Correia

    Barroso Pinto, sob a orientao da Professora Dr.

    Margarida Vieira para obteno do grau de mestre

    em Biotica e tica Mdica.

    Porto, Fevereiro de 2003

  • UM MUITO OBRIGADO

    Ao Adelino pelo incentivo, amor e compreenso que demonstrou ao longo de todo este percurso

    Professora Dr. Margarida Vieira, orientadora deste trabalho, pela disponibilidade, apoio, estmulo, crtica, tempo dispensado e pelo

    que muito contribuiu para a realizao deste trabalho

    instituio hospitalar e a todos os doentes que contriburam para a concretizao deste trabalho

    Aos colegas, familiares e amigos em particular, pelo apoio, compreenso e incentivo que deram ao longo desta

    caminhada

    Aos colegas e professores do 1 "Curso de Mestrado de Biotica e ticaMdica, pelo esprito de solidariedade, amizade e tempo dispensado

  • RESUMO

    No pressuposto de que toda a pessoa, pela sua dignidade, digna de respeito, apresenta- se o respeito pelo doente terminal como princpio tico a priori a toda a relao de ajuda no acto de cuidar, especificamente no cuidado de enfermagem ao doente. Aps o enquadramento terico da problemtica em estudo, justifica-se o trabalho de investigao realizado, descritivo e de natureza exploratria, em que se pretende conhecer quais as atitudes das enfermeiras que os doentes terminais internados em unidades de cuidados paliativos, valorizam como expresso de respeito pelo sua pessoa. A informao sobre as vivncias dos doentes foram colhidas por entrevista semi- estruturada, a todos os doentes internados no ms de Outubro (20) numa Unidade de Cuidados Paliativos do norte. Da anlise realizada concluiu-se que os doentes valorizam mais atitudes que demonstram Preocupao, Ajuda, Estima, Disponibilidade, Afecto e Segurana. As atitudes referidas pelos doentes incluem-se na rea do respeito pela intimidade e dignidade, pelos direitos e valores das pessoas doentes e so congruentes com resultados de outros estudos nesta rea. Considerando o tipo de estudo e a amostra estudada, os resultados no podem ser generalizados, mas fornecem pistas de desenvolvimento para futuros estudos.

    ABSTRACT

    Having the presupposition that every people, for its dignity, is worthy of respect, respect for the terminal patient is the ethical principle that provides a base for all the help relation, in the act of taking care, specially while nursing the patient. After the theoretical framing of the problem in study, it is justified all the investigation work already done, descriptive and of an exploratory nature, in which is pretended to know which are the attitudes of nurses towards terminal patients staying in palliative care units, value as an expression of respect for its person. Information about experiences of life of patients were collected by semi-structured interviews, done to all of the patients interned during the month of October (20) in a palliative care unit in the north. Of its analysis was reached the conclusion that patients value the most attitudes that show Preoccupation, Help, Esteem, Availability, Affect and Security. The attitudes refereed by patients are included in the area of respect towards intimacy and dignity, towards the rights and values of sick persons and are congruent with results of other studies in this area. Considering the type of study and the sample in which it fell upon, results can not be generalised, but provide clues of development for future studies.

    /

  • (INDICE

    Fis.

    INTRODUO 8

    CAPTULO IAcerca do respeito pela pessoa humana 19

    1 - A Pessoa - Entre a sade e a doena 24

    1.1 - A doena terminal 31

    1.2 - Os cuidados paliativos 40

    2 - O dever de respeito 51

    2.1 - O respeito como princpio tico 53

    2.2 - O respeito como componente da relao de ajuda 59

    2.3 - O respeito no cuidado de enfermagem ao doente terminal 66

    CAPTULO IIAtitudes que manifestam respeito: a investigao realizada 75

    1 - O problema em estudo 78

    1.1 - Reviso da literatura 78

    2.1 - Questo de investigao 84

    2 -Metodologia 86

    2.1 - Tipo de estudo 86

    2.2 - Os sujeitos do estudo 89

    2.3 - Tcnica e procedimento na colheita de dados 98

    2.4 - Tratamento e anlise da informao 104

    3 - Apresentao dos resultados 111

  • 4 - Interpretao dos resultados e concluses 127

    4.1 - Sobre o respeito pela intimidade e dignidade da pessoa 128

    4.2 - Sobre o respeito pelos direitos e valores da pessoa 134

    CONCLUSO 140

    BIBLIOGRAFIA 147

    ANEXOS 160

    Anexo I - Guio da Entrevista

    Anexo II - Autorizao para efectuar a colheita de dados

    Anexo III - Ficha de Sntese da Entrevista

    Anexo IV - Matrizes de codificao global

  • NDICE DE QUADROS

    Quadro 1 - Distribuio dos doentes por sexo

    Quadro 2 - Distribuio dos doentes por grupo etrio

    Quadro 3 - Distribuio dos doentes por estado civil

    Quadro 4 - Distribuio dos doentes por habilitaes literrias

    Quadro 5 - Distribuio dos doentes por profisso

    Quadro 6 - Distribuio dos doentes por religio

    Quadro 7 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pelas diferentes categorias e suas subcategorias e sub- subcategorias

    Quadro 8 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Segurana

    Quadro 9 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Estima, subcategoria: Valor da Pessoa como Ser nico

    Quadro 10 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Estima, subcategoria: Valor da Pessoa como Ser Autnomo

    Quadro 11 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Disponibilidade, subcategoria: Dar Tempo

    Quadro 12 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Disponibilidade, subcategoria: Prontido de resposta

    Quadro 13 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Ajuda, subcategoria: Psicolgica

    Quadro 14 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Ajuda, subcategoria: Nas Actividades de Vida

    Quadro 15 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Preocupao pelas Necessidades Individuais da Pessoa, subcategoria: Necessidades Fsicas, sub-subcategoria: Ambiente Calmo

    Quadro 16 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Preocupao pelas Necessidades Individuais da Pessoa, subcategoria: Necessidades Fsicas, sub-subcategoria: Nutrio

  • Quadro 17 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Preocupao pelas Necessidades Individuais da Pessoa, subcategoria: Necessidades Fsicas, sub-subcategoria: Dor

    Quadro 18 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Preocupao pelas Necessidades Individuais da Pessoa, subcategoria: Necessidades Segurana, sub-subcategoria: Informao

    Quadro 19 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Preocupao pelas Necessidades Individuais da Pessoa, subcategoria: Necessidades Segurana, sub-subcategoria: Conforto

    Quadro 20 - Frequncia das Unidades de Registo e Unidades de Enumerao pela categoria: Afecto

    Quadro 21 - Distribuio dos entrevistados pela categoria que consideram ser a mais importante como manifestadora de respeito

  • INTRODUO

  • INTRODUO

    A segunda metade do sculo XX, mais concretamente a partir do termo da II Guerra

    Mundial1, assistiu ao emergir e consolidao da reflexo biotica em todas as reas

    sociais e do conhecimento, assumindo-se como relacionada no " vida tomada na sua

    espontaneidade [...] mas vida artifwializada ou artificializvelpela aco humana, a

    vida que se encontra sob o poder (ou controlo) do homem" como afirma Maria do Cu

    Patro Neves2. De facto, como refere a autora, foi o "progresso avassalador" no campo

    cientfico e tecnolgico, com consequncias frequentemente dramticas, que fizeram

    surgir a conscincia da existncia de limites.

    Mas se as questes da biotica surgem em todas as reas em que a cincia e a

    tecnologia interferem com a vida, so as questes da rea da sade que mais nos

    ocupam e preocupam, no s os profissionais de sade mas como tambm os cidados

    em geral.

    Marie Franoise Collire, afirma: "...desde que existe a vida que existem cuidados

    porque preciso "tomar conta" da vida para que ela possa permanecer. Os

    homens[...] sempre precisaram de cuidados, porque cuidar, tomar conta, um acto de

    vida"3. De facto, se cuidar dos outros seres humanos um acto natural, tal no acontece

    1 A maior parte dos tericos e historiadores da Biotica esto de acordo em situar a sua origem na redaco do Cdigo de Nuremberga, em 1947.2 NEVES, Maria do Cu Patro (coord.) - Comisses de tica: das bases tericas actividade quotidiana.2a Ed., Coimbra: Grfica de Coimbra em colaborao com o Centro de Estudos de Biotica/Plo Aores, 2002, p. 29.3 COLLIRE, Marie-Franoise - Promover a Vida, Lisboa: Lidei Edies Tcnicas Lda., Maro, 1999, p.27.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 9

  • INTRODUO

    nos cuidados profissionais da rea da sade: o cuidado no surge aqui como um acto

    natural, mas como um acto profissional .

    No se pode falar de cuidados de sade sem identificar primariamente a sua

    centralidade - a pessoa humana - e o contexto que lhe d todo o sentido, a sua real

    significao - a vida, ou mais exactamente, todo processo de viver, cuja ltima fase a

    morte.

    Os cuidados de sade no so fruto de uma mera intuio, por muito que tenham de

    arte, nem to s de um mero saber tcnico e cientfico que despreza tudo o que excede

    o prtico, o imediato. Se este desprezo existir, s poder ser fruto da ignorncia de

    algo estritamente necessrio a qualquer profisso na rea da sade: o

    reconhecimento da totalidade da pessoa humana a quem os cuidados se dirigem. A

    esse respeito Cidlia Frias diz-nos: "'...de facto, podemos especializar-nos, mas as

    pessoas que nos procuram, quer estejam em situao de doena ou no, nunca nos

    chegam com o corpo separado do esprito'''''.

    A experincia parece mostrar que o encontro entre qualquer profissional de sade e o

    doente se caracteriza por ser assimtrico, isto , um encontro em que ambos os

    intervenientes tm papeis desnivelados e explicitamente definidos: o primeiro o de

    prestador de cuidados, o segundo o de beneficirio desses cuidados - algum que tem o

    poder de ajudar e outro que precisa de ajuda. Por outro lado, sabemos que cuidar

    implica uma interaco, uma reciprocidade, ou seja, implica que o cuidador profissional

    que ajuda o outro no seu processo de crescimento e de actualizao, esteja tambm

    sujeito a um processo de afectao. Nesta perspectiva, o cuidar pode ser vivido como

    uma forma de dar sentido e significado vida daqueles que nele intervm.

    A representao mental de cada um dos pacientes sobre os fenmenos vivenciados, vai

    4 Madeleine Leininger, enfermeira e antroploga, define o cuidado profissional como "os comporta mentos, tcnicas e processos cognitivos e culturalmente aprendidos, que permitem a um indivduo, famlia ou comunidade, melhorar ou manter uma situao ou modo de vida, mais favorvel e saudvel" LEININGER, Madeleine - Caring: an essential human need (Proceedings of the three Nacional Caring Conferences), Detroit: Wayne State University Press, 1988, p.9.5 FRIAS, Cidlia - A espiritualidade: uma dimenso a valorizar no cuidar da pessoa em fim de vida.Servir, Lisboa, 49 (6), Novembro-Dezembro, 2001, p.263.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 10

  • ," INTRODUO

    influenciar a relao a estabelecer com os profissionais de sade, nomeadamente com

    os enfermeiros, com quem passam todo o tempo de internamento. Sabemos que

    esta representao culturalmente definida, quer pela histria pessoal vivida, quer

    pelos valores culturais e pelas relaes sociais existentes.

    J em 1952, Peplau6 demonstrou dever existir um realce na vertente cognitiva e

    comportamental da empatia teraputica, na relao interpessoal inerente aos cuidados de

    enfermagem. No entanto, foi desvalorizado o envolvimento emocional que, segundo

    Morse et ai., lhe permite no s o reconhecimento imediato da situao de sofrimento

    do cliente, mas tambm uma resposta reflexiva, ainda que sem premeditao, que se

    verifica ser sempre apropriada para o alivio do sofrimento e a manuteno ou aumento

    de conforto .

    O cuidar inserido nas experincias participadas da enfermeira e do doente, sendo

    fundamentadas por essa experincia mtua e estabelecidas no seu seio . E ento,

    exigido enfermeira um envolvimento, uma preocupao com cada um daqueles a

    quem se presta cuidados, exigindo-lhe a solicitude que "d ao outro o poder de ser

    aquilo que ele quer ser, e isto o objectivo ltimo das relaes de cuidar em

    enfermagem"

    Este tipo de relao da enfermeira face ao doente no se aprende s nos livros, mas

    sobretudo atravs da experincia de relao intersubjectiva; Na medida em que cuidar

    afecta as pessoas envolvidas, este fenmeno permanentemente uma questo tica. E

    nesta ltima perspectiva do cuidar que nos situamos e a procura das suas implicaes

    na prtica de enfermagem que nos move na elaborao deste trabalho - tambm porque

    apenas considerando a exigncia tica do cuidar se faz emergir a existncia de um agir

    tico, pleno de responsabilidade pessoal.

    6 Cf. PEPLAU, Hildegard - The interpersonal relations in nursing. New York: G. P. Putman Sons,19527 Cf. MORSE, J anice et al. - Beyond empathy: expenthy expressions of caring. Journal of AdvancedNursing, Oxford, n17, July, 1992, p.810-820.8 Cf. BENNER, Patricia; WRUBEL, Judith - The primacy of caring stress and coping in health and illness, Menlo Park-Addison: Wesley Publishing Company, 1989, p.49.9

    Idem.

    .

    '

    -

  • INTRODUO

    Em qualquer exame atento, o respeito emerge como um aspecto fundamental e essencial

    da prtica de cuidados. O substantivo "respeito" em geral definido como prestar

    particular ateno, alta ou especial considerao; como um verbo, "respeitar"

    considerar o outro merecedor de estima, conter-se de interferir, preocupar-se .

    O respeito encontrado na literatura relativa a tica e valores humanos, onde

    considerado um princpio tico primrio. Alguns autores descrevem o respeito como a

    atitude moral central a partir da qual todos os outros princpios morais so explicados.

    Outros vm o respeito como um valor humano que representa justia, honra e dignidade

    humana. Existe ainda quem resuma a perspectiva de Kant de respeito como um "

    princpio de humanidade" que reconhece os humanos como agentes autnomos que por

    natureza tm valor intrnsecos inerentes. Outros consideram o respeito como o valor

    essencial dos direitos humanos e definem-no como uma inter-relao entre humanos na

    qual eles reconhecem reciprocamente e honram a liberdade de escolha, mrito como os

    humanos e oportunidade para igualdade11. Estas definies de respeito reflectem os

    valores da dignidade humana, mrito intrnseco, autonomia, singularidade individual e

    autodeterminao. Estes so, sem dvida, valores que a prtica da enfermagem visa

    atingir e proteger interagindo respeitosamente com as pessoas.

    Tambm na Enfermagem, o respeito est presente em todos os aspectos de prtica, da

    investigao e da educao. Como notou por Levine "o comportamento tico no a

    exibio da rectido moral da pessoa em tempos de crises. E a expresso diria de

    um compromisso com outras pessoas e a forma como os seres humanos se relacionam

    uns com os outros nas suas interaces dirias " .

    10 DICIONRIO UNIVERSAL DA LNGUA PORTUGUESA, 6aEd., Lisboa: Texto Editora Lda., Maro, 2000, p. 1239-1240.11 Cf f. por exemplo, DOWNIE, R; TELFER, E. - Respect of Persons, New York, 1970, 1970, ROKEACH, M. - Understanding Human Values. Medical Care, New York: [s.n.], 15 (5), 1979, p. 12-19; MILNE, A. - Human Rights and Human Diversity: An Essay in Psychiatric Nursing and Mental Health Services. The Philosophy and human Rights, New Haven: State University Press, 21(1), 1986, p.98-102; MCDOUGLAS, M et al. - Human Rights and English Language, New Havem: Yale University Press, 1980.12 LEVINE, M. - Nursing ethics and the ethical nurse. Journal of Nursing, America, 77 (5), 1977, p.846-847.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 12

  • INTRODUO

    Annette Browne, citando Gaut, identifica o respeito como uma atitude necessria para

    aces ticas justificveis entre pessoas13. Realmente, o respeito a primeira condio

    tica no Cdigo Deontolgico do Enfermeiro14, onde todos os deveres profissionais so

    indexados ao respeito pelos direitos humanos em geral e aos direitos dos doentes em

    particular.

    O respeito surge tambm a partir de perspectiva transcultural, em que visto como um

    componente bsico do Cuidar sensvel e cultural. Sensibilidade cultural requer

    reconhecimento e atendimento pela diversidade cultural. Sendo assim, o respeito surge

    do reconhecimento do mrito da herana cultural nica de uma pessoa e da capacidade

    para mostrar considerao pela sua orientao cultural. Posteriormente, Leininger

    sugere que respeito pelos direitos culturais de uma pessoa reflecte respeito pelos direitos

    humanos bsicos.

    Mas, se o respeito devido a todos os seres humanos, pela sua dignidade, porqu

    estudar o respeito na assistncia a pessoas doentes na fase final da vida?

    Em Portugal morre anualmente cerca de 1,02% da populao16. Embora algumas

    mortes possam ser sbitas ou inesperadas, outras passaram por um processo de doena e

    muitas delas sujeitas a internamento hospitalar.

    Alguns autores referem que as enfermeiras dos hospitais, so extremamente ocupadas e

    podem, de alguma forma, tratar inadequadamente os moribundos, dedicando portanto

    mais tempo aos doentes que vo recuperar. Segundo Cundiff, um estudo frequentemente

    citado, indica que as enfermeiras levam, em geral, o dobro do tempo a responder s

    chamadas dos moribundos, comparando com os outros doentes, acrescentando que os

    13 Cf. BROWNE, Annette - A conceptual Clarification of Respect. Journal of Advanced Nursing,London, 18(2), March/April, 1993,p.212.14 Cf. PORTUGAL, Ministrio da Sade - Decreto-Lei n"l04/98. Criao e Estatuto da Ordem dos Enfermeiros. Dirio da Repblica, I Srie-A, n93, Artigos 78 a 92, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 98/04/21.15 Cf. LEININGER, M. M. - Culture care diversity and universality: a theory of nursing. New York: National League for Nursing Press. 1991.16 No ano de 2001 morreram 105 092 pessoas das 10 318 084 residentes em Portugal. INSTITUTO NACIONAL DE ESTATSTICA - Censos 2001

    [Documento www] URL http//www.ine.pt/prodserv/quadros/mostra_quadro.asp, 5 de Novembro de 2002 s 15.30h.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 13

  • INTRODUO

    cuidados prestados aos que padecem, so geralmente muito menos investidos do que os17

    relativos a pacientes que tm hipteses de recuperar .

    Pensamos que a prtica de cuidar em situaes terminais no hoje ainda equacionada

    convenientemente, no que respeita aos aspectos do indivduo, famlia, instituies e

    sociedade em geral. Durante sculos, a morte era vivida na famlia e apenas uma

    pequena percentagem das pessoas de qualquer comunidade morria nos hospitais. Nos

    nossos dias podemos dizer que a morte foi transferida para o hospital e, por esse

    motivo, lidar com doentes terminais e suas famlias prtica quotidiana da maior

    parte das enfermeira.

    com base nesta problemtica e nas dificuldades sentidas pelas enfermeiras acrescidas

    da importncia que o respeito pelo doente adquire na fase final da sua vida, que nos

    propomos trabalhar o respeito no cuidado de enfermagem ao doente terminal.

    Se a reflexo tica nos diz j o que significa o respeito e se aceita que ele devido a

    todos, que interesse pode ter mais um trabalho na rea?

    A nossa opo por estudar o respeito no cuidado de enfermagem na perspectiva do

    doente terminal, foi concebida tendo presente duas razes. Na primeira razo podemos

    salientar que como sequela inevitvel do avano cientifico e tecnolgico, verifica-se que

    frequentemente no existe lugar na vida moderna para se pensar na morte e no doente

    terminal. Como consequncia, as enfermeiras, sentindo-se impotentes perante a ltima e

    decisiva crise existencial, pela qual passa o doente, protegem-se, restringindo a sua

    aco a cuidados meramente fsicos. Sem dvida, que quando o doente tem maior

    probabilidade de morrer, as enfermeiras omitem o assunto "morte" e tendem a

    supervalorizar as tarefas essencialmente tcnicas. E, quando essa probabilidade se

    apresenta em situao de emergncia, mobilizam todos os esforos, expressando no

    final o sentimento do "dever cumprido". Ainda hoje, nas diversas unidades hospitalares,

    se evita o contacto com os aspectos simblicos da morte: isola-se o doente, delegam-se

    cuidados, no se fala com o doente, no se responde de imediato s suas solicitaes...

    17 Cf. CUNDIFF, David -A eutansia no a resposta, Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p.163.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 14

  • INTRODUO

    facto, que demonstra existir uma certa dificuldade por parte das enfermeiras em geral a

    lidar com este tipo especfico de doentes.

    A segunda razo prende-se com o facto de termos assistido a uma participao das

    escolas na formao de enfermeiras, com preocupao centrada na aquisio de

    conhecimentos (atravs da memorizao) e de tcnicas (competncia de destreza). Dado

    a orientao central estar direccionada parta a doena e as intervenes face s suas

    alteraes, menosprezou a aquisio de condutas a adoptar perante situaes que

    envolvam a interaco com a pessoa doente num processo de constante

    desenvolvimento e mudana. Recentemente, um grupo de alunos num de seus relatrios

    finais de ensino clnico, decidiu denominar um captulo de seu trabalho "Uma

    experincia importante: o contacto com a morte" em que diziam:"A morte um tema delicado e dos mais difceis de abordar, masinfelizmente uma situao que temos que comear a encarar, porque farparte do nosso dia-a-dia como enfermeiros[...] Podemos comear por dizerque no h nenhuma faculdade ou escola que nos prepare verdadeiramentepara encarar esse facto, portanto como profissionais lutamos at ao fimpara manter o indivduo vivo, foi para isso que fomos treinados, paraprestar cuidados que ajudem o indivduo a ultrapassar os seus problemas desade[...] Quando isso no acontece e a morte acaba por vencer, a primeirasensao de impotncia ou mesmo de fracasso e a aceitao destasituao depende tambm do indivduo em questo, porque geralmentemuito mais difcil encarar a morte de uma criana ou de um jovem, do quede uma pessoa idosa" .

    Atravs deste depoimento tomamos conscincia que os alunos se mostram globalmente

    insatisfeitos com a sua formao neste campo, manifestando igualmente as suas

    limitaes para cuidar de pessoas em fase final de vida.

    Neste momento, novos valores e novos desafios se colocam profisso e, muito

    particularmente aos docentes em enfermagem pois tm grande responsabilidade na

    mudana, no sentido de uma formao completa do aluno adequada s novas

    necessidades, preparando-os para actuar, no s a nvel curativo, mas sobretudo como

    verdadeiro educador para a sade, contribuindo assim para uma maior dignificao da

    pessoa humana. Formar licenciados em enfermagem ir muito alm de uma preparao

    18 CARMO, A. P. et ai. - Uma experincia importante: o contacto com a morte: Relatrio Crtico de Actividades, Relatrio efectuado por um grupo de oito alunos no seu Ensino Clnico no servio de Medicina D do CHVNG, no perodo de 10 de Janeiro a 25 de Fevereiro de 2000, p. 10-11.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 15

  • INTRODUO

    exclusivamente tcnica. proporcionar tambm uma slida formao humana, pautada

    por um sistema de valores ticos devidamente interiorizados, que o ajudaro a

    compreender o campo profissional de actuao e a perspectivar a forma de nele se

    tornar mais actuante assumindo o futuro19. No podemos separar a competncia

    profissional da formao tica e humana da profisso. De facto, tm havido enormes

    avanos no desenvolvimento das capacidades cognitivas, mas tambm verdade que

    ouvimos e frequentemente lemos referncias a necessidades de maior humanizao dos

    servios de sade, e humanizar no mais do que cuidar a pessoa tendo em conta todas

    as suas dimenses.

    Importa por isso conhecer a perspectiva do doente sobre o assunto - porque s ele nos

    pode dizer o que o faz sentir-se respeitado. Assim, propomo-nos descrever as atitudes

    das enfermeiras que so frequentemente valorizadas pelo doente terminal como

    expresso de respeito para com ele.

    O estudo que efectuamos pretende assim ser um contributo, quer para profissionais quer

    para estudantes, para que possam orientar e melhorar as suas prticas dirigidas ao

    doente que se encontra em fim de vida. A nossa inteno que este estudo adquira

    uma aplicao prtica e que, posteriori, possa ser mais aprofundado e estendido a

    outros grupos ou culturas.

    Porque pretendemos investigar a partir da perspectiva dos sujeitos da investigao, a

    nossa pesquisa inserir-se- necessariamente na denominada investigao qualitativa.

    Reconhecemos que alguns autores utilizam definies muito limitativas de cincia,

    reconhecendo como cientfica apenas a investigao dedutiva e a utilizao de testes de

    hipteses. E muito embora Edgar Morin refira que "hoje [...] j no necessria uma

    grande demonstrao para saber que a arte indispensvel para a descoberta

    cientifica, visto que o sujeito, as suas qualidades, as suas estratgias, tero nela um

    papel muito maior e muito mais reconhecido"1, no nos poderemos esquecer que este

    19 Cf. PORTUGAL, Ministrio da Educao - Decreto-lei 353/99. Dirio da Repblica, I Srie-A, n206, Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 99/09/03.20MORIN, Edgar - Cincia com conscincia, Lisboa: Mem. Martins e Europa Amrica, 1982, p.259.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 16

  • INTRODUO

    trabalho se insere na rea da Biotica, rea que no poderemos incluir nas chamadas91

    cincias "duras", como refere Walter Osswald ,

    Pela nossa parte, acreditamos, como Madeleine Leininger, que a investigao

    qualitativa, pretendendo documentar e interpretar tanto quanto possvel a totalidade do

    fenmeno em estudo num contexto particular e a partir do ponto de vista das pessoas

    estudadas, nos oferece um valioso mtodo para a compreenso das dimenses de99

    fenmenos, que devem ser encarados numa perspectiva filosfica, histrica e cultural .

    Apresentamos assim um estudo centrado na anlise dos discursos dos doentes terminais

    sobre as atitudes da enfermeira que vivnciam como manifestadoras de respeito por si.

    Nesta perspectiva, o estudo exploratrio e descritivo.

    Temos conscincia de que um estudo no se deve limitar obteno de um conjunto de

    dados sobre determinada situao, mas conter concepes e pressupostos terico-

    prticos que constituam uma base de apoio para o trabalho emprico. Assim, este

    trabalho apresenta-se organizado em dois captulos.

    Apesar de se tratar de um estudo que pretende analisar a experincia dos sujeitos, no

    poderamos deixar de iniciar a reflexo com um enquadramento conceptual, um

    referncia terico que fundamente a anlise a informao colhida. Assim, no captulo I,

    apresentam-se os aspectos inerentes pessoa humana e ao cuidado e ao o dever de

    respeito. Inclumos a anlise do respeito como dever, sobretudo a partir da filosofia

    kantiana; como veremos, nas obras do filsofo, o respeito definido como o sentimento

    pelo qual tomamos conscincia da presena da lei moral em ns. Mas um sentimento

    de um gnero particular: no tem por origem na sensibilidade mas na razo prtica o

    nico sentimento que podemos conhecer priori; pela razo conclumos ser nosso

    dever respeitar a lei moral, que se traduz no respeito pelos seres humanos como fins em

    si prprios. O respeito surge assim como um "dever", a que nos obrigamos livremente

    21 Cf. OSWALD, W. - "Progresso da Cincia. Sentido e limites". In ARCHER, Luis; BISCAIA, Jorge; OSSWALD, Walter; RENAUD, Michel (coord.) - Novos Desafios Biotica. Porto: Porto Editora,2001, p. 9-1222 Cf. LEININGER, Madeleine - Qualitative research methods in nursing, Orlando: Grume andApproaches, 1985.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 17

  • INTRODUO

    na relao com o outro. Mas o respeito tambm um componente da relao de ajuda

    inerente aos cuidados de enfermagem. Por isso, esta perspectiva tambm includa na

    primeira parte do trabalho. Veremos que pelo respeito que qualquer interveno

    dever ter em conta a pessoa enquanto sujeito e parceiro do Cuidado e no objecto que

    cuidado.

    No captulo II, apresentada a investigao realizada, onde se refere a metodologia

    utilizada, o tratamento e anlise da informao recolhida e se termina com a

    interpretao dos resultados e concluses. Seguindo uma orientao fenomenolgica,

    tentaremos entrar no mundo dos doentes terminais internados numa unidade de

    Cuidados Paliativos, pretendendo compreender como vivenciam e qual o significado

    que atribuem aos actos dos enfermeiros que manifestam respeito. E isto porque

    acreditmos que a compreenso do seu ponto de vista, da sua vivncia pessoal, a

    forma que menos distorce (ainda que possa no ser perfeita) a realidade do fenmeno

    em estudo.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 18

  • CAPTULO IAcerca do respeito pela pessoa humana

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PEU PESSOA HUMANA

    A pessoa um "ser no mundo", o locus da existncia humana, ela no apenas um

    organismo material e fsico, mas sim um ser com percepes e vivncias, ela ,

    simultaneamente, iam ser bio-psico-socio-culturo-espiritual. Nesta perspectiva, ela no

    s um corpo, mas tambm um ser com uma mente pensante que ultrapassa o

    espao fsico e corporal. Toda a pessoa tm, assim, um "eu interior" que constitui

    a sua essncia e est ligado a um forte sentimento de autoconhecimento, a um alto

    grau de conscincia.

    Dar ateno dimenso da pessoa humana, implica uma fora orientadora que engloba

    as capacidades que cada pessoa conserva e que lhe permitem ultrapassar e

    transcender as experincias de vida actuais. Estas, incluem a capacidade de ter

    objectivos na vida, de amar e perdoar, de iniciativa e represso, entre outras.

    Segundo a viso sistmica de sade, toda a pessoa s encontra-se num estado de

    homeostasia, ou seja, num equilbrio dinmico onde mente e corpo esto em

    interaco constante. Efectivamente, poderemos dizer que existe uma unidade e uma

    harmonia ao nvel destas duas esferas, em que a pessoa capaz de cuidar de si,

    utilizando a mente de forma construtiva, exprimindo suas emoes, sendo criativa ao

    mesmo tempo que se implica no seu meio.

    Esta abordagem apoia-se num estilo de vida e sustenta um estado integrado em

    mudana constante, centrando a responsabilidade de si. A pessoa , assim, percebida

    como um sistema vivo, onde seus componentes esto interligados e so

    independentes. Mas, esta pessoa no um ser isolado em si, ela est em integrao

    contnua com o ambiente que a rodeia: ambiente econmico, social, cultural e

    csmico. O ambiente influencia-a e ao mesmo tempo influenciado por ela.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 20

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PEU PESSOA HUMANA

    O corpo de cada pessoa poder ser, ento, considerado como um campo de energia,

    situado dentro de outros campos de energia, coagindo mutuamente quer em situao de

    sade quer em situao de doena.

    Mas, como qualquer outro ser, nascemos, crescemos e desenvolvemo-nos; criamos uma

    histria de vida particular e nica. E, quando a doena se apodera de ns, revela-nos

    entre outros o conceito filosfico de vulnerabilidade e de finitude. Nele e na sua

    expresso, intrometem-se a fragilidade, mas tambm a cultura, a filosofia, o social, o

    econmico, o laboral, as expectativas individuais, a f, o valor e o sentido que damos

    vida. Esta realidade para alm de abrangente, possu uma sensibilidade de contornos

    muito delicados, mas capaz de temperar a vida.

    Estar doente, no seguramente indispensvel para se poder crescer. , com certeza

    uma faceta inexpugnvel da nossa existncia, da qual poderemos retirar algum

    ensinamento. Mas, no nem nunca ser objecto almejado no nosso quotidiano, ao

    contrrio do aforismo que diz "espera por sofrer para crescer".

    Acreditando que cada indivduo um ser nico com uma experincia de vida, capaz de

    se adaptar, crescer e aprender, teremos de compreender que tambm ele reage de

    forma diferente perante as situaes que enfrenta, sendo uma delas a doena.

    Todos ns nascemos com determinados potenciais que nos foram transmitidos pelo

    material gentico. Portanto, nascemos com determinadas qualidades e caractersticas;

    que nos permitem viver, envelhecer e morrer. S que, em determinada altura da nossa

    vida, a doena pode instalar-se devido nossa programao gentica ou

    independentemente dela. As pessoas no adoecem todas da mesma maneira e as

    alteraes causadas por essa doena podem desenvolver-se a um ritmo diferente para

    cada um de ns, dependendo tambm de factores externos, de que so exemplo: o estilo

    de vida, as actividades e o ambiente. Se bem que a doena pode reverter na cura, nem

    sempre isso possvel e, por vezes, ela tornar-se fatal.

    H quem diga que nascer desde logo morrer um pouco. Mas, no fundo, morrer

    desde sempre a certeza que qualquer homem tem. Apesar de hoje a esperana de

    vida ser

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 21

    - . . .

    - ' . .

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PELA PESSOA HUMANA

    prolongada, cada um de ns reconhece que a sua vida limitada no tempo, no entanto,

    todos ns vivemos recusando-o obstinadamente. A esse respeito Philippe Aries, diz-nos:

    "Tecnicamente, admitimos que podemos morrer, fazemos seguros de vida para

    preservar os nossos da misria. Mas, verdadeiramente, no fundo de ns mesmos

    sentimo-nos no mortais''' .

    Qualquer que seja a sociedade, o lugar ou a poca, a morte no mais um

    acontecimento insignificante; ela toca inevitavelmente no domnio privado de cada

    um. A morte surge como o nascer, ela , sem dvida, o que pode existir de mais

    ntimo, indivisvel, incomunicvel, estando aberto aos mais prximos e, por outro lado,

    aos que vivem em grupo, em sociedade em que o desaparecimento, como o

    nascimento dum membro do grupo toca necessariamente nos outros.

    A consciencializao de que todo o doente uma pessoa, sendo esta "um ser no mundo

    e a sede da existncia humana"2*, obriga-nos a respeit-lo, aceit-lo e cuid-lo, na sua

    singularidade tendo em conta a sua dignidade de pessoa humana. A pessoa humana s

    ou doente , acometida duma dignidade inquestionvel e intocvel.

    Esta perspectiva implica que cada doente seja tido em conta como pessoa que , e que

    pela sua vulnerabilidade acentuada pelo processo patolgico, exige dos profissionais

    nomeadamente das enfermeiras no apenas uma resposta s suas necessidades bsicas

    ou mais explcitas, mas uma resposta que o respeite em toda a sua totalidade de ser

    pessoa. Desta forma, cuidar implica reconhecer sempre o doente no apenas como

    um ser humano mas como uma pessoa.

    Como diz Sampaio o respeito deve estar presente em toda a interaco cuidativa uma

    vez que: "o doente seja qualfor o seu diagnstico e prognstico uma pessoa [...]

    um homem vivo at ao ltimo momento, com dignidade especfica de ser

    humano,

    23 ARIES, Phlilippe - Sobre a histria da morte no ocidente desde a idade mdia, 2aEd., Lisboa: EditorialTeorema, 1989, p.66.24 WATSON, Jean - Nursing: Human science and human care: A theory of nursing, New York: NationalLeague for Nursing, 1988, p. 88.

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PELA PESSOA HUMANA

    irrepetvel, sujeito de opinies e sentimentos, com uma histria..." . O importante que

    cada doente seja reconhecido como pessoa e receba nos cuidados de sade a

    qualidade humana a que tem direito, bem como a resposta afectiva indispensvel para a

    alegria de viver mesmo nas horas de provao.

    com base em todos estes aspectos que optamos neste captulo por fazer uma reviso

    dos aspectos tericos relacionados com o respeito que devemos pessoa humana com

    doena terminal. Sendo assim, este captulo divide-se em dois pontos fundamentais. No

    primeiro fazemos referencia a aspectos relacionados com a pessoa humana e a sua

    doena. No segundo ponto debruamo-nos sobre o respeito que devemos pessoa

    doente em fase final de vida.

    25 SAMPAIO, Fernando - Um contributo para a humanizao hospitalar. Hospitalidade, Abril-Junho,1991, p.26.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 23

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PELA PESSOA HUMANA

    1 - Pessoa - Entre a sade e a doena

    Em todos os tempos e em todas as culturas encontramos descries de situaes de

    doena. Todos ns j ficamos doentes, ainda que no tenha passado de uma simples

    gripe. A doena representa um obstculo importante que dificulta ou incapacita o

    desenvolvimento normal do que se entende dever ser a vida humana, porque nos

    afecta. Portanto, ela foi e sempre ser uma preocupao constante.

    Poderemos perguntar: Que possibilidade tenho de estar doente? ou ento, Porque estou

    doente? Esta foi sempre, e ainda , nos dias de hoje, vima pergunta comum.

    Desde o incio da evoluo humana, tm havido registos de doenas e de seus efeitos

    sobre o corpo e a mente. A prpria Bblia apresenta relatos sobre mltiplas

    enfermidades; contudo, as ideias sobre as doenas tm sido influenciadas pela cultura

    dominante e pelo pensamento cientfico de cada poca. Nas primeiras teorias sobre as

    causas das doenas, estas eram encaradas como uma forma de possesso demonaca. Os

    curandeiros frequentemente usavam poes e cantos para livrar o corpo do demnio que

    o possua causando a doena. Em algumas pessoas eram inclusivamente feita trepanao

    para possibilitar que os espritos maus, apontados como causadores da doena pudessem

    deixar o corpo26. Em diversas culturas, ainda hoje acreditam que as doenas so uma

    punio por pecados. Este conceito, embora que em parte possa parecer ultrapassado,

    no raro em pessoas que vivem nos nossos dias. Facto que pode causar um stress

    significativo quer para o prprio quer para seus familiares, aquando da avaliao de

    factos passados.

    26 Na trepanao, praticada por culturas na frica oriental, so cortados o couro cabeludo e os msculos subjacentes de modo a pr a descoberto uma grande parte do crnio. Depois disso o "doktart raspa o crnio fazendo perfuraes, enquanto que o celebrante segura sob o queixo um vaso destinado a recolher o sangue que escorre, perante a passividade dos espectadores, cf. MELZACK, Ronald; WALL, Patrick - Psicologia da dor. O desafio da dor, Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1982, p.28.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 24

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PELA PESSOA HUMANA

    Recordemos que, em meados do sculo XLX, a maioria da populao no tinha

    conhecimentos acerca das infeces bacterianas e modos de propagao das doenas,

    ignorando as precaues mais elementares. Assim, as motivaes espirituais e

    humanitrias tinham uma influencia profunda nos cuidados prestados aos doentes da

    poca. Com efeito, os cuidados que se dedicavam ao corpo tinham como finalidade77

    manter o cuidado alma .

    Florence Nigthingale, graas sua educao e experincia em cuidados a doentes,

    revelou-se como sendo uma pessoa qualificada e disposta a enfrentar o desafio de

    organizar os cuidados aos doentes em hospitais militares ingleses durante a guerra da

    Crimea. Acompanhada de quarenta enfermeiras laicas e religiosas, Florence tentou28

    adoptar nesses hospitais as condies de higiene mais elementares .

    Nos finais do sculo XLX, num contexto marcado por a expanso do controle das

    infeces, pela melhoria dos mtodos antisspticos, de assepsia e das tcnicas

    cirrgicas, surge uma orientao dirigida para a doena29. A irradicao das doenas

    transmissveis tornou-se a prioridade entre os anos 1900-1950. A sade passa a ser

    considerada a ausncia de doena, reduzindo-se por sua vez, a uma causa nica

    segundo o qual orientado o tratamento.

    Segundo esta orientao o cuidado est baseado nos problemas, dfices ou

    incapacidades da pessoa. Cada profissional delimita as zonas problemticas que so de

    27 Cf. COLLIRE, Marie-Franoise - Promover a Vida, 2aEd., Lisboa: Lidei Edies Tcnicas Lda., Maro, 1999, p.61-65.28 Formada em matemtica, estudou as estatsticas relacionadas com as melhorias sanitrias e as taxas de mortalidade e, em menos de seis meses, as enfermeiras que com ela trabalhavam, ganharam o respeito dos cirurgies militares, em princpio opostos presena de mulheres no seio da armada inglesa. Segundo esta autora, preocupada com os problemas da sade pblica, os cuidados aos doentes eram baseados no somente na compaixo, mas tambm na observao e experincia, nos dados estatsticos, no conhecimento em higiene pblica e nutrio e tambm sobre as competncias administrativas. A actividade da enfermeira estava direccionada para o conforto da pessoa com a inteno de manter e recuperar a sade, prevenir as infeces e feridas, ensinar os modos de vida s e controlar as condies sanitrias. Os cuidados eram, assim, dirigidos a todos, sos ou doentes, independentemente das diferenas biolgicas, classe econmica, crenas e valores. Nigthingale considerava ainda a pessoa segundo a sua componente fsica, intelectual, emocional e espiritual, assim como sua capacidade e responsabilidade para alterar uma situao existente. Este potencial da pessoa era, ao mesmo tempo, conhecido na actividade da enfermeira, que orienta a sua aco tendo em conta a mudana.29 Cf. DOLAN, J.A.; FITZPATRICK, M.L.; HERRMAN, E.K. - Nursing in Society: A HistoricalPerspective, 15aEd., Philadelphia: W.B. Saunders Company, 1983.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 25

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PELA PESSOA HUMANA

    sua competncia e planifica, organiza, coordena e avalia as suas aces. Em suma, nesta

    poca a pessoa vista como a soma de suas partes, em que cada parte reconhecida e

    independente, isto , comea e termina num ponto fixo, sem contacto com nenhuma

    outra parte. A sade um equilbrio altamente desejvel e percebida como um facto

    "positivo". Sendo a sade considerada contrria doena, tanto a morte como a doena

    devem ser combatidas a qualquer custo.

    Na medida em que a pessoa um todo formado por a soma de cada uma das suas partes,

    as componentes biolgica, psicolgica, social, cultural e espiritual esto todas

    interrelacionadas. A pessoa, ento considerada como um ser bio-psico-scio-culturo-

    espiritual, pelo que pode influenciar os factores preponderantes de sade tendo em

    conta o contexto em que se encontra. Procura as melhores condies possveis para

    obter uma sade e um bem-estar ptimos. Nesta orientao, baseada na pessoa, sade e

    doena so duas entidades distintas que coexistem e esto em interaco dinmica.

    De acordo com este modelo, a sade concebida como sendo a ausncia de doena e

    esta conceptualizada considerando exclusivamente as perturbaes que se processam

    na dimenso fsica ou biolgica da pessoa. Segundo este ponto de vista, ter sade

    equivalente a no estar doente, o que equivale a dizer que tratar doenas significa criar

    sade. Esta viso redutora do estado de sade, no apoiada pela Organizao Mundial

    de Sade (OMS), conforme demonstrado na sua definio de 1946 e que ainda aceite

    actualmente: "a sade um estado de completo bem-estar fsico, mental e social e

    no meramente a ausncia de doena ou enfermidad'\

    Nesta perspectiva, a sade definida num sentido positivo no sendo caracterizada

    apenas como a ausncia de doena. A definio da OMS parece ter sido baseada numa

    definio sugerida por um historiador da medicina, o qual contrariava uma viso

    sistmica do estado de sade: "A sade [...] no simplesmente a ausncia de doena:

    algo de positivo, uma viso alegre da vida e uma aceitao das responsabilidades

    que ela coloca ao indivduo" .

    30 SIGERIST, H.E. - Medicine and Human Welfare. New Haven: Yale University Press, 1941, p. 100.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 26

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PEU PESSOA HUMANA

    Ambas as definies sugerem, pois, que os critrios de sade no se podero basear

    apenas na dimenso biolgica, apontando claramente para a incluso das dimenses

    psicolgica e social. Portanto, tratar doenas no a mesma coisa que criar sade. Criar

    sade exige uma viso do ser humano que transcende o conhecimento especializado da

    biologia, pois ter de se atender complexidade e globalidade do ser humano em

    relao com o seu ambiente.

    Apesar da sua concepo multidimensional, a definio de sade da OMS tem sido

    criticada pelo seu sentido utpico e por no enfatizar os aspectos adaptativos da pessoa

    face s suas perturbaes. O conceito de uma sade positiva e perfeita parece ser mais

    uma expresso de boa vontade mas com pouco sentido da dialctica adaptativa do ser

    humano. Na verdade, o ser humano nunca conseguir atingir um estado de adaptao

    perfeito. O confronto com situaes problemticas e a resoluo de problemas, bem

    como os erros e os sofrimentos so situaes tpicas da vida das pessoas, sendo

    impossvel antecipar todas as situaes que podem conduzir doena ou inadaptao.

    Para Dubos, critico da definio da OMS, um conceito de sade que apele para um

    estado ideal pode tornar-se perigoso se o seu carcter inatingvel for esquecido. Longe

    de constituir um estado final de equilbrio, a sade parece ser melhor representada por

    um processo dialctico de adaptao da pessoa, na sua globalidade, s ameaas do

    ambiente em que vive:"A abordagem mais plausvel, consiste em definir a sade como sendoum estadofisicoe mental relativamente liberto de dor e de desconforto, e que permite pessoa funcionar to bem quanto possvel e no maior perodo de tempo, no ambiente em que a casualidade ou a escolha a colocaram^ .

    Nesta linha, as definies de sade e de doena parecem apenas fazer sentido quando

    so referenciadas em termos da actividade da pessoa num determinado contexto fsico,

    psicolgico e social. Isto quer dizer que estas definies no esto enquadradas no

    mbito de uma viso holstica da pessoa no contexto de uma determinada cultura.

    Paralelamente acrescentamos, que no poderemos esquecer que as significaes

    31 DUBOS, R. - Man Adapting. New Haven: Yale University Press, 1980, p.351.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 27

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PELA PESSOA HUMANA

    pessoais sobre o que significa ter ou no ter sade podem basear-se em critrios

    subjectivos, podendo aqui aplicar-se o aforismo "cada cabea sua sentena".

    Em 1978 a Conferencia Internacional sobre os Cuidados de Sade Primrios destaca a

    necessidade de proteger e promover a sade de todos os povos do mundo. A OMS,

    autora da declarao de Alma-Ata, reconhece as relaes entre a promoo, a

    proteco da sade dos povos e o progresso equitativo sobre o plano econmico e

    social. A OMS prope assim um sistema de sade baseado sobre uma filosofia em que

    "os homens tm o direito e o dever de participar individual e colectivamente na

    planificao en'y

    realizao das medidas de proteco sanitria que a ele so destinadas'" . A

    populao , assim, um agente da sua prpria sade, participando ela mesma com o

    mesmo empenho que um profissional de sade.

    Dentro desta ptica, a pessoa considerada como um ser nico cujas mltiplas

    dimenses formam uma unidade. Este ser inteiro e nico, indissocivel do seu

    universo33. A pessoa est em relao constante com o seu prprio ambiente ou seu meio

    prximo, ou seja exterior e interior a ela. A sade concebida como uma experincia

    que engloba a unidade do ser humano e do ambiente. A sade no um bem que se

    possui, um estado estvel ou uma ausncia de doena. Formando parte da dinmica da

    experincia humana, a sade uintegra-se na vida do indivduo, da famlia e dos grupos

    sociais envolvendo um ambiente particulaf .

    Segundo Dufresne "at finais do sculo XIX, o homem viveu sobre a terra, durante o

    sculo XX viveu da terra, agora toma conscincia de que vive com a terra" . Esta

    consciencializao modifica a concepo do ser humano, do ambiente e da sade. Dito

    de outra forma, a expanso dos meios de comunicao e a qualidade de seu contedo

    facilitam a partilha de conhecimentos a um ritmo cada vez mais rpido. As pessoas

    32 ORGANIZAO MUNDIAL DE SADE - Os Cuidados de Sade Primrios, Informao da Conferencia Internacional sobre os Cuidados de Sade Primrios, Genebra, 1978 (Srie: "Sade para todos",nl), p.2.33 Cf. MARTIN, C. - Les soins de sant primaires...une notion dchiffrer. Nursing Quebec, 4(6), 1984, p .6-13 .34 Ibidem, p.9.35 DUFRESNE, J. - Le sommet de la terre: vivre avec la terre, La presse, 23 Mai, 1992, p.B3.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 28

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PEU PESSOA HUMANA

    empenham-se em assumir uma responsabilidade maior na tomada de decises no que

    concerne na sua educao para a sade. Esta responsabilidade tem igualmente um

    carcter colectivo, orientando suas directrizes para uma sade global baseada numa

    tecnologia que no somente tem em conta os recursos disponveis, mas tambm a

    dignidade do ser humano.

    Esta orientao de abertura sobre o mundo influencia necessariamente a natureza dos

    cuidados ao doente. O cuidado dirigido ao bem-estar, tal como a pessoa o define. A

    enfermeira tendo acumulado diversos conhecimentos, acompanha-a na sua maneira de

    ver a sade seguindo o seu ritmo, isto , utiliza todo o seu ser, incluindo uma

    sensibilidade que compreende os elementos para alm do visvel e palpvel. Intervir

    significa "estar com" a pessoa. Enfermeira e pessoa doente, so companheiras num

    cuidado individualizado. Numa esfera de mtuo respeito, a enfermeira acredita na

    possibilidade do desenvolvimento do seu prprio potencial.

    Gottlieb e Rowat defendem que em termos gerais quer a sade quer os seus hbitos se

    aprendem. E, a aprendizagem que feita sobre esses factos, pode ser feita em diversas

    situaes e em diferentes meios como so exemplo a casa, a escola, o hospital ou o

    trabalho 36. Estes autores consideram a pessoa integrada num sistema em interaco

    constante.

    Sade e doena so assim expresses do processo de vida, no sendo opostas nem

    divididas. A sade pode ento ser vista como a realizao contnua de mim mesmo

    como ser humano unitrio sendo, por sua vez, a doena integrada na sade; ela ,

    parte do processo de expanso da conscincia de mudana.

    As atitudes para com a doena modificam-se muito, no entanto, algumas doenas ainda

    acarretam consigo um estigma. Um exemplo disso so as vises que a sociedade

    possui de algumas pessoas com perturbaes mentais, SIDA ou mesmo com doenas

    venreas que so tratadas, ainda que ocasionalmente, como prias da sociedade.

    36 Cf. GOTTLIEB, L.; ROWAT, K. - The McGill Model of Nursing: A practice - Derived Model.Advances in Nursing Science, 9(4), 1987, p.51-61.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 29

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PELA PESSOA HUMANA

    Actualmente, ainda se atribuem critrios de valor ao conceito de sade. Assim, a sade

    fsica e mental considerada como uma coisa boa, desejvel e merecedora de elogios;

    ao passo que a m sade , muitas vezes considerada como um castigo e, em muitas

    culturas tida como vergonhosa e perversa.

    Segundo Marriner-Tomey, Martha Rogers desde 1970 que apresenta uma concepo da

    profisso de enfermagem que se distingue das outras pela sua originalidade. Martha

    Rogers evita o conceito de holismo devido m utilizao que muitos fazem do termo,

    preferindo o conceito de pessoa unitria, ao mesmo tempo que convida a enfermeira a

    desenvolver a cincia do ser humano unitrio .

    Marriner-Tomey acrescenta que Martha Rogers considera a pessoa como um ser que

    sente, pensa e capaz de participar criativamente na mudana. Considera ainda que os

    seres humanos so campos de energia dinmicos que se integram e interagem com os

    campos de energia do ambiente. Tanto o homem como o ambiente so assim,

    percebidos como campos de energia irredutveis, integrados uns nos outros, fazendo

    parte de um processo contnuo e criativo em permanente evoluo. O termo sade

    referido em muitos de seus trabalhos, ainda que, na realidade nunca lhe tenha

    atribudo uma definio concreta. Para esta autora sade um valor definido pela

    cultura e pelo indivduo, sendo este uma totalidade unificada

    que manifesta uma srie de

    caractersticas .

    Na verdade, e de acordo com o exposto por Marriner-Tomey, o modelo de Martha

    Rogers influenciou muitos dos postulados actuais, e uma prova disso so os "Padres

    de Qualidade dos Cuidados de Enfermagem" adoptados pela Ordem dos Enfermeiros

    que no seu quadro conceptual que constitui a base de trabalho da qualidade do

    exerccio profissional dos enfermeiros nos diz:

    37Cf. MARRINER-TOMEY - Modelos y teorias en enfermera, 3aEd., Madrid: Mosby, 1994, p.213.38 Martha Rogers define o ser humano unitrio como sendo um ser com vontade prpria, um campo de energia que interage com o meio ambiente num permanente equilbrio, portanto a pessoa uma totalidade do ser, ela mais do que a simples soma de todas as suas partes. nesta perspectiva que faz uma clara distino entre a viso holstica (soma de todas as partes constituintes do ser: biolgica, psicolgica, social, cultural, etc.) e a viso do ser humano unitrio, cf. GONZALEZ GEORGE, Jlia B. e col. - Martha E. Rogers: Teorias de Enfermagem: Os fundamentos prtica profissional, 4aEd., Porto Alegre: Artmed, 2000.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 30

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PEU PESSOA HUMANA

    "A pessoa um ser social e agente intencional de comportamentos baseados nos valores, nas crenas e nos desejos da natureza individual, o que torna cada pessoa num ser nico, com dignidade prpria e direito a auto-determinar-se. Os comportamentos das pessoas so influenciados pelo ambiente no qual ela vive e se desenvolve. Toda a pessoa interage com o ambiente: modifica-o e sofre influencia dele durante todo o processo de procura incessante do equilbrio e harmonia" .

    De acordo com o quadro conceptual da Ordem dos Enfermeiros a sade vista como

    uma perspectiva de adaptao criativa, no sendo esttica ela um processo dinmico

    que se desenrola atravs de mudanas na organizao da pessoa. Quando a perturbao

    excede as capacidades do organismo, criando um estado de desordem, ocorrem

    flutuaes globais que levam a uma reorganizao do sistema. No um regresso

    ordem anterior mas sim uma nova ordem, mais complexa que a anterior. O novo

    equilbrio que emerge para resolver a perturbao no sistema, est longe de ser um

    retorno a um estado de equilbrio anterior (homeostasia). Trata-se pois, de uma alterao

    irreversvel na identidade estrutural da pessoa que consegue assimilar as perturbaes

    que iniciaram a transformao. Claro est que a reorganizao pode falhar, sofrendo a

    pessoa as consequncias disso. Por exemplo, o organismo pode sofrer um processo de

    falncia total levando sua morte ou, ento, o organismo no morre mas a perturbao

    mantm-se. Assim, o processo de perturbao do equilbrio pode criar oportunidades

    para uma reorganizao conduzindo a pessoa a um estado de melhor adaptao mas

    tambm pode dar origem a um processo degenerativo ou de desequilbrio.

    1.1 - A doena terminal

    "...a morte do homem, a morte de cada homem, sendo um acontecimento natural no um acontecimento trivial, no nunca trivial. O fim natural da minha vida, a minha morte para mim, como ser consciente, o mais importante acontecimento da minha vida; por ser finita, por ser limitada no tempo, que a vida individual tem o grande valor que todos lhe atribumos. Viver um tempo limitado um desafio grandioso, orienta os nossos desejos e as nossas escolhas, faz-nos correr para uma meta que no

    39 PADRES DA QUALIDADE DOS CUIDADOS DE ENFERMAGEM - A Excelncia do Exerccio.Ordem dos Enfermeiros, Lisboa, 5, Janeiro, 2002, p.23.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 31

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PEU PESSOA HUMANA

    vemos mas que sabemos, de certeza certa, que est l nesse ponto sem retorno, nessafronteira invisvel entre o estar vivo e o estar morto' .

    Quando retrocedemos no tempo e estudamos culturas e povos antigos, apercebemo-nos

    que o homem sempre abominou a doena e a morte e, muito provavelmente, sempre

    a repelir41. At certo ponto de vista, isto bastante compreensvel e talvez se

    explique melhor pela noo bsica de que, em nosso inconsciente, a doena,

    nomeadamente a doena terminal, nunca possvel quando se trata de ns

    mesmos. inconcebvel imaginar um fim real para a nossa vida na terra e, se esta

    tiver um fim, ser sempre atribudo a uma interveno fora do nosso alcance.

    Para a maioria das pessoas, a doena uma intruso indesejada. um aborrecimento,

    um obstculo realizao de qualquer objectivo que se tem na vida. No entanto, h

    quem a considere como um desafio, onde os obstculos para a vencerem e a fraqueza

    conduzem a realizaes maiores que, de outro modo no teriam sido possveis

    conseguir.

    Durante os ltimos dez a quinze anos, surgiu um interesse crescente a favor aos

    cuidados ao doente terminal que tem sido paulatinamente incrementado no nosso pas.

    Poderemos dizer que actualmente ainda no dispomos de critrios rigorosos que nos

    permitam identificar com clareza e objectividade um doente terminal, sob o risco de um

    diagnstico equivocado. No entanto, existem algumas definies para este perodo

    evolutivo, embora todas elas incompletas ou inexactas, de tal forma que no existem

    dados clnicos ou analticos que nos permitam reconhecer de forma exacta e com

    segurana esta fase.

    Desta forma, para alguns autores a fase terminal comea quando a morte se sente como

    uma realidade prxima e a medicina dirige toda a sua aco parta o alvio dos sintomas,

    renunciando a cura42. O perodo de tempo em que ocorre essa realidade prxima, ou seja

    a morte, depende da vertente do autor, h quem o defina como um perodo de dois

    40 SERRO, Daniel - O doente terminal. Geriatria, Lisboa, III (28), Maro, 1990, p.36.41 Cf. KUBLER-ROSS, Elisabeth - Sobre a morte e o morrer, So Paulo: Martins Fontes; 1998, p.6.42 Cf. SOROKIN, Patrcia - Aproximacion Conceptual a Cuestiones Humanas: Todos Somos "Terminales", [Documento WWW] URL http://www.bioetica.org/sorokin.html 1 5 de Maro de 2002, p.3 de 6.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 3 2

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PELA PESSOA HUMANA

    meses, no entanto, existem autores que so mais flexveis, afirmando tratar-se de um

    perodo que poder ir de trs dias a seis meses.

    Durante muitos anos, associou-se a doena terminal ao cancro; efectivamente o cancro

    representa uma das principais causas de morte na actualidade. De modo que, em

    determinadas situaes, os critrios para a sua definio estavam relacionados com o

    crescimento tumoral. Assim, a doena terminal era evidente, quando o crescimento

    tumoral se tornasse progressivo de tal modo que no se pudesse esperar que os

    tratamentos especficos prolongassem a sobrevida de maneira significativa.

    Estas definies tendem a simplificar o problema embora que imaturas devido falta de

    concretizao e objectividade. Talvez de todas as definies a que mais nos agrada a

    que define doente terminal como a pessoa que apresenta um estado clnico que provoca

    uma expectativa de morte a breve prazo43. Por outras palavras, poderemos dizer, que se

    trata de uma pessoa portadora de uma doena crnica incurvel e progressiva, que

    caminha irreversivelmente para um processo de morte, num perodo de tempo

    relativamente curto.

    Segundo Gonzalez Barn, Jaln e Feliu, aps instalada a doena existem diversas etapas

    pelas quais a pessoa passa at chegar fase terminal. Estas fazem parte de um

    processo evolutivo e esto relacionadas com o objectivo do tratamento.

    Na primeira fase a terapia orientada de modo a obter a cura da doena ou o

    prolongamento da vida, mediante medidas para reduo da sua causa. Esta fase

    protagonizada pela existncia de tratamentos especficos: tratamentos mdicos que

    podero ser ao mesmo tempo combinados com tratamentos cirrgicos. A inteno

    irradicar a doena, contribuindo assim para a cura .

    43 Cf. PIVA, Jefferson Pedro et ai. - Consideraes ticas nos Cuidados Mdicos do Paciente Terminal, [Documento WWW] URL http://www.cfin.org.br/revista/bio2vl/direitdeve.htm l , 1 5 de Maro de 2002, p . 2d e l l .44 Cf. GONZALEZ BARN, M.; J. JALN, J.; J. FELIU - Definition del enfermo terminal y preterminal: Tratado de Medicina Paliativa, Madrid: Panamericana, 1995, p.1084-1087.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 3 3

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    A segunda fase acontece aps esgotados os tratamentos intencionais de cura ou de

    prolongamento da vida, o doente mantm ainda uma esperana de vida de, pelo

    menos, seis meses. Durante este perodo, o doente pode permanecer quase

    assintomtico. Mantm uma situao clnica relativamente estvel, com sintomas

    menores. Aos poucos vai caminhando para um perodo intermdio, com sintomas

    incapacitantes e com diminuio da sua qualidade de vida, embora que com uma

    esperana de vida superior a dois meses. Encontra-se numa situao terminal

    progressiva. Aqui a teraputica especfica pode aplicar-se somente como medida

    paliativa. o que muitos autores chamam de fase pr-terminal .

    Na terceira fase ou fase terminal o doente tem uma esperana de vida curta, no

    superior a dois meses. Existe insuficincia de rgos ou sistemas e complicaes

    irreversveis e finais46.

    Quando se trata de uma doena terminal, no , de modo algum incomum, as pessoas

    adoptarem uma atitude de culpa e vergonha em relao aos seus prprios sofrimentos.

    Existem inclusivamente pessoas que no aceitam, pura e simplesmente, conselhos ou

    tratamentos porque no podem admitir que esto doentes. Ao mesmo passo que se

    torna estranho que certas doenas sejam ocultadas muito mais frequentemente do que

    outras, em virtude do sentimento de culpa ser mais acentuado. s vezes, este

    sentimento de culpa parece quase racional e associado com a convico de que a

    doena poderia ter sido evitada .

    A atitude perante determinadas doenas mostra-nos at que ponto os nossos critrios

    morais esto relacionados com o processo de doena em si, atingindo por vezes uma

    atitude parcialmente racional. Por exemplo, nos casos em que mulheres apresentem um

    ndulo no seio, um corrimento vaginal ou um prurido vulvar, sexo e doena adquirem

    um relacionamento ntimo, tornando a atitude para com esta menos racional e a

    sensao de culpa mais perturbadora.

    45 Cf. Idem.46 Cf. Idem.47 Cf. Idem.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 34

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PELA PESSOA HUMANA

    Por outro lado, as consequncias da doena por vezes tambm ameaam a prpria

    expresso da sexualidade. As alteraes que pode provocar na imagem corporal como

    so exemplos a queda do cabelo provocada por determinado tratamento ou mesmo

    alguma mutilao corporal, podero fazer com que essa pessoa doente tenha dificuldade

    em a suportar48.

    Ter uma doena terminal adquire, neste mbito, provavelmente uma expresso mxima

    de sofrimento na pessoa. A sua gravidade, intensidade e dureza, transformam assim o

    meu corpo doente na minha pessoa doente. J no tenho uma doena, um corpo

    doente; sou uma pessoa doente. Esta passagem do ter para o ser evoca-nos a unidade

    da pessoa na qual se interpenetram corpo e mente. E, se o corpo di, a mente sofre.

    Temos conscincia de que o nosso corpo no tudo, mas tudo passa por ele: a

    conscincia de existir em si e de poder relacionar-se com os outros, passa pelo corpo;

    no e pelo corpo acontece e manifesta-se a nossa situao na histria e no espao,

    mas tambm nele e por ele que se revela e manifesta a minha fragilidade e

    incapacidade. O trabalho, a relao, a amizade revelam-se na vida fsica; tambm no

    e pelo corpo que temos conscincia da fragilidade. A doena altera os nossos conceitos

    de "senhor de si" e induz o de precariedade, o meu corpo torna-se "outro", depende dos

    outros, incapaz de49

    servir, complica a vida dos outros que me servem .

    Para a pessoa doente, mergulhada na conscincia viva da fragilidade do corpo, a

    experincia que toma contornos mais ntidos a finitude50. Todos sabemos, desde muito

    cedo, que somos finitos, mas quase diariamente devemos aprender de novo a juno

    entre o saber da finitude e a vivncia existencial. Se algum nos pede para responder

    pergunta "O que ser finito?", no teramos a mnima dificuldade em indicar que um

    dia teramos de morrer. Mas, principalmente na idade jovem, tal perspectiva to

    remota que o saber quanto ao fim da nossa vida gera habitualmente uma preocupao

    48 Cf. MARQUES, A. Reis et ai. - Reaces emocionais doena grave. Como lidar..., laEd., Coimbra: Ed. Psiquiatria Clnica, Dezembro, 1991, p.23-24.49 Cf. LOPES, Pereira - O Corpo da Pessoa: Que lugar ocupa nos cuidados de enfermagem?. Nursing,Lisboa, 138 (12), Novembro, 1999, p.20-24.50 Cf. RENAUD, Isabel - A tica face a situaes limite do corpo. Brotria, Braga, 145 (6), Dezembro,1997,p.603-613.

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PELA PESSOA HUMANA

    fugaz e distante. Com a conscincia viva da fragilidade do corpo, a situao modifica-se

    insensivelmente; como se o conhecimento (saber) passasse atravs do corpo para se

    fixar na afectividade.

    A interpretao desta desordem corprea, deste caos biolgico , indiscutivelmente,

    muito pessoal, interior e profunda. , ou poder ser, aquilo a que chamamos a

    expresso do sofrimento. No somente de sofrimento fsico mas sim de sofrimento

    espiritual, ntimo.

    Relativamente ao aspecto mais ntimo, as experincias subjectivas do doente face aos

    sinais observveis, externos e objectivos, fazem lembrar que a cincia e a filosofia ainda

    no explicaram a relao entre o esprito e o corpo51. Parece ser senso comum lembrar

    que o esprito e o corpo de uma pessoa so componentes de um todo orgnico. Mas,

    por vezes somos tentados, a dar prioridade a um deles, o qual depende

    frequentemente da nossa prpria filosofia, da nossa viso intelectual e do conceito

    particular que temos de sade e de doena.

    O erro de colocar o esprito acima do corpo, por exemplo, evidente na forma como

    frequentemente damos significado ou sentido doena. Por exemplo, muitas pessoas

    pensam que a doena ou leso castigo por um determinado comportamento, como

    sofrer de cancro da garganta ou do pulmo depois de fumar "anos a fio" ou como

    contrair SIDA atravs do uso ilegal e desprevenido de drogas.

    Mais subtilmente, algumas pessoas sugerem a existncia de relaes entre os traos de

    personalidade ou atitudes e a susceptibilidade a certas doenas ou a capacidade de lidar

    com elas ou mesmo ultrapass-las. O cancro, por exemplo, pensou-se estar ligado a

    uma personalidade que reprima a expresso de sentimentos fortes, ou ser uma

    resposta a emoes reprimidas .

    Tm sido desenvolvidas pesquisas interessantes visando no s a relao entre a doena

    e estados afectivos, como a depresso, optimismo e pessimismo, como tambm a

    51 Cf. Idem.32 Cf. SONTAG, S. - Illness as metaphor, New York: Farrar, Straus and Giroux, 1978, p.134.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 36

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PEU PESSOA HUMANA

    relao entre o stress e o sistema imunolgico. Os efeitos do estilo de vida,

    comportamentos e escolhas alimentares (como carne mal passada, acar e gordura

    saturada) tm igualmente sido alvo de pesquisa. , no entanto, importante para os

    doentes e para os prestadores de cuidados no ignorar as bases fisiolgicas reais de

    muitas doenas. Enfatizar exageradamente o papel da atitude de uma pessoa, do seu

    estilo de vida ou comportamento para o desenvolvimento da doena pode dar azo a que

    se atribua um peso excessivo responsabilidade do prprio doente nesse processo.

    Algumas pessoas conseguem controlar melhor que outras as suas atitudes ou

    comportamentos, mas esse controlo no significa que a doena seja simplesmente uma

    escolha individual. Doena e sade no se encontram totalmente sob o nosso controlo,

    ver a doena como um castigo, tanto de um comportamento especfico como de um

    estilo de vida adoptado, pode por vezes transformar-se numa barreira aos cuidados de

    sade.

    A resposta que poderemos ter face ao estar doente, depende da situao em si, mas

    tambm da interpretao que cada um de ns faz dela. O significado funciona como um

    ncleo cognitivo que influencia respostas emocionais e motivacionais perante a doena.

    Cada pessoa elabora um significado que reflecte as experincias pessoais prvias, as

    crenas, o grau de conhecimentos e a bagagem cultural .

    No nos podemos esquecer que cada um de ns tem um projecto pessoal de vida.

    Assim, podemos imaginar que uma doena que obrigue a pessoa a levar uma vida

    mais protegida, no ter o mesmo significado nem ser vivnciada da mesma

    maneira se ocorrer numa dona de casa ou em algum que possua uma carreira

    profissional activa e a tenha como um de seus objectivos prioritrios.

    No mundo ocidental, numa sociedade marcadamente caracterizada pelo imperativo do

    consumo, pelo sentido de "ser bem sucedido", o doente terminal assume um papel de

    isolamento, dependncia, afastamento social e profissional e, talvez o mais difcil de

    suportar, o sentimento de inutilidade.

    53 Cf. DOMINGUES, Fr. Bernardo - Efeitos das doenas na vida das pessoas. Servir, Lisboa, 47 (3), Maio/Junho, 1999, p.l 14-116.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 3 7

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    Todos sabemos que a alterao da sade em qualquer pessoa produz uma mudana, uma

    alterao na sua personalidade, um desequilbrio no seu sentido de identidade. Da que

    numa primeira fase todos tenderamos a negar a sua existncia. Esta negao inicial

    funciona, segundo Elisabeth Kubler-Ross, como um "pra-choqu'' depois de notcias

    inesperadas e chocantes. A negao, embora contribua para o isolamento uma defesa

    temporria, sendo logo substituda por uma aceitao parcial. O passar do tempo faz

    com que gradualmente se recupere .

    A mesma autora afirma que frequente as pessoas acreditarem que a doena um

    castigo por qualquer m aco - segunda fase. Algumas pessoas que se sentem

    culpadas, consideram a doena um castigo merecido, outras acham que esto a ser

    castigados injustamente ou perguntam o que fizeram para merecer tal sofrimento. A

    ideia da doena ser uma forma de castigo muito frequentemente expressa em palavras,

    quer pelo prprio, quer por um familiar angustiado no se cansando de afirmar aos

    profissionais de sade a injustia que est a ser feita com seu destino. Por vezes, h

    quem procure um responsvel pelo seu sofrimento. Este pode ser atribudo a actos

    passados ou mesmo a uma pessoa em questo, o que leva a que determinadas pessoas se

    voltem para Deus onde encontram o conforto que necessitam ou se revoltem contra

    ele55.

    A terceira fase: negociao, corresponde ao acordo que feito, muitas vezes em

    silncio, para que possamos adiar o desfecho final. Na realidade, a negociao, uma

    tentativa de adiamento, onde se inclu um prmio oferecido e se estabelece uma meta

    auto-imposta (por exemplo o casamento de um filho ou o nascimento de um neto). A

    pessoa doente assume o compromisso implcito que no pedir outro adiamento, caso o

    primeiro seja concedido .

    Quando o doente em fase terminal no pode mais negar nem esconder a sua doena,

    sua revolta e raiva cedero lugar a um sentimento de grande perda. Esta perda

    poder apresentar muitas facetas: perda de emprego, encargos financeiros acrescidos,

    perda da

    54 Cf. KUBLER-ROSS, Elisabeth - Sobre a morte e o morrer, 1998, p.43-54.55 Cf. Ibidem, p.55-86.56 Cf. Ibidem, p.89-90.

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PEU PESSOA HUMANA

    sua imagem, perda de papeis familiares, etc. Estas perdas podem levar depresso -

    quarta fase5 .

    Aps ter tido o tempo necessrio, a pessoa atingir uma fase em que nunca mais sentir

    depresso nem raiva quanto ao seu destino - quinta fase: aceitao. Ter podido

    manifestar seus sentimentos, sua inveja pelos vivos e sadios e sua raiva por aqueles que

    no so obrigados a enfrentar a morte to cedo. Ter lamentado a perda iminente de

    pessoas e lugares queridos e contemplar seu fim prximo com um certo grau de

    tranquila expectativa. Estar cansado e, na maioria dos casos, bastante fraco. Sentir

    necessidade de dormitar com frequncia e intervalos curtos. No um sono de fuga,

    nem um perodo de descanso para aliviar a dor ou um incmodo. E uma necessidade

    gradual e crescente de aumentar as horas de sono, como um recm-nascido, mas em

    sentido inverso. No um desanimo resignado e sem esperana "O que adianta?" ou

    "No aguento mais lutar!", embora se possam ouvir estas frases. No se dever

    confundir aceitao com um estagio de felicidade. como se a dor se tivesse

    esvanecido, a luta tivesse cessado e fosse chegado o momento do "repouso antes da

    longa viagem" .

    Todas estas fases to bem definidas por Kubler-Ross, tm durao varivel, um

    substituir o outro ou podero mesmo encontrar-se lado a lado. Mas por vezes persiste,

    em todas estas fases, uma nica coisa: a esperana.

    E essa esperana que os sustenta atravs dos dias, das semanas ou dos meses de

    sofrimento. a sensao de que tudo deve ter algum sentido, que pode compensar, o

    suportar do sofrimento por mais algum tempo. a esperana, que de vez em quando se

    alude de que tudo isto no passa de um pesadelo irreal; de que numa linda manh se

    possa acordar com a notcia de que os mdicos esto prontos para tentar um novo

    medicamento que parece promissor e que o vo testar em ns; de que talvez seja o

    escolhido, o "doente especial". esta esperana que, no fundo, tempera a vida e faz

    encontrar o seu verdadeiro sentido.

    51 Cf. Ibibem, p.91-116.58 Cflbidem,p.l 17-142.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 3 9

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PEU PESSOA HUMANA

    1.2 - Os Cuidados Paliativos

    " bastante provvel que o homem seja o nico ser vivo com conscincia da inevitabilidade biolgica da sua prpria morte. Este conhecimento parece, no entanto, no trazer maior parte dos homens a grande vantagem que lhes estaria inerente: a alegria suprema de estar vivo em cada dia que passa. Pelo contrrio, para esses mesmos homens, apenas um dia a menos para chegar ao fim do caminho. nossa volta, nas palavras escritas e ditas, a morte aparece sempre como oposio vida quando, no fundo, ela apenas uma parte daprpria vida" .

    Como j temos vindo a referir, o sofrimento da pessoa em fim de vida, est muito para

    alm dos seus sintomas e do plano estritamente fsico. E, no sofre s quem est a

    morrer, nem a quem a morte pesa, pois a sua influencia to grande que todos os que

    lhe esto prximos - familiares, amigos, colegas de trabalho, profissionais de sade -

    sentem a sua presena. como se cada um de ns, perante a morte de seus

    semelhantes, tivesse a anteviso da sua prpria morte.

    No admira que a morte, envolta em densa espiritualidade, esteja presente em todas as

    religies, desde as origens do homem na terra. E, curiosamente, em todas elas, os

    ritos da morte so ritos de passagem, uma vez que a vida, na fase passada na

    terra, corresponderia a um estado passageiro, a caminho de uma outra realidade,

    apenas imaterial em funo da pobreza e da elementaridade dos nossos sentidos .

    Os cuidados aos doentes terminais surgiram dos hospcios ingleses, lugares onde

    antigamente descansavam os peregrinos, que ao longo dos sculos passaram a ser

    considerados lares para aqueles que, perto da morte, necessitavam de paz e de serem

    cuidados.

    Mas, porque provavelmente os mortos e moribundos, no protestaram nem tiveram

    capacidade reivindicativa, os cuidados aos doentes terminais sempre foram prestados

    59 BERNARDO, Mrio - Histria dos Cuidados Paliativos: Dor e Cuidados Paliativos, Lisboa: Permanyer Portugal, 1999, p.3.60 Cf. PHIOLLIER, Marguerite Marie - Dicionrio das Religies, Porto : Ed. Perptuo Socorro, 1999.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 40

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PEU PESSOA HUMANA

    numa base da caridade e nunca em funo de um dos mais elementares direitos do

    homem, o direito a "viver com dignidade at morrer".

    Segundo M. Nvoas Santos, j em 1935 Alfred Worcester, fez uma referencia

    importante nos cuidados paliativos modernos, escreveu o clssico texto "The care of the

    Aged, the Dying and the Dead" onde chamou a ateno para a necessidade de uma

    atitude perante a morte e perante os moribundos .

    A desiluso que se seguiu s expectativas criadas pelo aparecimento dos citostticos, na

    dcada de 50/60, que se mostraram ineficazes para curar a maior parte dos tumores,

    provocou em vrios pases, principalmente no Reino Unido, o aparecimento de um

    movimento destinado a apoiar os doentes terminais e a ajud-los a morrer melhor.

    Como reflexo mais evidente desse movimento foi inaugurado em 1967, o St.

    Cristhopher Hospice, em Londres, dirigido por Cicely Saunders. O ambiente criado

    neste hospcio, onde se prestava uma ateno global aos sintomas fsicos e aos aspectos

    psicolgicos, sociais e espirituais, permitiu que doentes e familiares tivessem uma

    melhor adaptao fase terminal da doena e a uma morte com maior dignidade. O

    sucesso do St. Cristhopher Hospice permitiu a difuso desta filosofia para outros

    hospcios e hospitais, levando criao de centros de referencia, instituio de

    programas especficos para cuidados domicilirios e instituio de programas de

    investigao e de formao profissional, assim como de voluntariado .

    A noo de "paliativo" conhecida em medicina desde o sculo XVII, e servia para

    designar toda e qualquer teraputica que actuasse sobre o sintoma e no sobre a causa.

    Engloba, portanto, o termo moderno de tratamento sintomtico. nesta perspectiva que

    a noo de medicina paliativa evoca, at ao incio do sculo XX, a da gesto de

    problemas sintomticos, mas com uma conotao pejorativa quanto ao efeito sobre a

    cura da doena.

    61 Cf. SANTOS, Manuel Nvoa - Cuidados Paliativos y Biotica. Cuadernos de Biotica, Santiago, IX (34), 1998,p.304-321.62 Cf. GONZALEZ BARON, M; J. JALON, J.; J. FELIU - Definition del enfermo terminal y preterminal, 1995, p.989-1022.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 41

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PEU PESSOA HUMANA

    O movimento dos "cuidados paliativos" definiu-se por oposio noo de medicina

    curativa, centralizando-se no alvio da dor e no acompanhamento no contexto do doente

    com cancro. Assim em 1979, a National Hospice Organisation (Estados Unidos),

    publica uma primeira definio que situa os cuidados paliativos a partir do momento em

    que j no visvel um tratamento curativo abordando igualmente a questo da

    qualidade de vida a oferecer a estes doentes em fase terminal do seu cancro .

    No entanto, a emergncia da SIDA nos anos 80, veio modificar esta definio. que

    perante o impasse teraputico, a abordagem paliativa foi de imediato associada aos

    cuidados curativos das doenas oportunistas64, a tal ponto que se pde falar da

    especificidade dos cuidados paliativos no contexto da SIDA.

    Segundo Luis Portela e Isabel Neto em 1987, foi criada no Reino Unido a

    especialidade de Medicina Paliativa sendo esta "constituda pelo estudo e resoluo

    dos problemas dos doentes com doena activa, progressiva e avanada para a qual

    o prognstico limitado e o objectivo dos cuidados a qualidade de vida" .

    A OMS, em 1990, publicou uma definio de cuidados paliativos que provavelmente

    a mais difundida em todos os textos relativos ao tema. Segundo a ela:

    "Os cuidados paliativos so cuidados activos, totais, prestados aos doentes cuja doena no tem benefcio com tratamento curativo. O controlo da dor, dos outros sintomas e de problemas psicolgicos, sociais e espirituais de suprema importncia. O objectivo do cuidado paliativo a obteno da melhor qualidade de vida para o doente e sua famlia. Muitos aspectos dos cuidados paliativos podem ser tambm aplicveis numa fase precoce da doena em conjugao com o tratamento de finalidade curativa''' .

    63 Cf. JOUTEAU-NEVES, Chantai ; MALAQUIM-PAVAN, Evelyne ; NECTOUX-LANNEBERE -Desafios da Enfermagem em Cuidados Paliativos, 2000, p.3.64 Cf. MUSSAULT, P. - Soins Palliatifs et SIDA: quelles enjeux?, Bulletin de l'association JALMALV,26, Setier, 1991.65 PORTELA, J. Lus; NETO, Isabel Galria - Histria dos Cuidados Paliativos: Dor e CuidadosPaliativos, Lisboa: Permanyer Portugal, 1999, p.5.66 ORGANIZAO MUNDIAL DE SADE - Alvio da dor e tratamento paliativo no doente com cancro, Genebra, 1990.

    Cristina Maria Correia Barroso Pinto 42

  • CAPTULO I ACERCA DO RESPEITO PEU PESSOA HUMANA

    Ao afirmar o valor da vida e ao lidar com o processo de morrer como sendo um

    processo normal, os cuidados paliativos no apressam nem adiam a morte, mas

    oferecem s pessoas um apoio rico e multifacetado ajudando-as a viver de forma to

    activa quanto possvel o tempo que as separa da morte, integrando sempre a sua

    realidade familiar e social.

    Segundo Gonzalez Baron, Jaln e Feliu j em 1991, um Sub-Comit para os

    Cuidados paliativos nomeado pelo Programa Europa Contra o Cancro, no mbito da

    Unio Europeia, publicou no Relatrio Final a sua prpria definio de cuidados

    paliativos. Sendo assim, cuidados paliativos so "-Cuidados continuados, activos,

    totais, aos doentes e famlias, por uma equipa multiprofissional, a partir do momento

    em que no h expectativas mdicas de cura e o objectivo primrio do tratamento

    no prolongar a vida" .

    O esboo, ainda que necessariamente sumrio, da evoluo nos nossos dias destes

    aspectos, justifica o ressurgimento da medicina paliativa, voltando a ouvir-se a clssica

    frase de W. Osler: "Curar - As vezes. Aliviar - Com frequncia. Consolar - Sempre" .

    De forma implcita na definio da OMS e explicitamente na do Sub-Comit da Unio

    Europeia para os Cuidados Paliativos, referida a aco de uma equipa

    multiprofissional para a prestao destes cuidados. Esta equipa dever ser constituda

    por mdicos, enfermeiros, terapeutas, assistentes sociais, religiosos e voluntrios. A

    multiplicidade dos elementos constitutivos desta equipa marca a diferena entre

    cuidados paliativos e medicina paliativa, onde os nicos intervenientes so mdicos.

    Desde 1994, a noo de "cuidados paliativos" tende a ser substituda pela de "cuidados