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  • 407Rev. Let., So Paulo, v.50, n.2, p.407-431, jul./dez. 2010.

    MODELOS CIENTFICOS COMO ELEMENTOS ESTRUTURANTES DE FICES EM PROSA

    Saulo Cunha de Serpa BRANDO*

    RESUMO: Neste texto faremos uma explorao do livro Vineland de Thomas R. Pynchon buscando comparar alguns de seus personagens com os oriundos dos modelos cientficos, como o Demnio de Maxwell, o do segundo tipo, o de Laplace e os Twin Photons.

    PALAVRAS CHAVE: Pynchon. Vineland. Modelos cientficos. Entropia.

    Introduo

    Alejo Carpentier (1985, p.XVIII), no prefcio do romance O reino deste mundo, informa que para que o Real Maravilhoso se estabelea necessrio ter. Ou seja, ele estabelece uma mxima que se faz absolutamente necessria para que ele possa desenvolver minimamente sobre aquela corrente esttica em um texto curto.

    Adotaremos a mesma prtica do autor cubano para afirmar que toda arte mimtica. Poderamos desenvolver exaustivamente esse preceito para dar a ele o suporte terico necessrio para que ele deixasse de ser um ponto discutvel, axiomtico, para tornar-se uma proposio terica palatvel, mas a fugiramos da temtica Literatura e Cincia proposto para este nmero da revista.

    Assim posto, trataremos rapidamente sobre a proposio apenas para evitar frustrar nossos leitores: os fsicos contemporneos, dependendo da escola a qual eles so filiados, acreditam em tipos de realidades variadas, fazendo uma taxonomia rpida pode-se mapear, pelo menos, 8 (oito) escolas diferentes e, conseqentemente, 8 (oito) realidades diferentes possveis. Por outro lado, os artistas podem ter percepes de realidades diferenciadas, isto por modificaes fisiolgicas naturais ou induzidas (drogas seria um artifcio), por distores de percepo por fatores culturais, ou ainda voluntariamente por acreditarem que a realidade percebida sensorialmente apenas a superfcie de outras mais complexas, como querem algumas correntes da fsica.

    * UFPI Universidade Federal do Piau. Departamento de Letras PPG Letras. Teresina Piau Brasil. 64.049-550 [email protected]

    Artigo recebido em 16 de outubro de 2010 e aprovado em dezembro de 2010.

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    Os artistas so extremamente sofisticados e em suas lidas buscam representar as realidades diversas as quais lhes ocorrem pelos motivos citados no pargrafo anterior, ou outros. Distores da realidade geradas por disfunes fisiolgicas ou por posio cultural do artista so patentes e no achamos necessrios mais esclarecimentos. Historicamente, podemos resgatar diversos exemplos de artistas que geraram padres de realidade a partir de drogas, e exemplificamos com dois notveis: Edgard Alan Poe e Samuel Coleridge. A partir das diversas possibilidades de vises de realidades, teremos produes artsticas que reflitam aquelas realidades, aparentando, para os menos iniciados, borres que, s vezes assemelham-se timidamente com a realidade visvel.

    Os exemplos no pargrafo anterior so de procedimentos mimticos relativamente banais. E quando dizemos da sofisticao dos artistas no nos referamos a esses procedimentos, e, s para exemplificar do que estamos falando, traremos para nosso leitor um exemplo, pouco conhecido, mas que nos serve muito bem: houve, na Rssia, nas dcadas finais do sculo XIX e iniciais do sculo XX, uma corrente muito forte de artistas que se ocupava em explorar a realidade a partir de resultados obtidos com o uso do Raio-X, aplicado sobre diversos objetos, inclusive o ser humano. Eles se auto-intitulavam Raistas. E no eram nicos, na Europa Ocidental existem diversos artistas que produziram a partir de resultados do Raio-X, por exemplo: Marcel Duchamp, com sua tela denominado Nude descending a staircase, No 2, que foi produzido, declaradamente, a partir dos trabalhos pioneiros em cronofotografia geomtrica de tienne-Jules Marey (HENDERSON, 1988).

    Tudo dito at o momento para defender minimamente que o artista busca representar realidades diversas e por isso o nosso preceito inicial de que toda arte mimtica.

    Trataremos a partir daqui sobre modelos cientficos e ficcionistas que se utilizam desses modelos para criar o comportamento de personagens. Mas especialmente o romance Vineland de Thomas R. Pynchon (1990).

    De modelos, Pynchon, Cincia

    Dentre os muitos enigmas que o mundo pynchoniano nos apresenta, preocupamo-nos neste trabalho com a peculiaridade com que os personagens se comportam, que o raciocnio comum nos deixa sem amparo. Estamos entre os crticos de Pynchon que crem que tudo que o autor escreve liga-se, de alguma forma, s cincias e em especial entropia em suas mais diversas facetas: como axioma na termodinmica e bioenergtica; como lei estatstica; como fenmeno na informao;

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    ou, como rudo na comunicao. Ainda como forte leitmotiv no pensamento de James Clerk Maxwell, Henry Adams e outros.

    Nossa proposta parte da ideia nuclear de que os personagens na prosa de Pynchon comportam-se como entidades que povoam modelos cientficos. Estes so criaes dos cientistas para melhor explicar os seus inventos ou preocupaes e, tambm, para eles mesmos entenderem mais os fenmenos ou para redefinirem os mesmos. Esses modelos so estudados na rea da Filosofia da Linguagem, sendo Max Black (1962) um dos pensadores mais preocupado com eles nessa rea, j na Filosofia da Cincia, Mary Hess (1966) faz esse papel. Na Teoria Literria os modelos no so completamente desconhecidos, Paul Ricouer (1986) tratou do assunto, mas de passagem.

    Thomas Pynchon um grande desconhecido no Brasil, embora quase todos os seus romances, com exceo apenas para os dois ltimos: Against the Day- 2007 e Inherent vice2009, estejam traduzidos para o portugus. A crtica especializada, junto com outra frao da populao mais intelectualizada, aponta o seu nome como o mais expressivo da literatura americana contempornea. Neste meio, existe uma unanimidade inquestionvel quanto ao valor de suas obras. Harold Bloom (1994) chega ao ponto de falar de um processo de canonizao precoce e continua para dizer que ele, Pynchon, no um Shakespeare, mas que, provavelmente, est provendo o cnone. Bloom nega que Pynchon seja um Shakespeare, mas essa negao utilizando o nome do bardo ingls eleva a postura do ficcionista a um quase-Shakespeare. O crtico no faria uso do nome do dramaturgo se no quisesse significar exatamente isso. uma negativa que afirma. Ele poderia ter utilizado o nome de um sem nmero de grandes autores norte-americanos (Faulkner, Hemingway, Fitzgerald, Melville), mas ele preferiu o nome do ingls, o que eleva a condio de Pynchon, pois ele no comparado apenas com autores americanos, mas com autores que utilizam o idioma ingls como expresso. Bloom sabe que nada inocente num texto, cada palavra tem o seu valor e devem ser entendidas como tal.

    Pynchon foi contemplado com todos os grandes prmios literrios no circuito americano (com exceo do Pulitzer [foi indicado, mas Gore Vidal vedou o nome dele por considerar seus romances indecentes]), mas nunca recebeu pessoalmente nenhum. No incio de sua carreira, chegou a indicar amigos para receberem as premiaes, mas mais tarde passou a simplesmente recusar os prmios. Isso d uma ideia muito viva do grau de recluso que o autor se imps. Ningum sabe quem Thomas Pynchon. Os ltimos dados oficiais dele datam da dcada de 50, quando ele era aluno de Cornell University. Desta poca, sabe-se que ele iniciou naquela universidade como aluno de Fsica Terica e formou-se em Letras [English]. Em 1997, alguns crticos comearam a questionar se ele no teria morrido, pois havia 7 anos que ele nada publicava. Como resposta, Pynchon nos presenteou com o fabuloso romance Mason & Dixon. Surpresa

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    ainda maior para os crticos ao descobrirem que a trama do livro ocorre no sculo XVII. Imprevisvel, pois dentro de sua linha ficcional seria mais plausvel um salto para o futuro. Ele inovou e revigorou sua prosa e conseguiu superar-se uma vez mais.

    Ao ler um livro de Pynchon, percebe-se de imediato um profundo vnculo com as cincias da natureza, isso inevitvel. Embora existam crticos de todas as formaes tratando, a suas maneiras, esses textos de fico, mas as melhores crticas, em nosso entendimento, so aquelas que apontam detalhes do relacionamento entre a fico e conceitos fsicos. Tome-se, por exemplo, um conto publicado na dcada de 60 do sculo passado que se chama Entropy. Como podemos pensar em abordar esse texto sem ter a curiosidade de olhar no dicionrio o significado do termo? No momento em que descobrimos que entropia um axioma da termodinmica e, rasteiramente, o que ele dita, compromete-se qualquer ideia prvia que tivesse sobre o conto. Obrigando-nos a trilhar o caminho que o texto pede, e ele clama para ser lido como uma fico que est emaranhada em um conceito fsico. Essa experincia no se restringe ao conto. Os romances seguem o mesmo caminho, a entropia discutida, explicitamente, em V., The crying of lot 49 e em Gravitys rainbow.

    O quarto romance, Vineland, decepcionou a crtica por no trazer qualquer referncia entropia. Os crticos, quase na unanimidade, declararam que Pynchon tinha, por fim, largado sua metfora favorita. No nos convence! Trabalhamos com a possibilidade de a cumplicidade entre autor e sua metfora ter atingido seu grau mais avanado de parceria ao ponto de a ltima ter aceitado se eclipsar completamente do texto, mas continua a atuar no lado obscuro do texto, determinando os meandros deste. Mas o fato de a entropia aparecer de forma to enrustida, imperceptvel, foi uma coisa muito boa, pois redirecionou a crtica para novas e diversas aventuras. Acreditamos que nos primeiros textos ficcionais o autor estava ensinando e treinando os seus leitores para novas possibilidades estticas dentro de um novo espao, que h muito perdeu a fisionomia moderna e passou a apresentar um novo perfil (ou caricatura?!), mas que os nossos rgos sensoriais e cognitivos, viciados na esttica moderna, no conseguiam perceber. Vineland apresenta-se como uma checagem de aprendizado e, ao que parece, a contar com a guinada dada pela crtica, a lio foi aprendida.

    Esse aparente divrcio entre o autor e sua metfora o motivo da escolha de Vineland para ser o nosso principal objeto desta pesquisa.

    Entropia como metfora basilar (root metaphor) de Thomas R. Pynchon

    Estabelecer a inteno do autor quando da produo de um texto ficcional, em prosa ou verso, um desgnio complicado. As dificuldades intrnsecas a esse trabalho

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    so muitas e a validade do resultado seria fatalmente comprometida por ser um estudo fora da pauta da crtica atual. Nos ltimos cem anos a crtica literria vem movendo seu eixo de interesse. No sculo XIX, os trabalhos que colocavam o plo produtor do texto como fonte para compreenso do trabalho artstico eram bem aceitos. No decorrer do sculo XX, o eixo de interesse dos investigadores migrou para o texto e suas formas e estruturas; mais tarde, debruaram-se sobre o plo receptor, com as bem articuladas teorias da Recepo e do Efeito. Mas o texto no saiu do palco, apenas aceitou dividir um espao pequeno dele. Hoje, a Recepo continua sendo bem aceita, mas o privilgio do texto , sem dvida, o que est na moda. As teorias para abordagem crtica com foco no texto aliadas a outras, como as psicanalistas e feministas, so cada dia mais arrojadas.

    Na contemporaneidade, seria difcil retomar uma crtica intencionista. Mesmo a psicanlise aborta a possibilidade de se chegar a concluses sobre o autor a partir do texto que ele produziu. Eco (1995, p.14) aponta duas tentativas neste sentido que chegam a resultados bem diferentes: Derrida, lendo A carta roubada de Edgard Allan Poe, faz um trabalho em que tenta alcanar o inconsciente do texto, opondo-se a qualquer ideia da crtica lacaniana de atingir o inconsciente do autor. Por outro lado, Maria Bonaparte usa textos de Poe para especular sobre a personalidade do ficcionista. A primeira experincia rica em resultados hermenuticos; a segunda reducionista e pouco frtil.

    No , absolutamente, nosso propsito discutir aspectos ligados vida privada do autor, mas consideramos importante especular um pouco sobre os motivos que impulsionam os contos e romances de Thomas Pynchon. Para tanto, nos concedemos a flexibilidade de citar um dos raros dados biogrficos do escritor e um dado sobre a historiografia de suas obras: Pynchon foi aluno de Fsica Pura em Cornell; e, um dos seus primeiros contos publicado chamava-se Entropy.

    A partir desses dados histricos e lendo atentamente seus contos e romances, podemos observar que a metfora da entropia (2 Lei da Termodinmica) est presente em todos os seus textos. Desde contos publicados em jornais literrios na dcada de 50, at os romances maduros. Esta informao no novidade para pessoas afeioadas literatura norte-americana contempornea. Em diversos artigos crticos e ensaios, encontraremos a fico de Pynchon associada entropia. O que observamos, alm disso, que a metfora no est presente da mesma forma de texto para texto. Um exemplo desta afirmao o distanciamento da superfcie do texto em que encontraremos os ndices: em Entropy eles aparecem literalmente, j em Vineland, os traos no aparecem tona, mas em suas estruturas mais profundas.

    Nossa proposta passa pela crena de que cada autor tem um modelo subjacente operando o pensamento desse sujeito- em larga escala, cada pessoa teria seu modelo

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    guia- enquanto na elaborao do texto que est para produzir. Este conceito aproxima-se do que Stephen Pepper cunhou como root metaphor, que funciona da seguinte forma:

    A man desiring to understand the world looks about for a clue to its comprehension. He pitches upon some area of common-sense fact and tries if he cannot understand other areas in terms of this one. The original area becomes then his basic analogy or root metaphor. He describes as best as he can the characteristics of this area, or, if you will, discriminates its structure. A list of its characteristics becomes his basic concepts of explanation and description. We call them a set of categories. In terms of these categories he proceeds to study all areas of fact whether uncriticized or previously criticized. He undertakes to interpret all facts in terms of these categories. As a result of the impact of these other facts upon his categories, he may qualify and readjust the categories, so that a set of categories commonly changes and develops. Since the basic analogy or root metaphor normally (and probably at least in part necessarily) arises out of common-sense, a great deal of development and refinement of a set of categories is required if they are to prove adequate for a hypothesis of unlimited scope. Some root metaphors prove more fertile then others, have greater power of expansion and adjustment. These survive in comparison with others and generate and relatively adequate world theory.1 (PEPPER, 1942, p.92).

    Nesta proposta, o sujeito investigador apega-se parte melhor compreendida do novo que se apresenta e, a partir dessa pequena rea mais familiar, elabora analogias para melhor entender o todo. Obviamente, esse processo pode ser a prpria concepo do mundo a partir do modelo que formemos do ambiente mais imediato. Pensando dessa maneira, estaremos falando da concepo de uma ontologia. Mas, pode ser tambm, uma formulao para encararmos cada fenmeno que tomemos conhecimento. Desta forma, no teramos uma nica root metaphor, mas diversas, que seriam formadas a partir de nosso conhecimento adquirido e aspectos mais familiares de cada objeto a ser racionalizado.

    1 Um homem, desejando conhecer o mundo, procura uma pista para sua compreenso. Ele lana-se sobre uma rea de fatos que sejam senso comum e tenta se ela no pode entender as outras reas nos termos daquela. A rea original torna-se, ento, sua analogia bsica ou sua metfora basilar. Ele descreve, o melhor que pode, as caractersticas dessa rea ou, se preferir, discrimina sua estrutura. A lista de suas caractersticas estruturais torna-se seu conceito bsico de explicao e descrio. Ns a chamamos de um conjunto de categorias. Ns termos destas categorias, ele parte para estudar outras reas do fato se no criticada ou previamente criticada. Ele aventura-se a interpretar todos os fatos nos termos destas categorias. Como resultado do impacto destes outros fatos sobre sua categoria, ele pode qualificar e reajustar as categorias, de forma que o conjunto de categorias comumente muda e desenvolve. Desde que a analogia bsica ou metfora basilar normalmente (e provavelmente em parte necessariamente) flora do senso comum, uma grande parte do desenvolvimento e refinamento do conjunto de categorias faz-se necessrio se ele tem de se provar adequado para uma hiptese de espectro ilimitado. Algumas metforas basilares mostram-se mais frteis que outras, tm maior poder de expanso e ajuste. Estas sobrevivem em comparao com outras e geram teorias de mundos relativamente adequadas. (traduo nossa).

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    M. H. Abrams trata do assunto sem fazer meno a qualquer estrutura subjacente ao pensamento do investigador, mas como um mtodo em que

    Our usual recourse is, more or less deliberately, to cast about for objects which offer parallels to dimly sensed aspects of the new situation, to use the better known to elucidate the less known, to discuss the intangible in the terms of the tangible. This analogical procedure seems characteristic of much intellectual enterprise. [] We tend to describe the nature of something in similes and metaphors, and the vehicles of these recurrent figures, when analyzed, often turn out of be the attributes of an implicit analogue through which we are viewing the object we describe.2 (ABRAMS, 1953, p.53).

    Nossa ideia mais radical que a de Abrams (1953) ou a de Pepper (1942), esta quando pensada que a formao da root metaphor acontece toda vez que encontramos um fenmeno novo, mas de igual envergadura se se tomar a teoria como mecanismo para construo do mundo. Mas, irremediavelmente, na mesma linha das duas propostas, inclinamo-nos para o caminho mais inflexvel da proposta de Pepper. No aceitando, porm, na criao da metfora basilar, somente quando, e a partir do encontro do sujeito com o novo. A metfora seria anterior ao encontro com o desconhecido e ela seria nossa ferramenta para desvendarmos o mundo. Concordamos, outrossim, que esta ferramenta possa ser reelaborada por um conhecimento adquirido, posteriormente, que seja pertinente s bases da metfora, ou, ainda, que se expanda para dar conta de um novo que ela no suporta. Como em Abrams, o mecanismo primrio da metfora basilar seria a analogia ou smile. O conceito mais prximo de nossa perspectiva encontramos em Max Black, ele chama de conceptual archetypes e os descreve assim:

    By an archetype I mean a systematic repertoire of ideas by means of which a given thinker describes, by analogical extension, some domain to which those ideas do not immediately and literally apply. Thus, a detailed account of a particular archetype would require a list of key words and expressions, with statements of their interconnections and their paradigmatic meanings in the field from which they were originally drawn. This might then be supplemented by analysis of the ways in which the original meaning become extended in their analogical uses.3 (BLACK, 1962, p.241, grifo do autor).

    2 Nosso recurso natural , mais ou menos deliberadamente, pensar por objetos que ofeream paralelos para aspectos sentidos obscuramente da nova situao, usar o mais conhecido para elucidar o menos conhecido, discutir o intangvel nos termos do tangvel. Este procedimento anlogo parece caracterstica de procedimento intelectual. [] Ns tendemos a descrever a natureza de algo em smiles e metforas, e os veculos destas figura recorrentes, quando analisados, freqentemente revelam-se ser os atributos de um anlogo implcito atravs do qual ns estamos vendo o objeto que descrevemos. (traduo nossa).3 Por arqutipo, eu quero dizer um repertrio sistemtico de ideias que, por meio delas, um dado pensador descreve, por extenso analgica, algum domnio ao qual aquelas ideias no se aplicam imediatamente ou

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    Black (1962) vai alm e aponta um exemplo de como, o que ele chama de conceptual archetype, funciona no trabalho do terico Kurt Lewin. Este negava o uso de qualquer modelo pr-adquirido influenciando o desenvolvimento de suas ideias sobre as relaes entre fatos psicolgicos e as construes matemticas. Mas o vocabulrio utilizado pelo pensador em questo desautoriza a assertiva por estar recheado de termos oriundos da fsica, tais como: campos, vetores, tenso e fora. Black (1962, p.241), no mesmo texto citado acima, conclui afirmando que a existem [] visible symptoms of a massive archetype awaiting to be reconstructed by a sufficiently patient critic.4

    No caso de Pynchon, existe uma metfora basilar clara e, como j dito, reconhecida por um nmero grande de crticos. Pertinente a nossa proposta, a metfora da entropia vem tomando outros e sofisticados aspectos a medida que so propostas novas teorias sobre o fenmeno fsico da entropia. E, paralelamente, os novos conceitos que o fenmeno gera aparecem na metfora utilizada pelo ficcionista. Destarte, em Entropy encontramos o fenmeno sendo tratado na esfera da energia- Termodinmica. Em The crying of lot 49 (PYNCHON, 1982), a mesma metfora aparece com a face da entropia nos sistemas comunicacionais (BRANDO, 2001). J em Vineland (PYNCHON, 1990), percebemos a metfora com traos dos estudos da Teoria da Informao. Ou seja, a metfora basilar do ficcionista vem se remodelando de forma a tornar-se mais extensa e assim poder dar conta de fatias maiores da nova realidade que se apresenta. Isso no significa, absolutamente, que apenas um aspecto do fenmeno seja privilegiado em cada texto. A evoluo teortica dos conceitos na cincia foi absorvida, lucubrada e acumulada pelo escritor. As diversas faces da entropia apareceram, crescentemente, na medida em que contos e romances so publicados. Os enredos tornam-se mais elaborados e complexos, justamente para contemplar outras facetas do mesmo fenmeno.

    Esta parte do trabalho foi desenvolvida com o intuito de demonstrar que por ter sua metfora basilar na cincia, Pynchon (1990) se v impulsionado a revelar seu mundo pela perspectiva cientfica. No por opo, mas por ser esse o caminho que se coloca a priori para que ele estabelea sua relao com o mundo e com sua realidade.

    literalmente. Assim, a conta de um determinado arqutipo requeriria uma lista de palavras-chaves e expresses, com definies de suas interconexes e seus significados paradigmticos nos campos dos quais elas so originalmente tiradas. Isso deve ser, ento, suplementado por uma anlise das maneiras pelas quais o significado original torna-se extensivo em seu uso analgico. (traduo nossa).4 [] sintomas visveis de um arqutipo massivo esperando para ser reconstrudo por um crtico suficientemente paciente. (traduo nossa).

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    Os modelos cientficos

    Existe uma barreira muito forte entre as propostas de cientistas e o homem ordinrio: todo fenmeno definido em termos matemticos. Uma teoria cientfica no tem utilidade, no est completa, enquanto no for descrita matematicamente. Como queria Descartes (1982), h quatro sculos. Por isso comum se dizer que a matemtica uma linguagem universal: todo cientista pode ler os conceitos e axiomas que funcionam em uma proposio terica a partir do desdobramento da frmula que justifica a teoria. Mas no uma linguagem fcil nem acessvel a todo mundo. A pequena comunidade de iniciados nas cincias so os alfabetizados para este idioma que, junto com a msica, se prope a ser universal.

    Vem de longe a necessidade dos cientistas de se fazerem entender pelo homem comum, incapaz de ler suas expresses matemticas. Mesmo quando algum consegue fazer uma leitura proficiente dos termos finais de uma proposio fsica, por exemplo, nem sempre ele pode entender a abrangncia e implicao do que ali est proposto. antiga a luta de homens da cincia para conseguir que mecenas, administradores ou governantes invistam em algum projeto. A dificuldade enesimamente maior se o detentor ou controlador do numerrio no entender o projeto a ser financiado. Da a necessidade da criao de modelos cientficos que sirvam de ilustrao de como funciona o mecanismo a ser criado, ou as vantagens de se estabelecer foras no conhecidas que agem em determinada situao. Os modelos mais simples so aqueles em escala (miniaturas ou amplificaes).

    O melhor conceito para modelos cientficos encontramos em Paul Ricoeur (1986, p.240), que os define como um [] heuristic instrument that seeks, by means of fiction, to break down an inadequate interpretation and to lay the way for a new, more adequate interpretation5. Ou seja, uma sada cmoda para o problema de entendimento de uma questo cientfica que, como veremos adiante, esclarece funcionamentos e regras, muitas vezes sem o custo e o risco da montagem do experimento. Como afirma Mary Hess (1966, apndice) um modelo cientfico seria an instrument of redescription6.

    O raciocnio para a criao de modelos, como os indicados em um pargrafo anterior, atende fortemente a uma lgica mercantilista. Obviamente, no necessariamente esta a nica ocasio em que se utilizam modelos, mas sem dvida a mais pragmtica. Nem Max Black, nem Mary Hess, os dois maiores tericos dos modelos cientficos, sequer citam esta lgica como sendo a mola que impulsiona homens das cincias a criarem modelos. Os dois tericos reconhecem que a lgica

    5 instrumento heurstico que procura, por meio da fico, desmantelar uma interpretao inadequada e indicar o caminho para uma interpretao nova e mais adequada (traduo nossa).6 instrumento de redescrio (traduo nossa).

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    reinante no processo, aquela da descoberta, da inveno, da compreenso. Portanto, o vnculo entre modelo cientfico com mercado culpa, exclusivamente, nossa.

    Max Black (1962), que se detm mais na teorizao dos modelos como ferramenta lingstica prpria dos laboratrios e dos seres que os habitam, difere e teoriza sobre quatro tipos de modelos, eles so: scale model, analogue model, mathematical model e theoretical model. Marry Hess (1966), em sua especulao sobre os modelos, no contempla o modelo matemtico, mas segue a mesma linha de raciocnio que Black nas demais possibilidades, portanto, seguiremos consultando este em tudo o que diz respeito ao assunto.

    O modelo em escala

    O modelo em escala, j mencionado acima, funciona a partir de construes do objeto a ser analisado em propores maiores ou menores. Assim, arquitetos e engenheiros elaboram maquetes de prdios ou navios para melhor apreciar detalhes arquitetnicos, funcionais, formais e estticos. Mas tambm como instrumento de comercializao de seus produtos ( nesta perspectiva que afirmamos, anteriormente, que existe um coeficiente mercadolgico na construo de modelos). O terico faz algumas exigncias para construo deste modelo:1. Ser sempre o modelo de alguma coisa; 2. O modelo tem que ser um meio para um fim; 3. Ele a representao de algo real ou imaginrio, e serve para que se saiba diretamente as propriedades do original; 4. Algumas caractersticas do modelo podem ser irrelevantes, e outras, relevantes, para a representao em questo, no existindo nunca um modelo completamente confivel; 5. Existe sempre uma forma correta de se entender o modelo; e, 6. As convenes interpretativas jazem na identidade parcial de propriedades unido invarincia das proporcionalidades.

    O propsito de se fazer modelos em escala reproduzir, de forma manusevel algumas caractersticas do original. Saber como o prdio vai parecer, ou como o iate vai flutuar.

    O modelo analgico

    O modelo anlogo , como o modelo em escala, uma representao simblica. Eles so objetos materiais que se prestam a reproduzir, da forma mais acurada possvel, em um novo meio, a estrutura ou as relaes que existiam no original. Black (1962) cita como exemplos o modelo hidrulico de sistemas econmicos e o uso de circuitos eltricos em computadores. O grande diferencial desse tipo de sistema a mudana

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    de meio. Se, por um lado, o modelo em escala funciona por identidade, imitando o original em tudo exceto onde algum grau de manipulao se faz necessrio, a se emprega o mecanismo real, modificando apenas em suas dimenses. Pelo outro lado, os modelos anlogos no esto apegados aparncia, mas reproduo da estrutura de funcionamento do original. So ferramentas excelentes para a proposio de hipteses, mas falhas em relao s provas.

    O modelo matemtico

    Black (1962) considera os modelos matemticos como sendo um tratamento pretensioso para o termo teoria ou tratamento matemtico. Estes termos seriam acrescidos de trs sugestes para serem considerados modelos: 1. O campo original pensado como sendo projetado sobre o domnio abstrato da teoria matemtica correlata; 2. O modelo concebido para ser mais simples e mais abstrato do que o original; e, 3. O modelo seria como um modelo anlogo etreo como se a frmula matemtica se referisse a um mecanismo invisvel. Black insiste que esta ltima seja rejeitada como iluso.

    O modelo terico

    Esses so os modelos prediletos dos filsofos da cincia. Os modelos tericos no precisam ser construdos, eles so, apenas, descritos. E isso feito usando-se uma nova linguagem, ou dialeto, usado em uma teoria familiar, mas expandida para um novo domnio de aplicao, embora usado para descrever um objeto definido ou sistema. O modelo imaginado ter apenas as caractersticas dadas a ele por seu criador, mas este fica privado do controle do modelo quando da tentativa de construo do objeto. As condies para o uso do modelo terico so: 1. Termos um campo de investigao original; 2. Existncia da necessidade de explicaes para se entender termos bsicos aplicados ao domnio original; 3. Descrevemos uma entidade que pertena a um campo mais conhecido ou menos problemtico; 4. Existam regras correlatas que traduzam caractersticas do segundo domnio sobre o domnio original; e, 5. Interferncias provindas da assuno de regras aplicveis ao domnio secundrio devem ser checadas contra o domnio primrio.

    Crer em um modelo terico parece um procedimento errtico e artificial. O que se pergunta se o atalho no ser mais complicado e tortuoso do que enfrentar o fenmeno por meios mais eficazes. Existe quem pense (esta sugesto vaga feita por BLACK, 1962, p.231), que o uso de modelos na cincia paralelo ao uso de

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    metforas e fbulas na literatura e, a questo que se impe : ser que a cincia pode se valer de mtodos to pouco controlveis para buscar a verdade? A resposta est, com certeza, na larga utilizao de modelos na cincia. Em nossa compreenso uma coisa vale pela outra, no exatamente uma metfora, pois a metfora uma construo de uma idia nica formada por dois eixos distintos que se unem para constru-la, portanto no temos como apontar as partes de uma metfora como podemos fazer com um modelo, mas a comparao com a fbula ou a alegoria seria muito apropriada. No seria nada despropositado, entretanto, comparar os modelos com as metforas ou com as fbulas no sentido que todos tm uma funo cognitiva. Mais pertinente, seria dizer que o modelo est para a cincia, assim como a metfora est para a teoria da literatura, uma vez que tanto um como a outra servem para que o pesquisador entenda melhor seu objeto de estudo.

    Exemplos de modelos tericos vo desde a clssica representao por Maxwell dos campos eltricos em termos de um fluido invisvel; ou, Lord Kelvin tratando a matria que preenche o universo como sendo um ter luminoso [luminiferous ether]; passando pelo modelo mecnico rude de Kelvin; o sistema solar de Rutherford; ou citando, ainda, o modelo atmico de Bohr. muito difcil pensar na cincia sem passar pelos diversos modelos que, alm de servir ao cientista como instrumento de raciocnio e descoberta de novas caractersticas, faz a comunidade leiga entender melhor as proposies de cada um deles.

    Na criao de modelos tericos, que no so pensados na esperana de um dia serem montados, vale mais a maneira que o cientista escolhe para descrever o experimento. Enquanto Maxwell, tratando dos campos eltricos em termos de um fluido invisvel, escolhe suas palavras para fazer ver que ele est montando um artefato abstrato por natureza e por exigncia do rigor cientfico desejado, Kelvin fala do seu ter luminoso como se de fato existisse. Enquanto o primeiro est consciente de que est montando uma analogia, o segundo d um tratamento a sua linguagem como se desse conta de uma descoberta de fato, como se o ter fosse fato e no fico. Black (1962) distingue entre os dois processos afirmando que um constri seu modelo a partir de uma fico heurstica [heuristic ficcion], enquanto o outro se faz valer de um pretenso material real [real matter] na elaborao. Mas que, embora seguindo meios diversos, ambos constroem modelos tericos.

    Os modelos em Vineland

    Passaremos a seguir a demonstrar como o comportamento das fices heursticas (dos modelos) pode ter servido para determinar o comportamento de alguns personagens de Pynchon (1990) em Vineland.

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    O Demnio de Maxwell

    Falar do Demnio de Maxwell requer um conhecimento prvio sobre as leis da termodinmica. Faremos isso brevemente no pargrafo a seguir.

    A 1 Lei da Termodinmica diz respeito quantidade de energia disponvel no universo. Ela reza que o universo tem uma quantidade finita de energia disponvel e mais: que energia no pode ser criada nem destruda, mas transformada. A 2 Lei determina que aps cada transformao sofrida pela energia ela sempre sai enfraquecida, pois parte dela gasta na transformao, que acaba por gerar um trabalho e, tambm, porque outra poro se dissipa, geralmente, em forma de calor e incandescncia. comum no mundo da fsica se dizer que o almoo nunca de graa [... there is no free lunch], porque, mesmo que voc no tenha que pagar pela comida, voc usar energia no processo. Outro ditado comum dizer que o rio sempre corre para o local mais baixo [the river always run downhill], a gua funcionando como uma metfora para a energia. A entropia seria a medida usada para se definir essa energia desgastada. Por isso diz-se que a entropia em um sistema fechado tende sempre a aumentar.

    O fsico escocs James Clerck Maxwell, enquanto trabalhava desvendando dilemas profundos da fsica de seus dias, propondo a teoria que d conta dos fenmenos eletromagnticos e determinando a real natureza da luz, distraia-se com uma inveno teortica na tentativa, primeira, de melhor compreender o mundo subatmico e, segundo, desmantelar os princpios bsicos da termodinmica7.

    O cientista imaginou um sistema fechado com uma parede divisria interna, criando, assim, duas cmaras separadas dentro de um ambiente fechado ao mundo externo. Na parede divisria haveria uma janela que seria controlada por um homnculo. Este teria a capacidade de ver as partculas do gs que enchia o sistema e, assim sendo, podia separar as partculas rpidas das vagarosas, deixando que as primeiras passassem para um dos compartimentos e mantendo as segundas no espao de origem. Agindo dessa forma, ele estaria criando um gradiente trmico (molculas velozes so mais quentes, as lerdas menos quentes) entre os dois compartimentos. Na hora que existem dois patamares trmicos, passa a existir, tambm, uma diferena de presso. Dessa forma, o sistema est apto a realizar trabalho. Ora, se o pequeno ser criado por Maxwell trabalha nesse sentido permanentemente a entropia dentro do sistema estar sempre diminuindo e, com isso, violando a 2 Lei da Termodinmica. Estaria criado o mais que procurado moto-contnuo: um sistema capaz de trabalhar

    7 A partir deste ponto, e enquanto tratar do Demnio de Maxwell, estaremos parafraseando Hans Christian von Baeyer (1998, 1992) de seus livros Maxwells Demon Why warmth disperses and time passes e Taming the atom The emergence of the visible microworld, bem como Arthur W. J. G. Ord-Hume (1998) de Perpetual motion The history of an obsession. Caso outro autor venha a ser convidado faremos as devidas referncias.

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    sem jamais receber qualquer injeo de energia. A esse modelo deu-se o nome de Demnio de Maxwell.

    A funo mestra do demnio organizacional. O cilindro de presso s funciona se determinadas partculas estiverem nos locais certos e a funo do modelo proposto por Maxwell a de separar as partculas para atingir o propsito. Outro ponto que necessita estar claro para que o passo que daremos a seguir no parea despropositado que o demnio trabalha na fronteira entre dois espaos, sua funo no permitir que as partculas estejam no local errado. Agindo da forma planejada ele consegue diminuir a entropia do sistema, falhando em sua misso ou sendo incapaz de operar como planejado ele no impedir que a entropia, como prescrito na segunda lei, aumente.

    Passemos agora a uma breve sinopse do romance Vineland. A maneira mais didtica de explicar o enredo dividindo-o em duas partes, alguns personagens pertencentes a um lado do enredo e outros ao outro, com alguns personagens cruzando a fronteira entre as partes, de vez em quando. Informamos que a deciso de dividir o enredo para melhor entend-lo no foi criada para favorecer nossa abordagem. Outros crticos j usaram a mesma estratgia, mesmo porque clara a existncia de dois ncleos na histria. Mas, sem dvida, esse procedimento vem ao encontro do nosso interesse.

    Podemos pensar no enredo como sendo o sistema dividido em duas cmaras. Weed, Rex, Vado, Blood, Takeshi como sendo um lado do sistema e Zoyd, Sasha, Frenesi, Prairie, Isaiah como sendo o outro lado do mesmo sistema. Alguns personagens so fronteirios como Zuninga e Brock. Mas o importante de se observar que existe, pelo menos, um personagem que se coloca entre as duas cmaras e tenta organizar o sistema catico criado pelo autor, esse personagem DL.

    O personagem DL nos apresentado, no tempo presente da narrativa, em uma festa de casamento na casa de uma famlia de mafiosos, em que The Vomitones, o conjunto musical de Isaiah, est tocando. Prairie, filha de Zoyd com Frenesi e namorada Isaiah, acompanhou os msicos e l conhece DL. Ocorre que, embora essa seja a primeira vez que DL aparece, o narrador promover flash-backs em que sua presena ser constante. Na maior parte de suas aparies encontraremos DL atuando como um vetor de organizao, como o demnio. Ela tenta freneticamente evitar que determinados personagens mudem de lado no enredo. Isto verdade, especialmente, quando se trata de Frenesi, mas tambm verdade para Prairie.

    Outra caracterstica reveladora de seu status do Demnio de Maxwell o seu poder de acelerar a entropia dentro de um sistema. Moacir Carneiro Leo (1985) ensina que impossvel se medir a entropia em um sistema aberto- ele falava do corpo humano-, mas que, com certeza, ela mxima quando o corpo est morto. Nesse sentido encontramos DL com a capacidade de acelerar a entropia em

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    organismos vivos. Ela conhecedora de fatais golpes de ninja como o Neddle Finger e a Vibrating Palm. Com um toque ela pode levar o indivduo a comear a morrer e a morte acorrer no decorrer de, at, um ano. Da mesma forma que ela capaz de produzir a morte de uma pessoa, ela pode desfazer o golpe, ou seja, redirecionar o processo entrpico. Nesta modalidade ela precisa que a vtima seja submetida a um tratamento pela Puncutron Machine, mas que, depois do tratamento, ela tem que estar junto da vtima pelo perodo de um ano para que esta se restabelea e, tambm, para que ela, DL, encontre o seu balanceamento karmico perdido, observe-se:

    Therefore you, Sister Darryl Louise, under pain of the most major sanctions, are commanded to become this fool devoted little, or in your case big, sidekick and to try and balance your karmic account by working off the great wrong you have done to him [...].8 (PYNCHON, 1990, p.163).

    Quando Takeshi entra na sala da mquina, o narrador explica que

    It was clear that electricity in unknown amounts was meant to be routed from one of its glittering parts to another until it arrived at any or all of a number of decorative-looking terminals, or actually, purred the Nijette Puncutron Technician who would be using it on Takeshi, as we like to call them, electrodes.9 (PYNCHON, 1990, p.164, grifo do autor).

    Portanto, uma mquina que fazia passar pelo corpo do paciente uma quantidade desconhecida de energia partindo e chegando a eletrodos e reorganiza o estado energtico do paciente.

    Mas as aes mais caractersticas do demnio executadas por DL so nas vezes em que ela aparece para desviar o rumo de Frenesi. Esta, dentro de nosso modo interpretativo, faria o papel de uma partcula menos quente que insiste em passar para o lado do cilindro onde esto as mais quentes. DL, em um trabalho incansvel e a princpio desinteressado, gerencia para evitar que isso ocorra.

    No existem maiores interesses por parte de DL na primeira vez que ela intervm, mas j neste primeiro encontro saberemos que ela, provavelmente, se envolver sexualmente com Frenesi, esse relacionamento responsvel pelas

    8 Portanto, voc, Irm Darryl Louise, sob pena das sanes mais graves, ordenada a se tornar essa tola e devotada pequena, ou no seu caso grade parceira e tentar e equilibrar sua conta crmica resolvendo o grande mal que voc fez para ele [...] (traduo nossa).9 Ficou claro que a eletricidade em quantidades desconhecidas era para ser encaminhada a partir de uma de suas partes brilhantes para outra at que chegasse a um ou todos de uma srie de terminais parecidos de decorao ou na verdade, ronronou o Tcnico Puncutron Nijette que seria us-la em Takeshi, como gostamos de cham-los, os eletrodos. (traduo nossa).

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    cenas mais sensuais do livro fazendo com que na segunda vez exista interesses outros envolvidos, at mesmo quando ela, DL, age para ajudar Prarie. Quando, deste primeiro encontro, DL vivia [...] cruising up and down 101 looking for motocycles gangs to terrorize [...] the night before she met Frenesi she had chased the entire membership of Tetas y Chetas M.C. northward [...]10 (PYNCHON, 1990, p.115-116) Essa descrio das atividades de DL retrata bem a grande seu perfil demonaco. Sem nenhuma justificativa, persegue gangs de motoqueiros, bebendo vodka, consumindo drogas e, de novo, perseguindo gangs. O autor no procura justificar a atitude de DL. Podemos concluir que se trata de uma personalidade obcecada que age por agir, sem maiores explicaes. O relato que o narrador faz das atividades de DL, as perseguies ora para o sul, ora para o norte, de motociclistas, lembra a ao de um pastor tangendo seu gado de um lado para o outro- separando as ovelhas.

    Essa caracterstica de demanda de DL preenche o perfil do personagem demonaco sugerido por Angus Fletcher (1993) para a construo de uma obra alegrica. Para esse terico os demnios seriam dominados pela angstia de executar uma tarefa sem ter que estar comprometido com algum fim. Mas tambm permite a ligao de DL com o Demnio de Maxwell.

    DL vai encontrar Frenesi, pela primeira vez, encurralada entre duas foras que, necessariamente, a obrigaria a tomar uma atitude que mudaria o regime no qual ela est inserida. Para situar nosso leitor sem recorrer a longas citaes, informamos que, no momento do primeiro encontro entre os dois personagens, Frenesi fazia parte de um grupo flmico, revolucionrio, que acreditava na possibilidade de mudar o mundo usando uma cmara. Portanto, um grupo pacfico. Naqueles dias turbulentos na Califrnia na dcada de 60, em Berkeley, mais especificamente, estava acontecendo uma levante popular liderado pelos estudantes universitrios. Frenesi, com o intuito de conseguir algumas boas cenas gravadas, estava no meio de uma avenida, sem ruas laterais, e, por um lado, existia uma massa de estudantes encurralados, por outro lado, avanava um grupo de policiais portando metralhadoras. Ela no tinha sada e a nica soluo que pensava era colocar um filme novo na mquina e continuar filmando, mas ela sabia que no era a soluo e pensava

    Oh, I need Superman, she prayed, Tarzan on that vine. The basic stone bowel flash had come and gone about the time DL showed up, all in black including helmet and face shield, riding her esteemed and bad red and silver Czech motorcycle [...]

    10 [...] viajando para cima e para baixo da 101, procurando gangs de motociclistas para aterrorizar [] na noite anterior a que conheceu Frenesi ela tinha perseguido o grupo completo dos Tetas y Chetas M. C. rumo ao norte[...]. (traduo nossa).

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    she gathered Frenesi out of danger, camera, miniskirt, equipment bag, and all and carried her away.11 (PYNCHON, 1990, p.116).

    Em uma ao impressionante e perigosa DL muda o rumo da vida de Frenesi, sem motivo algum que justifique o ato. Na continuidade da cena, a prpria Frenesi espantada questiona: Somebody sent you, right?12Ao que DL responde: Cruisin through, was all. You sure sound paranoid13 (PYNCHON, 1990, p.117).

    Frenesi apenas mais uma partcula que o demnio precisava apartar, das muitas que ela direcionava, subindo e descendo a estrada 101.

    Encontraremos DL interferindo, pelo menos mais uma vez, no destino de Frenesi quando esta, aps ter participado da ao que resultou na morte de Weed (um lder estudantil), foi levada, por Brock Vond (agente do servio secreto), para um campo de concentrao. L ela passaria por um processo de aprendizado para se tornar uma agente de informao a servio de Vond. Entraria em um programa secreto recebendo remunerao pelo servio. DL aplica um golpe ninja em um segurana que ajuda as duas a fugir. J distante da instalao militar, DL percebe que Frenesi no est nem um pouco agradecida, o narrador nos informa que Frenesi was in tears, twisted around in her seat [...] DL mightve been expecting more of welcome [...]14 (PYNCHON, 1990, p.257). Se da primeira vez que DL interferiu na vida de Frenesi esta ficou satisfeita, tornou-se amiga de sua salvadora, qui amante, na segunda, ela chora infeliz.

    O Demnio do Segundo Tipo, o Demnio de Laplace e o Paradoxo dos Twin Photons

    Esse Demnio do Segundo Tipo, DST a partir de agora, um exemplo da arte se antecipando cincia. O primeiro DST que encontramos na literatura data do sculo XVIII. Swift (1960) quando, em As viagens de Gulliver, apresentou a mquina de pensar, que teria sido inventada por um grande cientista em Laputa, estreava um conceito que viria a ser utilizado por muitos outros aps (Bouvard et Pecuchet

    11 Oh, eu preciso de Superman, ela rezou, Tarzan naquele ramo. Um frio na barriga j tinha vindo e ido quando DL apareceu, toda de preto, inclusive o capacete e o protetor de face, pilotando uma motocicleta checa vermelho e prata [...] ela agarrou Frenesi para fora do perigo bem como sua cmera, mini-saia, sacola e tudo mais e a levou embora. (traduo nossa). 12 Algum enviou voc, certo? (traduo nossa).13 Estava s passando. Voc, com certeza, parece paranica. (traduo nossa).14 Frenesi estava em prantos, virada em sua cadeira [] DL deveria estar esperando mais como boas vindas [...] (traduo nossa).

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    de Flaubert so tambm DSTs de primeira grandeza). E que, somente no final do sculo XX, com o desenvolvimento das cincias da comunicao/informao, viria a ser teorizado por cientistas desta rea.

    Vrios cientistas vm se utilizando da idia do DST, j h algum tempo, mas s encontramos em N. Katherine Hayles (1991) uma formulao teortica sobre o modelo. Stanislaw Lem, que alm de ficcionista um prodigioso terico do espao ps-moderno, nas histrias reunidas em The cyberiad: Fables for the Cybernetic Age (LEM, 1972), tece, metadiscursivamente, comentrios sobre as caractersticas do modelo, enquanto que, ficcionalmente, faz uso do mesmo, um lance de mestre: teorizar e ficcionar no mesmo ambiente. Mas vamos nos ater ao pensamento enxuto e sistemtico de Hayles. Ela, em poucas palavras, define o DST como sendo uma criatura nos moldes da de Maxwell sendo que, ao invs de ficar separando partculas, ela, utilizando uma caneta com ponta de diamante, escreve sobre uma fita, todas as letras que so formadas com a dana das partculas. A partir do resultado, o leitor das fitas procurar dar sentido s mensagens colhidas pelo DST. Ou seja, a caracterstica que diferencia o Demnio de Maxwell do DST que um tem de apartar as partculas, enquanto o outro, apenas as observa e anota toda letra que elas formem em seu deslocamento. Desta maneira, tira a informao que nos fornecida pelo mundo subatmico.

    As criticas ao DST vm da parte de tericos da informao que entendem este termo sempre ligado significao. Assim, os dados s tm algum valor se eles se traduzirem em informao, esta ligada a significado. Mas o experimento tem muito valor para tericos que, seguindo a linha de Claude Shannon (HAYLES, 1991), apegam-se a qualquer tipo de informao como sendo valiosa. At mesmo o rudo do sistema ou, ainda, na linha de McLuhan, que, ainda mais radical, acreditava que o meio mais importante do que o dado informacional. A teoria do pesquisador canadense, em ltima anlise, a que mais se aproxima do que seria uma teoria da comunicao baseada no DST, pois o demnio em sua leitura analisa a dana das partculas no meio, que considerado a maior fonte de informao nas formulaes tericas de McLuhan (HAYLES, 1991). Portanto, as crticas ao DST vm dos seguidores da linha mais tradicional da teoria da informao.

    Em 1814, o matemtico francs Pierre-Simon Laplace (1995) publicou o seu Philosophical Essays no qual ele criava um modelo terico experimental que veio a ser chamado de o Demnio de Laplace. Este parece ser o primeiro demnio criado pela cincia. E , tambm, uma criao muito imaginativa e poderosa. Pensar uma criatura que teria a capacidade de, em um dado momento, saber todas as foras agindo na natureza e a localizao de tudo que consiste o mundo. Mais, conseguisse subjugar toda essa informao frmulas matemticas. Dessa forma poderia, a partir de uma nica equao, dar conta de todo movimento na natureza, desde os maiores corpos

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    celestes at as menores partculas. Nada seria incerto para essa inteligncia. Passado e futuro seriam presente para seus olhos.

    Ento, temos nesta parte de nosso trabalho dois demnios diferentes. Um, o DST, que tem a capacidade de observar a dana das partculas e delas retirar informao. No caso do criado por Swift o cientista tinha a pretenso de refazer a histria da humanidade. O outro, que acabamos de considerar, tinha o poder de saber tudo e tudo poder predizer.

    O personagem que, em nosso modo de representao, apareceria como sendo o DST Prairie. Note-se que ela, no tempo presente da narrativa, uma jovem adolescente, em torno de 14 anos, e no conhece a me (Frenesi). Ao conhecer DL, esta lhe informa, muito rapidamente, sobre a amizade dela com Frenesi h quase 15 anos atrs. A sua funo de DST: a busca por informao que possa ser tirada do movimento das partculas. Nesse sentido vamos encontrar Prairie tentando montar o quebra-cabeas que sua me. Ela sabe muito pouco. Conhece a aparncia dela por fotos. De sua histria ela sabe, por Zoyd e Sasha, pai e av, que ela estava envolvida com um grupo de esquerdistas e teve que ir para a clandestinidade por que o FBI estava a sua procura. Mas ela desconfia que a histria no bem contada e sabemos disto porque Prairie confessa que I cross-examineem, try to trickem15 (PYNCHON, 1990, p.101). E pede para DL contar a histria de Frenesi. Nesse ponto da histria Praire est correndo perigo, pois o agente secreto perdeu o contato com Frenesi e pretende usar a filha, Praire, para forar a ex-informante a aparecer.

    DL, em mais uma ao de Demnio de Maxwell, decide que o melhor lugar para esconder Praire no mosteiro das irms ninjas. L a superiora informa que ela no pode ficar se no fizer alguma tarefa em troca, como o convento conhecido por ter a pior cozinha da Califrnia, a irm aceita que a garota fique pois ela sabe cozinhar. Mas faz mais, aps ouvir a histria e os motivos da fuga, diz a Prairie que elas [...] maintain our own library of computer files, including a good-size one on your mother16 (PYNCHON, 1990, p.112). Como era hora de preparar o jantar, ela s deveria mexer no computador depois que a comida fosse servida e a cozinha limpa. noite, quando ela acessa os arquivos o narrador nos informa que

    The file on Frenesi Gates, whose entries had been accumulating over the years [...] reminded Prairie of scrapbooks [...] Some was governmental, legal history with DMV, letterhead memoranda from the FBI enhanced by Maagic Maker, but there

    15 Eu os examinei, tentei engan-los (traduo nossa).16 [...] mantemos nossa prpria biblioteca de arquivos de computador, incluindo uma de bom tamanho sobre sua me (traduo nossa).

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    were also clipping from underground newspapers that had closed down long ago, transcripts of Frenesis radio interviews on KPFK, and a lot of cross references to something called 24fps [...]17 (PYNCHON, 1990, p.113-114).

    As irms tinham um banco de dados completo com um sem nmero de informaes sobre Frenesi, eram: dossis, memorandos do FBI, recortes de jornais clandestinos que j no circulavam, transcries de entrevistas dadas etc. Com esse material em mos vamos encontrar o DST assumindo sua funo plenamente. A partir desse momento, Prairie est na frente de um cilindro fechado, coletando informaes que se formaro na tela pela organizao de partculas. O tubo de imagem do monitor do computador aceita, plenamente, o conceito. As letras que aparecem na tela so formadas pela ao da energia sobre o fsforo (naquela poca).

    No computador, ela tambm encontrou fotos de sua me, todas as vezes com uma cmara na mo e, quase sempre, envolvida em conflitos de rua, em outras fotos, ela aparecia sendo presa, em outra, trocando um sorriso capcioso com DL. Ela ia descobrindo sua me pixel by pixel into deathlessness18, ou ainda, quiescent ones and zeros scattered among millions of others19(PYNCHON, 1990, p.114-115). Ou seja, Prairie cumpre seu papel de DST garimpando informao entre milhes de uns e zeros que formam o string binrio da linguagem de computador ou juntando os pontos de definio do monitor os pixels.

    O passo seguinte do DST, Prairie, foi, junto com DL, procurar Ditzah (colega de Frenesi na juventude). Ela guardava os filmes produzidos pelo grupo 24fps, ao qual Frenesi pertencia. E, dando continuidade, a sua busca

    Ditzah led them across the patio to a workshop in back, with a Movieola machine and 16mm film all over the place, some on reels or cores, some in pieces lying around loose, and some in cans inside steel footlockers, which turned out to be tha archives of 24fps, the old guerrilha movie outfit.20 (PYNCHON,1990, p.194).

    17 O arquivo sobre Frenesi, cujos os dados tinham se acumulado por anos [] lembrava Claire um livro de recortes [] alguns eram governamental, histria legal com a DMV, memorandos com cabealhos do FBI salientados com marcadores de texto, mas existiam clippings de joranis do submundo que tinham fechados h muito tempo, transcries de entrevistas de Frenesi para a radio KPFK e muitas referncias cruzadas com alguma coisa chamada 24fps [...]. (traduo nossa).18 pixel por pixel at a imortalidade. (traduo nossa).19 descansados uns e zeros dispersos entre milhes de outros (traduo nossa).20 Ditza conduziu-os atravessando um ptio para um workshop na parte de trs, com uma mquina Movieola e filmes de 16mm por toda parte, alguns em rolos ou ncleos, alguns em pedaos jogados toa, alguns em latas dentro de malas de ao, os quais coincidiam de ser os arquivos da 24fps, o filme do velho grupo de guerrilha. (traduo nossa).

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    Prairie j sabia tudo sobre sua me. Mas ela, como um bom demnio, continuava sua busca incansvel por mais informao. No bastando saber da real histria de Frenesi Gates ela buscava mais detalhes e, de novo, a fonte de informao no seriam revelaes orais ou fichas escritas da polcia, mas os filmes do 24fts que ela assiste a todos para continuar formando a imagem da me e, tambm, construindo um espectro de seu lado comportamental, sempre retirando informaes de pixels, zeros e uns. Sempre se valendo das informaes que eram fornecidas por algum tipo de arranjo entre partculas.

    Brock Vond, o agente, no regime interpretativo que propomos, faria o papel do demnio de Lapalace. notrio o desejo utpico que os agentes representantes do sistema, especialmente quando este passa por um momento de desvio na democracia. Vond e Zuninga- dois tiras- aparecem na fico, sistematicamente, tentando comportarem-se como semideuses. Eles inspiram a idia de total controle sobre os mortais. O que, no final, prova-se contrrio,

    Observem-se algumas passagens que selecionamos em que flagramos Vond cumprindo seu papel de Demnio de Laplace. Ele chantageia Zoyd, o pai de Praire, fazendo com que ele faa uma loucura por ano, para que aparea nos noticirios e ele saiba exatamente onde Zoyd est. Ele vigia Praire sistematicamente, em ambos os casos para poder ter controle sobre Frenesi.

    Nesse ponto faz-se necessrio abrir um espao para explicar outro modelo cientfico: existe uma experincia elaborada para tratar o paradoxo pensado e proposto por Einstein, Poldosky e Rosen (EPR Paradox). Esses cientistas trabalhavam tentando mostrar que existe uma realidade, ou peculiaridades da realidade, que ainda no era contemplada pela fsica. Eles sugeriram a seguinte experincia: dois ftons so emitidos de uma mesma fonte simultaneamente em sentidos opostos e, aps alguma distncia, haveria um receptor que ao ser tocado pela partcula/onda determinaria a polarizao dele. Ocorre que os ftons emitidos juntos da mesma fonte mostravam sempre a mesma polarizao, mesmo que houvesse uma discrepncia no tempo decorrido desde o momento que foram lanados e o tempo que colidem com o receptor. Ento, a questo como se d essa relao entre ftons que, teoricamente, esto viajando na velocidade da luz. Um experimento mais recente, mais didtico tambm, para demonstrar o paradoxo, foi feito seguindo essas especificaes: dois ftons so lanados da mesma fonte, na mesma direo, mas em sentidos opostos. Aps alguns segundos um dos ftons forado, em sua trajetria, a entrar em uma regio de menor intensidade de luz, que faz com que este fton perca velocidade (energia). O fton que seguia no sentido oposto comporta-se igualmente, embora o panorama em que ele viaja no tenha sofrido alterao. A pergunta que se coloca : como que esses dois ftons se comunicam? Se esto viajando em sentidos contrrios, cada um velocidade da luz e, portanto, para o par, seria na velocidade da luz

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    multiplicado por dois. Existem vrias tentativas de explicao que se colocam, sendo que, a mais aceita que eles so partes de um mesmo uno e por isso comportam-se como tal: s um. Ou a possibilidade de algum sinal que viaja muito mais velozmente do que o dobro da velocidade da luz, ou, ainda, os buracos de minhoca atalhos entre dimenses que diminuiriam o espao a ser percorrido. Essa histria parece continuar envolta em mistrio e por isso Einstein dizia que no se podia falar de Teoria Quntica, uma vez que ela no explicava todos os fenmenos da natureza.

    Para ns suficiente saber que os Twin-Photons existem, pois ele passar a ser mais um joguete na mo de Thomas Pynchon.

    Ao exigir que Zoyd cometa um ato de loucura televisionado por ano, Brock Vond joga com a possibilidade de, desta forma, poder controlar a localizao de Prairie, tambm. Ele tem uma obsesso pela garota e no suporta a idia de no saber de seu paradeiro. Mas na verdade ele faz esse jogo para controlar Frenesi, como j dissemos.

    Brock em seu papel de Demnio de Laplace no abre mo de estratgias muito pragmticas. Embora tenha todo o sistema de informao do FBI e DEA em suas mos, ele no desperdia meios mais pragmticos para controlar sua vtimas/partculas. Zoyd, Prairie, Frenesi e Sasha formam uma pliade quaternria. Brock sabe que conhecendo onde est uma das estrelas da constelao ele saber das outras. O ato de loucura que Zoyd realiza todos os anos como que respondendo uma lista de presena de sala de aula. Enquanto a resposta vier Brock no tem com que se preocupar.

    Frenesi, no submundo em que vive, consegue restabelecer uma vida prxima do normal. Ela casa-se com Flash. Eles tm um filho chamado Justin, mas ela sabe que no est fora do controle do agente federal. Em um dado momento o narrador, que s vezes onisciente, nos informa que a distncia que ela tem mantido had never taken her outside Brocks long distance possession21 (PYNCHON, 1990, p.354). Ela se mantm afastada, mas ele est sempre com os olhos voltados para ela. a misso dele, no s como agente federal, mas tambm como demnio.

    Quando ele sabe da fuga de Frenesi, junto com DL, o narrador nos informa que

    He cried, he beat himself with his fists on the head and body, did all that old stuff, felling like a skier on an unfamiliar black-diamond slope, seized by gravity, in control, out of control [...] this descent took him all night and wore him at last into unconsciousness22(PYNCHON, 1990, p.277).

    21 nunca a levou para fora do raio de ao de posse de Brock (traduo nossa).22 Ele gritou, ele bateu em si mesmo com seus punhos, na cabea e no corpo, fez todas aquelas velhas coisas, sentindo-se um esquiador em um no familiar declive black-diamond, agarrado pela gravidade, em controle, fora do controle []essa descida levou-o a noite toda e vestiu-o finalmente de inconscincia. (traduo nossa).

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    Ele no suporta duas coisas: uma, o fato de ter perdido a pista de Frenesi; e, outra, o fato de o seu controle ter falhado. O que parecia impossvel estava acontecendo, Frenesi estava solta sem ter passado pela lavagem cerebral pela qual todos que estavam no campo de concentrao passavam.

    O gato de Schrndinger

    Esse modelo simples de explicar, mas dificlimo, para no cientistas, justificar a razo de sua formulao. A controvrsia que levou Schrndinger a fazer essa proposta est ligada a posio dos eltrons. Assistindo ao filme Mind walk [O ponto de mutao refira-se ao prefcio] encontraremos a cientista, personagem, tentando explicar para o poeta e para o poltico (personagens) qual um dos desconfortos dos pesquisadores que lidam com a realidade quntica: ela sugere que uma das descobertas da fsica quntica que no existe tanta matria e energia quanto nossos aparatos dos sensoriais e cognitivos nos do a conhecer. Ela, como exemplo, diz que se fosse possvel concentrar toda a matria e toda energia que formam o castelo pelo qual eles esto passeando, que muito grande, ele no passaria de algo do tamanho de uma bola de futebol e que uma bola concentrada caberia na cabea de um alfinete salvo engano so esses os parmetros usados. E que os cientistas se perguntavam como acontecia para que as coisas tivessem as dimenses perceptivas que tm. A resposta mais plausvel que os eltrons esto em uma permanente movimentao em forma de conchas e em extrema velocidade, de maneira que do forma ao que de fato no a tem. Por isso impossvel determinar a posio do eltron em um dado momento. O que se pode dizer que existe uma probabilidade imensa dele ser encontrado em um dado momentum. Ento o que se diz que ele est e no est simultaneamente na localizao que determinamos, pois ele est em movimento.

    Diante da constatao da fsica contempornea de que impossvel se determinar a posio de uma partcula, mas apenas dizer da probabilidade de sua localizao, Schrdinger pensou em um artefato macroscpico para tentar racionalizar a incerteza dominante. De forma muito simples tentaremos descrever o que o fsico arquitetou. Pensemos dessa forma: imaginem uma caixa de paredes opacas, fechada por todos os lados com um gato dentro. Tambm dentro da caixa, existe um balo muito singelo contendo gs mortal. O balo pode estourar a qualquer momento, sem depender para isso, de qualquer agente interno ou externo. A pergunta crucial : o gato, neste momento, est vivo ou morto?

    A resposta proposta pelos fsicos que o gato est meio-vivo e meio-morto. Ou se referindo ao eltron ele est-no-est presente. Ou tambm podemos dizer, em referncia ao texto de Pynchon (1990), que ele est como se estivesse a bordo de um

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    jato da Kahuna Airlines, nessa companhia area fictcia, que faz a linha Califrnia-Hava, o fato de o passageiro ter embarcado no quer dizer, absolutamente, que ele est a bordo e que chegar ao destino. Eles so um tipo de gato de Schrrinder, so-no-so, esto-no-esto.

    Concluso

    No existe uma maneira fcil para ler as obras de Thomas Pynchon, mas enfrent-las com um material instrumental apropriado certamente faz a misso mais palatvel. Conhecer um pouco de fsica faz com que possamos ler os livros do autor com muito mais propriedade. E com a leitura facilitada, podemos nos deliciar com as stiras e ironias que so pontos que valorizam profundamente a prosa pynchonianas.

    Os exerccios que fizemos utilizando os modelos foram limitados pelo fato de o articulista no conhecer com mais profundidade outros modelos da fsica, qumica ou biologias, pois se mais soubssemos, mais poderamos explorar Vineland. Mas fica aqui o caminho proposto para que outros, mais conhecedores das cincias, possam trilhar e fazer descobertas muito interessantes.

    BRANDO, S. C. de S. Scientific models as structural alements in prose fiction. Revista de Letras, So Paulo, v.50, n.2, p.407-431, jul./dez., 2010.

    ABSTRACT: In this text we are going to explore Thomas R. Pynchon`s Vineland comparing some of its characters with some others from scientific models, such as: Maxwell`s Demon, Second Type`s, Laplace`s and with the Twin Photons.

    KEYWORD: Pynchon. Vineland. Scientific models. Entropy.

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