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4º Encontro de Psicólogos do Tribunal de  Justiça do Estado do Rio de Janeiro ORGANIZAÇÃO: Divisão de Psicologia da 1ª Vara da Infância e da  Juventude Comarca da Capital APOIO: EMERJ - Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro

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4º Encontro de Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado do

Rio de Janeiro

ORGANIZAÇÃO:Divisão de Psicologia da 1ª Vara da Infância e da

 JuventudeComarca da Capital

APOIO:

EMERJ - Escola de Magistraturado Estado do Rio de Janeiro

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Encontro de Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado doRio de Janeiro, 4., Rio de Janeiro, nov.23, 2003 Divisãode Psicologia da 1ª Vara da Infância e da Juventude da

Capital org – Rio de Janeiro: DIAG – Divisão de ArtesGráficas do TJERJ, 2004.p

1. Psicólogos Jurídicos – Ação, atuação. 2. Psicólogos Jurídicos – Congressos, conferências, etc – Rio de Janeiro. 3;Bioética. 4. Justiça e Ética, I. Título.

CDD340.730638154

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AGRADECIMENTOS

Gostaríamos de agradecer o apoio e estímulo dos juízes da 1ª Vara da Infância e Juventude, Dr Siro Darlan deOliveira e Dr Leonardo de Castro Gomes, sem os quais não

seria possível a realização deste evento, assim como acontribuição de todos os setores da 1ª Vara da Infância e Juventude.

Agradecemos o apoio a imprescindível parceria daEMERJ na realização do Encontro e, particularmente, napublicação deste livro.

Outrossim, ressaltamos nossos agradecimentos àCorregedoria Geral de Justiça e ao Tribunal de Justiça doEstado do Rio de Janeiro, que têm acolhido a realização dos

Encontros de Psicólogos Jurídicos e possibilitaram apublicação deste livro através da Divisão de Artes Gráficas.

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Comissão Organizadora

Daniela BlorisMônicca de Carvalho Moreira

Patrícia Glycerio Rodrigues Pinho

Comissão Científica

 José César Coimbra José Eduardo Menescal Saraiva

Divisão de Psicologia da 1ª VIJ da Comarca

da Capital

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Sumário

Apresentação........................................ 061. Conferência: Entre a Lei e a Justiça, a Ética?Dr. Olinto Antônio Pegoraro . ............. 09

2. Mesa Redonda: Bioética e discurso científico: quelugar para a lei?

Drª Heloísa Helena Barboza ............... 30

Drª Madalena Ramirez Sapucaia ........ 54

3. Mesa Redonda: Do parecer e do Julgamento: Deque fala o psicólogo no universo jurídico?Drª Damiana de Oliveira ....................... 77

Drª Érika Figueiredo Reis ....................105

Drª Sílvia G. Felgueiras de Freitas ..... 135

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Apresentação

No momento em que nos encontramos no centro dadiscussão sobre a possibilidade de aborto de fetosanencéfalos; em que assistimos a manifestaçõesexpressivas em revistas e jornais do Brasil e do exterioracerca das possibilidades e implicações referentes à

compra de óvulos, descarte de embriões, uso de células-tronco e sexagem, constatamos o quanto as discussões denosso 4o Encontro foram oportunas.

Podemos recuperá-las agora através destapublicação e lançar um olhar sobre o instante em que ahistória esboça o seu momento de criação: não somostodos nós responsáveis por essas discussões em curso?Para além de uma aguerrida defesa de opiniões, comolevar ao limite as possibilidades de construção do espaço

público, onde as idéias de sociedade e comunidadeadquiririam prevalência, ultrapassando o cálculo estrito deeventuais ganhos pessoais? E mais: qual o lugar do judiciário nesse dispositivo, em que cada vez mais se tornadifuso o limite entre a esfera pública e o mundo privado?

No 4o Encontro, foi possível seguir as questõesacima nas contribuições daqueles que estiveram em nossalinha de frente: Olinto Pegoraro nos apresentou umainstigante articulação entre Lei, Justiça e Ética, extraindoconseqüências ricas em desdobramentos para todos nós,as quais tiveram o valor de uma grande introdução aosdebates que se sucederam; Heloísa Helena Barbosa eMadalena Ramirez Sapucaia centraram-se no tema‘Bioética’ e através de suas apresentações fomos lançadosa uma interrogação sobre os limites e valores da próprianoção, assim como dos modos de interlocução entrediscurso científico e lei ante o desamparo essencial que

marca o sujeito; por fim, os psicólogos da Corregedoria-Geral da Justiça do Rio de Janeiro - Damiana de Oliveira,

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Érika Figueiredo e Sílvia Gomes Felgueiras - avançaram nainterrogação sobre o que caraterizaria o nosso trabalhofrente ao julgamento legal, ato próprio ao juiz. Em outraspalavras, o tema ‘Ética’ é recuperado no questionamentoacerca do que seria, de fato, a linha de força do trabalhodo psicólogo jurídico.

É fácil notar que de um ano a outro o cerne denossas discussões permanece. Não por acaso o 5o Encontrocoloca em destaque justamente o tema das relações entreas esferas pública e privada. Com ele reiteramos o conviteà participação em nossos Encontros e a aposta de queneles novas possibilidades de pensamento e ação possam

ser esboçados. Bem-vindos, mais uma vez.

DiPsi – 1ª Vara da Infância e Juventude

Ética, justiça e lei

Olinto A . Pegoraro

Em sentido amplo, os três termos, ética, justiça elei, convergem e postulam-se mutuamente a ponto de nãoexistir um sem o outro. Tratá-los numa única conferência épraticamente impossível dada a importância e a grandeabrangência de cada um. Por isso, coloco primeiro umsentido geral de sua convergência e depois me ocupareiespecialmente da ética.

A lei, que se opõe ao arbítrio subjetivista, éconvencional; uma convenção feita por pessoas delegadascomo, por exemplo, o parlamento de qualquer paísdemocrático. A lei obriga a fazer certas ações e impõepenas às transgressões. Outra dimensão da lei é que elaoficializa a tradição, o costume de um povo. Fixacomportamentos sociais que passam a ser protegidos (ouproibidos) por ela.

A justiça é mais profunda, é uma qualidade humana,é uma virtude, uma inclinação que nos orienta para a

convivência com os outros. Para Aristóteles, a justiça é aúnica virtude que só se pratica em relação aos outros. Eusou justo se faço ações justas em relação aos outros. Por

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isso ela é a virtude da cidadania e a primeira virtude dasinstituições sociais, no dizer de John Ralws. Portanto a  justiça conjuga, une o senso moral das pessoas e dasinstituições públicas de uma sociedade.

As duas, lei e justiça, emergem de uma radicalidademais profunda, a ética. A ética nasce exatamente darelação viva entre as pessoas, as relações entre eu e tu.Esta se traduz em leis e em instituições justas. Então, lei, justiça e ética não só convergem mas são um só tema, otema do ser humano virtuoso e vivendo com os outros epara os outros seres humanos em instituições  juridicamente justas. Então, nesta conferência, me

concentrarei no ponto de vista da ética, donde arrancam a justiça e a lei.

A ) a urgência ética hojeDesde Aristóteles e Platão, a ética trata somente do

agir humano em relação a si próprio e aos outros. Duas sãoas vertentes principais que formam o núcleo central daética. Primeiramente trata da formação do caráter doindivíduo pela prática das virtudes como a coragem e abenevolência; é sempre o indivíduo que se torna corajosopela prática de ações de coragem. Em segundo lugar aética trata da formação do cidadão pela prática política.Bom cidadão é aquele que participa das decisões públicase pratica a justiça. A justiça é a virtude da cidadania; ésíntese de todas as outras virtudes. O indivíduo ético é

aquele que pratica a justiça no convívio social. Ou seja, onúcleo central da ética visa a formação do indivíduo decaráter para a prática da cidadania.

Este foi também o horizonte da ética medievalprofundamente marcada pelo cristianismo que asubordinou aos preceitos de fé. Grandes pensadoressustentavam que sem a fé, a ética ficaria semfundamentos. Caberá a Kant restituir à ética a suaautonomia, como no tempo dos gregos, quando ainda nãoexistia a religião cristã. Segundo Kant, a ética sustenta-seem bases exclusivamente racionais: no exercício da razão

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e da liberdade. Ela se submete exclusivamente aoimperativo categórico que é um imperativo da auto-limitação da liberdade.

Portanto, em todos os tempos, a ética só se ocupouda orientação dos comportamentos e das ações humanastendo em vista o bem e a felicidade do homem. Nunca aética tratou do agir científico no mundo das coisas e dosartefatos da técnica. Duas eram as atitudes a esterespeito: ou a ética ignorava o mundo da técnica e daciência ou o subordinava a seus ditames. Exemploconsumado desta atitude é a figura de Galileu que foicoagido a confessar o “erro” de suas descobertas

científicas em nome da ética e da religião.Por isso, durante séculos, ética e ciência sehostilizaram. A ciência manteve-se distante da ética. Masno último século e meio, especialmente nos últimoscinqüenta anos, a ciência passou a agir poderosamentesobre a vida do ser humano, sobre a vida cotidiana pessoale social. Por exemplo, os avanços da biologia introduziramprofundas modificações sobre a maneira da reproduçãotornando possível a concepção in vitro e por clonagem.Estes avanços colocam para a ética questões nuncaimaginadas em toda a história. Agora não é a ética clássicaque interroga a ciência, mas esta a aquela.

Mas a ciência não tem resposta para todos osproblemas que levanta e nem a ética pode ditar regras àciência; a ciência não é um sistema pronto, nem a ética éum saber soberano que paira acima dos outros saberes.Mas ciência e ética são sistemas abertos e em diálogo. A

ciência é aliada do homem. Ajuda-o a libertar-se dasenfermidades e a viver mais longamente. Por outro lado, aética confere à ciência uma feição humana; é ciência parao homem e para todas as formas de vida. A ciência e atécnica são produtos da inteligência como o são ascadeiras, mesas, os aviões, a poesia e a música. O produtocientífico assume uma feição ética quando o homem o usaem benefício da vida; torna-se um produto a-ético quandousado para destruir a vida como aconteceu com a energiaatômica. Portanto, ciência e ética já não se hostilizam, mas

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convivem no diálogo pelo qual se enriquecem mutuamentee constróem conjuntamente a vida.

Para que esta convivência seja real é preciso quecada campo reconheça seus limites. Por exemplo, abiogenética explica que o homem é o conjunto de seusgens. Mas reconhecerá que ele não é simplesmente seucódigo genético decifrado. O homem quer ser mais queisto. É deste “mais” que trata a ética; ela dirá que ohomem, além de ser biologicamente um conjunto de genesé também liberdade e criatividade capaz de inventarsistemas filosóficos, políticos e religiosos. Disto não sabe aciência.

Se fossemos apenas nosso código genético, entãoseríamos determinados a agir sempre do mesmo modocomo acontece com as outras espécies de vida, quandodeixadas na sua espontaneidade. Pelo contrário, aliberdade nos leva a alterar os comportamentos e a fazerações diferentes daquelas sugeridas pela nossa estruturabiológica. Por exemplo, há pessoas que biologicamentetendem a praticar suicídio; a liberdade e a ética e oambiente cultural podem reverter esta tendência em amorà vida posta a serviço de um projeto.

Portanto, a ciência e a técnica podem conviverharmoniosamente com a ética e olhar para a mesmadireção que é a construção da vida e a proteção danatureza.

Porém há uma condição. Para que a ética seja capazdeste diálogo precisa abandonar o antigo fixismodoutrinário e flexibilizar suas posições. Disto trataremos

abaixo.

B) Uma ética flexívelA flexibilização da ética consiste em repensá-la à luz

da filosofia contemporânea, da psicologia, da política, datécnica ; ciências estas que promovem profundasalterações nos comportamentos humanos. A ética édesafiada a encontrar formas de interpretação que aliem adignidade da vida com estes progressos. Começaremos pordizer o que a ética não é para , depois, afirmar o que éuma ética flexível.

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Em primeiro lugar a ética não é um código deprescrições e proibições, ou seja, a ético do “pode” e do“não pode”. Segundo esta concepção, as prescrições sãofixas e a-temporais, inflexíveis; uma vez postas, elaspermanecem como marcos permanentes e que ficam paratrás no tempo. Ora, os comportamentos humanos mudame olham para a frente, criando uma distância sempre maiorentre a contemporaneidade da vida e a perenidade dasprescrições. Sirva de exemplo o comportamento sexual.Segundo antigas prescrições a prática homossexual eraproibida e permitida somente a heterossexualidade. Ora,os hábitos humanos evoluíram e, com a ajuda da

psicologia, da biologia, das novas concepções filosóficas davida, hoje a sociedade aceita o comportamentohomossexual como eticamente válido, como maneira dignado exercício da afetividade. Portanto a ética não é umcódigo permanente de prescrições permitidas ouproibitivas. Com este tipo de ética a ciência não temsobre o que dialogar.

Em segundo lugar, a ética não se confunde comreligião e nem dela depende para fundamentar-se. Como jádissemos, a primeira grande articulação ética doscomportamentos humanos foi feita pelos gregos, bemantes do advento do cristianismo.

Para eles, a ética é um modo de entender eprocurar o bem humano. Por isso a ética não é nem laica enem religiosa; ela é simplesmente humana e visa apontarpara o homem um rumo existencial positivo.

Vejamos agora, em sentido positivo, o que é uma

ética flexível na vida contemporânea. Evidentemente, hojehá uma pluralidade de modos de entender positivamente aética. Mas, de um modo geral, podemos entende-la comoum estilo de vida, um modo de viver, um rumo queimprimimos aos nossos comportamentos para que vivamosem harmonia na vida pessoal, com os outros e com anatureza.

Esta concepção de ética extrapola o campo doscomportamentos humanos, e se estende a todas as formasde vida e á natureza, como veremos abaixo. O filósofoHans Jonas escreve a este respeito: “ a natureza está

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confiada á nossa guarda e nos faz um apelo ético, não sópor causa de nossos interesses, mas por si mesma, dedireito próprio”.

 Tomemos outra imagem para tentar dizer o que aética é. A imagem do horizonte; ele está sempre adiante denós e nos atrai. Mas nunca chegamos lá, nunca oalcançamos. Ele serve para nos apontar o rumo a seguir naviagem da vida.

Deste horizonte da vida, a ética se ocupou em todosos tempos. Os gregos, por primeiros no Ocidente,resumiram o horizonte ético em dois movimentosconcêntricos: a) levar uma vida pessoal feliz; b) numa

sociedade justa, solidária e pacífica. Todas as teorias éticassucessivas tentaram, cada uma a seu modo, apontar paraeste mesmo horizonte. Assim, o cristianismo se propõecomo meta construir uma sociedade onde reinem averdade, a justiça, o amor e a paz. Estes valores sãoreferências supremas que nunca realizamos totalmente;mas caminhamos para, em cada época, nos aproximardelas pelo menos em parte. Assim, nunca haverá plenaverdade, justiça total ou paz perpétua. Não é isso queimporta; o decisivo é que cada civilização construa ummodo positivo de vida pessoal feliz e de uma sociedademais justa e pacífica. Estes valores não existem em si,como queria Platão. Eles são valores ideais, mentais queservem de guia aos homens e às civilizações orientando-osna construção de um mundo com estas características.

Na modernidade, a intuição ética greco-cristã foianunciada com outros termos. Foi a Revolução Francesa

que, ao banir as monarquias absolutas, lançou o ideal deuma nova sociedade baseada em três pilares: igualdade,liberdade e fraternidade. Estes três valores pessoais sãotambém a base da nova sociedade; são exatamenteaqueles de Aristóteles, Platão e do cristianismo.

Portanto, em todos os tempo da história ocidental,os povos sonharam com os mesmos princípios éticoscentrais. E, a época contemporânea, não sairá desteroteiro ético. Em 1948, logo após a catástrofe da guerramundial, a ONU, na tentativa de propor a todas as naçõesum caminho ético, elaborou a Declaração dos Direitos

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humanos. O primeiro artigo retoma quase com as mesmaspalavras as da revolução francesa: “os homens nascemlivres e iguais em dignidade; por isso devem agir, emrelação de uns com os outros, com espírito defraternidade”. É este o horizonte ético do século XX e XXI:construir um mundo global onde vigorem a liberdade, aigualdade e a fraternidade ou o conjunto dos direitoshumanos. Hoje a ética leva exatamente o nome de Direitoshumanos. O mundo será ético quando cumprir estesDireitos. Poderíamos simplificar ainda mais os três termosdo horizonte ético. Este pode ser expresso com uma sópalavra: justiça. Podemos então dizer que ética é lutar para

construir um mundo justo. Isto porque o termo justiçasintetiza em si todos os outros valores e todas as virtudes.Portanto, ser pessoa ética, ser uma nação ética ou ummundo ético significa praticar a justiça.

Com isto, cremos ter apresentado um modo maisflexível de vida ética. Esta modalidade de ética, semdúvida, é capaz de dialogar com a ciência e a técnicacontemporâneas: a ética que se dedica especialmente aodiálogo com as ciências biológicas recebeu, em nossosdias, o nome de bioética enquanto se concentra sobre asciências e as técnicas da vida.

C) Uma ética antropocósmicaA ética sempre disse respeito ao ser humano como

indivíduo e como ser social. Os outros seres eram simplescoisas, utilidades a serviço do ser humano.

Nos últimos 50 anos do século XX, o domínio da

técnica sobre a natureza viva e morta começou a ser temade ecologistas e humanistas. Criou-se a ética dos animais ea ética da proteção do meio ambiente. Em outras palavras,as coisas passaram de simples utilidades à dignidade ética.

 Todos os seres, não só os homens, têm qualidadeética, cada um em seu nível: o vegetal como vegetal, oanimal como animal e o homem como homem, segundoseu nível de existência. No topo da evolução da vida está ohomem. Ele é o único inteligente, capaz de entender aestrutura dos seres e a organizá-los. A História é a históriada inteligência do mundo, da natureza, do sentido que a

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ela imprimimos. Mas a inteligência filosófica e científica,não existe para destruir o mundo mas para ordena-lo demodo respeitoso de tal sorte que sejamos solidários não sóentre nós, os humanos, mas com todos os seres doplaneta, nossa pequena nau no cosmos: é a ética dasolidariedade antropocósmica.

D) A pessoa , um novo conceitoA ética flexível precisa ainda de um

aprofundamento, sem o qual ela não passa de uma opiniãoinsuficientemente elaborada. Isto é, a ética flexível, quevisa a solidariedade antropocósmica, exige também a

flexibilização do conceito de pessoa, adequando-o com amobilidade contemporânea das ciências humanas e danatureza.

De fato, a pessoa é o sujeito da ética e da política.São as pessoas justas que visam construir uma sociedadesolidária e pacífica.

Historicamente falando, não há conceito ético maisfixo e imutável que o de pessoa. Concebido no início daidade média por Severino Boécio (séc.VI) este conceitoatravessou inalterado todos os séculos. Este supremo pilarda ética foi assim definido : “um indivíduo que subsistenuma natureza racional”. Esta tese quer dizer que é aracionalidade que confere ao indivíduo toda a suaconsistência e razão de ser. O indivíduo humano é,portanto, uma essência racional plenamente constituída nomomento da concepção.

Segundo esta tese, o embrião humano está

revestido da mesma dignidade ética de um bebê, de umadulto ou de um ancião. O ser humano é intocável desde aconcepção e nunca pode ser submetido à manipulaçãocientífica. Esta concepção essencialista e naturalista depessoa é necessariamente inflexível e por isso esbarratanto com uma ética mais aberta quanto com osprogressos da biologia humana sobretudo em relação aosinícios da vida.

Para superar este conflito será necessárioreformular o conceito de pessoa. Desde o início do séculoXX, este conceito começou a ser elaborado. Três fatores

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colaboraram para a eclosão da nova concepção.Primeiramente as teorias evolucionistas que desde o séculoXIX vinham mostrando que o homem todo inteiro, corpo ealma, resultou da evolução da vida. Esta posiçãoenfraqueceu as doutrinas teológicas criacionistasanteriores a esses avanços.

Em segundo lugar, o advento da fenomenologiaalterou profundamente a maneira filosófica de se entendero homem especialmente no âmbito da análise existencialheideggeriana que concebe a existência humana como umprocesso de temporalização. Finalmente, os grandesavanços da biogenética colocaram questões éticas nunca

imaginadas pela tradição filosófica como, por exemplo, apossibilidade da clonagem humana reprodutiva eterapêutica.

É evidente que todos estes avanços postularamuma ética mais flexível e uma concepção mais elástica dapessoa humana.

É praticamente impossível o diálogo da ciência coma teoria absoluta e transcendente da pessoa formuladapelos pensadores medievais.

Qual será o novo conceito de pessoa? Várias teoriasbioéticas tentam, de algum modo, tornar mais atual estemilenar conceito. Aqui preferimos expor a concepção depessoa formulada pela ontologia existencial de cunhoheideggeriano.

Segundo esta teoria, a pessoa não é simplesmenteum fato biológico constituído no momento da concepção,nem é uma essência metafísica definitivamente dada

desde o início. Pelo contrário, a ontologia existencial nãoencara a pessoa como essência mas como uma existênciaque vai acontecendo ao longo da vida. Nunca acabamos denos construir, somos sempre um vir-a-ser desde o embriãoaté a velhice. Somos um processo de acontecer, de fluirque vem do passado e avança de hoje para o futuro. Istosignifica que o homem não se define por uma essênciaracional dada biologicamente e imutável mas se definepela sua existência temporal aberta ao futuro pelarealização de suas potencialidades.

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Muitos séculos antes da ontologia existencial, santoAgostinho identificava o ser humano como uma distensão;a distensão da alma que se estende ao passado pelamemória, que vive no presente e antecipa o futuro pelodesejo de realizar suas aspirações já presentes na alma emexpectativa mas ainda não realizadas.

Sendo o homem um ser temporal, por isso mesmo,ele é um ser relacional e potencial. Primeiramente nãosendo dado por inteiro desde a concepção, ele se constróinum processo de relações; desde a relação mãe – feto,passando pelas relações familiares, sociais e culturais.Quando estas relações são positivas dizemos que tal

sujeito construiu uma personalidade equilibrada; aocontrário, as relações negativas constróem a personalidadeproblemática.

O processo das relações nunca se fecha; por issomesmo a pessoa está sempre em construção, seja qual fora sua idade. Neste sentido a pessoa é também umaexistência potencial; ela está sempre em processo derealizar suas virtualidades da concepção à morte. Nosmomentos iniciais da vida, o novo ser humano estápróximo à pura potencialidade (com o mínimo derealidade) porquanto não tem nenhuma estrutura corporaldefinida, nem dimensão psíquica estruturada, nempersonalidade estabelecida; ele é potencialidade emexpansão, um ser humano em vir-a-ser.

Em síntese, a ontologia existencial concebe aexistência humana como um ser temporal, relacional epotencial. Só ele existe sob esta modalidade. Todos os

outros seres vivos são dados desde o início, incapazes detranscender seu determinismo biológico. Ao contrário, o serhumano é um projeto que vai se construindo livrementepor sua própria iniciativa.

Esta teoria da pessoa como existência temporalestá aberta ao debate com a ciência especialmente sobre oestatuto do embrião humano. Para ela, nãonecessariamente (como na teoria essencialista) a pessoaestá definida no ato da concepção. Por isso há boas razõespara a utilização das células-tronco para estudos científicose para a prática da clonagem terapêutica. Nos primeiros

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dias, as células-tronco não têm nem estrutura orgânica,nem psíquica e muito menos pessoal. Não sendo essascélulas pessoa, elas estão cientificamente disponíveis semque se fira princípios éticos. A tese contrária é sustentadapela teoria essencialista da pessoa.

Em conclusão, a pessoa não é uma essência comrumos traçados pela biologia, mas é uma existência que sedá um rumo, um horizonte ético a ser perseguido por todaa vida pelo exercício da liberdade. Ela não é só responsávelpelo seu destino mas também pelo da natureza e dosartefatos tecnocientíficos com os quais deve convivernuma solidariedade antropocósmica. Nisto está a grandeza

da liberdade e da criatividade mas também o peso daresponsabilidade ética que a acompanha.

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Bioética e discurso científico: que lugar para alei?

 Já podemos dispensar o pai ?Heloisa Helena Barboza♣

1. Reprodução assistida no Brasil: estado da arte.  Jornal de grande circulação no país noticiou há umasemana (14 de novembro), sob o título “Israel libera uso desêmen de mortos – Viúvas poderão engravidar”, que o

procurador-geral de Israel determinara que as viúvasisraelenses poderiam usar o sêmen dos maridos mortospara fazer fertilização artificial. Essa deliberação evita queas viúvas travem uma batalha judicial para garantir odireito de engravidar dos companheiros falecidos, mesmoque eles não tenham autorizado isso em vida. De acordocom as novas regras, somente se o homem tiver deixadoexplicitada sua proibição é que a viúva será impedida de

fazer a fertilização post mortem.Segundo a referida notícia, Guido Pennings,membro da comissão de ética da Sociedade Européia deEmbriologia e Reprodução Humana, declarou não saber denenhum outro país que permita a viúva utilizar sêmen deum homem morto sem prévio consentimento por escrito. Alei brasileira admite a hipótese, mas não contém qualquerexigência.

O fato, acontecido em Israel, é oportuno para

(re)abrir a discussão sobre o assunto1. As disposiçõeslegais existentes no Brasil são precárias e ensejaminúmeras indagações, além de não protegerem de formaadequada os envolvidos com as técnicas de reproduçãoassistida. No presente procura-se abordar uma dessasindagações, gerada por disposição legal talvez mal

Professora Titular de Direito Civil da Uerj – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.Procuradora de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, aposentada.1 Algumas possíveis polêmicas foram apontadas na reportagem intitulada “CódigoCivil muda a vida de casais inférteis”, publicada pelo O Globo em 28.09.03,caderno Jornal da Família, p. 3.

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dimensionada ou sem o necessário processo de reflexão,que acaba por trair sua proposta aparente, no caso a deproteção dos filhos. Mais grave, a norma em tal casocompromete a efetividade dos princípios constitucionaisque a orientam, a saber: o da dignidade da pessoa humanae o do melhor interesse da criança e do adolescente.Indispensável, ainda, seja feita a ponderação dessesprincípios com o direito ao planejamento familiar, tambémassegurado pela Constituição da República.

As técnicas de reprodução humana assistidadeixaram há muito, mesmo no Brasil, de ser uma atividade

experimental. O tema foi objeto de já antiga novela detelevisão. Recentemente a mesma emissora alcançou altosíndices de audiência ao por em discussão a clonagemreprodutiva, matéria, registre-se, de todo impertinente aoobjeto do presente. Em cidades como o Rio de Janeiro,anúncios circulam por toda parte, nas vidros posterioresdos ônibus, convidando pessoas a realizar o sonho de terum filho. Não obstante, faltam aos interessadosinformações seguras sobre os procedimentos existentes,seus efeitos e, principalmente, quanto à possibilidade desucesso. Ter um filho mediante a utilização de uma dastécnicas de reprodução assistida não é tão fácil quantoparece.

A matéria é vasta e complexa, impondo-se de iníciose circunscrever o campo dessas breves considerações:inseminação artificial de mulher casada com sêmen domarido, quando este já falecido, procedimento que tem

sido denominado “inseminação post mortem”. Afastadasestão a dissolução da sociedade conjugal por separação defato, judicial ou divórcio, ou mesmo de invalidade docasamento, bem como, as hipóteses de utilização dessemesmo procedimento fora do casamento, como, porexemplo, por mulheres que vivem em união estável ou quesejam solteiras.

A restrição é necessária, principalmente, por ter alei cogitado apenas da utilização das técnicas por pessoascasadas, gerando, em conseqüência, efeitos jurídicosdiferenciados.

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A lei mencionada, que admite a possibilidade deinseminação artificial após a morte do marido é a de n°10.406, de 10 de janeiro de 2002, ou seja, o novo CódigoCivil, em vigor a partir de janeiro do corrente ano. A novaLei Civil incluiu dentre os filhos presumidos comoconcebidos na constância do casamento aqueles: havidospor fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido omarido; havidos, a qualquer tempo, quando se tratar deembriões excedentários, decorrentes de concepçãoartificial homóloga e os havidos por inseminação artificialheteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido(art. 1.597, III, IV e V, respectivamente). Estas são as

primeiras disposições legais sancionadas no Brasil sobre amatéria, sobre a qual apenas o Conselho Federal deMedicina se pronunciara (Resolução n°1.358/92).

Fiéis à proposta inicial, as presentes reflexões estãorestritas ao disposto no artigo 1.597, III, do Código Civil:filhos “havidos por fecundação artificial homóloga, mesmoque falecido o marido”. Não há no Código qualquer outradisposição relacionada diretamente ao assunto, exigindodo operador do direito grande esforço interpretativo, nemsempre bem sucedido, não só para manter a harmoniaentre regras inspiradas por fatos bastante distintos, masprecipuamente para não afrontar os ditamesconstitucionais.

De início constata-se que o legislador não primoupelo rigor técnico. Não bastasse a menção à “fecundação”,em lugar de “fertilização”, termo reconhecido como maisadequado, a referência imprecisa permitiria estivessem

compreendidas duas técnicas: a inseminação e afertilização in vitro, desde que homólogas. Não é o que seconclui, se considerado o inciso seguinte (IV, do art. 1.597)que inclui na presunção de paternidade do marido os filhoshavidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriõesexcedentários, decorrentes de concepção artificialhomóloga.

Embora as hipóteses se aproximem, visto queambas cuidam de filhos que geneticamente são do marido(homólogas) e lhe atribuam paternidade não vinculadatemporalmente à constância do casamento (“mesmo que

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falecido o marido” e “havidos a qualquer tempo”), doisimportantes aspectos as distinguem: a menção à“fecundação mesmo que falecido o marido” admite ainseminação   post mortem e o conflito, se houver, dirárespeito à utilização do sêmen congelado do marido, masnão terá havido concepção; diferentemente, a referência aembriões excedentários pressupõe concepção já verificadae a eventual divergência pode-se dar quanto à “utilização” de embriões, à semelhança de recente discussão havida naInglaterra2, bem como ao destino que lhes deve ser dado,se o simples descarte, adoção por outros casais ouexperimentação.

A utilização de sêmen ou seu descarte é problemacircunscrito ao consentimento do marido3 ou de suafamília4. Não há, ao que se sabe, maiores complicaçõesquanto ao descarte. Contudo, no caso de morte, a suautilização para fins de inseminação artificial, mesmo daesposa, poderá encontrar obstáculos por parte da famíliaque “dispõe” de seus mortos, de que é exemplo acontrovérsia, hoje superada, gerada pela lei detransplantes5.

2  O Alto Tribunal de Londres rejeitou ação de duas mulheres contra a lei quedetermina a destruição de embriões, salvo haja consentimento do casal paraarmazená-los. Ambas estão hoje separadas e os dois ex-companheiros retiraram aautorização para o uso dos embriões. Uma das mulheres teve seus ováriosextirpados por conterem células cancerígenas. Jornal do Brasil. 02.10.03. p. A15.3 Tribunal japonês de Osaka negou o laço de paternidade de uma criança concebida  por inseminação artificial com esperma  congelado  do pai morto de câncer em

1999, tendo em vista que o homem tinha decidido que seu esperma fosse destruídocaso morresse. (www.espacovital.com.br/asmaisnovas13112003g.htm, acesso em13.11.03).4 Considere-se aqui o conceito amplo de família, juridicamente composta por   parentes até o 4° grau. Observe-se que o surgimento de uma família pelocasamento (conceito restrito, compreendendo pai, mãe e filhos), não extingue ovínculo com a família de origem.5 Para os efeitos da Lei 9.434, de 04.02.97, Lei de Transplantes, não estãocompreendidos, entre os tecidos a que se refere, o sangue, o esperma e o óvulo.Esta lei sofreu importante alteração (art. 4°) em matéria de disposição post mortem

de tecidos, órgãos e partes do corpo humano para fins de transplante, para vincular a sua retida à autorização dos familiares ali indicados, sob o argumento de queestes sempre eram consultados, mesmo havendo autorização expressa doador.

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  Já em se tratando de embriões, o problema tematormentado a comunidade internacional. Verificada aconcepção, o surgimento de um embrião (ou pré-embrião)provoca intrincadas discussões de natureza ética, religiosa,sociológica e jurídica. Por conseguinte, sua análise deve serfeita em separado.

Cingida a questão, permita-se a insistência, àinseminação homóloga   post mortem, cabe de inícioquestionar a adoção da presunção de paternidade no caso,visto ser certa a paternidade genética, graças ao próprioprocedimento médico.

As técnicas de reprodução humana assistida

desafiam, em muito, os meios e prazos naturais deconcepção e gestação, tomados como base de referênciada presunção. Nos procedimentos que utilizam materialfecundante do casal, dúvidas não deverão existir quanto àpaternidade, considerado o vínculo biológico: há certezamédica quanto à paternidade, ressalvada, à evidência, apossibilidade de fraude ou erro na efetivação da técnica.Portanto, de pouca ou nenhuma utilidade a presunção. Seutilizado material de doador, deverá o legislador indicar aquem cabe a paternidade, como o fez (art. 1.597, V).

Na verdade, após a possibilidade de verificação dovínculo genético por meio do exame do DNA, a presunçãoassume um papel secundário. Os tribunais brasileirostendem a atribuir a paternidade ao pai biológico, por vezesem detrimento do pai socioafetivo. Mais simples seria, se olegislador indicasse o critério preferencial para oestabelecimento da paternidade, permitindo melhor

apreciação do juiz em cada caso. Contudo, isso nãoocorreu, devendo o intérprete buscar o objetivo da lei.Contudo, a presunção legal foi estabelecida,

impondo algumas questionamentos, no que se refere àépoca da concepção, embora não haja dúvida quanto aovínculo genético, como destacado.

De acordo com a parte final do inciso III, do art.1.597, presumem-se concebidos na constância docasamento os filhos havidos por fecundação artificialhomóloga, "mesmo que falecido o marido". Se a concepçãose der durante o casamento, o filho nascerá nos prazos

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legais aproveitados pela presunção, que levam em conta otempo normal (mínimo e máximo) de gestação, comoassinalado (incisos I e II, do art. 1.597, art. 1.598).

O problema parece residir, assim, na possibilidadeda concepção ocorrer, com o sêmen do marido, após ofalecimento desse e, em conseqüência, o nascimentoacontecer após os 300 dias subseqüentes à dissolução dasociedade conjugal. Tudo leva a concluir que o intento dolegislador foi resolver esse problema, incluindo napresunção mesmo os filhos que venham a nascer após oprazo máximo de gestação, estimado em 300 dias pela lei.

A presunção consiste, pois, em considerar como

concebido na constância do casamento mesmo o filho quese sabe concebido quando já extinto o vínculo conjugal, emrazão da morte do marido. Admite o Código Civil, dessemodo, que a mulher possa valer-se do sêmen congelado domarido morto.

2. As entidades familiares: a família monoparental. Avigente Constituição da República inovou e revolucionou osfundamentos do Direito de Família no Brasil ao reconhecertrês entidades familiares: a constituída pelo casamento, aresultante da união estável entre o homem e a mulher e acomunidade formada por qualquer dos pais e seusdescendentes (art. 226, §§ 2º, 3° e 4°). Essa últimamodalidade tem sido denominada família monoparental eainda não recebeu por parte dos intérpretes o merecidotratamento, ensejando dúvidas quanto a sua exatacompreensão.

Registre-se, desde logo, que, não obstanterespeitáveis opiniões em contrário, não há qualquer tipo dehierarquia entre as entidades familiares. A família, comoexpresso na Constituição, é a base da sociedade e temespecial proteção do Estado. Deve ser rejeitada qualquerforma de discriminação entre as diferentes modalidadesde família, cabendo indagar como e em que dimensãodeve-se dar a proteção do Estado.

Essa indagação se torna de mais difícil resposta nocaso da famílias monoparentais, visto que o legislador nãose posicionou quanto a sua compreensão. O quê devemos

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nelas incluir: apenas as mães (ou pais) “solteiros”,qualificação aqui que assume o significado de pessoa semparceiro, por causas que independem da sua vontade,como abandono, separação ou morte, ou também os quese encontram nessa qualificação por opção de vontade eque desejam ter um filho mediante o que popularmente sedesigna “produção independente” ? Estão amparadostambém os homossexuais que não coabitem com umcompanheiro ?

No caso dos homossexuais há interessante situação.Os juízes do Estado do Rio de Janeiro firmaramentendimento, no sentido de admitir a adoção por pessoas

homossexuais, desde que não fossem casais. Admitiu-se,assim, ainda que de forma indireta a família monoparentalem que o pai ou mãe é homossexual.

O foco das presentes considerações, contudo, sãoas famílias monoparentais que se formam por vontade dopai ou mãe, valendo-se de uma das técnicas de reproduçãoassistida, no caso em exame, da inseminação da viúva como sêmen congelado do marido morto.

3. Critérios de estabelecimento da paternidade. Paramelhor compreensão do problema é necessário considerarque, de acordo com a doutrina jurídica, há três critériospara atribuição da paternidade: o critério jurídico, pelo quala lei estabelece o vínculo com base em presunções; obiológico que privilegia o vínculo genético, que pode serverificado pelo exame do DNA; e o critério socioafetivo quefaz prevalecer o laço da afetividade entre pai e filho.

Havendo inseminação   post mortem, o pai será omarido, por força da presunção de paternidade antesreferida. Adotou a lei civil o critério jurídico para atribuiçãoda paternidade dos filhos de pessoas casadas. Não foiestabelecido, porém, qualquer prazo para a utilização dosêmen do marido morto, o quê poderá trazer muitasdificuldades, especialmente de ordem prática. Até quantotempo depois da morte será possível a disposição dosêmen ? Como proceder se já realizada a partilha dos bensdo falecido ? Seria razoável fazer-se reserva de bens, em

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nome de uma mera possibilidade de surgimento de umherdeiro6.

Neste cenário assume capital importância a vontadedo falecido, da qual não se ocupou o legislador. Uma dasorientações possíveis é respeitar o que houver sidodeterminado pelo marido. Na vigente lei civil não háqualquer disposição sobre o assunto7. Essa omissão, aolado de tantas outras, vem demonstrar a precariedade dasregras estabelecidas no Código Civil sobre matéria de tãograves conseqüências.

Fica assim a questão submetida, exclusivamente,ao disposto na Resolução 1.358/92, do Conselho Federal de

Medicina, que contém as normas éticas para a utilizaçãodas técnicas de reprodução assistida. Sob o título“Criopreservação de gametas ou pré-embriões” (V) amencionada Resolução autoriza a criopreservação deespermatozóides, óvulos e pré-embriões (V-1), massomente dispõe sobre a declaração de vontade doscônjuges ou companheiros, por escrito, quanto ao destinoque será dado aos pré-embriões criopreservados, em casode divórcio, doenças graves ou falecimento de um deles oude ambos, e quando desejam doá-los (V-3). Não háreferência expressa aos gametas crioconservados.

A omissão não chega a ser grave, visto ser aplicávelao sêmen a orientação prevista para os pré-embriões.Impõe-se destacar, porém, a grande responsabilidade dosmédicos ao colher a declaração escrita dos interessados,na medida em que, ante o silêncio da lei na matéria, essedocumento poderá ser o único sinal revelador da vontade,

no caso de falecimento. A sua utilização como provadocumental, em situação de litígio, será de grande valia.Indispensável observar que a ausência dessa

declaração expressa não autoriza a entrega do sêmen àviúva, à família, ou sua utilização, para qualquer fim, sob

6 A contemplação de prole futura é prevista na sucessão testamentária, em caráter excepcional, mas que deverá estar concebida em até dois anos contados da data damorte (art. 1.800, do Código Civil).7 O artigo 1.597, V, do Código Civil, condiciona a presunção de paternidade à  prévia autorização do marido somente no caso de inseminação artificialheteróloga.

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pena de responsabilização civil das clínicas, centros ouserviços que assim procederem, naturalmente por argüiçãoda parte que se sentir prejudicada. A rigor, o mesmo pode-se dizer quanto ao descarte dos gametas crioconservados.Impõe-se, portanto, toda cautela prévia por parte dosmédicos. Em caso de dúvida ou de conflito, será prudentesubmeter a matéria ao judiciário.

Há, porém, outras indagações. Parece razoável quea mulher dê continuidade ao projeto familiar iniciado comseu marido, desde que este em vida assim tenhaautorizado. Esse entendimento, que encontra amparo nodireito ao planejamento familiar, constitucionalmente

garantido, não leva em consideração os direitos do filho,também assegurados pela Constituição (art. 227),especialmente o direito à convivência familiar.

É sedutor o argumento de que o direito aoplanejamento familiar pode ser exercido em qualquermodalidade de família e, portanto, também em famíliamonoparental, denominação que vem sendo atribuída àcomunidade formada por qualquer dos pais e seusdescendentes, igualmente reconhecida e protegida pelaConstituição da República (art. 226, § 4°). Robustece esseargumento o fato de algumas mulheres perderem seusmaridos, quando grávidas por processo natural. Inclua-se,por igual, a adoção por uma só pessoa.

Indispensável considerar, para melhor compreensãodos efeitos da inexistência do pai, o entendimento dapsicologia sobre tal problema, visto ser o pai sabidamenteimportante na construção da estrutura psíquica do

indivíduo. Ao que se sabe, esta lacuna poderá serpreenchida por outra pessoa que venha a exercer a funçãode pai.

A rigor, porém, as hipóteses não são idênticas: naprimeira a concepção se deu em vida do pai, na segundaquando já morto o marido. Não se indaga da paternidade(biológica), esta é certa, independentemente da presunção;mas da conveniência de se promover o nascimento decrianças geradas após a morte do pai. Fará diferença otempo decorrido entre a morte e a concepção ? Estará

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atendido o melhor interesse da criança ? Há interesse dacriança ou da mãe ?

Essa última pergunta tem sido formulada nos casosde adoção. Observe-se que o adotado tem um pai, umafamília de origem, sendo possível identificá-lo e atéconhecê-lo. O segredo quanto a sua existência tem sidocondenado, ante o choque futuro da descoberta. Já existe  julgado permitindo a identificação da família de origem,sem alteração do vínculo de adoção, que é irrevogável.Como se vê, também na adoção, a situação não éexatamente a mesma do filho gerado após a morte do pai.

Vai se consolidando, em boa hora, o entendimento

de que a figura do pai é muito superior a do mero provedorou reprodutor. Ao vínculo puramente jurídico, calcado empresunções, estruturadas num sistema de marcantescaracterísticas patrimonialistas, substituiu-se a tendência,hoje vigente, de prevalência do vínculo biológico8.

Caminha-se, porém, seguramente no sentido deprivilegiar o vínculo afetivo, que se estabelece entre o filhoe aquele que exerce a função de pai. Somente quando odireito reconhecer, de modo pleno, o papel do pai, em todasua complexidade, que transcende, e muito, uma ligaçãobiológica, haverá possibilidade efetiva de se atender omelhor interesse do filho.

A existência de disposição legal estabelecendo apaternidade presumida, nos termos acima, por si só, nãodeve afastar o questionamento quanto à legitimidade dainseminação  post mortem. Em caso de eventual conflito,poderá haver decisões bastante diversificadas.

Havendo declaração do marido quanto ao destino aser dado ao seu sêmen no caso de morte, poderá o julgador determinar se respeite a vontade do falecido, querno sentido de destruição do material, quer permitindo ainseminação. Na ausência de tal declaração, existirá igualalternativa. Não seria de surpreender decisão queautorizasse a inseminação, mesmo havendo manifestaçãocontrária do marido, por reconhecer à mulher o direito de

8 O exame da jurisprudência revela forte tendência a se estabelecer a paternidadecom base no vínculo biológico, aferível mediante exame do DNA, o quê pode ser constatado nos julgados do STJ. Vive-se o império do DNA.

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concretizar o plano familiar iniciado com o marido, sendomais justo que utilizasse o seu sêmen do que o de umdoador estranho.

Do mesmo modo, se a esposa tiver negado pelaclínica seu pedido de entrega do sêmen do marido morto, aregra vigente dá margem ao juiz para, ponderando osinteresses envolvidos, indeferir o pedido da mulher,entendendo que deve prevalecer o melhor interesse dacriança, no sentido de ter um pai, princípio contido noartigo 227, da Constituição Federal, independentemente davontade do marido.

Indispensável é, em qualquer caso, ter em mente

que o direito ao planejamento familiar tem comofundamentos o princípio da dignidade humana e apaternidade responsável. O homem casado que fornecegametas para a inseminação de sua mulher ou fertilizaçãoin vitro, ou ainda, autorização para a inseminação de suaesposa com sêmen de doador, presumidamente quer apaternidade que por lei lhe será atribuída. A possibilidadede arrependimento em tais casos deveria serregulamentada pela lei. Na ausência de regra sobre amatéria deve prevalecer a presunção, caso realizada comsucesso a inseminação, com base no princípio do melhorinteresse da criança e do adolescente, de todo prioritário.

O que se constata é que, por ser a lei de todoinadequada, restaram sem proteção adequada o marido,no que respeita a sua vontade, a mulher, relativamente aoseu desejo de ter um filho do marido, e o filho, que, afinal,terá apenas um pai jurídico.

Se entendido que é razoável a inseminação  post mortem, não haverá, em princípio, motivo para não seadmita igual procedimento nos demais casos de pessoassem companheiro, por ato de vontade. Já podemosdispensar o pai?

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Bioética e discurso científico: que lugar para alei?

Madalena R. Sapucaia

Quando os organizadores deste evento, através daMônicca, me chamaram para esta mesa, eles explicaramque o convite surgiu por um texto que eu escrevera sobreBioética. Voltei ao texto e fiquei pensando de qual lugar eupoderia falar, já que não sou especialista em Bioética.Decidi começar falando do meu encontro com a palavraBioética, e como ela me atraiu.

Antes dela, comecei ouvindo muito uma outrapalavra - Biotecnologia, que vinha sempre carregada depromessas de soluções eficientes para as questões que amortalidade do corpo insiste em trazer ao sujeito de todasas épocas, o sujeito do Mal-Estar na Civilização. Eficiência erapidez, dão ao Homem contemporâneo os sinais de queele está no caminho do sucesso. Logo, da felicidade. Oesforço para que "tudo funcione na mais perfeita ordem",

insinua sedutoramente que apreenderemos o Real, queviveremos sem angústia e atingiremos a imortalidade. Talvez seja este o ponto de encontro da Bioética com aPsicanálise e também com a Psicologia Jurídica :trabalhamos com aquele que esquece, com o distraído,com o que se apaixona, com o que odeia, com o que nãoaprende, e com o cria. Trabalhamos com sujeitos,eternamente desamparados - mortais.

No início da era cristã eram 300 milhões de homenshabitando a Terra. Mil e oitocentos anos depois, eram 900milhões. Mais 200 anos são 6 bilhões. Muita gente, não?Muita gente procriando, muita gente envelhecendo e cadadia mais aumentando a longevidade do homemcontemporâneo. Tentei imaginar o que são 6 bilhões depessoas, e concluí que são 6 bilhões de corpos, claro ! Émuito DNA funcionando, com muito material para abiotecnologia operar!

Foi neste ponto que esbarrei na palavra Bioética,tentando responder minhas indagações num trabalhosobre as novas formas de reprodução e filiação. Pensava,

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naquela momento, se essas técnicas iriam trazer umanova ordenação ética. Pois se durante tantos séculos apalavra ética não precisou incluir o prefixo bio, esta novaroupagem (bio + ética) , parecia indicar grandesmudanças..

Parti de algumas definições como a doProfessor Olinto Pegoraro que diz:  "A ordem ética é relativaà vida e à cultura numa situação histórica determinada..... Ahistoricidade e a temporalidade fazem da existência humana umanatureza mutável, entregue à sua liberdade e responsabilidadeconstituindo-se, por isso mesmo, como único ser naturalmenteético Se fôssemos apenas viventes biológicos , subordinados àsleis do funcionamento dos sistemas vivos, não nos proporíamos

questões éticas.. (Fundamentos da Bioética- Olinto Pegoraro- pag.81)

Freud também não postulava um caráter naturalpara a ética, não pensava que o bem e o mal estariamgravados no coração do homem (hoje no DNA),fundamentando uma ética de alcance universal. No Mal-Estar na Civilização ele diz : “É lícito desautorizar a

existência de uma capacidade originária ,por assim dizernatural, de diferenciar o bem do mal.”  Tendo um pouco mais de 30 anos, a palavra

Bioética se reproduz em todos os cantos, talvez como amelhor representante de que há um novo Mal-Estar naCivilização. Mal-estar que é formado através da soma daBiotecnologia com os investimentos milionários dasmultinacionais farmacêuticas. Alguns estudiosos do temaacham que preocupações com a manipulação do corpo

são anteriores a tentativa de barrar o excesso da indústriafarmacêutica. Que tais preocupações começaram noProcesso de Nuremberg (1946), onde foram julgados comocrime as experiências de manipulações genéticas feitascom prisioneiros

Enfim, há mais de 50 anos que já se discutia o queuma tecnologia cada vez mais eficaz e veloz poderia fazerao manipular o corpo humano, numa medicina que

começava a ser, além de terapêutica e preventiva, agorapreditiva. O que isto poderia causar na civilização, nestacivilização chamada do espetáculo, do narcisismo, do

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individualismo, ao colocar o corpo na lista das coisas entrecoisas era o núcleo da questão.

Mas foi só no ano de 1971, num artigo para arevista Times, nos Estados Unidos, que o professor debioquímica e oncologista Van Potter inaugurou o uso dapalavra Bioética, como um novo estudo sobre a ética da Terra, das populações, do consumo, da urbanização, enfimuma ciência da sobrevivência. A palavra entra na mídia epassa a ser interpretada como sinônimo de ética médica.Mas Potter, em novos pronunciamentos, define que aBioética foi pensada como uma nova ciência que viria fazerponte entre Ciência e Humanidade, principalmente entre a

explosiva ciência biológica e a ética, com a necessidade dese elaborar um sistema capaz de prover diretrizes parauma atuação responsável do ser humano em relação aofuturo.(Bioética ; ponte para o futuro é o nome do livro doPotter).

Sabemos que a rapidez biotecnológica avança semdar muito tempo de elaboração ao homem comum, queinformado pela mídia, fica entre o fascínio e a apreensão,pois são infinitas as possibilidades de mudança no real docorpo, que neste meio século, deixaram de ser pura ficção,e passaram até a serem oferecidas como irresistíveis,desejáveis, inevitáveis e até mesmo imperativas..

Se trata então de pensar nos efeitos dabiotecnologia no laço social, de como o discurso daeficiência passa a formar parte da vida cotidiana, seinfiltrando no tecido social, com ares de solução para todosos males que o corpo traz a cada um dos sujeitos.

O surgimento da Bioética para alguns críticos, nãotem nada de novo, a não ser o nome, e pensam que ela éapenas um produto da sociedade do bem-estar pós-industrial e da expansão dos direitos humanos. Outrosacham que, como nunca, o avanço científico pede um novolimite ético a ser imposto à ciência, que temos uma novarealidade a partir da biotecnologia. e que talvez a novidadeseja a necessidade de uma abordagem interdisciplinar,para esta reflexão.

Frente a esta proposta interdisciplinar pensei que seé no corpo onde se aloja o psiquismo. aonde a pulsão faz a

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curva, aonde o ato-falho faz cotidiano, aonde o sonhopersiste, a Psicanálise pode contribuir dizendo do corpoque ela conhece: o que é marcado de significantes,revestindo seus órgãos, sua bioquímica, suas células.

Podemos incluir na lista de intervençõestecnológicas no corpo, uns objetinhos, umas coisinhasmuito pequeninas, trazidas pela nanotecnologia, outrapalavra que aprendi, que podem ser engolidas ouimplantadas para mapear partes do corpo outrorainacessíveis, e agora expostos em telas de consultórios ounum programa de tv. A pele já não esconde os órgãosinternos do olhar do outro, tais câmerazinhas podem

invadir a circulação e detectar o entupimento de artérias, epassear por lugares nunca dantes navegados, trazendo avelha questão: Tenho um corpo? Sou um corpo?

 Jean Baudrillard, no livro "A transparência do Mal",diz que o corpo que foi outrora "metáfora da alma, e depoismetáfora do sexo, hoje não é metáfora de coisa nenhuma"e a busca pela clonagem é uma "utopia monocelular que,por via genética, faz os seres complexos acederem aodestino dos protozoários."

Realmente, com a Biotecnologia o corpo humanonão tem mais condição natural e imodificável. Aintercorporeidade deixou de ser apenas uma formaimaginária (como a quimera monstro, cabeça de leão,corpo de cabra e cauda de serpente, fogo pelas narinas),ou a criação de Eva, os vampiros, Frankenstein, ou comocoloca Baudrillard, Michel Jackson, ou Madona) ou natural(coito, gravidez, canibalismo, siameses, e até

epidemiologia - contágio).As novas formas tecnológicas deintercorporeidade se referem aos transplantes, reproduçãoassistida e engenharia genética, onde, de fato, há umaincorporação de pedaços de um corpo para outro.

O desenvolvimento destas tecnologias favoreceu aexplosão da indústria de materiais corporais, deproporções mundiais, hoje tudo tem valor de mercado. Etodos sabemos que quando falamos de indústria deproporções mundiais, falamos também de imposições deproporções mundiais.

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A transformação do corpo humano em mercadoria éum fenômeno antigo, está na base da escravidão e daprostituição desde as suas origens. Mas atualmente temosaspectos inusitados, que são: a compra e venda de funçõespara uso limitado no tempo (barriga de aluguel), a comprae venda de células e tecidos regeneráveis (da matrizgerminal ao sangue), ao comércio de órgãos não-regeneráveis, quase sempre os duplos-rins, e o comérciode embriões.

Mas quem são os proprietários dos órgãos e dopatrimônio genético? Já que da noção de propriedade sedesprendem a disponibilidade para doar e para vender

uma pedaço do próprio corpo ou do corpo de um familiar.Com a nova dissociação biomédica do corpohumano se gera uma crise profunda da noção de pessoa.De um lado a realidade do corpo se desprende da pessoapara fazer-se objeto recolocável, e o Eu se embola com oMeu, sendo então proprietário de um bem disponível, seupróprio corpo com tudo o que tem dentro.

No Projeto Genoma Humano são enormes asimplicações econômicas e financeiras que levaram ainvestigação do que seria um conceito de Propriedade, ocorpo como patrimônio dependente e inseparável do Entepessoal.

Apesar da UNESCO ter declarado o PatrimônioGenético Humano, um patrimônio comum da humanidade,como os oceanos e o ar, os Estados Unidos já patentearamalguns gens decodificados. E de acordo com o CentroBritânico para a Exploração da Ciência e da Tecnologia,

para o ano 2010, as industrias estarão em condições devender mais de 60. milhões de dólares em produtosderivados da investigação do genoma humano.

Enfim o corpo está sendo invadido , revelado,remodelado, recauchutado, clonado, recortado, vendido,num ritmo de euforia. E já começa a ser comum casoscomo o de uma jovem americana que fez 35 plásticas paraficar igual a Barbie, ou o de uma artista plástica paulistaque diz que está cansada de ser gente e quer virar vaca, epara isso faz enormes manchas tatuadas no corpo paravirar uma vaca malhada. Como disse Alberto Mainetti:

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Pigmalião tirou Narciso do espelho. A cultura do Narcisismovirando a cultura de Pigmalião.

Freud ensina que o que há nos humanos é um corpolibidinal , afetado pela linguagem. E por isso não dá paratransformar a medicina em veterinária, não dá para retirardos humanos a sua fala como sujeito. Nenhum aparelho dananotecnologia poderia localizar a origem dos sintomasdas pacientes histéricas de Freud.

Freud ao usar o mito de Edipo, para explicar asformas em que cada sujeito estrutura seu estilo particularde ser, demonstra que a singularidade se constitui dentrodos laços sociais (familiares) que lhe são oferecidos.

Mas ao se pensar em familias concretas devemospensar em funções, tema que quem trabalha com Direitode família se torna especialista. O sujeito nasce em umaestrutura que não pode escolher, está determinada. Ascategorias de maternidade, paternidade, filiação, família,são construções relativas a um universo simbólico (e portanto não biológicos).Cada época cria recursos que lhe sãopróprios para definir as modalidades do simbólico às quaisdará uso para a constituição dos sujeitos. E todo sujeitoterá de universal o desejo de se apresentar numaparticularidade, de marcar aonde ele se identifica e ondeele se diferencia a cada encontro com o outro.

É na eficácia do simbólico, que o sujeito vaiconstruir seu sentido A trama do humano se constitui naconstrução do sentido, na referência aos sistemasconceptuais conhecidos ou na invenção do novo. Aclonagem pode produzir uma fotocópia genética, mas não

há fotocópia da produção de sentido.Lacan nos diz que no discurso científico o sabersofre de um imperativo que faz com que ele avancesempre, que impele o sujeito na direção de saber sempremais, sem se deter em nenhum obstáculo e sem refletirsobre tais avanços.

 Trabalhando com este imperativo do saber, nestasociedade da Produção e do Consumo, não se interessandopelo sujeito, mas sim pelas alterações no real doorganismo, é que a Biotecnologia caminha. No ProjetoGenoma Humano, por exemplo, que já recebeu

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investimentos de bilhões de dólares, as implicaçõeseconômicas e financeiras levaram à investigação do queseria um conceito de Propriedade Corporal. Por um novoconceito de Propriedade Corporal foi possível que toda aIslândia vendesse para o Laboratório Roche, por US$ 200milhões, o direito à pesquisa do código genético de suapopulação.(A Islândia tem a população de menormiscigenação do planeta). Nesta mesma via econômica,um dia depois da divulgação da “Dolly”, a empresa donados direitos sobre a técnica de clonagem viu subir em 56%suas ações na Bolsa de NY. Da mesma forma, uma coletade esperma, pode ser vendida em N. York por 25 dólares, e

um óvulo por 5.000. É a extensão da mercantilizaçãochegando ao corpo, onde tudo vira mercadoria. Na buscade um sentido ético para estas mudanças no real do corpo,a Bioética faz anúncios importantes: a Biotecnologia não éapenas um aprimoramento do real do corpo, ela tem umaideologia montada na eficiência do capital, ela tem uminvestimento de milhões e milhões de dólares , elasubverte uma ordem do sistema corporal e isto tem efeitosno indivíduo e na sociedade, enfim ela é poderosa etransformadora.

 Todo este bio-shopping promove uma inquietação,levando a sociedade a montar comitês de Bioética em todoo mundo, como um Outro regulador, na busca de um ideal.

No começo a Bioética estava dirigida até a clínicamédica, até o leito do paciente, e não existia outra reflexãoque a do diagnóstico médico, depois se pensou quebastava ditar leis internacionais, para ordenar as

manipulações, mas estas entravam em colisão com asdiferenças entre as inúmeras culturas, e não foi possíveluma Bioética Universal. Tentando repensar o particularquando ele se manifesta na sua dimensão de imprevisto,que não pode ser regulado sobre os universais, uma dastendências da Bioética é a de estabelecer um debate dapluralidade, pela impossibilidade de um fundamentocomum e hegemônico. Ela tenta mostrar a multiplicidadede nossa sociedade atual, indo contra o caráter dogmático,totalitário, de se estabelecer respostas de pretensãouniversal, sustentadas em princípios e fundamentos

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absolutos que busquem impor-se amparadas na figura de“verdade única”. A partir do pluralismo ético, semabsolutos, os bioeticistas se colocam contra ideaisuniversais, estabelecendo debates angustiados, mastambém criativos, causados mais por uma reflexão nadiferença, do que na composição de regras morais.

A função médica atual vai além da tentativa de curae de preservação da vida, agora ela tem que decidir desdese um feto deve ou não nascer, e em qual barriga, atéquando um paciente terminal deve ou não morrer, emesmo se alguém já morreu, apesar de estar respirando.

O discurso psicanalítico também surgiu

historicamente marcado pelo avanço da ciência, masencontrou seu lugar fora deste avanço, colocando o sujeitonuma nova configuração, ressaltando o objeto que causaseu desejo. Como já disse, a ciência não se interessa pelosujeito, mas sim pelas alterações no real do organismo,sem intermediação do simbólico e do imaginário. APsicanálise tem tentado mostrar para a ciência que ainscrição significante é que vai dar sentido ao corpo.

Enquanto a ciência trilha um caminho dauniversalização dos corpos, sem querer saber dos efeitosno sujeito, tendo sua satisfação sustentada pelo Saber, aPsicanálise vai em outro sentido, no sentido da verdadeque contém cada sujeito, verdade que é um saber nãosabido por ele, um saber inconsciente .

Os bioeticistas se colocaram na função de tentar re-inscrever esta inexorável pulsão do progresso científicotentando dar-lhe um caráter ético, um limite. Mas para a

Psicanálise jamais haverá este equilíbrio entre a ciência e aética. Lacan dizia que a ciência não pensa, ela SABE,ignorando a dimensão da verdade, ela é a mais puraexpressão da pulsão. Qualquer limitação desse tipo écompletamente estranha à lógica da ciência, ela éindiferente às modalidades de simbolização, ao modocomo ela afetará a vida social.

Na Psicanálise, desde que Freud falou que no corpoda histérica havia muito a decifrar, que sabemos que ocorpo não é condição primária para o sujeito, ele tem queadvir submetido a uma estrutura simbólica que lhe é

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anterior, pois é o Outro que nos determina. Se não somosacolhidos, não sobrevivemos. Se inicialmente não somos"falados" pelo outro, jamais falaremos.

Mesmo após a morte, nos sepulturas, a letracontinuará marcando aquele que já não tem corpo. Ainscrição e não a pele fará seu último contorno, e otransformará, quando vivo, num corpo que goza.

Quando o campo do Outro é disperso, está aberto oespaço para uma manipulação do corpo sem sentido, purogozo, como por exemplo o caso do casal que alugou umabarriga, comprou um embrião, e quando a gestação estavana metade, se separou e não queria mais a criança, como

também não a queria a mãe de aluguel.Na sociedade atual, a idéia de felicidade é associadaa um consumo compulsivo, pelo poderoso mercado global.Os produtos da tecnologia que são, constantementeoferecidos para tamponar a divisão do sujeito, com umaoferta saturada de bens descartáveis, acrescentaram nestalista de ofertas as manipulações do corpo. Apesar do corpo  já ter sido reconhecido como não comercializável, elevoltou a ter tabela de preço, como no mercado deescravos.

Com todas estas novas técnicas há uma exigênciade maior eficiência do corpo, para que ele possa dar contade um novo sistema de produção que é insaciável, e queaté já conta com um mercado de peças de reposição, comoempresas especializadas em Importação e Exportação deórgãos. Numa sociedade individualista e competitiva, comoa nossa, um corpo perfeito é buscado como uma

ferramenta para que o indivíduo tenha valor de mercado.Mas nem sempre o corpo responde com a tal eficiência esurgem as anorexias, as dependências de drogas, ascirurgia plásticas em série, a compulsão por exercícios. Ocorpo como oferenda a esta demanda do Mercado.

Freud falava que a civilização tinha que renunciar àsatisfação em troca de segurança. Baudrillard pergunta senão se está trocando a segurança pela satisfação, o quetraria uma torção à organização social.

É o desvario de nosso gozo, fala Lacan. (texto :“Televisão”).Este desvario, esta dispersão, este gozo na

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errância, que recusa uma localização, é o que a Bioéticabusca barrar.

Será uma missão impossível? A oferta insaciável detantos produtos fantásticos, colocados como imperativospara que o sujeito se sinta fazendo parte do seu grupo,leva cada um a esmorecer e ceder frente ao seudesejo.Essa submissão para não perder seu lugar no grupo,fragmenta o sentido, confunde o sujeito e expande umaoutra palavra : depressão

Quando um sujeito, sem mais saber como buscar acausa de seu desejo, cede ante o mundo mágico eperverso trazido pela cultura do espetáculo, isso se paga

com a tristeza. Quando a imagem que cada um recebe desí mesmo em comparação as ideais de riqueza, beleza ,saúde, juventude, é de ineficiência, incompetência, objetosombrío, resta uma tristeza, tristeza de não corresponderaos mandamentos do Senhor Moderno

E se estamos tristes, não é porque os tempos atuaistrouxeram uma alteração bioquímica, mas porque o sujeitosem direito à diversidade.

A Bioética me atraiu por fazer oposição a essatristeza cultuada, porque faz frente ao gigantismo doCapital. Acho que todos nós temos um dever ético detomar parte na discussão urgente que os bioeticistas nosconvidam.

Não é que os desenvolvimentos científicos nãoavançarão, ou que a humanidade não vá dispor dastecnologias adequadas para um mundo mais confortável,com menos doenças. A discussão que se abre é de outra

ordem: o que se coloca é se a posse do conhecimentoimplica sempre a necessidade de seu uso; coloca-se umadisjuntiva para o desenvolvimento científico, interrogandosi o que pode ser feito deve ser feito; deixa claro que aspossibilidades técnicas de produção de um fenômenodeterminado não está necessariamente no mesmo registroque sua necessidade ética. Se faz necessário que uma leisocial acompanhe o limite citado para impedir usos quetransgridam o próprio da condição humana, ou quefuncionem reduzindo a dimensão do conhecimento à puralógica mercantil.

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A falta de limites nos desenvolvimentosbiotecnológicos não leva à construção de benefícios para ahumanidade. Para ilustrar isto, vou ler 2 parágrafos do livroFrankenstein - 1 do desesperado Dr. Frankenstein e outrode seu angustiado Monstro, que no final da história,escolheu um lugar muito interessante para morar: 

“Eu trabalhara duramente durante 2 anos para infundir vida a um corpo inanimado. Para tanto sacrificara o repouso eexpusera a saúde. Eis que, terminada minha escultura viva,esvaía-se a beleza que eu sonhara, e eu tinha diante dos olhosum ser que me enchia de terror e repulsa.” 

 “Quero de você apenas que me dê uma companheira,

semelhante a mim, tão hedionda quanto eu. Por amor a talcriatura, eu firmaria a paz com gênero humano! Ë verdade queseríamos 2 monstros, isolados de todo o mundo, mas por issomesmo mais próximos um do outro. Ó meu criador atendaminha súplica! Se você consentir, nem você nem qualquer outroser humano jamais tornará a ver-me. Partirei para os ermoslongínquos da América do Sul”.

Obrigada.

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Do parecer e do Julgamento: De que fala opsicólogo no universo jurídico?

 Justiça Terapêutica: Rompendo os limites daindiferença – a Ética como sustentáculo da

resistência

Damiana de Oliveira

“O mais importante neste mundo não é tantoonde estamos, mas em que direção estamos nosmovendo.” 

OW Holmes

Primeiramente gostaria de agradecer o convite queme foi feito pela Comissão organizadora do 4º Encontro dePsicólogos Jurídicos do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro

para compor a mesa Do Parecer ou do Julgamento: O quefaz o psicólogo no universo jurídico?Partindo dessa indagação e tendo como eixo

temático a questão da ética, buscarei estar pensando juntocom vocês algumas questões referentes à Justiça  Terapêutica, enfocando principalmente a atuação dopsicólogo dentro dessa modalidade de tratamento, quecada vez mais vem ganhando espaço no meio jurídico. Talfato acaba suscitando dos profissionais “psi” novas formas

de agenciamento, a fim de não se deixarem capturar pelanaturalização de certos procedimentos tidos comoterapêuticos.

Desde que no Brasil se começou a falar em Justiça  Terapêutica, muitas dúvidas, questionamentos eindagações começaram a despontar, evidenciando, assim,todo um desconforto com o lugar que os psicólogosestavam sendo chamados a ocupar nessa nova ordem que

estava se configurando.A idéia de uma Justiça que trata, que cuida, pode, aprincípio, parecer atraente para alguns que,

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inadvertidamente, vêem nessa situação anômala umasinalização da humanização do Sistema Judiciário, já que oinstituto da punição, do encarceramento, estaria sendosubstituído por um sistema de tratamento. Entretanto, oque podemos perceber é uma exacerbação da função  jurisdicional, pois como bem nos diz Walter Maierovitch,em entrevista ao Site Psicologia On Line, do ConselhoFederal de Psicologia:

“… justiça não é lugar de tratamento. A justiça se impõe paraoutras coisas. Justiça não é Justiça Terapêutica. Esteconceito é absolutamente equivocado. Justiça dá a cada um oque é seu e resolve conflitos de interesses. Uma Justiça nãotrabalha na imposição de terapias.”  9

Diante desta tendência de cada vez mais a Justiçase direcionar a outras disciplinas, a fim de ser auxiliada emsuas decisões, fica-nos então uma pergunta: Será que osimples fato do saber jurídico se unir aos saberes médico-psicológico faz com que a Justiça esteja compromissadacom a saúde e o desenvolvimento das potencialidades do

indivíduo? A história nos diz que não, pois se nosreportarmos aos tipos de alianças que foram estabelecidasentre a Psicologia e o Direito ao longo dos tempos, iremosconstatar que, infelizmente, essa relação nem sempre foipautada visando à promoção da dignidade e da liberdadehumana.

Cabe ressaltar que, embora no Rio de Janeiro e atémesmo no Brasil a atuação do psicólogo dentro do Sistema Judiciário seja algo recente, a relação da Psicologia com a Justiça no mundo é bastante antiga, sendo que podemosencontrar marcas dessa interseção já no século XIX, com osurgimento do que se convencionou chamar de “Psicologiado testemunho”. O principal objetivo da Psicologia deentão era verificar até que ponto o relato dos sujeitosenvolvidos nos processos judiciais podia ser consideradofidedigno. A esse respeito, diz-nos Brito:

9 Maierovitch, Walter. Justiça Terapêutica    – Entrevista.  Disponível em:<http://www.pol.org.br/pesquisa/resposta_pesquisa>. Acesso em: 10 novembro 2003.

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“…várias foram as contribuições oferecidas pela Psicologia Jurídica da época – por exemplo, métodos que possibilitassemdetectar a mentira. Pode-se imaginar a expectativa com que seaguardava um método preciso e objetivo que indicasse o

grau de sinceridade das pessoas. Diversas foram as técnicas eaparelhos desenvolvidos para tal intento, como o método da prova psicanalítica de Abraham-Rosanoff-Jung e o emprego doreflexo psicogalvânico para o controle da sinceridade.” 10

 Landry, um Psiquiatra francês, já chamava-nos a

atenção em seu livro “O Psiquiatra no Tribunal” para ocaráter repressivo e controlador que era impingido aosprofissionais “psi”, entendendo-se sob essa denominação

psicólogos, psiquiatras e psicanalistas, quando chamados aatuar em processos nos Tribunais. Esses processos, quasesempre envolvendo crimes, eram analisados, visandoencontrar algum indício de patologia que justificasse aintervenção do saber médico-psicológico. Pretendia-se,assim, no dizer de Foucault efetuar a ortopedia social, ouseja, o enquadramento do indivíduo às normas sociais.

Cumpre dizer que havia uma predominância do

saber médico sobre as demais ciências humanas, ficando aparticipação do psicólogo, quando admitida, subordinadaaos interesses médicos. Dessa forma, os profissionais “psi”eram chamados a intervir sempre que se observava anecessidade da aplicação de medidas terapêuticas, tendoem vista que a visão medicalizada da sociedade fazia comque o crime fosse visto como resultado de uma patologiasocial e como tal precisaria de tratamento.

Através de exames psicológicos, testes

psicométricos, entrevistas e outros referenciais técnicos,esses profissionais buscavam dar um caráter científico àsdecisões judiciais, reforçando, assim, o caráter repressivo eviolento que muitas vezes o Direito impunha aos seuscidadãos (doentes mentais, presos, crianças eadolescentes). Nesse sentido, a perícia, enquantoinstrumento de um saber especializado, era largamenteutilizada e, ainda hoje, acaba se constituindo numa das

principais colaborações da Psicologia à instância jurídica, a10 Brito, Leila Maria Torraca de. Separando: Um Estudo sobre a Atuação do Psicólogo

nas Varas de  Família, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1993, p. 25

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qual irá recorrer ao perito sempre que sentir necessidadede ser auxiliada com um saber técnico em suas decisões.A esse saber, juntam-se outras questões que o psicólogoacaba sendo chamado a responder, tais como, se oindivíduo voltará ou não a delinqüir ou o grau depericulosidade do mesmo, como se fosse possível a esseprofissional predizer comportamentos futuros.

Bem, a importância de contextualizarmos o modocomo vem se processando a relação da Psicologia com oDireito desde priscas eras é fundamental para que nóspossamos compreender e entender os atravessamentosque em nossa prática, enquanto psicólogos jurídicos,

sofremos, não se constituindo a Justiça Terapêutica numaexceção a isso.Se pararmos para pensar nos fundamentos que

norteiam os Tribunais para Dependentes Químicos nosEstados Unidos, iremos verificar que a idéia subjacente aessas Cortes é de que é possível vivermos num mundototalmente livre da presença de substâncias psicoativas.Esquecem-se, dessa forma, que as drogas sempre fizeramparte da história da humanidade, não sendo possívelencontrar nenhuma civilização que não tenha feito usodessas substâncias em algum momento de sua existência.

Os defensores desse modelo de Justiça acreditamque, através de mecanismos de repressão e de puniçãoseveros, atrelados a tratamentos compulsórios sob intensasupervisão do Poder Judiciário, seremos capazes deerradicar o consumo de drogas da vida das pessoas,notadamente entre o público mais jovem, bem como os

demais delitos associados a esse consumo. Essa políticade guerra às drogas, ao encontrar eco no modelo de Justiça Terapêutica norte americano, defende o controle intensivosobre os indivíduos, tendo como mote a famosa “tolerânciazero”, a qual na prática pode se traduzir em intolerânciacontra os usuários de substâncias psicotrópicas.

No Brasil, o uso cada vez mais crescente deentorpecentes pela população, cuja média de idade parainício do consumo vem sofrendo um decréscimo constante,aliado a toda uma campanha de demonização das drogas,que vem sendo perpetrada, acaba encontrando um terreno

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fértil para que políticas de cunho repressivo ganhem forçae se firmem enquanto modelos de enfrentamento daquestão da drogadicção a serem seguidos. É assim que nosdeparamos todos os dias com inúmeras tentativas de secolocar na conta do consumo de drogas a responsabilidadepela onda de violência que assola o país, cujo ápice podeser observado nas campanhas governamentais quebuscam culpabilizar os usuários de substânciasentorpecentes pela criminalidade que não para de crescer.

A Justiça Terapêutica, desse modo, acaba indo aoencontro dos anseios de uma parcela da população que,atemorizada diante da possibilidade de ver seus filhos

enveredarem pelo universo das drogas, demanda do PoderPúblico uma linha de atuação mais dura, não só nocombate ao tráfico de drogas, mas também contra aquelesque fazem um uso recreacional dessas substâncias, osquais passam a ser vistos como dependentes químicos ecriminosos em potenciais. Muito têm contribuído para esseclima de histeria que começamos a verificar os últimosacontecimentos violentos envolvendo jovens, cujos crimes,cometidos muitas vezes contra a própria família, tiveram adroga como pano de fundo.

A essa demanda de alguns segmentos dasociedade, a Justiça Terapêutica irá responder lançandomão de uma série de instrumentais, tais como, a testagemde urina para verificação se o indivíduo fez uso e/ou abusode drogas, a aplicação de sanções para aqueles quedescumprirem as regras do Programa, a imposição detratamentos psicoterápicos e antidrogas compulsórios,

entre outras medidas. Pretende-se, assim, exercer umavigilância cerrada sobre as pessoas submetidas a essemodelo de tratamento, de modo a alcançar o seu objetivoprimordial, qual seja, a abstinência total de substânciasentorpecentes.

E nós psicólogos? como ficamos diante dessequadro que se apresenta? Como lidar com as diferentesdemandas que nos chegam pela via judicial? Comoresponder eticamente a esses chamados? Será que isso épossível? Lembro que em 2001, quando da realização do 2ºEncontro de Psicólogos Jurídicos do Tribunal de Justiça do

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Estado do Rio de Janeiro, ao fazer parte de uma mesa quese propunha a discutir a responsabilidade de cada umfrente ao mal estar atual, apresentei neste mesmoAuditório o Programa Especial para Usuários de Drogas(PROUD) que, na ocasião, havia sido recém-implantado na2ª Vara da Infância e da Juventude.

Naquele instante, por ser tudo muito recente, aindaestávamos atônitos com as mudanças trazidas por essePrograma de Justiça Terapêutica, notadamente em relaçãoa um outro olhar que começava a se lançar sobre os jovense sua relação com as drogas. Ficavam evidentes, assim, asinquietações e mal-estares que o referido Programa estava

suscitando em nós psicólogos, dadas as peculiaridades domesmo e as novas demandas que a nós estavam sendodirigidas. Não obstante isso, já naquele momento,tínhamos a preocupação de encontrar formas de intervirnesse modelo de tratamento, que diminuísse o desconfortocausado e ao mesmo tempo possibilitasse ao sujeito aafirmação de sua singularidade.

 Tais inquietações que sentíamos se faziam justificar,o que fica bastante patente na fala do Dr. Márcio Mothé,Promotor de Justiça e Coordenador de Justiça Terapêutica,que ao explicar o que vem a ser o PROUD, assim se refereao trabalho da equipe interdisciplinar que atua noPrograma:  “Trata-se de uma nova visão da equipe de trabalhoque, aliada aos representantes da Justiça,   propõem umtratamento forçado, a partir da apreensão em flagrante dousuário de substância entorpecente. A equipe barganha asubstituição da ação pelo tratamento compulsório eobrigatório, centrado na total abstinência do participante, oqual deverá submeter-se às severas regras do Programa,inclusive à testagem aleatória que detecta o uso de drogas.” 11 

(grifos meus)

É claro que essa visão da equipe interdisciplinar,que tem em seus quadros o Psicólogo, coloca-nos a todosnum lugar que não nos pertence, por excelência. A grande

questão que se apresenta para nós então é: Como sair11 Fernandes, Márcio Mothé e Cordeiro, John Kennedy. Justiça Terapêutica – 2º Ano, Rio

de Janeiro, Consulado Geral dos EUA, p. 10

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desse lugar, mesmo trabalhando dentro de um Programade Justiça Terapêutica com tudo que isso representa?Como coadunar nossa prática com princípios éticosfundamentais? Afinal, longe de poder ser entendidaapenas como um conjunto de normas e regras valorativas,que irão regular a vida em sociedade, o que estaria maispróximo de preceitos morais, a ética nos remete ao campodo sujeito, com seus desejos, sonhos, expectativas evulnerabilidades.

Falar em ética é falar em subjetividade, é pensarnos tipos de subjetividades que estão sendo produzidasnum Programa que elegeu a droga como o principal

problema a ser enfrentado. É pensar nas aliançasestabelecidas, rompendo com a cultura da indiferença que,muitas vezes, faz com que o psicólogo não se perceba nocerne das relações de poder e nem se veja também comoimportante agente de transformação. É estar atento aosprocessos de rupturas capazes de promoverem adesnaturalização de certas práticas, afirmando outrosespaços e lugares, de modo que diferentes possibilidadespossam acontecer.

Foucault irá nos dizer que nós já nascemostransgressores, enfatizando o fato de que as relações depoder só se dão onde há resistência. Dentro de uma óticafoucaultiana sujeito e objeto são objetivações queacontecem pela prática. É a prática que inaugura objetosno mundo e um desses objetos é o sujeito. É das relaçõesentre as práticas discursivas (dizíveis) e das práticas nãodiscursivas (visíveis) que se constituíram saberes

especializados. A ética, assim, para Foucault é uma éticado rompimento, da invenção, portanto, falar em éticaimplica também trazer à tona nosso potencial criativo einovador, que faz com que a todo instante estejamosreinventando nossos fazeres e dizeres, constituindo novosmodos de existência , conscientes que somos de quenenhum saber neste mundo está desvinculado do poder.

A ética, dessa forma, não se confunde com amoral, pois enquanto esta busca nos códigos, nas normas,formas de disciplinar os comportamentos na vida emsociedade, a ética, ao contrário, faz das inquietações de

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que somos acometidos vetores que nos possibilitam criarnovos lugares, novos fluxos, subvertendo, assim, as formasde ocupação usuais desses espaços. Pode se dizer, então,que a ética estaria relacionada aos nossos atos e condutas,pensados, não só em nossa relação com os outros, masfundamentalmente na relação que estabelecemos com nósmesmos, caracterizando o que Foucault denominou de“cultura de si”, de “práticas de si”.

Foucault irá assinalar para a necessidade deque nós passemos por todo um processo de elaboração denossos desejos, sentimentos, enfim, de elaboração de nósmesmos, a fim de que nos comportemos eticamente.

Dentro dessa dimensão ética, não podemos deixar derefletir também sobre o modo que nos sujeitamos aoscódigos morais da sociedade.  Se resistir é preciso, parafraseando o poeta,devemos então nos perguntar qual o real sentido de nossaresistência, entendendo-a não como um movimento deinsurreição, de oposição a alguma situação que se quermudar, mas sim como algo que transcende essa visãocoloquial e aponta para a afirmação plena de nossaexistência, desconstruindo, assim, alguns lugaresdemarcados pelas subjetividades dominantes.

E é exatamente essa resistência que faz com quehoje, passados dois anos da inauguração do PROUD, eupossa estar trazendo para vocês uma experiência quedemonstra bem esse movimento de resistência que vemsendo empreendido dentro da 2ª Vara da Infância e da Juventude.

Embora o Programa centre sua atuação em cimado uso de drogas, nos atendimentos a nossos jovens, pudeperceber que o nosso foco, enquanto psicólogos, continuasendo o sujeito, e nem poderia ser diferente, devendo adroga ser compreendida enquanto uma experiência, dentretantas outras, em que o jovem se lança na busca pelaafirmação de sua identidade. O adolescente que noschega para atendimento no PROUD traz questões, olharese formas de vinculação muitas vezes relacionadas com oseu ingresso no Programa, com o que o Programarepresenta para ele enquanto proposta de tratamento,

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cabendo a nós psicólogos estarmos atentos para essasnovas subjetividades que vão sendo produzidas.  A Ordem de Serviço que instituiu o PROUD prevê,dentre outras coisas, a aplicação de sanções para aquelesque descumprirem as regras do Programa e a realização detestagens de urina aleatórias para verificação daabstinência. Entretanto, por falta de infra-estrutura, queneste caso tem funcionado a nosso favor, e,principalmente, devido a um movimento de resistência daequipe técnica, que a todo instante tem buscado formas dese reinventar e de afirmar a sua existência plena dentro doPrograma, o mesmo vem assumindo uma configuração

bem diferente na prática.Cabe enfatizar que o PROUD fez uso dastestagens de forma bastante precária, desde o seu início,dada a falta de recursos para conseguir comprar os testes,os quais foram obtidos durante um curto período, emforma de doação, pelo Laboratório fabricante do Kit detestagem. Atualmente tem cerca de um ano que o PROUDnão tem realizado testagens em seus jovens, já havendo,inclusive, casos de adolescentes que ingressaram noPrograma e cumpriram o mesmo sem serem submetidos àtestagem em nenhum momento. Soma-se a isso também ofato de que nesses dois anos de existência do PROUDnenhuma das sanções previstas até hoje foi aplicada,tendo contribuído, primordialmente, para isso a resistênciada equipe técnica.

O PROUD, assim, tem ganho uma nova cara, ondenossos jovens têm sido acolhidos plenamente em suas

problemáticas, que vão para além do uso de drogas, o quenos tem possibilitado realizar um trabalho abrangente,dinamizador, com espaço para reflexões e descobertas,que possam ajudar os adolescentes em suasressignificações de papéis e na maior compreensão de suadinâmica familiar.

É claro que não podemos dizer que o mecanismoda testagem foi definitivamente abolido do PROUD, pois atodo momento somos ameaçados com a possibilidade dese conseguir verba para a aquisição dos testes,principalmente agora que o Tribunal de Justiça resolveu

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abraçar de vez a causa da Justiça Terapêutica. Nessesentido, foi criada até mesmo uma Comissão de Justiça Terapêutica, com a função de estabelecer diretrizes defuncionamento para os diferentes programas já existentese para aqueles ainda a serem implantados em todo oEstado do Rio de Janeiro.

Como parte da resistência empreendida pelaequipe técnica temos também a realização do grupo dereflexão intitulado: “Sexo, Drogas e Mitos”, o qual, aprincípio, sofremos pressão para que se resumisse a umciclo de palestras, mas que nós conseguimos transformarnum espaço, onde o jovem possa estar pensando e se

posicionando sobre diferentes assuntos pertinentes aouniverso juvenil e à vida em sociedade, através de jogos,vídeos, músicas, dinâmicas de grupo e técnicaspsicodramáticas. É comum que no grupo o jovem se sintaacolhido para expressar todo o seu inconformismo com ofato de estar sendo submetido a um tratamentocompulsório, bem como a sua raiva e revolta por toda asituação que se iniciou com a apreensão policial eculminou com o seu comparecimento perante ao Juiz paraa audiência, o que muitas vezes tem se revelado umaexperiência bastante traumática.

Cabe salientar que ter um espaço para falar sobreessas coisas, sendo esse espaço ainda por cima dentro daprópria Instituição, pivô muitas vezes de seu sofrimento, éextremamente importante para o processo terapêutico, afim de que num segundo momento, o jovem possatranscender a revolta e a raiva por ter de comparecer

forçosamente ao Juizado e possa tirar algum benefício doespaço que lhe é oferecido. Quando isso acontece, e cadavez tem ocorrido mais, o adolescente consegue refletirsobre as implicações de suas escolhas, que no caso emquestão acabaram ensejando a sua apreensão, bem comopassa a se sentir confiante para falar de suas emoções esentimentos, encontrando um sentido nos atendimentosque são realizados, bem como nas propostas detratamentos que lhes são disponibilizadas.

A equipe técnica do PROUD atualmente écomposta por três psicólogos, uma assistente social, dois

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estagiários de Serviço Social, uma estagiária de Psicologia,uma estagiária com formação em Direito, um médico, queé o Diretor do Programa, e um voluntário que é Conselheiroem Dependência Química. Cabe aqui um registro deagradecimento a toda a equipe que muito tem seempenhado para superar as dificuldades institucionais,resistindo de todas as formas às malhas do poder,esforçando-se, também, por angariar recursos eestabelecer parcerias que possibilitem aos nossosadolescentes uma existência mais plena. Pretende-se,assim, construir junto com os jovens outras perspectivas,outros lugares que sinalizem na direção da produção de

singularidades.Nesse sentido, duas experiências merecem especialatenção. A primeira é uma parceria que foi firmada entre oPROUD e a escola de Samba Acadêmicos da Grande Rio.Por conta desse convênio, a equipe do PROUD encaminhaos adolescentes atendidos pelo Programa para o Barracãoda referida Escola de Samba, onde os jovens irão fazer umcurso em que aprenderão diferentes ofícios ligados aomundo do carnaval. Durante o período do curso, elesrecebem uma pequena quantia mensal, a título de ajudade custo. Aqueles que se destacam são então contratadostemporariamente até o carnaval, passando a receber umsalário que pode chegar até a R$ 500,00 (quinhentos reais)mensais. Além disso, existe a possibilidade de que, mesmodepois de passado o carnaval, alguns jovens possam seraproveitados para diferentes atividades dentro da Escola.

Essa experiência tem sido bastante gratificante

pois, além de acenar para os jovens uma perspectiva defuturo, tem servido também para aproximar a comunidadeno entorno do Juizado de nossos adolescentes,desmistificando, assim, algumas idéias errôneas a respeitodos mesmos.

A segunda parceria tem a ver com um fenômenoque vem acontecendo na 2ª Vara da Infância e Juventude eque, dada a sua importância, não pode ser desprezado.Nós temos nos deparados com alguns casos de demandaespontânea, em que pais e até mesmo adolescentes têmprocurado o PROUD em busca de orientação e ajuda para

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lidar com problemas relacionados ao uso de drogas ou aconflitos familiares. No atendimento a essas pessoas, oPROUD acabou sentindo a necessidade de criar um grupode Prevenção voltado justamente para atender essasdemandas. Esse grupo de reflexão que se propõe atrabalhar algumas temáticas que muito tem mobilizadopais e jovens, que vivem uma relação bastante belicosa,consiste em oito encontros, dos quais quatro são feitossomente com os adolescentes, dois são feitos somentecom os pais e dois são realizados em conjunto com pais efilhos.

Um desses pais que procurou espontaneamente o

PROUD é produtor cultural e possui uma produtora devídeo. Desse atendimento, acabou surgindo uma parceriaque tem sido bastante interessante para a equipe que atuano Programa, pois já possibilitou, entre outras coisas, quealguns adolescentes fossem assistir ao ensaio de uma peçateatral, entrando em contato com os bastidores da peça eaprendendo um pouco sobre as diferentes profissõesligadas ao mundo do espetáculo. Além disso, esse paitambém colocou à disposição do Programa a sua produtorade vídeo para aquilo que se fizer necessário, ficando,inclusive, de produzir para o PROUD um materialpublicitário, em forma de um mini CD, usando umatecnologia denominada Vídeo Car .

Diante de tudo que foi apresentado até aqui,somos levados a acreditar que o quadro não é tãodesesperador como talvez alguns possam supor. Há luz nofim do túnel. Não obstante isso, sempre que o tema droga

surge como destaque no cenário nacional, algumaspessoas, saudosistas de um tempo que não volta mais, sepõem a reclamar, adotando um discurso da necessidade deum endurecimento das leis e da política antidrogas a serimplementada. Alegam, assim, como justificativa, queantes o uso de drogas não era intermediado pelonarcotráfico, a violência era menor, sendo quase pueril, asdrogas utilizadas eram menos potentes, quase inofensivas, já que não havia essa profusão de drogas sintéticas comohoje e o uso de drogas tinha um sentido de contestação eprotesto, diferentemente dos tempos atuais.

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A essas pessoas, gostaria de fazer minha aspalavras de José Saramago, em seu livro “A Caverna”:

“…ai daqueles que, com medo de possíveis inquietaçõesfuturas, se deixam ficar sentados à beira do caminho achorar um passado que nem sequer havia sido melhor doque o presente”.  (José Saramago – “A Caverna”)

BIBLIOGRAFIA1 - BRITO, Leila Maria Torraca de. Separando: Um

Estudo sobre a Atuação do Psicólogo nas

Varas de Família. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1993. 120 p.

2- FERNANDES, Márcio Mothé e CORDEIRO, JohnKennedy.  Justiça Terapêutica– 2º Ano. Riode Janeiro, Consulado Geral dos EUA, 2003. 22p.

3 - FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, 3:O Cuidado de si. Trad. Maria Thereza daCosta Albuquerque. Rio de Janeiro, Graal,1985.246 p.

4 - __________. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão.  Trad. Raquel Ramalhete. 14ª ed. Petrópolis,

Vozes, 1996. 277 p.

5 - LANDRY, Michel. O Psiquiatra no Tribunal. SãoPaulo, Pioneira/EDUSP, 1981.

6 - MAIEROVITCH, Walter.   Justiça Terapêutica –Entrevista. Disponível em:<http://www.pol.org.br/pesquisa/resposta_pes

quisa>. Acesso em: 10 novembro 2003.

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VIDAS E HISTÓRIAS CONTADAS PELAPSICOLOGIA: DIZERES ÉTICO-POLITICOS.Érika Figueiredo Reis12 

Em minha experiência como psicóloga de uma varade família, pude perceber como os processos de disputa deguarda e regulamentação de visitas encontram-seatravessados por múltiplos discursos que veiculam

incessantemente concepções essencialistas enaturalizantes com relação às dinâmicas familiares e àsrelações de gênero.

Não há dúvidas de que, atualmente, vivenciamosum momento de intensas transformações sociais, no qualpode-se perceber um deslocamento dos indivíduos comrelação aos modelos familiares e às identidades que lhesforam designadas por convenções sócio-históricas.Contudo, o contexto das varas de família representa umcampo de análise privilegiado para observarmos apersistência no espaço social de uma série de mitosrelativos às instituições da paternidade e da maternidadeque, historicamente, vem demarcando lugares sociais,psicológicos e afetivos determinados para homens emulheres.

À medida que acompanhamos os processos,percebemos que o mito do amor materno, aliado à

histórica primazia da mulher no exercício da maternagem,tem se revelado como uma das mais importantesestratégias utilizadas pelas mulheres para obter a guardados filhos, ou mesmo para exercer um controle despóticosobre as visitas do outro genitor. Neste cenário, éimportante registrar que em cerca de 90% dos processosde guarda os filhos ficam com as mães, enquanto que aospais geralmente fica reservado o direito de estar com osfilhos durante sábados e domingos alternados.

12 Psicóloga da Vara de Família Regional da Ilha do Governador.

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Fazendo um levantamento a respeito das principaisalegações que surgem nos discursos de pais e mães quepleiteiam a guarda, ou a alteração na regulamentação devisitas, encontramos, na quase totalidade dos casos, umaconstante naturalização dos papéis sexuais, sobretudo noque diz respeito à identidade da mulher como mãecuidadora e principal responsável pela casa e pelos filhos.Por um lado, as mulheres afirmam que os homens não têmcompetência para cuidar de crianças, principalmentequando em tenra idade, sendo bastante comum solicitaremvisitas acompanhadas e não permitirem o pernoite dacriança na casa do pai; enquanto que os homens, por sua

vez, em linhas gerais, contra-atacam com acusações deordem moral e com fatos que indicam que a ex-mulher nãorepresenta uma “boa mãe”, segundo os preceitostradicionais.

Além disso, não seria fora de propósito mencionaraqui uma série de outras acusações bastante freqüentes,que surgem como forma de desqualificação mútua, quaissejam: suspeitas com relação a (ao) nova (o) companheira(o) do (a) genitor (a), não querendo que ela (ele) seaproxime de seus filhos; suspeitas quanto à periculosidadedo local ou as condições de moradia do outro; queixasrelativas à rotina da criança que seria prejudicada; e umasérie de outras acusações que vão desde a possibilidade dooutro exercer uma influência psicológica negativa, até asuspeita de ocorrências de violências físicas ou sexuais.Vale dizer que tais acusações, na grande maioria dasvezes, referem-se a virtualidades de comportamento.

Podemos pensar que são estratégias de poderestreitamente vinculadas à noção de periculosidade,segundo a qual os indivíduos são considerados não pelosseus atos, mas, antes, ao nível “do que podem fazer, doque estão sujeitos a fazer, do que estão na iminência defazer” (Foucault, 1999:85).

Neste sentido, é importante salientar que, emboraas mulheres, de certa forma, contem com certos privilégiosno âmbito das varas de família, elas também são vítimasdo mesmo discurso dos “riscos supostos”, principalmente

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quando seu comportamento não se adequa plenamente aopapel convencionado da “verdadeira” mãe dedicada.

No entanto, não devemos esquecer que os efeitosde poder desses discursos normalizadores se estendempara além da problemática da perda de direitos depaternidade ou maternidade, que representa um conflitomais freqüentemente encontrado nos setores da classemédia. Ao contrário, percebemos que os efeitos sãomúltiplos e se fazem notar, de uma forma talvez maisdramática, nas dificuldades vivenciadas pelas mulheresdas classes desfavorecidas, as quais lotam as defensoriaspúblicas com pedidos de reconhecimento de paternidade

ou de pensão para os filhos, pois, muitos homens, com odesenlace da união conjugal, passam a ignorar suaresponsabilidade paterna, abandonando as mulheres-mãesà sua própria sorte.

Pensamos então que a gênese dos conflitos dasvaras de família está estreitamente ligada à problemáticadas relações de gênero e ao discurso de existência de umasuposta natureza feminina, que, como sabemos, foiestrategicamente usado para justificar o confinamento damulher à esfera doméstica e às funções de mãe-esposa-dona-de-casa.

Os historiadores apontam que a solidificação dafamília nuclear moderna, entre os séculos XVIII e XIX,caminhou ao lado de uma intensa promoção damaternidade, por meio da qual a possibilidade de gestaçãoe amamentação, próprias do sexo feminino, passou arepresentar uma norma social, ancorada na exaltação do

instinto materno supostamente presente em toda mulher,conforme afirmavam os representantes da medicina socialda época. A partir de então, multiplicaram-se aspublicações que recomendavam às mães cuidarempessoalmente dos filhos, propagava-se na mídia,exaustivamente, a imagem estereotipada da boa mãe nolar, ao mesmo tempo em que eram realçados asinfelicidades e problemas de que são vítimas as crianças“abandonadas” pela mãe que trabalha fora de casa(Badinter, 1985).

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A construção do papel da mulher-mãe implicou narealização de intervenções disciplinares constantes porparte dos agentes de normalização, além da produção deuma série de dispositivos usados para convencer a mulhera aceitar seu novo papel na família. Tal como afirmaBadinter (1985):

“Veremos que se tornará necessário lançar mão de muitosargumentos para convocar a mãe para sua atividade ‘instintiva’.Será preciso apelar ao senso de dever, culpá-la e até ameaçá-lapara reconduzi-la à sua função nutrícia e maternante, ditanatural e espontânea” (p.144).

Como resultado de tamanha pressão, muitas dasconcepções relativas ao feminino e à maternidadeacabaram por ser gradativamente internalizadas pelasmulheres, que passaram não apenas a acreditar naexistência do “instinto” materno, como também a atribuirum caráter de nobreza à função de mãe, sentindo-se, elaspróprias, inteiramente responsáveis por tudo o queacontecia no ambiente doméstico, desde a educação e

formação do caráter da criança, até a própria felicidadedos filhos.Por outro lado, a regulação dos desejos e a violência

simbólica que incidia sobre as mulheres acabou porconduzi-las ao desenvolvimento de sutis mecanismos dedomínio afetivo que elas passaram a exercer na família,dentre os quais se destacam as cobranças pela suadedicação e abnegação, visando a satisfação dos seusdesejos ou mudanças de comportamento por parte domarido e/ou dos filhos; a produção de dependência comrelação aos serviços domésticos, além da dependênciaemocional e do excessivo controle exercido sobre os filhos(Rocha-Coutinho,1994).

Atualmente, embora as mulheres estejamampliando sua participação no espaço público, graças àsinúmeras conquistas obtidas pelos movimentos feministas,o que se percebe é que a maioria delas ainda não

conseguiu se desvencilhar daquele antigo modelo. Estasituação tem levado a mulher a desempenhar múltiplospapéis, além de produzir nela um desejo angustiante de

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adquirir a excelência no desempenho das tarefasdomésticas e no exercício profissional, “escravizando-a,agora, a ambos os modelos de identidade feminina – ofeminino e o feminista” (Rocha-Coutinho, 1994:122).

No decorrer dos processos nas varas de família,pode-se observar claramente que as mulheres continuamsendo “capturadas” (na expressão de Guatarri) por umprocesso histórico-institucional de autodomesticação e deauto-representação que, ao final, acaba por lhes serextremamente desfavorável. Tal como expressa Swain(2002), “Esta é a relação de poder, é a inflexão sobre aauto-representação, sobre a conduta, sobre a apreensão

do mundo, instituindo assim uma realidade lá ondeexistem apenas possibilidades”(p.332).Foucault denomina essa especificidade das relações

de poder como ‘governo por individuação’, ou seja, ummodo de exercício de poder que assinala para cadaindivíduo sua identidade própria, até que ele acabe setornando o que dele se previu, ou se prescreveu. Assim foicom a promoção da mulher como mãe-esposa-dona-de-casa, com a produção do homem-pai-provedor, com afigura do machista e com a figura da mulher-nervosa.

Neste sentido, importa ressaltar que asurpreendente eficácia desses procedimentos de poderdeve-se ao fato de serem disseminados e praticados pelospróprios membros da sociedade que acabam por se tornaragentes da disciplinarização e da normalização no camposocial (Branco, 2000). Tal como Foucault (2000) nosadverte, os indivíduos nunca são o alvo inerte ou

consentido do poder, mas, ao invés disso, são, ao mesmotempo, efeitos do poder e seus centros de transmissão.O que percebemos no contexto das varas de família

é que essa contínua produção e reprodução de regimes deverdade, de valores e de critérios que definem averdadeira mulher-mãe, ou o verdadeiro homem-pai,repercutem de forma perversa na vida cotidiana daspessoas. Portanto, trata-se de um problema que dizrespeito a todo o conjunto da sociedade, na medida emque prende homens e mulheres à mesma teia discursiva,que impõe limites identitários aos indivíduos. E, neste

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sentido, mesmo os homens, que por tanto tempoocuparam o lugar de uma subjetividade dominante, têmpercebido que também sofreram mutilações econstrangimentos neste processo, o que se faz notar nointeresse de muitos que almejam desenvolver novosmodos de subjetivação, numa tentativa de se aproximar decampos de expressão e de atividades tidos comoexclusivamente femininos.

Pode-se dizer que se, por um lado, estamosatravessando um processo intenso de desterritorializaçãoda família, que tem implicado na desterritorialização de umcerto homem, de uma certa mulher e de um certo amor

(Rolnik , 2000); por outro lado, os indivíduos continuam abuscar para si uma marca identitária, resgatando nessemovimento muitas das antigas concepções higienistas quedefiniram os papéis sexuais. Este talvez seja um dosprincipais impasses presentes nos litígios das varas defamília, ou seja, a reivindicação de um lugar identitárioque, estrategicamente, possibilite ao indivíduo o exercíciode um poder.

Neste aspecto, é interessante observar o modocomo nós psicólogos somos continuamente convocados aparticipar da construção dessas identidades, delimitandopara homens e mulheres seus respectivos campos deatuação. O perigoso desdobramento desta prática resideno próprio acirramento do conflito das identidades sexuais,no prolongamento de uma lógica binária de oposições econtradições entre os gêneros e, conseqüentemente, napredominância de uma modalidade de subjetivação

empobrecida, pouco flexível, que não percebe o múltiplo,ignora diferenças e reproduz discursos regulatórios ediscriminatórios.

A partir dessas reflexões, é possível pensar quenosso compromisso ético com a prática psicológica passapela elaboração estratégica de possíveis espaços delibertação. Neste sentido, os estudos de Foucaultrepresentam uma ferramenta valiosa, pois nos fazquestionar a todo o momento: por que os fatos acontecemassim e não de uma outra maneira? Por meio de quaismecanismos de poder determinadas verdades estão sendo

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produzidas? Assim, um dos pontos nodais dos trabalhos deFoucault é justamente a inversão das evidênciashistoricamente produzidas, sobretudo no sentido dedetectar “os diferentes modos pelos quais, em nossacultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos”  (Foucault,1995: 231).

A este respeito é importante ressaltar que umdos modos de objetivação do indivíduo analisados porFoucault foi o domínio da sexualidade, mediante oqual os homens aprenderam a se reconhecer comosujeitos de “sexualidade”, ou seja, “é pelo sexo,efetivamente, ponto imaginário fixado pelo dispositivo da

sexualidade, que todos devem passar para ter acesso à sua própria inteligibilidade (...), à totalidade de seu corpo (...), à suaidentidade” (Foucault,1997:145).  Mediante a análise dofuncionamento do dispositivo de sexualidade, Foucault nospermitiu pensar que a masculinidade e a feminilidadepodem ser ditas de várias maneiras e praticadas dediversas formas. Assim fazendo, ele nos abriu um espaçode transformação possível, na medida em que conhecendo

os mecanismos de produção da verdade torna-se possíveldesconstruí-los, torna-se mais fácil desfazê-los.Essa postura crítica e analítica, que se traduz

também numa ação ética e política, torna-se fundamentalpara que possamos desatar os múltiplos modos de ser, desentir, de pensar e de desejar, das concepçõescristalizadas referentes às diferenças sexuais, as quais,segundo Foucault (1997), nos colocam diante de umalógica do sexo, de um “sexo-discurso”, um “sexo-

significação”. Cabe então questionarmos, conforme o faz oautor, “Que injunção é essa?”  (p.77), qual o percurso quenos levou a colocar a questão do que somos, o sentido denossa individualidade, com relação ao sexo?

Para além da ênfase no contínuo, na repetição e naidéia de sujeito, Foucault nos leva a pensar em termos derupturas, de diferenças que vem abalar as identidades, deprocessos de subjetivação, de lugares de sujeitos

constituídos pelas relações de poder e pelos saberes. Talcomo expressa Albuquerque Jr. (2000), “É preciso abandonar esta trajetória que nos leva de um sujeito em germe, de uma

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 promessa de sujeito a um sujeito acabado, fechado, girando emtorno de uma identidade. (...) Temos um nome, mas podíamos ter qualquer um. Este nome não nos contém, nos possibilita, nosimpele à busca incessante do sentido (...)” (p.120). 

Nesta perspectiva de pensamento, torna-sefundamental que a análise dos conflitos entre homens emulheres opere um deslocamento de uma lógica darepresentação em direção a uma lógica das multiplicidadese dos devires. De acordo com Guatarri (2000), esta idéia deum “devir” está ligada às possibilidades de singularização,em oposição às estratificações dominantes, ou seja, osprocessos de singularização não dizem respeito a umaquestão de identidade cultural, de retorno ao idêntico, deretorno ao arcaico, mas, antes, são da ordem damultiplicidade e da pluralidade.

A partir do final da década de 70, Foucaultprivilegiou em seus estudos o campo ético-político, dandoênfase a questões como a autonomia, a liberdade e osmovimentos de resistência contra as práticasnormalizadoras do biopoder, ou seja, as práticas quedefinem padrões de normalidade, para, então, diferenciar e

manipular as anomalias que passam a ser assim definidas.Foucault procurou então demonstrar como as normasestão em constante movimento e caminham no sentido deuma totalização e uma especificação cada vez maiores,elas “se ramificam para colonizar, nos mínimos detalhes,as micropráticas, de modo que nenhuma ação consideradaimportante e real possa escapar da rede denormalidade“(Dreyfuss e Rabinow, 1995:285).

Ao abordar as lutas de resistência contra asdiferentes formas de poder, Foucault (1995) identificou aslutas contra as formas de sujeição, “contra a submissão dasubjetividade” (p.236), como as mais importantes nassociedades contemporâneas. Segundo o autor, estas lutasvêm questionar o estatuto do indivíduo. São lutas contraformas específicas de poder, moleculares, sutis, produtivase permanentes que incidem na vida cotidiana das pessoase que atuam no sentido de categorizar o indivíduo, ou seja,

“marca-o com sua própria individualidade, liga-o à sua própriaidentidade, impõe-lhe uma lei de verdade, que devemosreconhecer e que os outros têm que reconhecer nele. É uma

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forma de poder que faz dos indivíduos sujeitos”   (Foucault,1995:235). 

Uma outra importante característica que estas lutastêm em comum é o fato de constituírem uma oposição aos

efeitos de poder relacionados ao saber, e uma oposição àsrepresentações mistificadoras impostas às pessoas. Deacordo com Foucault, “todas essas lutas giram em torno daquestão: quem somos nós? Elas são uma recusa a estasabstrações, do estado de violência econômico e ideológico,que ignora quem somos individualmente, e também umarecusa de uma investigação científica ou administrativaque determina quem somos”(p235).   Trata-se de lutas

contra “um duplo constrangimento político”, contra oaspecto totalizador e, ao mesmo tempo, individualizante doexercício do poder. São lutas contra as múltiplas formas deassujeitamento que atuam no sentido de controlar asubjetividade pela constituição de uma individualidadedobrada sobre si, normatizada e apartada de sua relaçãocom os outros.

Para Foucault (1995), “O problema político, ético,social e filosófico de nossos dias não consiste em tentar liberar o

indivíduo do Estado nem das instituições do Estado, porém nosliberarmos tanto do Estado quanto do tipo de individualização quea ele se liga. Temos que promover novas formas de subjetividadeatravés da recusa deste tipo de individualidade que nos foiimposta há vários séculos” (p.239).

A perspectiva ético-política de Foucault aponta,portanto, para a elaboração de uma relação nãonormatizada consigo mesmo como estratégia deresistência ao biopoder, ou seja, como uma recusa às

formas impostas de subjetividade, porque, para o autor,nosso objetivo não é o de “descobrir o que somos, masrecusar o que somos” (Foucault, 1995:239). O problemaatual seria então o de construir uma ética diferente, ondenão estivéssemos aprisionados a nós mesmos egovernados pelo poder normalizador da lei e da medicina(Dreyfuss e Rabinow, 1995).

É importante acrescentar que a perspectiva ética

foucaultiana é ao mesmo tempo estética. Estética nosentido da criação e, sobretudo, da invenção de novasrelações sociais, novos vínculos comunitários. Tal como

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analisa Branco (2000), a resistência contra o “governo porindividuação”, embora seja iniciada na subjetividade,induz a uma imbricação necessária do domínio público,apontando para a recriação contínua de novos mundossubjetivos e coletivos. Segundo o autor, “ a estética daexistência considerada deste ponto de vista, implica emvalores e formas de vida criativos, solidários, generosos eousados, no limite possível da experimentação histórica” (p. 319). 

Dentro dessa perspectiva, uma escolha ética seriamais da ordem da arte do que do método, no sentido deter como objetivo primordial a expansão da vida, a criação

de novas formas de existência. Portanto, o compromissoético não estaria preso a normas pré-estabelecidas ou acódigos de valores, mas, antes, estaria voltado,fundamentalmente, para a produtividade do ser. Tal comoexpressa Rolnik (1994), ser ético é “ter o caráter criador davida como critério de valor e não qualquer espécie deforma que a vida tenha tomado, ou venha a tomar” (p.171).

 Todavia, é importante ressaltar que o elogio dessecompromisso ético não conduz ao desprezo com ocumprimento do conjunto das normas sociais, quedeterminam os direitos e os deveres dos cidadãos. O quese procurou destacar é que esse tipo de compromisso deordem moral, embora seja inegavelmente importante, elenão é suficiente para que se conquiste uma melhorqualidade de existência. Mais uma vez citando Rolnik(1994), “A qualidade da vida tem a ver com o grau com que esta

se afirma em sua potência criadora e este grau depende de emque quantidade se está encontrando modos de expressão para asdiferenças que vão se produzindo nas misturas do mundo” (p.168).

Neste sentido, é importante considerar que asescolhas são múltiplas e devem ser feitas em função doque é melhor para a expansão da vida. De acordo comeste raciocínio, as linhas de virtualidade, que se anunciamem cada processo litigioso das varas de família, assumem

uma positividade, uma confiança de que um novo contextopode ser formado, onde a desestabilização das identidadese das representações familiares cristalizadas não seja

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vivida como negativa. Trata-se, portanto, de um trabalhopela diferenciação, pela promoção da produtividade do sere, por conseguinte, contra o estatuto do indivíduo, contraa submissão da subjetividade.

Consideramos fundamental levantar este aspectopelo fato de que, no contexto das varas de família,freqüentemente as linhas de virtualidade sãoproblematizadas a partir do discurso do risco. Asalegações de pais e mães em litígio veiculamcontinuamente as ameaças que um ou outro apresentampara a criança, ou seja, a possibilidade que um ou outroteria em comprometer a saúde física ou psicológica do

filho, num processo que abarca desde a apresentação deocorrências policiais, que surgem para demonstrar asuposta agressividade de um dos genitores, até denúnciasde ordem moral e banalidades da vida cotidiana, quelevantam incompetências no cuidado com crianças. Nestecontexto, o psicólogo acaba sendo convocado a fazer agestão desses riscos e a estabelecer com os fatosapresentados uma relação de antecipação, controle eprevenção. O grande perigo que se insinua aqui reside nofato de que lidar com o virtual como se ele só implicasse orisco, acaba excluindo da reflexão outras possibilidades derelação entre homens e mulheres e entre pais e filhos.

Pensamos então que o lugar do psicólogo nesseuniverso jurídico deve ser marcado por uma tentativacontínua de promover a singularização e a criação denovos espaços de experimentação nas relações familiares.Neste sentido, não apenas a intervenção com as famílias,

mas também o parecer apresentado ao juízo deve apontarpara essa abertura de caminhos e não para o reforço danorma, que trava a processualidade da vida e reitera osmodos de subjetivação dominantes.

Para Foucault (1995), a escolha ético-política quedevemos fazer a cada dia é determinar qual é o principalperigo. E, para o autor, o principal perigo das sociedadescontemporâneas revela-se justamente nas múltiplasformas de assujeitamento, ou seja, nos exercíciosespecíficos de poder “que liga o indivíduo a si mesmo e osubmete” (p.235). Dentro dessa idéia, é possível pensar

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que nós psicólogos temos uma responsabilidade ética epolítica nessa luta contra as múltiplas formas de sujeição,na medida em que somos, inevitavelmente, importantesprodutores de subjetividade. Além disso, não podemosesquecer que nosso campo de atuação nas varas defamília pode constituir um meio privilegiado deviabilização das mudanças que se impõem na atualidade,sobretudo no que diz respeito às relações entre homens,mulheres e crianças.

Seguindo estas indicações, e tomando a feitura doparecer como uma escolha ética, torna-se fundamentalque essa tomada de posição não se confunda com o

  julgamento. Que o parecer apresentado ao juízo nãoreinscreva regimes de verdade que categorizam oindivíduo e nivelam sua subjetividade. Quanto a isto, nãose pode negar que há sempre um horizonte deprevisibilidade a partir do qual as escolhas precisam serfeitas, mas é fundamental registrar no parecer que essaprevisibilidade, tal como nos lembra Rolnik (1999), estálimitada a contextos problemáticos singulares e, alémdisso, está, inevitavelmente, atravessada peloimprevisível. Esse caráter de imprevisibilidade e incertezaconstitui um importante desdobramento do paradigmaético-estético, do qual nos fala Foucault e Guatarri, quenos coloca cotidianamente diante do desafio deabandonarmos nossas certezas e nossas crenças em umasuposta segurança, assim como de rompermos com oexercício exaustivo de busca de uma verdade para osujeito.

Esta ruptura com as práticas normalizadorasconduz, ao mesmo tempo, a uma ruptura com osprocessos de infantilização dos indivíduos, que acabamficando presos a uma relação de dependência do Estado.  Tal como define Guatarri (2000), “A infantilização (...)consiste em que tudo o que se faz, se pensa ou se possa vir afazer ou pensar seja mediado pelo estado”  (p.42). Asingularização, ao contrário, conforme defende o autor,implica, num processo automodelador, mediante o qual oindivíduo torna-se capaz de ler sua própria situação e de

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criar novos modos de existência a partir daí, num ato deliberdade e autonomia.

Por fim, diante de todas essas considerações, éparticularmente interessante salientar o caráterperformativo de nosso parecer psicológico, o que, aliás,representa uma propriedade de todo ato lingüístico,conforme demonstrou Austin (1990). Isto que dizer queessa narrativa, enquanto um enunciado ético, vai além dadescrição ou constatação dos acontecimentos ou dasações humanas, para constituir-se em ato, capaz dealterar ações ou estados de sujeito. Neste sentido, tododizer é fazer. Tal como nos lembra Costa (2000), as ficções

teóricas que criamos tornam-se também realidadeshumanas e têm conseqüências reais sobre a subjetividade.Portanto, esta é uma questão fundamental parapensarmos nosso lugar no universo jurídico e nossocompromisso ético com as intervenções realizadas. Istoporque, diante da encruzilhada entre forças dehomogeneização e forças de diferenciação, caberá a nósescolhermos, dentre os muitos caminhos possíveis, aqueleque poderá, em cada contexto específico, favorecer acriação de novos modos de subjetivação e novos vínculosfamiliares e comunitários, que possibilitem rupturas nasrelações sociais de dominação entre homens e mulheres eentre pais e filhos.

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A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO NAS CENTRAIS DEPENAS E MEDIDAS ALTERNATIVAS: REFLEXÕES

E DESAFIOS

Sílvia G. Felgueiras de Freitas

  A exposição que pretendo fazer neste encontro sepropõe mais a uma reflexão do que trazer conclusões. Nós,Psicólogos, estamos para completar cinco anos de inclusãono Judiciário e, apesar de já possuirmos um percurso,pensando e elaborando nosso trabalho, penso que ainda háuma grande e talvez eterna trajetória de pensar, repensare refletir sobre nossa prática.

Para falar da prática do psicólogo na VEP, éimportante descrever rapidamente qual a sua função, e arespectiva metodologia desenvolvida pelas Centrais depenas e medidas Alternativas. Em 03/02/1999, o Serviço dePsicologia foi implantado na VEP, decorrente do primeiro

concurso para Psicólogo do Quadro da Corregedoria Geralde Justiça. Em junho de 2001, com a instalação dasCentrais de Penas e Medidas Alternativas e o convênio como Ministério da Justiça, que, através da Cenapa (CentralNacional de Penas e Medidas Alternativas), vemimplantando as Centrais em vários Estados do Brasil, oServiço de Psicologia passou a integrar as centrais juntamente com o Serviço Social.

“Em outubro de 1988, dez técnicos do Serviço Social foramlotados na Vara de Execuções Penais e, a partir de então,iniciaram estudos relacionados com a atividade do Juízo,

 priorizando projetos que contemplavam a execução das penasrestritivas de direitos, em particular, a prestação de serviços àcomunidade, como alternativa à pena de reclusão”.

“Hoje, uma equipe interdisciplinar composta por 13 assistentessociais e 13 psicólogos é responsável pelo atendimento,

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encaminhamento e acompanhamento dos beneficiários com penas e medidas alternativas”.13

É um trabalho novo, que vem em constanteaperfeiçoamento de acordo com a prática. Nosso materialteórico e nossa rotina de trabalho passam por reavaliações,de acordo com a demanda que vem surgindo, e é  justamente essa prática e suas discussões quedesenvolvem e aperfeiçoam o trabalho.

As penas e medidas alternativas destinam-se aapenados não perigosos, que cometem infrações de menorgravidade e substituem as penas detentivas de curta

duração. Com a superlotação das penitenciárias e adivulgação de tais modalidades de pena, a demanda dotrabalho vem crescendo muito.

CENTRAIS DE PENAS E MEDIDAS ALTERNATIVAS (CPMA):DIVISÃO

CENTRAL DE PENAS ALTERNATIVAS: A Central dePenas Alternativas compreende o Sursis, ou seja, a

Suspensão Condicional da pena, onde pode estar incluída,como uma de suas condições a Prestação de Serviços aComunidade no 1º ano e as demais penas restritivas dedireito. No caso, atuamos nas penas restritivas de direitode Prestação de Serviços à Comunidade e Limitação definal de semana.

CENTRAL DE MEDIDAS ALTERNATIVAS: A Central de

Medidas Alternativas compreende as penas restritivas dedireitos aplicadas de forma antecipada, (art.76 da Lei9099/95) e o Sursis Processual (art. 89 da Lei 9099/95),quando há a suspensão do processo e a aplicação de umamedida alternativa ou a proposta de Tratamento, nos casosde uso de drogas e violência de Gênero. Em se tratando doArt 16 (porte de substância entorpecente), ressalta-se aimplantação da Justiça Terapêutica em setembro de 2002,

13 Cartilha da central de penas e medidas alternativas.

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com o ato executivo nº 042/2003, que absorveu grandeparte das medidas de tratamento pelo consumo de drogas.

PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE: Consistena atribuição de tarefas gratuitas ao condenado ementidades públicas ou na comunidade.

Quando o beneficiário chega a CPMA, para dar inícioao cumprimento da pena ou medida de Prestação deServiços a Comunidade, passa em um primeiro momentopelo grupo de recepção, coordenado sempre por umpsicólogo e uma assistente social, onde recebe asinformações iniciais sobre o funcionamento das centrais e

sobre a pena a ser cumprida, motivando assim para ummelhor cumprimento da pena. Ao final do grupo há oagendamento para as entrevistas individuais. No diaagendado, o beneficiário é entrevistado pelo Serviço dePsicologia e, imediatamente a seguir, pelo Serviço Social,tendo estas entrevistas o objetivo de adequar oencaminhamento ao perfil do beneficiário em acordo com oda instituição, individualizando assim a pena.

Com a entrevista Psicológica inicial, pretende-seelaborar as primeiras impressões sobre o caso, contribuirpara a avaliação interdisciplinar com observações relativasa aptidões, afinidades ou restrições para o cumprimento dapena ou medida. Se não for notado nesta primeiraentrevista psicológica nada que impossibilite, naquelemomento, o encaminhamento, o beneficiário costuma jásair com o encaminhamento em mãos nos casos de PSC eLFS.

Nesta primeira entrevista não se pretende fazeruma avaliação psicológica.

AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA: Quando o psicólogoconsiderar a necessidade de avaliação mais aprofundada,outras entrevistas serão agendadas com este objetivo e oencaminhamento para a Instituição apenas será realizadoao final da avaliação, se o beneficiário apresentarcondições de iniciar sua pena.

A avaliação visa um encaminhamento mais seguroe adequado, esclarecer dúvidas quanto a problemas

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decorrentes do uso/abuso de substâncias psicoativas,álcool, problemas psiquiátricos, dentre outros eencaminhamento para tratamento quando se mostrenecessário.

O acompanhamento da pena ou medida alternativaserá realizado pela dupla de técnicos que o atendeu naentrevista inicial. Estes profissionais estarão sempretrocando informações e avaliando o melhor procedimento eintervenção para cada caso.

O Serviço Social e a Psicologia, alternadamente,efetuam visitas periódicas as instituições, a fim deperceber a relação beneficiário/instituição, seu

desempenho e possíveis dificuldades.

MEDIDAS ALTERNATIVAS DE TRATAMENTO:  As medidasalternativas de tratamento são aplicadas principalmentenos casos de drogadicção e violência doméstica.

Nas medidas de Tratamento, a equipe desenvolvemetodologia semelhante à Justiça Terapêutica. Cada caso éavaliado, podendo ser encaminhado para tratamento eminstituição parceira ou participar de algum dos grupos daVEP, sempre com o acompanhamento do profissionalresponsável.

 JUSTIÇA TERAPÊUTICA: Possui como objetivo oferecer epossibilitar o tratamento de indiciados e acusados de posseilegal de substância entorpecente para uso próprio, tendoem vista que a drogadicção é uma questão de saúdepública, além de contribuir para a prevenção da

criminalidade e do uso/abuso da substancia supracitada.A metodologia de Justiça Terapêutica na VEP seinicia com uma entrevista de acolhimento no momento emque o beneficiário é encaminhado a VEP, imediatamenteapós a audiência nos Juizados Especiais Criminais. Esteprimeiro contato tem como objetivos identificar a urgênciade cada caso, iniciar um trabalho motivacional paratratamento, fornecer informações iniciais sobre ofuncionamento da equipe, dentre outros.

A partir deste primeiro contato, o beneficiárioentrará em processo de avaliação para que se proceda ao

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devido encaminhamento à instituição de tratamento ou àsatividades de grupo realizadas na VEP. Cada caso éanalisado em suas peculiaridades, pretendendo-se, assim,avaliar a conveniência de inseri-lo no programa, aindicação de tratamento específico, perceber a intervençãoe encaminhamento mais adequado para cada casoespecífico, naquele momento, aumentando assim suaeficácia.

Mesmo encaminhados para tratamento, continuamas entrevistas de acompanhamento individual na VEP quetêm, como objetivo principal, verificar a evolução dosbeneficiários inseridos no programa, observando os

benefícios do tratamento e atentando para intercorrênciasou para a necessidade de novos encaminhamentos.A possibilidade de tratamento, a partir do momento

de abertura desta possibilidade pelo Poder Judiciário, estálevando um número considerável de pessoas ao dito“tratamento compulsório”. A pessoa tem como escolha setratar ou cumprir outra medida como Prestação Pecuniária,Prestação de Serviços à Comunidade ou Limitação de Finalde Semana. Este tipo de tratamento está em crescimento,uma vez que o sistema Judiciário cada vez mais tembuscado tal alternativa.

Pensando-se em Medida de Tratamento e Justiça  Terapêutica, abre-se, portanto, o questionamento: Tratamento compulsório seria a coação ao tratamento paraevitar algo pior? Vemos posicionamentos contrários arespeito de tal tema. De um lado ouvimos afirmações deque só há a possibilidade de tratamento se há o desejo da

pessoa de se tratar e de outro lado ouvimos que se há anecessidade de tratamento este deve ser feito como emqualquer outra doença. Porém, parece que entre estasduas posições há um longo caminho e várias outrasquestões. O que é considerado doença se há vários grausde uso e abuso de substâncias entorpecentes e álcool?Aquele usuário eventual que usa drogas esporadicamentee está longe de ser abusivo, mas se deixa prender porvárias vezes, o que será que está buscando? Limites, umaintervenção para não ir adiante ou uma simples afronta? Temos visto em tais opções por tratamento que tanto é

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comum vermos pessoas que em um primeiro momentoapenas aceitam o tratamento com a finalidade de evitaruma punição, mas, com o decorrer das entrevistas demotivação, conseguem perceber os ganhos que advirão emsua vida e acabam por se engajar seriamente notratamento com excelentes resultados, quanto algumaspessoas que chegam afirmando grande disposição eacabam por demonstrar não possuir o perfil para oprograma de Justiça Terapêutica.

O que pretendo ressaltar aqui é que entre essasduas posições opostas, devemos ver o indivíduoparticularmente, em suas peculiaridades, caso a caso.

Outra questão a se pensar é o que representa opsicólogo que está inserido no Judiciário para aquelebeneficiário que vem com condição de tratamento. Atéonde pode confiar naquele profissional, que, de algumaforma, está a serviço do Judiciário? Não são poucas asocasiões que percebemos manipulação por parte dobeneficiário para se ver livre daquela obrigação, afinal,muitas vezes, é o psicólogo quem comunica se ele estáapto ou não para acabar com aquela obrigação,principalmente, nos casos onde não há tempodeterminado.

“Embora muitos tentem persuadir o cliente, encaminhado pela justiça,que são seus representantes, não do Estado (mesmo que não sejaassim), o cliente, naturalmente, está inseguro sobre quanto pode revelar sobre suas atividades ilegais, com medo de que o terapeuta revele essainformação para o tribunal. A terapia compulsória pode tornar-secorrupta, e a segurança de uma relação confidencial com o terapeuta

 pode ser destruída não apenas pelo temor do cliente de revelar informações pessoais, como pela insegurança do terapeutasobre o quanto terá de revelar ao tribunal”.14

  Apesar da convicção de que muitas intervençõesdevam ser realizadas pelo psicólogo na Justiça, possuiruma rede social com parcerias para os encaminhamentospara tratamento, tem sido fundamental em nosso trabalho.

Esta exposição é um resumo do nosso trabalho na

VEP, mas há ainda uma grande demanda que não vem do14 Texto Terapia Compulsória do livro “Aprendendo e ensinando terapia”

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processo e que é observada nas entrevistas. Nessassituações, atuamos sem que estas informações cheguemao processo. Os casos de medida terapêutica o e Justiça Terapêutica já chegam com a condição de tratamento. Mashá casos onde o beneficiário recebe uma pena ou medidaalternativa de PSC ou LFS pelo art.16 (porte de substânciapsicoativas) ou qualquer outro artigo e percebemos ocomprometimento com álcool ou drogas. É comuminclusive que este uso tenha propiciado o delito cometido,como, por exemplo, furtar para consumir drogas. NosSistemas Judiciário e penitenciário, não podemos deixar deconsiderar a estreita relação entre os mais diversos delitos

e o uso dessas substâncias. Nestes casos, a Psicologia fazuma intervenção tentando motivar o beneficiário paratratamento. Ele poderá ser encaminhado para algumainstituição de tratamento, encaminhado para um dosgrupos realizados na VEP, sempre com acompanhamentopelo psicólogo. O beneficiário não é obrigado a aceitar essaajuda, uma vez que não há na sentença ou medidacondição de tratamento, porém se abre uma oportunidadede reflexão sobre seus valores, suas prioridades e o queespera para sua vida. Fica de frente para aresponsabilidade que possui diante de sua própria vida.

Em todas as modalidades de trabalho ondeatuamos na VEP, as alterações e informações sobre a pena,medida ou tratamento devem ser informados ao Juízo.Porém, são enviados para o processo, apenas, asinformações relacionadas ao cumprimento da pena oumedida. Entra o Sumário Psicossocial, que é um resumo do

observado na entrevista inicial, ressaltando restrições ouaptidões específicas, a ficha de encaminhamento quandoretorna da instituição, as folhas de freqüência com aavaliação mensal, a avaliação final, intercorrências nocumprimento e comunicações de não cumprimento, ouseja, apenas informações que importem análise judicial.Nos casos de medida de tratamento e Justiça Terapêutica,é informado se o beneficiário está cumprindoadequadamente e se está tirando proveito daqueletratamento.

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Os processos ficam no cartório das Centrais e aequipe possui arquivos com os prontuários próprios decada beneficiário, onde se encontram os roteiros deentrevistas, históricos, evolução de cada caso einformações sigilosas, as quais só tem acesso a equipetécnica. Os casos, que não possuem condição detratamento e são encaminhados e acompanhados pelaequipe, apenas possuem estes registros no prontuário.

”Transmitir a quem de direito somente informações que sirvamde subsídios às decisões que envolvam a pessoa atendida”. 15

“O Psicólogo garantirá o caráter confidencial das informaçõesque vier a receber em razão de seu trabalho, bem como domaterial Psicológico produzido”.16

Este sigilo é mantido e respeitado pelo Juízo daVEP.

Acreditamos que, se trabalhamos o ser humano econseguimos atingi-lo o mínimo, que seja, em suaqualidade de vida, estamos sendo éticos com quem

atendemos e com a demanda do judiciário. Tanto o  Judiciário quanto o Ser Humano em quem atuamos,buscam no profissional o auxílio, ser tratados com respeitoe dignidade.

“O psicólogo nas Centrais de Penas e Medidas Alternativas tem afunção de nortear a compreensão da pena/medida para além da

 perspectiva da punição. Desde o primeiro contato, a intervençãose dá de forma a perceber o beneficiário como um indivíduo que

  possui história pessoal, valores a serem preservados ouquestionados e expectativas com relação ao benefício e aofuturo. Além disso, sua implicação com esse benefício produz efeitos no decorrer de seu cumprimento, possibilitando, assim, aredução de eventuais intercorrências”.

15 Letra b do Art.3º do Código de Ética do Psicólogo.16 Art 6º do Código de Ética do Psicólogo.

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“Estabelece-se, desse modo, uma relação que se pretendeconstrutiva com a pena/medida, proporcionando umaoportunidade de modificação do curso de vida do beneficiário”.17

Refletindo sobre a ética em nossa práticaprofissional, consideramos que tanto na Vara de ExecuçõesPenais, como nas Varas de Infância e Juventude, Varas deFamília e outras que possam abrir espaço futuramentepara o trabalho do psicólogo, são revelados nosatendimentos fatos importantes os quais não dizemrespeito ao processo. Até que ponto devemos informar?Em cada vara especializada, os técnicos debatem essas

questões em cima de casos atendidos e vamos assimaprendendo com a experiência, construindo e adequando otrabalho ao nosso código de ética. Se a droga, álcool ouproblema psiquiátrico o impede de cumprir uma pena, talfato deve ser considerado para tentarmos uma alternativaque adie ou substitua o cumprimento daquela pena e sejaterapêutico ao mesmo tempo já que o processo criminal ouguia de medida alternativa precisa receber,constantemente informações relativas ao beneficiário no

que diz respeito ao cumprimento de sua pena.

“O Psicólogo colocará o seu conhecimento à disposição da  justiça, no sentido de promover e aprofundar uma maior compreensão entre a lei e o agir humano, entre a liberdade e asinstituições judiciais”. 18

Penso que ainda há uma longa discussão na qualdevemos investir quanto ao que é ser ético dentro damoral de cada saber, da reflexão crítica das normas eregras de nossa sociedade e da instituição onde atuamos,que se caracteriza por atuar sobre normas que visam àregulamentação das relações do ser humano, tentandomanter a paz social, usando para isso códigos bemdefinidos de certo e errado. O não cumprimento dessasnormas implica em conseqüências judiciais e pessoais.

17 Cartilha da Central de Penas e Medidas Alternativas.

18 Art 17 do Código de Ética do Psicólogo.

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A conclusão que posso chegar no momento é a deque apesar de já termos um percurso no Judiciário, eestarmos preocupados em fazer o melhor, ainda possuímosmuitas questões para discutir, na tentativa de cada vezmais sermos úteis, competentes e éticos para responder àdemanda do Judiciário e do ser humano em quem atuamosdiretamente. Portanto, devemos continuar nossa jornada.

BIBLIOGRAFIA

- HALEY, Jay - Aprendendo e ensinando terapia. ArtesMédicas, 1998.

- A direção da cura nas toxicomanias. Associaçãopsicanalítica de Porto Alegre, nº 24, maio-2003.

- Cartilhas – Manual e outros materiais formulados pelaequipe de Psicólogos e Assistentes Sociais da VEP.

- Código de Ética dos Psicólogos