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Teoria do texto literário

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  • Cantos e cantares em Contos negreiros, de Marcelino Freire

    fraNCeSCo JordaNi rodrigUeS de liMaUniversidadeFederaldoRiodeJaneiro

    RESUMO: anlisE crtica do liVro dE contos dE marcElino frEirE, CoN-tos Negreiros (2005). a fora litErria do tExto a partir do dualismo Es-trutural E da ambigidadE constitutiVa da obra. a Violncia intErna do discurso marginal. a complExidadE Estrutural da sociEdadE brasilEira E a quEsto da conscincia nEgra. brEVE insEro do trabalho dE mar-cElino frEirE no painEl litErrio brasilEiro.

    ABSTRACT: critical analysis of thE book of storiEs of marcElino frEirE, CoNtos Negreiros (2005). thE litEraturE strEngth of thE tExt from thE structural dualism and thE constitutiVE ambiguity of thE book. thE in-tErnal ViolEncE of thE marginal spEEch. thE structural complExity of thE brazilian sociEty and thE quEstion of thE black awarEnEss. basic in-sErtion of thE work of marcElino frEirE in thE litErary brazilian panEl.

    PALAVRAS-CHAVE: litEratura brasilEira marcElino frEirE cultura nEgra crtica social E oralidadEKEY-WORDS: brazilian litEraturE marcElino frEirE black culturE so-cial criticism and orality

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    (Des)encanto:

    HabitadaporgentetosimplesetopobreQuestemosolqueatodoscobreComopodes,Mangueira,cantar?

    Cartola,Saladerecepo

    possvel exibir e camuflar, cantar e silenciar, cuidar e aoitar ao mesmo tempo? Sobre quantas contradies permanece a problemtica do negro e dos traba-lhadores pobres na histria do Brasil Como pudemos reservar aos miserveis somente os cantos da injustia social, os becos das favelas, os quartos dos fundos, as marquises, as bocas-de-fumo, os crceres e os barracos, enquanto seus cantos pouco ecoavam, abafados pela mordaa da violncia, pelo tapa do preconceito, pela inocuidade da imagem comercializada, estereotipada e massificada que tanto nos divertiu custa da fatalidade dos bons selvagens, das pretas velhas, dos malandros e meretrizes, dos sambistas e mulatas, das funkeiras e MCs todos a requebrar para ns seus corpos flagelados?

    No resta dvida de que na memria brasileira a figura do negro geral-mente mais corpo que mente, mais gingado que palavra, mais silncio que expresso. , contudo, com franca oposio brutalidade desse cenrio que a marginlia1 canta e vive seus mais profundos desencantos em Contosnegreiros, de Marcelino Freire. Desafia e desmistifica o estigma da negritude passiva, pacfica e naturalmente feliz. Apaga da prpria imagem o verniz extico-ro-mntico e a maquiagem da compensao social, a fim de deflagrar a urgncia do grito e do gesto detidos. Hein seu branco safado Ningum aqui es-cravo de ningum (FREIRE, 2005: 20), entoa o narrador logo no primeiro dos dezesseis cantos-contos, como se esbravejasse a todos que por falta de contundncia, dali em diante, no padecer sua voz.

    Na obra de Marcelino Freire, a firmeza do posicionamento no denota somente um engajamento poltico ou a reafirmao da luta das populaes pauperizadas. Embora estes sejam aspectos relevantes, o conjunto de contos, cada qual cantado de maneira singular, ressalta, sobretudo, o discurso crti-co e pungente dos narradores e personagens acerca da prpria situao. Ao

    1 Ttulo do conjunto de crnicas de Lima Barreto (1881-1922) publicadas postumamente, em 1953.

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    escavar as entranhas da realidade dos marginalizados, pela voz dos prprios e no pela oniscincia ditatorial do discurso dominante, o que emerge o sofrimento desprovido de autocomplacncia e, sobretudo, a avaliao clara e impactante da posio do negro e dos pobres na construo da sociedade brasileira mercantilista e capitalista. Carlos Nelson Coutinho observa em en-saio como as camadas populares so freqentemente decapitadas e lutam com grande dificuldade para dar uma figura sistemtica sua autoconscincia ideolgica (COUTINHO apud RESENDE, 1983: 74).

    A leitura de Contosnegreiros , portanto, muito mais abrangente do que a reque-rida habitualmente pelo romance brasileiro (sobretudo durante o Romantismo, exceto em rarssimos autores), no qual a classe pobre, principalmente os negros, no ultrapassa a posio de mero componente da verossimilhana do painel social, ou de um adorno com a nica inteno de criar um pouco de colorido (RABASSA, 1965: 95). A estrutura ambivalente da obra de Marcelino Freire res-ponde de maneira impressionante tanto pelo destaque dado s razes da cultura negra oralizada, que privilegia a memria coletiva enquanto manancial cultural, quanto pela mistura de etnias, costumes e lnguas na qual se fundamenta o mo-vimentado organismo social brasileiro. Ao se ancorar na dinmica ambigidade do canto/conto (isto , da cano e do relato, do lirismo e do documento e, conseqentemente, da fico e da histria), o livro sintetiza em seu ncleo de paradoxos complementares o complexo engendramento do pas.

    Como exemplo da estrutura dual do livro, citemos mais um trecho do canto I, Trabalhadores do Brasil, que evoca a presena de diversos orixs, inclusive o maior de todos, Olorum, acompanhados de figuras negras histricas e do mundo das fbulas, que vo desde zumbi dos Palmares e Rainha Quel (ape-lido da cantora Clementina de Jesus) at cavaleiro Tio, um jovem esquarteja-do pelo prprio exrcito ao defender o castelo de Trancoso, em Portugal.

    Enquanto zumbi trabalha cortando cana na zona da mata pernambucana Olor-Qu vende carne de segunda a segunda ningum vive aqui com a bunda preta pra

    cima t me ouvindo bem

    Enquanto a gente dana no bico da garrafinha Od trabalha de segurana pega

    ladro que no respeita quem ganha po que o Tio amassou honestamente enquanto Obatal faz o servio pra muita gente que no levanta um saco de cimento t me ouvindo bem (FREIRE, 2005: 19)

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    Fica claro que em Contosnegreiros o posicionamento crtico no cai no terre-no previsvel do panfleto moralizante, pois flui no ritmo e na fora de cantos multirrtmicos genunos do povo negro e pobre (canto banto, samba, rap, funk). Os cantares tampouco se apresentam superficiais ou decorativos, por-que, alm de no serem meros recursos sonoros e estticos, trazem presos garganta a tenso do apartheid brasileiro. Na obra, a lngua do texto serve embocadura de quem fala e sente as frustraes de um cotidiano de recusas e espoliaes.

    Ao lado dos guerreiros orixs, os personagens histricos criam na fico o terreno propcio para, unidos, cantarem sua revolta e chamarem para si a ateno de ouvidos moucos, repletos de desprezo e preconceito. Assim, os conceitos ortodoxos de histria documental e tempo cronolgico se diluem para dar espao genuna pluralidade da cultura negra que no fora devida-mente registrada, como boa parte da cultura ocidental europia, mas, sim, lembrada sob a forma de um imenso mosaico de msicas, danas, religies, tradies, memrias familiares e rituais de comunidades oprimidas pela elite.

    Cabe aqui ressaltar um trecho do fundamental Literaturaesociedade, de An-tonio Candido. Raros so os instantes de tamanha lucidez na fortuna crtica literria nacional no que tange interpretao esttica que assimilou a di-menso social como fator de arte (CANDIDO, 1985: 7).

    Esta liberdade, mesmo dentro da orientao documentria, o quinho da fan-tasia, que s vezes precisa modificar a ordem do mundo justamente para torn-

    la mais expressiva; de tal maneira que o sentimento de verdade se constitui no leitor graas a esta traio metdica. Tal paradoxo est no cerne do trabalho literrio e garante a sua eficcia como representao do mundo. Achar, pois,

    que basta aferir a obra com a realidade exterior para entend-la, correr o risco

    de uma perigosa simplificao causal. (CANDIDO, 1985: 14)

    Os cantos dos Contosnegreiros, de Marcelino Freire, encantam do ponto de vista da imensa qualidade esttica e estrutural do objeto artstico, porm, no deixam, paradoxalmente, de deflagrar, no af do discurso rasgado, o desen-canto da massa trabalhadora somente includa enquanto exrcito de reserva ou de produo de capital. So essas mulheres e homens esmagados pela con-traditria estrutura excludente/includente do capitalismo, os seres do abismo

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    e dos cantos sociais, os protagonistas de um bloco que canta o que bem quer e no mais solicita passagem.

    Cantos e cantares:

    Acarnemaisbaratadomercadoacarnenegra.

    SeuJorge,MarceloYukaeUlissesCappelletti,Acarne

    A indagao acerca da questo social no recente na literatura brasilei-ra. Se o passado brasileiro do texto verdadeiramente empenhado nos deixou figuras de relevo em escala reduzida, vide os poucos poemas de Gregrio de Matos e dos inconfidentes mineiros, passou a criar vulto com as obras de Castro Alves, Cruz e Sousa, Lima Barreto e Jorge de Lima (aos quais so dedicados os Contosnegreiros). Foi, contudo, no decorrer do sculo xx que, definitivamente, inflou-se e pluralizou-se a cena artstica engajada. Graciliano Ramos, Jos Lins do Rego e Jorge Amado, para citar apenas alguns grandes narradores, ao lado dos poetas Drummond, Joo Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar, de fato, so numerosos os artistas que dirigiram suas preocu-paes para o papel e presena do tema literrio da desigualdade, da margi-nalizao, da pobreza (ROSATI, 2003: 9).

    Outro grupo importante foi o constitudo por autores que se voltaram contra a censura ditatorial nos anos 1960/70, no qual ressaltam os nomes de Rubem Fonseca, Igncio de Loyola Brando e Ivan ngelo. O primeiro, inclusive, destacando-se como referncia recorrente quando se trata de prosa urbana. Isso sem citarmos as valiosas produes no mbito da crnica jorna-lstica, da msica, do cinema, do teatro e das artes plsticas, que, indubitavel-mente, polinizam o literrio.

    Importa saber, em vista desse quadro amplo e, ainda assim, demasiada-mente incompleto, como se d a especfica insero da obra de Marcelino Freire na arte brasileira. Desde seu livro de estria, Angudesangue (2000), a firmeza e a acidez do discurso narrativo se impem como caractersticas fun-damentais. A questo da sobrevivncia digna das camadas populares, fixadas sempre sobre o signo do trabalho, d aos narradores e personagens de Marce-lino Freire uma rara feio de autenticidade, pois a misria social e econmica

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    no resulta na misria moral dos protagonistas. O conto Muribeca, nome de um antigo lixo na capital pernambucana que passou por uma reforma da prefeitura municipal, tambm um canto que ressoa a imensa pobreza do estado social, mas que no deteriora a vontade dos abandonados de viverem de maneira honesta:

    Fale, fale. Explique o que que a gente vai fazer da vida O que a gente vai fazer da vida No pense que fcil. Nem remdio pra dor de cabea eu tenho. Como vou me curar quando me der uma dor no estmago, uma coceira, uma caganeira V, me fale, me diga, me aconselhe. Onde vou encontrar tanto re-mdio bom [...]O povo do governo devia pensar trs vezes antes de fazer isso com chefe de

    famlia. Vai ver que eles to de olho nessa merda aqui. Nesse terreno. Vai ver que eles perderam alguma coisa. . Se perderam, a gente acha. A gente cata. A gente encontra. At bilhete de loteria, lembro, teve gente que achou. Vai ver que isso, coisa da Caixa Econmica. Vai ver que isso, descobriram que lixo d lucro, que pode dar sorte, que luxo, que lixo tem valor. Por exemplo, onde a gente vai morar, Onde a gente vai morar Aqueles barracos, tudo ali em volta do lixo, quem que vai levantar? Voc, o governador? No. [...]

    No, eles nunca vo tirar a gente deste lixo. Tenho f em Deus, com a ajuda de Deus eles nunca vo tirar a gente deste lixo. Eles dizem que sim, que vo. Mas no acredito. Eles nunca vo conseguir tirar a gente deste paraso. (FREIRE, 2000: 56)

    Podemos, portanto, nos valer das palavras de Rosati, no estudo Fices brasileiras atuais literatura e realidade, para afirmar que a narrativa de Marcelino Freire se insere

    no panorama cultural dos grandes centros, de um tipo de fico literria mar-cada por um carter realista, abordando em tom direto, problemticas ligadas injustia social e deteriorao da vida na grande cidade [...], numa trama urdida com o fio, quase sempre vermelho, da violncia. (ROSATI, 2003: 6)

    A violncia, porm, no surge na tessitura literria de Contosnegreiros, tam-pouco em qualquer outra obra do autor pernambucano, como um elemento

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    externo ao ficcional, ou uma matria-prima colhida to-somente em virtude do fazer artstico. A violncia surge interna ao discurso dos marginalizados, que, ao corroer a superficialidade da realidade alienante na qual vivemos, frag-menta a unidade lgica do cnone e dilacera, tambm, a ns leitores, como que violentados pela fora impressionante de um canto catrtico, cuspido e inquieto. O ttulo do canto III, Esquece, refora o desprezo comum em relao aos segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora:

    Violncia o carro parar em cima do p da gente e fechar a janela de vidro

    fum e a gente nem ter a chance de ver a cara do palhao de gravata para no

    perder a hora ele olha o tempo perdido no rolex dourado.Violncia a gente naquele sol e o cara dentro do ar condicionado uma duas

    trs horas quatro esperando a melhor oportunidade de a gente enfiar o revlver

    na cara do cara plac.[...]Violncia acabarem com nossa esperana de chegar l no barraco e beijar

    as crianas e ligar a televiso e ver aquela mesma discusso ladro que rouba ladro a aprovao do mnimo ficou para a prxima semana.

    [...]Violncia a gente receber tapa na cara e na bunda quando socam a gente naquela

    cela imunda cheia de gente e mais gente e mais gente pensando como seria bom ter um carro do ano e aquele relgio rolex mas isso fica para uma outra hora.

    Esquece. (FREIRE, 2005: 31-33)

    Ronaldo Lima Lins afirma que a catarse representaria, portanto, um ele-mento de violncia que a arte sempre utilizou em seu prprio benefcio como transmissora, numa dose controlvel, de uma outra violncia, a da vida (LINS, 1990: 38). O canto, grito h muito contido, s genuno na fico de Marcelino Freire justamente porque no notado, nem proferido, enquanto matria subserviente ao plano literrio. Tanto que em Contosnegreirosalguns cantos se assemelham a verdadeiros desabafos dos homens que habitam o que nesse texto denominamos cantos sociais territrios marcados pelo medo da solido, do preconceito e do abandono. Isso ocorre no canto xIV, Curso superior, de estrutura idntica do anteriormente citado, no qual a repetio do incio dos pargrafos confirma a clara referncia rima musical:

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    O meu medo entrar na faculdade e tirar zero eu que nunca fui bom de mate-mtica fraco no ingls eu que nunca gostei de qumica geografia e portugus o

    que que eu fao agora hein me no sei.O meu medo o preconceito e o professor ficar me perguntando o tempo

    inteiro por que eu no passei por que eu no passei por que eu fiquei olhando

    aquela loira gostosa o que que eu fao se ela me der bola hein me no sei.[...]

    O meu medo do pai da loira gostosa e da me da loira gostosa e do irmo da loira gostosa e do irmo da loira gostosa no dia em que a loira gostosa me apresentar para a famlia como o homem da sua vida ser que verdade ser que isso felicidade hein me no sei.

    [...]O meu medo que mesmo com diploma debaixo do brao andando por a desiludido e desempregado o policial me olhe de cara feia e eu acabe fazendo uma burrice sei l uma besteira ser que eu vou ter direito a uma cela especial hein me no sei. (FREIRE, 2005: 97-98)

    Note-se que, em ambos os contos, o local em que culmina o drama dos cantores (narradores-personagens) a cela de priso. Da senzala da escravido ao crcere contemporneo, a imagem fixa dos limites impostos socialmente s camadas perifricas fruto preciso de uma viso crtica profunda acerca da histria da formao brasileira. Os seres dos cantos no so apenas os negros presumveis no ttulo da obra. Enfileiram-se em Contosnegreiros os desempre-gados, os homossexuais, as crianas sonhadoras ou vtimas do turismo sexual, os ndios, as prostitutas, as donas-de-casa descrentes, dentre outras vozes que compem o hino seco e desalentado dos esfarrapados do mundo2.

    Observemos como o grau de afirmao da ambigidade do vocbulo can-to aumenta no decorrer dos cantos-contos da obra:

    Cachorro a gente enterra em qualquer canto.Enterra a, z. E pronto. (FREIRE, 2005: 69)

    2 Assim o pedagogo pernambucano Paulo Freire denominava os socialmente oprimidos.

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    Capim sabe ler? Escrever? J viu cachorro letrado, cientfico? J viu juzo de

    valor? Em qu? No quero aprender, dispenso.

    Deixa pra gente que moo. Gente que tem ainda vontade de doutorar. De fa-lar bonito. De salvar vida de pobre. O pobre s precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu aqui, no meu canto. Na boca do fogo que fico. T bem. J

    viu fogo ir atrs de slaba (FREIRE, 2005: 79)Dizem que l tem muita criana na rua.Nua. comum, por todo canto. Dizem que tem menina abandonada em Rondnia, Roraima. No Cear, em Pernambuco. Vendidas no corao de Rio Branco. (FREIRE, 2005: 108)

    Logo nas primeiras linhas de Literaturaesociedade, Antonio Candido afirma: Nada mais importante para chamar a ateno sobre uma verdade do que exager-la (CANDIDO, 1985: 3). Antes, ainda, pondera o terico, atento para o movimento contrrio da crtica que reagiria contra o absurdo do feito. Assim, Candido reflete acerca da anlise que procurou fundamentar o valor da obra de arte na qualidade da reproduo do elemento externo, a realidade social. No esquece, tambm, da outra face que compreendeu a arte como produo independente do painel construdo historicamente pelos homens.

    Para Candido, norte terico deste trabalho, a realidade social nunca ser ex-terna numa obra literria, pois, quando transposto para a estrutura do livro, o elemento dito externo passa a importar no como causa, nem como signi-ficado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituio da estrutura, tornando-se, portanto, interno (CANDIDO, 1985: 4).

    Embora bem mais complexa do que a previso de qualquer anlise literria, a obra Contosnegreiros, de Marcelino Freire, traz em sua configurao justa-mente a complexidade estrutural e a ambigidade formativa da sociedade brasileira. Uma vastido territorial para os grandes latifndios e os becos da periferia para os barracos, os cortios, as ocas, as casas de massap. Um pas soerguido sobre a estrutura injusta e paradoxal do capitalismo excludente na diviso do lucro produzido e includente na convocao dos milhes de de-sempregados, desvalidos, subjugados.

    Na obra de Marcelino Freire, tudo interno, pois ainda h muitssimo a ser cantado e descarnado. O grande exagero, portanto, no o que emerge da

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    contraditria realidade ficcional dos Contosnegreiros, muito menos o colhido e reproduzido da realidade social brasileira, mas, sobretudo, o grande exagero foi e o silncio que mantemos passivamente sobre esse assunto cada vez que lemos os jornais, folheamos uma revista ou ligamos a TV. Esse verdadei-ramente o fim (FREIRE, 2005: 101) dos personagens e das pessoas que giram caoticamente em torno desse belo livro. Esse nosso fim.

    ResistindoopressoNossosnegrosdentes

    SuportandoahumilhaoOolhocresceu,primeirochegouOcourocomeu,opauranou

    Masonegroaroeira,envergoumasnoquebrou.

    Nei Lopes, Nosso nome, resistncia

    Referncias Bibliogrficas

    CANDIDO, Antonio. Literaturaesociedadeestudos de teoria e histria literria. So Paulo: Nacional, 1985.

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    Dissertao de Mestrado em Literatura Brasileira, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.

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