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Revista Novos Estudos Jurídicos - Eletrônica, Vol. 19 - n. 1 - jan-abr 2014 ISSN Eletrônico 2175-0491 285 DESMISTIFICANDO OS “PRINCÍPIOS JURÍDICOS” DE RONALD DWORKIN 1 DEMYSTIFYING THE “LEGAL PRINCIPLES” OF RONALD DWORKIN DESMISTIFICANDO LOS “PRINCIPIOS JURÍDICOS” DE RONALD DWORKIN José Guilherme Giacomuzzi 2 “Como já afirmei em outros textos, o ideal norte-americano de um governo sujeito não somente à lei, mas também a princípios, é a contribuição mais importante que nossa história já deu à teoria política. Outros países e culturas sabem disso, e o ideal norte-americano tem sido cada vez mais adotado e imitado de forma consciente em outras partes do globo. Mas nós mesmos não somos capazes de reconhecer nossa contribuição, de orgulhar-nos dela e de cuidar dela como devíamos.” Ronald Dworkin, O Direito da Liberdade, p. 9. 1 Este estudo foi apresentado em setembro de 2012 no seminário de Filosofia do Direito ocorrido na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, organizado pelos Professores Alfredo Storck (Filosofia, UFR- GS) e Wladimir Barreto Lisbôa (Direito, UFRGS), a quem agradeço o convite a parcipar. Manve o tom de oralidade neste escrito, o qual contém, porém, algumas alterações em relação à apresentação feita na ocasião. Claudia Roesler e Cláudio Ari Mello foram gens ao lerem versões deste ensaio, e eu lhes agradeço as observações feitas. 2 Doutor em Direito (George Washington University Law School, EUA, 2007), Mestre em Direito (UFRGS, 2000). Professor no curso de Direito (graduação e mestrado) da Faculdade de Direito do UniRier, campus Porto Alegre, RS. Promotor de Jusça no RS. E-mail: [email protected]

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Revista Novos Estudos Jurdicos - Eletrnica, Vol. 19 - n. 1 - jan-abr 2014ISSN Eletrnico 2175-0491 285DESMISTIFICANDO OS PRINCPIOS JURDICOS DE RONALD DWORKIN1 DEMYSTIFYING THE LEGAL PRINCIPLES OF RONALD DWORKIN DESMISTIFICANDO LOS PRINCIPIOS JURDICOS DE RONALD DWORKINJos Guilherme Giacomuzzi2Como j afrmei em outros textos, o ideal norte-americano de um governo sujeito no somente lei, mas tambm a princpios, a contribuio mais importante que nossa histria j deu teoria poltica. Outros pases e culturas sabem disso, e o ideal norte-americano tem sido cada vez mais adotado e imitado de forma consciente em outras partes do globo. Mas nsmesmosnosomoscapazesdereconhecernossacontribuio,de orgulhar-nos dela e de cuidar dela como devamos. Ronald Dworkin, O Direito da Liberdade, p. 9.1Este estudo foi apresentado em setembro de 2012 no seminrio de Filosofa do Direito ocorrido na Faculdade de Filosofa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, organizado pelos Professores Alfredo Storck (Filosofa, UFR-GS) e Wladimir Barreto Lisba (Direito, UFRGS), a quem agradeo o convite a partcipar. Mantve o tom de oralidade neste escrito, o qual contm, porm, algumas alteraes em relao apresentao feita na ocasio. Claudia Roesler e Cludio Ari Mello foram gents ao lerem verses deste ensaio, e eu lhes agradeo as observaes feitas.2DoutoremDireito(GeorgeWashingtonUniversityLawSchool,EUA,2007),MestreemDireito(UFRGS,2000). Professor no curso de Direito (graduao e mestrado) da Faculdade de Direito do UniRiter, campus Porto Alegre, RS. Promotor de Justa no RS. E-mail: [email protected] em: www.univali.br/periodicosDoi: 10.14210/nej.v19n1.p285-320 286Resumo:Oartigocriticaaconcepodeprincpiosjurdicos de Ronald Dworkin, tomando por base os argumentos lanados por Jos Reinaldo de Lima Lopes em 2003. Para tanto, o artigo (i) contextualiza a posio de Dworkin na doutrina norte-americana da poca em que a ideia de princpios comeou a ganhar corpo e (ii) mostra a sua falta de originalidade naquele ambiente acadmico; para isso o artigo explica lies de Roscoe Pound e John Dickinson, a fim de explicitar as origens do que Dworkin veio a depois elaborar com mais cuidado. Dessa forma, o estudo pretende contribuir para a melhor compreenso da categoria normativa dos princpios, da qual tem abusado doutrina e jurisprudncia brasileiras, muito por mistificao e simplificao da obra de Dworkin. Palavras-chave: Teoria do Direito. Princpios Jurdicos. Histria das Ideias Jurdicas.Abstract: The article criticizes Ronald Dworkins concept of legal principles,basedonargumentsproposedbyJosReinaldo deLimaLopesin2003.Thearticle(i)contextualizesDworkins position in the American legal doctrine, at a time when the idea of principles was beginning to flourish, and (ii) it shows Dworkins lack of originality in that academic milieu. With these goals, the article explains the doctrines of Roscoe Pound and John Dickinson, seeking to clarify the origins of the idea that Dworkin would later come to develop fully. The study therefore aims to contribute to a better understanding of the normative character of the principles, which Brazilian doctrine and jurisprudence have abused, largely as a result of mystification and simplification of Dworkins work. Key-words:Jurisprudence.LegalPrinciples.HistoryofLegal Ideas.Resumen: El artculo critica la concepcin de principios jurdicos deRonaldDworkintomandocomobaselosargumentos Revista Novos Estudos Jurdicos - Eletrnica, Vol. 19 - n. 1 - jan-abr 2014ISSN Eletrnico 2175-0491 287INTRODUOAlgumjdisse,comrazo,quevivemoshojenoBrasilaera dosprincpios.Essaeratemmaisoumenosaidadedanossa vigente Constituio Federal, ou seja, pouco mais de vinte anos, perodoemqueosprincpiosjurdicospassaramaprogressivamenteser conversa habitual no ambiente acadmico, antes somente em nvel de ps-graduao, depois passando tambm aos cursos de graduao em direito. E, mais importante, a conversa logo ganhou a prtica dos operadores jurdicos e os tribunais. Costumo dizer que, nessa era, os princpios jurdicos tm sido utilizadosentrenscomovarinhamgica:servemaqualquerpropsito, escondendo todos os arbtrios sempre haver um princpio jurdico para resolver o caso no exato sentido querido pelo hermeneuta que os interpreta e os aplica, invariavelmente em nome da justia do caso concreto. Entretanto,depoisdeteremsidolouvadosporpartedadoutrinaptria como uma espcie de panaceia aos males do pas e usados como tal por boapartedosoperadoresdodireito,osprincpiosjurdicosestoa lanzados por Jos Reinaldo de Lima Lopes en 2003. Para ello, el artculo (i) contextualiza la posicin de Dworkin en la doctrina norteamericana de la poca en que empez a ganar cuerpo la idea de principios y (ii) muestra su falta de originalidad en aquel ambiente acadmico; para ello, el artculo explica lecciones de Roscoe Pound y John Dickinson, a fin de explicitar los orgenes de lo que Dworkin vino a elaborar despus con ms cuidado. Deesemodo,elestudiopretendecontribuirparalamejor comprensin de la categora normativa de los principios, de la cual han abusado la doctrina y la jurisprudencia brasileas, especialmente por mistificacin y simplificacin de la obra de Dworkin. Palabras clave: Teora del Derecho. Principios Jurdicos. Historia de las Ideas Jurdicas.Disponvel em: www.univali.br/periodicosDoi: 10.14210/nej.v19n1.p285-320 288sofrer, talvez com certo atraso, sinais de reao contrria na doutrina, a qual tem detectado haver algo de estranho e, pior, de perigoso na forma atual de aplicao dos princpios jurdicos no Brasil. Parafcarmoscomrecentesexemplossignifcativosdossinaisdereaoao usoabusivodosprincpiosjurdicos,lembrodoistrabalhosapresentadosem 2008 em congresso anlogo ao presente, havido em So Paulo, respectivamente pelosprofessoresCarlosAriSundfeldeCludioMichelon,ambosdestacando, cadaumaseumodo,algumasimpropriedadesnaaplicaodosprincpios jurdicos. C. A. Sundfeld, em artigo provocativo, sugere que, da forma como esto sendo utilizados, princpios equivalem preguia, e C. Michelon exalta o valor dacoernciaesuavinculaocomosprincpiosparadepoissalientarafalta deracionalidadedoprincpiodaproporcionalidadeemsentidoestrito.3A observao inicial feita no estudo deste ltimo autor certeira e aqui parafraseada: ironiaqueumconceitoelaboradoparadiminuiradiscricionariedadejudicial setenhaprestadonoBrasilparaaumentodessadiscricionariedade,4ou,pior, acreso eu e repito, para esconder o arbtrio. Fico com esses dois exemplos pela propriedade dos seus argumentos e por serem nalguma medida originais.5Parece incontroverso que, dentre os muitos fatores que podem ter contribudo para a revitalizao da discusso em torno dos princpios jurdicos no Brasil,6 a 3A primeira verso deste estudo foi apresentada em setembro de 2012 no seminrio de Filosofa do Direito ocorri-do na Faculdade de Filosofa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, organizado pelos Professores Alfredo Storck(Filosofa,UFRGS)eWladimirBarretoLisba(Direito,UFRGS),aquemagradeooconviteapartcipar. Mantve o tom de oralidade neste escrito, o qual contm, porm, algumas alteraes em relao apresentao feita na ocasio, com incluso de bibliografa at novembro de 2013, quando o artgo foi entregue em defnitvo publicao. Claudia Roesler e Cludio Ari Mello foram gents ao lerem verses deste ensaio, e eu lhes agradeo as observaes feitas. Ambos os estudos esto reunidos na coletnea organizada por R. P. Macedo Jr. e C. H. Barbieri (ver MACEDO JR., Ronaldo P.; BARBIERI, Catarina H. C. Direito e Interpretao: Racionalidade e Insttuies. So Paulo: Saraiva, 2011). Na doutrina brasileira, as mais acuradas crtcas proporcionalidade em sentdo estrito so feitas por D. Dimoulis e L. Martns (ver DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Funda-mentais. 4. ed. So Paulo: Atlas, 2012, cap. 10) e L. Martns (ver MARTINS, Leonardo. Da Distno entre Regras ePrincpioseseusProblemasEpistemolgicos,MetodolgicoseTerico-Jurdicos.In:LEITE,GeorgeSalomo (Coord.).DosPrincpiosConsttucionais:consideraesemtornodasnormasprincipiolgicasdaConsttuio. 2. ed. So Paulo: Mtodo, 2008, p. 327-350; e Liberdade e Estado Consttucional: leitura jurdico-dogmtca de uma complexa relao a partr da teoria liberal dos direitos fundamentais. So Paulo: Atlas, 2012, cap. 3), os quais abordam as questo valendo-se basicamente da doutrina alem.4Ver MICHELON, Cludio. Princpios e coerncia na argumentao jurdica. In: MACEDO JR., Ronaldo P.; BARBIERI, Catarina H. C. Direito e Interpretao: Racionalidade e Insttuies. So Paulo: Saraiva, 2011, p. 261-285, especialmente p. 261.5Poderia mencionar igualmente o livro Teoria dos Princpios, de Humberto vila, cuja 1. ed. de 2003 e que logo se tornaria o estudo crtco mais divulgado no Brasil sobre a teoria dos princpios (de R. Dworkin e R. Alexy). Essa obra vem sendo desde ento revista e ampliada, estando na 14. ed., de 2013.6LOPES, Jos Reinaldo de Lima. Juzo jurdico e a falsa soluo dos princpios e das regras. Revista de Informao Revista Novos Estudos Jurdicos - Eletrnica, Vol. 19 - n. 1 - jan-abr 2014ISSN Eletrnico 2175-0491 289obra de Ronald Dworkin est entre os fatores decisivos.7 Assim, se esto certas minhas duas premissas, i.e., se os princpios esto no centro da cena muito pela proeminncia da obra de Dworkin, e se eles esto sendo utilizados sem muita racionalidade,escondendooarbtrio,nosemimportnciacontextualizar minimamente a teoria dos princpios do jusflsofo norte-americano. Poroutrolado,jem2003,quandoaobradeDworkinestavaaindasendo introduzida no Brasil (tardiamente, como comumente ocorre),8 o Professor Jos Reinaldo de Lima Lopes publicou artigo crtico ao pensamento de Dworkin no qualofereceualgunsargumentosprovocadoreseinsightsinteressantessobre osprincpiosjurdicos.9Numaespciededesmistifcaodopensamentode Dworkin, ou melhor, de parte desse pensamento, embora no apresentasse no referido artigo uma anlise exaustiva da doutrina do jusflsofo norte-americano, L. Lopes sustentou algumas teses que vo na contramo de quase tudo o que ento estava e em certa medida continua hoje sendo dito no Brasil sobre o tema dos princpios jurdicos. Sendo este um seminrio sobre teoria, flosofa e histria Legislatva. Braslia, ano 40, n. 160, p. 49-64, 2003, na p. 50 identfcou esses e outros fatores com preciso.7O outro autor Robert Alexy, cuja obra no ser aqui analisada. Para a crtca da teoria dos princpios de R. Alexy, no conheo melhor referncia, em portugus, que o artgo de L. Martns (2008, atualizado em 2012, cap. 3). Entretanto, por razes que espero fquem claras no presente ensaio, a afrmao no elaborada de L. Martns segundo a qual a distno estrutural qualitatva entre regras e princpios adequada tradio jurdica anglo-sax (2008, p. 348; 2012, p. 88) no me parece correta e poderia ser simplesmente suprimida do excelente trabalho do autor, sem qualquer prejuzo s suas concluses, de resto aqui endossadas. Para uma viso jusflosfca crtca da teoria dos princpios, fazendo comparaes iluminadoras sobre as ideias de Alexy e Dworkin, ver POSCHER, Ralf. Insights, Erros and Self-Misconceptons of the Theory of Principles. Rato Juris, v. 22, n.4, p. 425-454, Dec. 2009.8R.Dworkinescreveu, desdemeadosdadcadade1960, massuasobrascomearamaser traduzidasnoBrasil somente nos anos 2000, quando a teoria e a flosofa do direito anglo-americanas j dominavam e conduziam os debates tericos sobre as questes fundamentais do direito havia quase meio sculo. Esse atraso na disponibiliza-o, em lngua portuguesa, das obras de Dworkin, pode ter contribudo para a limitao do pensamento jurdico brasileirosobreaobradoautor,pensamentoessequeaindahojepermanece,comrarasenotriasexcees, laudatrio e acrtco. O acesso ao trabalho de Dworkin ao grande pblico nacional era muitas vezes feito via tra-duo espanhola do seu primeiro livro, Taking Rights Seriously, publicado nos Estados Unidos em 1977 e que em espanhol recebeu o ttulo Los Derechos en Srio em traduo publicada em 1984 pela Editora Ariel. Seguem as datas das tradues em portugus, na ordem cronolgica de publicao da obra original, que vai indicada entre parnteses: Levando os Direitos a Srio, 2002 (Taking Rights Seriously, 1977); Uma Questo de Princpio, 2000 (A Mater of Principle, 1985); O Imprio do Direito, 1999 (Laws Empire, 1986); O Domnio da Vida, 2003 (Lifes Dominion, 1993); O Direito da Liberdade, 2006 (Freedoms Law, 1996); A Virtude Soberana, 2005 (Sovereign Vir-tue, 2000); A Justa de Toga, 2010 (Justce in Robes, 2006). O ltmo livro publicado em vida por Dworkin, Justce for Hedgehogs (2011), que vem a ser uma espcie de coroamento da sua flosofa moral e jurdica, recebeu recen-te e tma traduo pela Editora Almedina, de Lisboa: Justa para Ourios. S um livro importante permanece sem traduo ao portugus: Is Democracy Possible Here? (2006), o qual trata de questes especfcas do direito norte-americano. O espao entre as datas das publicaes originais e as das tradues indicia a importncia edi-torial que a obra de Dworkin veio paulatnamente adquirindo Brasil.9LOPES, Jos Reinaldo de Lima. Juzo jurdico e a falsa soluo dos princpios e das regras. Disponvel em: www.univali.br/periodicosDoi: 10.14210/nej.v19n1.p285-320 290dodireito,pareceu-meapropriadopartirdeumestudocrticofeitoporum jusflsofo e historiador do direito ptrio sobre a obra daquele que por muitos consideradoumdosmaisinfuentesjusflsofosdaatualidadenomundo.O presente ensaio, portanto, leva a srio um dos insights de L. Lopes e parte dele para contextualizar alguns pontos da teoria dos princpios de R. Dworkin. Relembro os dois principais pontos do artigo de L. Lopes: (1) a tese de que a soluo apresentada por Dworkin para a argumentao jurdica com base em regraseprincpiosfalsa,porque,emsuma,osprincpiossoapenasregras mais gerais10 e que, por isso, a invocao de princpios em um julgamento no alterasubstancialmenteoprocessomentalutilizadoporqualquerjulgadorou sujeito deliberante caso ele fzesse apelo a normas ou regras de conduta;11 (2) a sugesto de que a teoria dos princpios de Dworkin no oferece muito de novo para o jurista continental; segundo esta ltima ideia, L. Lopes sugere que, pela leitura das obras de Karl Larenz, Carl-Wilhelm Canaris e Karl Engish (todas, alis, com traduo ao portugus), teriam os juristas continentais como evitar algumas impropriedades de R. Dworkin. Quanto a este ltimo ponto, o Professor L. Lopes no afrma expressamente o que venho de referir. Mas algum com imaginao pode ser levado a crer que ele ferta com essa hiptese em vrias passagens do seu provocador artigo, especialmente ao referir que Neil MacCormick, a quem L.Lopessereferecomoumescocs,portantofamiliarizadocomamaneira depensardodireitoromano-cannico,consegueesclarecerporquedesde sempre nessa nossa tradio sabe-se que a falta de uma regra, nos termos de Dworkin,semprepermiteaaplicaodeumprincpio,ouseja,deumaoutra regramaisgeraloumesmopressuposta.12Emboramepareapromissor,no estouconvencidodoverdadeiroalcancedosegundoinsightdeL.Lopes,i.e., no me parece to direta a ligao a ser feita entre as obras dos jurista alemes mencionados e a teoria dos princpios de R. Dworkin.13 O primeiro ponto de L. 10LOPES, Jos Reinaldo de Lima. Juzo jurdico e a falsa soluo dos princpios e das regras. p. 54.11LOPES, Jos Reinaldo de Lima. Juzo jurdico e a falsa soluo dos princpios e das regras. p. 58. Essa frase de elaborao mais cuidadosa do que a frase inicial do autor: invocar princpios em lugar de regras no esclarece em nada o raciocnio de quem decide [grifo nosso] (p. 49).12LOPES, Jos Reinaldo de Lima. Juzo jurdico e a falsa soluo dos princpios e das regras. p. 54.13A. Kaufmann sustentava que os princpios de Dworkin nada mais seriam do que os princpios gerais do direito dos contnentais, princpios esses que preencheriam as lacunas da lei (KAUFMANN, Arthur. A problemtca da flo-sofa do direito ao longo da histria. In: KAUFMANN, A.; HASSEMER, W. (Orgs.). Introduo Filosofa do Direito eTeoriadoDireitoContemporneas.TraduodeMarcosKeeleManoelSecadeOliveira.Lisboa:Fundao Revista Novos Estudos Jurdicos - Eletrnica, Vol. 19 - n. 1 - jan-abr 2014ISSN Eletrnico 2175-0491 291Lopes, porm, parece-me deva ser explorado mais de perto, e ele que pretendo levar a srio no presente ensaio. A proposta deste estudo, portanto, bastante limitada, porque no trato da teoria de Dworkin como um todo, mas somente da sua proposta inicial sobre os princpiosjurdicos,eaindaassimpartedela.Minhaintenobsicamostrar quenomundoanglo-americanoasprimeirasideiasdworkinianasacercados princpiosjurdicosnoeraminteiramentenovaseque,noquesupostamente tinham de novo, ou se mostraram ideias pouco esclarecedoras (e a culpa de Dworkin),ouforamabandonadaspeloprprioautoreseguidassomentepela doutrina brasileira (e a culpa ento obviamente nossa).14Seja como for, bom lembrar que a teoria jurdica de Dworkin tem sido dura e amplamente criticada em quase todos os seus pontos e que no mundo anglo-americano h posies de autores respeitveis os quais expressamente sustentam que as ideias e as teorias de Dworkin no somente sua teoria dos princpios nada acrescentam teoria e flosofa do direito.15 No concordo com essa viso,16 e minha impresso de que a maioria dos juristas anglo-americanos tambm no concorda. certo que o debate havido na teoria do direito anglo-americana (e no Calouste Gulbenkian, 2002, p. 57-208, citao da p. 158-9; KAUFMANN, Arthur. Filosofa do Direito. Traduo de Antnio Ulisses Corts. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2004. p. 74 e 77). E Clvis Bevilqua, em artgo publicado em 1913 sob o sugestvo ttulo a funo do intrprete, exps comparatvamente o papel supletvo dos princpios gerais do direito no ento projeto de Cdigo Civil, referindo ali que os Cdigos Civis austraco e portugus traziam a expresso princpios gerais do direito natural, enquanto que o Projeto primitvo do Cdigo Civil brasileiro, na esteira do anterior projeto de Coelho Rodrigues, se referia ao esprito da lei. O importante aqui que Bevilqua equiparava o signifcado das trs expresses: As trs expresses princpios do direito natural, princpios gerais do direito e esprito da lei, pretendem signifcar aqui a mesma coisa (BEVILQUA, Clvis. A funco do interprete. Revista de Direito (Bento de Faria), Rio de Janeiro, v. 29, fasc. 1, p. 241-254, jul. 1913, citao da p. 244). Mais adiante, o autor referia que, por meio dos princpios gerais do direito, o jurista penetra em um campo mais dilata-do, procura apanhar as correntes diretoras do pensamento jurdico e canaliz-las para onde a necessidade social mostra a insufcincia do direito positvo (p. 246). 14Decertaforma,voucontextualizar,nomundoanglo-americano,ateoriadosprincpiosdeDworkin.Poroutro lado, fca aqui um mea culpa: no fnal do sculo passado, logo no incio da recepo da obra desses autores no Brasil, quando escrevi dissertao de mestrado, publicada h mais de dcada (ver GIACOMUZZI, Jos Guilherme. A Moralidade Administratva e a Boa-F da Administrao Pblica: o contedo dogmtco da moralidade admi-nistratva. So Paulo: Malheiros, 2002, p. 201-12), tambm fz meno acrtca teoria dos princpios de Dworkin (e de Alexy); isso foi revisto na 2. ed. da obra (2013). 15O mais incisivo dos crtcos sem dvida Brian Leiter, hoje Professor na Chicago Law School. Ver, p. ex., LEITER, Brian. The End of Empire: Dworkin and Jurisprudence in the 21st Century. Rutgers Law Journal, v. 36, p. 165-181, 2004; e LEITER, Brian. In Praise of Realism (and Against Nonsense Jurisprudence). The Georgetown Law Journal, v. 100, p. 865-893, 2012.16Sobre Dworkin, parecem-me essencialmente corretas a viso jusflosfca expostas por POSCHER, Ralf. The Hand of Midas: When Concepts Turn Legal or Defatng the Hart-Dworkin Debate. In: HAGE, Jaap C.; PFORDTEN, Dietmar von der (Eds.). Concepts in Law.Springer, 2009, p. 99-115, mormente p. 109-15.Disponvel em: www.univali.br/periodicosDoi: 10.14210/nej.v19n1.p285-320 292mundo jurdico desenvolvido em geral) d menos importncia para a concepo de princpios e regras de Dworkin, mas isso s se depois que a teoria foi criticamente estudada;maisimportante,houve,nateoriadodireitoanglo-americano,um debate riqussimo sobre esse e outros pontos da vasta obra do autor que partiram dessa distino, debate esse que em nada se parece com a predominantemente laudatriaeacrticarecepodeDworkinnoBrasil.17H,portanto,umenorme fosso que separa o de bate terico anglo-americano/europeu e brasileiro. Seja-me permitida ento breve observao sobre o ttulo, o qual de certa forma encerra um dos objetivos principais do artigo: sua expresso central, desmistifcando os princpios jurdicos de Dworkin, no quer ser muito mais que uma provocao. A provocao, porm, tem vrias razes de ser, que espero fquem claras no decorrer dotexto.Ressaltodesdelogoumadelas,quejmencioneiacimaevaidepois explorada: no ambiente jurdico no qual a teoria dos princpios de Dworkin nasceu e se desenvolveu, no mais existe grande interesse pela teoria, que mencionada en passant nos melhores livros introdutrios sobre teoria do direito.18Poroutrolado,acontextualizaodaobradeDworkinpodeservirpara aquilataraprocednciadealgumascrticasaosseusescritos,especifcamente acrticadainsularidade(dotipo,Dworkinescreveparaosseusparesnorte-americanos,ou,maisrestritivamente,paraosnorte-americanosliberais). Confesso que neste ponto est o germe de outro ensaio, talvez mais interessante, sobre a possibilidade e as difculdades de recepo de uma teoria do direito como a de Ronald Dworkin no Brasil. 17Emsentdosemelhante,verVILA,Humberto.TeoriadosPrincpios.2013,p.139,bemcomoorecentssimo ensaiodeTRIVISONNO,AlexandreTravessoniGomes.PrincpiosJurdicosePositvismoJurdico:ascrtcasde Dworkin a Hart se aplicam a Kelsen? In: OLIVEIRA, Jlio A. De; TRIVISONNO, Alexandre Travessoni Gomes (Orgs). Hans Kelsen: Teoria Jurdica e Poltca. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 185-212 (aludindo acrtca recepo de Dworkin no Brasil, especialmente p. 186-7 e nota 3). A tese de livre-docncia de Ronaldo Porto Macedo Jr. che-gou-me s mos tarde e no pde ser aqui analisada, porque um trabalho dessa envergadura pressupe leitura cuidadosa. Ver MACEDO JNIOR, Ronaldo Porto. Do Xadrez Cortesia: Dworkin e a teoria do direito contempo-rnea. So Paulo: Saraiva, 201318Quero ser bem compreendido: isso no signifca que no tenha sido importante para levantar discusses cruciais na teoria do direito contempornea. Para um livro introdutrio que menciona com muita clareza a teoria e explora suas consequncias, ver, p. ex., BIX, Brian Jurisprudence: Theory and Context. 6. ed. Durham: Carolina Academic Press, 2012, p. 91-3. Neste aspecto tem razo VILA, Humberto. Teoria dos Princpios. 2013, p. 140, quando observa ser no mnimo curioso, para dizer pouco, que boa parte da doutrina nacional, ainda contnue a defender argumentos j abandonados, at mesmo pelos prprios autores. Essa correta observao de H. vila apareceu somente na 12. ed. de seu estudo crtco (Teoria dos Princpios. 2011, p. 131-2), mas poderia ter sido feita na 1.ed. ainda em 2003. Revista Novos Estudos Jurdicos - Eletrnica, Vol. 19 - n. 1 - jan-abr 2014ISSN Eletrnico 2175-0491 293Para a desmistifcao que me proponho, penso que seja til percorrer um pouco a histria do pensamento jurdico norte-americano no qual Dworkin est inseridoparacompararcomopensamentojurdicocontinentalesaberoque sediscutiapocaemqueDworkinfoitentadoalanarmodosprincpios. Vou ento contextualizar a obra de Dworkin em perodo a ns pouco conhecido dodireitonorte-americanoparamostrarqueDworkinnofezmuitoalmde elaborar ideias j contidas nas obras de dois autores: Roscoe Pound (1870-1964), certamente conhecido (mas pouqussimo lido) pelos juristas brasileiros, e John Dickinson (1894-1952), este totalmente desconhecido por ns. Assim,sedevoindicarobjetivosaesteensaio,sobasicamentedois, interdependentes:primeiro,bastantemodesto,querocontextualizarateoria dosprincpiosdeDworkinnotempoenoespao;segundo,pretendoexpor, nacontracorrentedoquesetemproduzidonoBrasil,algumasvisesmenos rsea da teoria dos princpios de Dworkin, assim contribuindo, talvez, para a sua desmistifcao. Se devo indicar um mtodo, ele , preponderantemente, dialtico e, em necessrio paralelo, histrico, dado o objetivo primeiro do trabalho. Oqueseguenoitem1abaixodeveserencaradocomoumapequena contribuio sobre a histria das ideias jurdicas, e no propriamente como um estudodeteoriaouflosofadodireito.Tenhoemmenteumadistinofnae importante tomada da impressionante obra de Brian Tierney, The Idea of Natural Rights,segundoaqualaohistoriadornoimportatantoadiscussosobrea validade ou a correo da proposio de Hume de que no se pode derivar um dever ser de um ser (you cant get an ought from an is), a qual tem ocupado tanto os flsofos; para o historiador, diz Tierney, sempre h um ser por trs de cada dever ser, e a tarefa do historiador desvendar qual era a seridade (isness) escondidaporcadaproposiodedeverser(oughtness)quesepoderia esperarqueforescessenaqueleespecfcoambientecultural.Noutraspalavras, ohistoriadorpretendeidentifcarocontextohistriconoqualcertosvalores morais passam a existir, o que no signifca que para o historiador esses valores sejam relativos; signifca apenas que no existem no vcuo.19 Transplantando essa penetrante ideia para o nosso tema, interessar menos aqui a eventual correo 19Ver TIERNEY, Brian. The Idea of Natural Rights. Michigan: Emory University, 1997. p. 6.Disponvel em: www.univali.br/periodicosDoi: 10.14210/nej.v19n1.p285-320 294(moraloujurdicaouambas)daideiadeprincpiosjurdicosemsi,massimo contexto no qual ela poderia ter forescido, como de fato foresceu.1 POUND, DICKINSON E OS PRINCPIOS JURDICOS lugar-comum a crtica de que Dworkin no costuma citar suas fontes, o que parece aumentar a curiosidade sobre os fundamentos tericos e flosfcos de sua teoria.20 possvel, contudo, encontr-las, ainda que indiretas e mesmo que envoltas emcontextosdistantesans,continentais.Pensoqueissoimportantepara compreendermos o caminho perseguido por Dworkin na construo do seu ataque ao positivismo de H.L.A. Hart e de sua exposio inicial sobre os princpios jurdicos. Numensaiodesomentetrspginaspublicadonaprimaverade1967e intitulado The Case for Law A Critique, no qual criticava um artigo de Roscoe Pound de mesmo ttulo publicado nas pginas anteriores do mesmo volume da Valparaiso Law Review, R. Dworkin (ento um jovem de 36 anos, Professor em Yale, que dois anos depois ocuparia a ctedra de H.L.A. Hart em Oxford), anunciava queR.Pound(umdosconesdateoriadodireitonorte-americanoefalecido trsanosantesaos 94) tivera insights teise corretossobre o tratamento que ospositivistashaviamatentodadoaosprincpiosjurdicos:umtratamento meramenteexortatrio.MasPound,porfaltadedisciplina,diziaDworkin, parou no comeo e no ofereceu mais do que as simples assertivas que John Dickinson havia cuidadosamente esmiuado em 1929.21 OquedisseraPoundnoartigocriticadoporDworkin?Poundafrmarao seguinte: (...) a parte vital e perene do direito est nos princpiospontos de partida aoraciocnio,nonasregras.Princpiospermanecemrelativamente constantesousedesenvolvemnumsentidoconstante.Regrastm 20ParaumestudorecentesobreasinfunciasflosfcasdeDworkin,verBROOKS,Thom.BetweenNaturalLaw and Legal Positvism: Dworkin and Hegel on Legal Theory. Georgia State University Law Review, v. 23, p. 513-560, 2007 (ligando Dworkin a Hegel).21DWORKIN, Ronald. The Case for Law A Critque. Valparaiso University Law Review, v. 1, n. 2, p. 215-217, Spring 1966, citao da p. 217. At onde sei, essa a nica vez que Dickinson mencionado por Dworkin. Anoto que H.L.A. Hart cita Dickinson vrias vezes no ps-escrito 2. ed. do The Concept of Law. Ver HART, H.L.A. The Concept of Law. 2nd. ed. New York: Oxford University Press, 1994. p. 291, 297-8.Revista Novos Estudos Jurdicos - Eletrnica, Vol. 19 - n. 1 - jan-abr 2014ISSN Eletrnico 2175-0491 295vida relativamente curta. Elas no se desenvolvem; elas so repelidas e substitudas por outras regras.22 [grifo nosso]. Na pgina seguinte, Pound disse mais: A teoria analtica do direito norte-americana e inglesa [...] causou dano ao instilar a ideia de direito como um conjunto de leis e de um direito como uma regra que vincula uma especfca e defnida consequncia aumfatoespecfcoouconjuntodefatos.Leis,consideradas isoladamente,soinstrumentosdetiranoseditadores.Elaspodem serditadasdecimaparabaixoeaplicadasarbitrariamente.Mas,por outro lado, elas podem ser instrumentos de um sistema ordenado de aplicaodaforadeumasociedadepoliticamenteorganizadade acordo com ideais de justia e uma tcnica de promoo de princpios tomados como pontos de partida do raciocnio jurdico. [grifo nosso]RoscoePoundopunhaaliageneralidadeeaperenidadedosprincpios especifcidade e efemeridade das regras. necessria novamente uma citao um pouco extensa:Na teoria do direito, h, de um lado, os princpios universais, i.e., pontos de partida para guia da ordem geral das relaes e conduo da vida emsociedade,e,deoutrolado,aprescrioderegrasespecfcas adaptadasscondieslocaistnicas,geogrfcas,histricas,que frequentemente variam muito de lugar a lugar. Os dois campos so bem distintos mas confuem numa linha difcil de traar com exatido. H uma tendncia de acentuar os princpios gerais ou as regras especfcas de acordo com linhas de tempo e lugar traadas historicamente.23 [grifo nosso]O que consta nesses excertos poderia ter sido escrito por Dworkin, e, suspeito, seeunohouvessereferidooautordaspassagensnoincio,ningumteria difculdadedeindicarRonaldDworkincomosendoesseautor.Estariamtodos errados o texto de Roscoe Pound.Quemquerfazerhistriadasideiasjurdicasdeformasriaprecisaanotar que essa no era uma viso nova no pensamento de Pound. E quem l somente esse artigo poderia objetar que o curto estudo, publicado postumamente, no 22POUND, Roscoe. The Case for Law. Valparaiso University Law Review, v. 1, n. 2, p. 201-214, Spring 1967, citao da p. 202.23POUND, Roscoe. The Case for Law. p. 203-4.Disponvel em: www.univali.br/periodicosDoi: 10.14210/nej.v19n1.p285-320 296era muito elaborado e, concordando com Dworkin no artigo de 1967, poderia ser mesmo um tanto pobre. A objeo talvez ganhasse fora se considerssemos ainda que esse artigo de Pound era nada mais que a edio de um manuscrito que servira de base conferncia proferida por Pound num evento provavelmente festivo,ocentenriodaValparaisoUniversityem1959.Essaconjunturatalvez norecomendasseaconclusodequealinaqueleartigoestivessemasideias acabadas de um autor to importante ao direito norte-americano. No parece, contudo, ser essa a melhor leitura a ser feita da obra de Pound. Os excertos acima transcritos parecem refetir as posies maduras de um autor consciente que as elaborou muitos anos antes e as exps com cuidado por longo tempo.Nathan Roscoe Pound era um homem de cultura enciclopdica e obra vastssima (escreveumaisdetrezentosartigoseinmeroslivros),conhecedordodireito europeu como pouqussimos anglo-americanos em todos os tempos. Em agosto de 1932, ano posterior ao nascimento de Dworkin, Pound apresentou, no Congresso Internacional de Direito Comparado em Haia, trabalho sob ttulo de Hierarchy of Sources and Forms in Different Systems of Law, o qual foi publicado em 1933. Ali o autor j deixava claras suas ideias sobre o tema. Vou expor resumidamente os pontos principais defendidos por Pound nesse artigo; creio que fcaremos ainda mais convencidos da infuncia das ideias de Pound sobre Dworkin. Qual a ideia defendida neste estudo de direito comparado? Pound comea indicandoque,dependendodopontodevistadequemperguntaouresponde questooqueodireito?( juiz,professor,advogado,servidor),aresposta poderia ter uma ou outra nfase; mas que ele, Pound, iria tentar dar uma resposta do ponto de vista da atividade do juiz, e para isso ele entenderia o direito como o corpo de materiais dotados de autoridade (authoritative materials) prescritos ourecebidoscomoabaseparaadecisojudicial.24Noartigo,Pounddeixava claras duas suposies: (1) que, para saber o que era o direito, o juiz precisaria conhecer os materiais dotados de autoridade ou fontes autoritativas (authoritative materials); (2) por fontes do direito ele entenderia como sendo a literatura, ofcial ou no, no qual os authoritative materials estivessem presentes. O que seriam esses 24POUND,Roscoe.HierarchyofSourcesandFormsinDiferentSystemsofLaw.TulaneLawReview,v.7,n.4,p. 475-487, June 1933, citao da p. 476. Outra traduo possvel para authoritatve materials fontes autoritatvas. Este , como se sabe, o ponto do direito, que no fm das contas sempre um problema de fontes.Revista Novos Estudos Jurdicos - Eletrnica, Vol. 19 - n. 1 - jan-abr 2014ISSN Eletrnico 2175-0491 297materiais? Pound revela que, na common law tradicional, eles seriam as regras dedeciso(rulesofdecisions),eassimpassaramaodireitonorte-americano. Dessemodo,explicavaPound,odireito,dizer,osauthoritativematerialsque seriam a fonte de direito na qual o juiz deveria embasar sua deciso, seria, nessa viso, um conjunto de regras de deciso.25 A equao era, ento, esta: common law = aplicao das fontes autoritativas, i.e., das regras de deciso. Isso equivalia aplicao objetiva do direito.Essa viso da common law, porm, era limitada, dizia Pound. As regras vrias vezes deixavam de cobrir os casos com clareza, mormente nos casos envolvendo mudanasocialedesenvolvimentoeconmico.Nessescasos,nosquaisum estado novo de fatos ocorria, a tcnica de aplicar as regras de deciso, que eram os preceitos dotados de autoridade disponveis, era insufciente. Isso, ou seja, o novo estado de fatos, no cobertos pelas regras, havia gerado a seguinte viso: a deciso judicial no era em verdade baseada em regras de deciso, ou seja, noerabaseadanosmateriaisdotadosdeautoridade,ouseja,noerauma deciso objetiva, mas sim uma deciso subjetiva, no mais baseada no direito.26 Aequaomuda:commonlaw=aplicaoderegrasnojurdicas,i.e.,regras subjetivas. Em suma, e essa histria mais conhecida de todos ns, estaramos diantedeumafacetadoRealismoJurdiconorte-americano,cujoprecursor Oliver W. Holmes Jr., sendo Benjamim Cardozo um dos seus expoentes.27 No por acaso, nesta parte do artigo Pound menciona ambos. A escolha apresentada seria, ento, para Pound, entre os dois seguintes cenrios: direito como sistema de regras e direito como tudo aquilo que determina [ou seja, todos os elementos subjetivos] a atividade judicial. Entretanto, no devemos estar limitados a escolher entre essas duas possibilidades, dizia Pound; porque o direito mais complexo que um sistema de regras. O que se passou? Ocorreu, explicava Pound,queavisoouateoriadodireitocomosistemaderegrasaplicveis 25POUND, Roscoe. Hierarchy of Sources and Forms in Diferent Systems of Law. p. 480.26POUND, Roscoe. Hierarchy of Sources and Forms in Diferent Systems of Law. p. 481-2.27Houve uma imensa discusso no direito norte-americano sobre quem era ou deixava de ser realista. Uma viso panormica interessante sobre o movimento realista encontra-se em BIX, Brian Jurisprudence, cap. 17. Quan-do ainda cursava o doutoramento no exterior, esbocei algumas linhas sobre o assunto, sob a infuncia de uma historiadora do direito adepta dos Critcal Legal Studies. A viso geral ali colocada ainda me parece tl ao leitor brasileiro. Ver GIACOMUZZI, Jos Guilherme. As Razes do Realismo Americano: Breve Esboo Acerca de Dicoto-mias, Ideologia e Pureza no Direito dos USA. Revista de Direito Administratvo, v. 239, p. 359-388, 2005.Disponvel em: www.univali.br/periodicosDoi: 10.14210/nej.v19n1.p285-320 298no seu sentido mais estrito foi, por razes a serem encontradas na histria do pensamento jurdico, tomada como uma teoria aplicvel a todo o direito.28QualasoluodePound?Sustentarqueosauthoritativematerialsnose confnavam s regras e ele expressamente colocava entre parnteses: no sentido mais estreito (in the narrower sense) , mas sim eram compostos por princpios (principles), concepes (conceptions), doutrinas e standards. Esses todos seriam preceitos dotados de autoridade (authoritative preceps).Como perdo da longa citao, no tenho como deixar de dar a palavra a Pound agora:2. Princpios. Esses so pontos de partida do raciocnio jurdico dotados de autoridade, empregados legtima e continuamente onde os casos nosocobertosounosointeiraouobviamentecobertospelas regras no sentido mais estrito. O seu uso ajustado com a teoria do direito como um corpo de regras ao assumir que eles [os princpios] sousadosparadescobriraregraaplicvel.Muitofrequentemente esses pontos de partida dotados de autoridade competem [entre si]. Frequentementedeve-seescolheropontodepartida[i.e.,princpio] do qual se deve seguir mas no h preceito disponvel determinando qual deve ser escolhido. [...]Esses princpios no prescrevem qualquer resultado jurdico especfco e defnido como consequncia de qualquer estado de fato especfco e defnido. [...] Eles no oferecem quaisquer caminhos para situaes defnidas. Eles so pontos de partida dos quais se procede de acordo com a tcnica defnida. Como exemplos pode-se citar a proposio de que a responsabilidade um corolrio da negligncia, qual as cortes norte-americanas e os autores quiseram em vo conformar nossas leis no sculo dezenove, mas por meio da qual eles foram capazes de dar melhor tratamento a muitos casos; a proposio de que no se pode enriquecerinjustamentesexpensasdeoutro[...].Algumnmero deproposiesdessetipo,apartirdasquaisoraciocniojurdico prossegue, ocorrer ao jurista continental. Na maioria dos casos eles vmdodireitoromanooudomodernodireitoromanoesoum elemento comum no direito de todos os pases. Eles no so resultado do trabalho dos legisladores ou das cortes. Eles vm dos operadores do direito (lawyers), em regra de escritores e professores, e so melhor formulados em escritos doutrinrios.28POUND, Roscoe. Hierarchy of Sources and Forms in Diferent Systems of Law. p. 482, para todas as citaes deste pargrafo do texto acima.Revista Novos Estudos Jurdicos - Eletrnica, Vol. 19 - n. 1 - jan-abr 2014ISSN Eletrnico 2175-0491 299Na prtica a hierarquia das formas menos provvel de ser observada nocasodosprincpios.Quandoelesentramemcenaaescolhados princpiosdecisiva,eessaescolhararamentefxadapormeiode umpreceitodotadodeautoridade(authoritativelyfxed).NaEuropa Continental e na Amrica Latina algo [princpios] anlogo encontrado em frmulas legislativas. Na Inglaterra, em domnios Britnicos e nos EstadosUnidos,eles[osprincpios]soencontradosemdecises judiciais.Masadifculdadedadecisorepousanaausnciade qualquer preceito que determine o uso de uma analogia e no outra. A referncia a algum princpio, como formulado por algum doutrinador, umasada,eesseprincpiodeprovvelescolha,conscienteou inconscientemente medida do ideal recebido.29 Poundfoiaindamaislonge.Emjaneirode1942,numasriedelectures proferidas na Universidade de Notre Dame, depois publicadas em longo artigo intitulado The Revival of Natural Law (contextualizado devidamente, o ttulo fala por si), Pound mais uma vez faz referncia s tcnicas de deciso aplicando os mesmos materiais dotados de autoridade, escolha dos pontos de partida do raciocniojurdico(osprincpios),etc.30Naocasio,Poundentendeudeelevar ainda mais o alcance dos princpios: A teoria flosfca do direito tem estudado abaseflosfcadasinstituiesjurdicas,dasdoutrinasepreceitosjurdicos eprocuradoencontrarprincpiosfundamentaisdedireitouniversalpormeio daflosofa.31FicoporaquinascitaesdePound,porquemeparecequeas vinculaes entre ele e Dworkin esto estabelecidas.Seria, contudo, um grande erro dizer que Dworkin, mesmo em seus escritos iniciais (compilados no livro Taking Rights Seriously, de 1977), no acresceu nada ao que Pound propunha. Como diz um socilogo do direito britnico de aguda viso histrica sobre a teoria do direito, Pound asseverava que o direito deveria serentendidocomosendoformadoporpreceitosdevriasordens,regras, princpios,concepes,standards,enquantoqueDworkintentoufrmemente especifcar a diferena entre princpios e regras e mostrar o motivo pelo qual o modelo de regras era insatisfatrio.32 Para o meu propsito desmistifcador, 29POUND, Roscoe. Hierarchy of Sources and Forms in Diferent Systems of Law. p. 483-4.30Ver POUND, Roscoe. The Revival of Natural Law. Notre Dame Lawyer, v. 42, n. 4, p. 287-372, June 1942, especif-camente p. 288-9.31Ver POUND, Roscoe. The Revival of Natural Law. p. 289.32Ver COTTERRELL, Roger. The Politcs of Jurisprudence: A Critcal Introducton to Legal Philosophy. 2nd ed. Oxford: Oxford University Press, 2003. p. 160-1.Disponvel em: www.univali.br/periodicosDoi: 10.14210/nej.v19n1.p285-320 300porm, parece claro que Dworkin partiu de ideias j postas sobre a insufcincia de uma abordagem do direito restrita s regras.Sejacomofor,omaisimportantedessacontextualizaotalvezsejaisto: tanto Dworkin como Pound parecem utilizar os princpios como um instrumento para objetivosoutrosque no ometodolgico-descritivode dividirasnormas em categorias aptas a organizar o pensamento jurdico na resoluo de casos. Ambos,PoundeDworkin,pretenderamchamaraatenoparaarelaodo fenmeno jurdico para com outras esferas normativas (moral e poltica, no caso de Dworkin) e de relao (sociologia, no caso de Pound) para poderem legitimar, juridicamente, pontos de vista poltico-morais. No caso de Dworkin, a relao dos princpios ser com os liberal rights; no caso de Pound, os princpios so utilizados comosupostosfundamentosdeumasociedadenaqualacommonlawest embebida,umethosquenopoderiafcardisposiodapuralegitimidade democrtica (King Demos, como ele referia).33PensoqueissosufcientesobrePound.Passoaanalisar,mesmoque brevemente, alguns escritos de J. Dickinson, e o fao at por pista sugerida pelo jovem Dworkin em 1967. Se no fosse por outro motivo, lembro que o clssico exemplo de regra dado por Dworkin do nmero de testemunhas necessrias para um testamento vlido, utilizada desde 1967 no primeiro artigo infuente de Dworkin, The Model of Rules I, depois republicado em 1977 no livro Taking Rigths Seriously, justamente o exemplo dado por Dickinson, mas em outro artigo, no o mencionado por Dworkin (de 1929).34 Obviamente que no pretendo vender aideiadequeDickinsoninfuenciouDworkinemrazodestetrivialexemplo, quetalvezpudesseserdadoporumatentoestudantededireitodoprimeiro ano. Preciso ento prosseguir na anlise de outros artigos de Dickinson ( jamais mencionados por Dworkin), o que farei um pouco depois. Antes vamos analisar o que disse Dickinson no artigo citado por Dworkin, o artigo de 1929. 33Em sentdo semelhante, ver COTTERRELL, Roger. The Politcs of Jurisprudence. p. 161. A viso exposta bem conhe- A viso exposta bem conhe-cida: os princpios so utlizados para sustentar a possibilidade de defesa de direitos individuais contra a maioria. Minha sugesto de interpretao que essa pode ser a razo ltma, o fundamento tanto das ideias de Pound quan-to de Dworkin sobre a difculdade de explicar o sistema da common law com a viso estreita das regras.34Ver DICKINSON, John. Legal Rules Their Functon in the Process of Decision. University of Pennsylvania Law Review, v. 79, n. 7, p. 833-868, 1930, especifcamente p. 847. Para o exemplo de Dworkin, ver DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1977. p. 24.Revista Novos Estudos Jurdicos - Eletrnica, Vol. 19 - n. 1 - jan-abr 2014ISSN Eletrnico 2175-0491 301Queroantesdeixarclaroquemeupontonofazerumcavalodebatalha sobreumfalsoproblemadesaberquemteriainfuenciadoRonaldDworkin,e que tampouco quero criar uma hiptese de investigao inexplorada a qual, se fosse seguida, desvendaria o n grdio de teoria do direito. Devo confessar que esse link entre Dickinson e Dworkin uma hiptese que preciso ainda investigar melhor; navego quase a esmo nessas guas, porque, se Pound j foi tido como sendo um dos precursores da teoria de Dworkin,35 Dickinson, ao que eu saiba, jamais o foi estou sozinho neste barco. Mas suponho que seja uma viagem interessante a ser feita, ainda que curta, para poder cumprir um dos objetivos deste ensaio: desmistifcar, via contextualizao, a teoria dos princpios de Dworkin.UmpoucosobreJohnDickinson,essedesconhecido.36OmeninoDickinson fora uma espcie de prodgio: desde cedo adquiriu gosto pela literatura grega elatina,eseuhistricoescolarnoquenschamaramoshojedeensino fundamental, feito na Boys Latin School, foi, na poca, o melhor em 108 anos de histria da instituio. Aos dezenove anos ele estaria formado em Classics (algo como estudos clssicos) no que chamaramos de ensino mdio pela John Hopkins, atingindo, nos quatro anos de estudo, uma mdia que no chegou perfeio por 0,08 pontos. Da Dickinson saiu para estudar histria, cincia poltica e teoria do direito na Universidade de Princeton, onde foi multipremiado. A Guerra, na qual foi tenente, interrompeu seus estudos, retomados depois para completar um Ph.D. concludo em junho de 1919, quando John contava 25 anos. No Outono de 1919, a Universidade de Harvard o contratou como tutor no Departamento de Histria, Cincia Poltica e Economia. Como estava em Harvard, aproveitou para cursar a Law School; completou em dois o curso de trs anos e foi advogar.Mas nem as universidades, nem o setor pblico deixaram mais de querer os seus servios por toda a vida. As Universidades de Harvard, Princeton, Yale, da Pennsylvania disputaram-no, e Dickinson passou nesta ltima quase vinte anos. Em 1927 ele publicou a traduo, do latim ao ingls, que fzera do Policraticus, 35Ver COTTERRELL, Roger. The Politcs of Jurisprudence. p. 145-74; ALEXANDER, Larry; SHERWIN, Emily. Demystfy-ing Legal Reasoning. New York: Cambridge University Press, 2008. p. 65 e 89.36O leitor interessado encontrar uma resenha da vida e obra de J. Dickinson em HASKINS, George L. John Dickin-son: 1894-1952. University of Pennsylvania Law Review, v. 101, n. 1, p. 1-25, October 1952, de onde foram tra-das as informaes do texto. Este pargrafo do texto poderia ser reservado a um rodap, mas preferi mant-lo no texto devido opo de conservar a oralidade do trabalho.Disponvel em: www.univali.br/periodicosDoi: 10.14210/nej.v19n1.p285-320 302tratadomedievaldeJohndeSalibury,publicadoemmeadosdosc.XII.No mesmoanode1927,aHarvardUniversityPresspublicouoseuprimeirolivro jurdico, Administrative Justice. Quando na University of Pennsylvania Law School, jamais deixou de atuar no setor pblico, sempre nos altos escales do Governo, onde ocupou postos-chave em vrios departamentos. Nas universidades, ensinava direitoadministrativo,constitucional,teoriadodireitoelegalreasoninge Dickinson escreveu sobre todos esses temas. O jovem Ronald Dworkin conhecia seus escritos, ao menos um deles. Porfm,anotoqueDickinsonerahomemdeculturaenciclopdica,quelia fuentemente em vrias lnguas. Seus artigos aos quais encontrava tempo para produzir, embora jamais se tenha limitado a exercer somente a docncia, a qual igualmente nunca abandonou demonstram impressionante familiaridade com o direito europeu e o direito romano. impossvel no ver aqui uma semelhana com Pound.37 Enough for the man. Vamos sua obra, comeando pelo artigo de 1929 indicado por Dworkin em 1967.Trata-se de estudo que tem duas partes, 71 pginas ao todo, no qual Dickinson querdescobriroqueestportrsdodireito;osugestivottuloTheLaw Behind Law. Saliento o que interessa agora: Dickinson faz aluso aos princpios jurdicos da common law e cita deciso de corte inglesa de 1774 na qual Lord Mansfeldreferiaqueodireitoinglsseriaumacinciaestranhasedecidisse apenascombasenosprecedentes.Econtinuava:Precedentesservempara ilustrar princpios [. . .] e esses princpios se aplicam a todos os casos de acordo com as circunstncias particulares [...], bem como deciso de corte americana de 1903 na qual se afrmou claramente isto: A teoria do nosso sistema que o direito consiste no em regras textuais que so feitas cumprir por decises das cortes em alguma poca, mas em princpios dos quais essas regras se originam; esses velhos princpios so aplicados a casos novos, e as regras resultantes dessas aplicaes so modifcadas de tempos em tempos de acordo com o que pedem os novos estados de fatos.38 37Uma das crtcas de L. Lopes a Dworkin que este ignora a teoria do direito da famlia romano-germnica.38DICKINSON, John. The Law Behind the Law. Columbia Law Review, v. 29, n. 2, p. 113-146, February 1929, citao da p. 120 (a citao entre aspas refere-se s palavras da corte) [grifo nosso].Revista Novos Estudos Jurdicos - Eletrnica, Vol. 19 - n. 1 - jan-abr 2014ISSN Eletrnico 2175-0491 303Dickinsonfazaseguirumasriedecomentriossobreapossibilidadede seremalcanadosdiferentesresultadosacasoescolhidosdiferentesprincpios para reger a aplicao das regras. O estudo longo, mas possvel com segurana dizer que as ideias so bastante similares s de Pound (Dickinson discute casos de responsabilidade civil e princpios desse ramo do direito). Emoutroestudo,publicadonoanoseguinte,Dickinsonfazreferncia maioroumenorvaguezadasregras:Muitasregras,contudo,nosoassim especfcas, dizia ele, dando como o mais familiar exemplo de regra que permite considervel latitude quanto ao que pode ou no ser includo em seu mbito [de aplicao] a regra bsica da responsabilidade civil por negligncia no emprego das diligncias devidas conforme as circunstncias.39Aindaumanodepois,1931,outroestudodeDickinsonmerecemeno.O ttulo,LegalRulesTheirApplicationandElaboration,sugestivo.Dickinson distingue elaborao e aplicao das regras (rules) e parece derivar de Pound amesmaformadeargumentaosobreasregraseosprincpios,bemcomo sobre o carter authoritative dos preceitos.40 O ponto que importa aqui este: Dickinson refere que h regras mais ou menos gerais, e sua elaborao pode dependerderaciocniostantodebaixoparacimacomoocontrrio,41eque o processo de aplicao da regra envolve o mesmo procedimento tanto para regras mais gerais quanto mais especfcas; a explicao sobre o que um juzo jurdico de aplicao de regras , em essncia, a mesma explicao dada por L. Lopes, sem qualquer recurso a distines artifciais entre regras e princpios ou pesos ou aplicaes lgicas. Pois bem. Qual a relevncia de toda essa histria para a compreenso de regras e princpios em Dworkin? O primeiro ponto a enfatizar simples, e a esta altura deve j ter sido apreendido: as ideias de Dworkin sobre regras e princpios apresentadas em The Model of Rules I em 1967 tinham pouco de novo no mbito do direito norte-americano. Mais que isso, se pensarmos um pouco alm e conhecermos ahistriaataquicontada,talvezpossamoscompreendermelhoraresposta 39DICKINSON, John. Legal Rules Their Functon in the Process of Decision. p. 852.40Ver DICKINSON, John Dickinson. Legal Rules: Their Applicaton and Elaboraton. University of Pennsylvania Law Review, v. 79, p. 1052-1096, June 1931, especifcamente p. 1055-6.41DICKINSON, John Dickinson. Legal Rules: Their Applicaton and Elaboraton. p. 1058.Disponvel em: www.univali.br/periodicosDoi: 10.14210/nej.v19n1.p285-320 304de H.L.A. Hart s crticas de Dworkin fornecida no Ps-escrito de O Conceito de Direito, no qual Hart concede que falhou ao no mencionar os princpios na sua obra seminal. Penso que devamos entender assim essa concesso: algum com as pretenses analticas de Hart, herdeiro da flosofa da linguagem ordinria de Oxford poca, simplesmente deu curso linguagem ordinria da common law ao centrar sua anlise do direito como sendo um conjunto de regras. claro que nessas regras estariam englobados os princpios, i.e., regras mais gerais.Masaquijestamosvivendonaeradworkiniana.Equemmelhorexplicar as impropriedades da teoria de Dworkin na tradio anglo-americana Joseph Raz, muito cedo, em 1972, em artigo intitulado Legal Principles and the Limits of Law. Os argumentos de Raz (que podem gerar certa confuso, verdade, porque oautor usatermosintercambiveiscomolaw,lawsenormsdeformasvrias), raramente foram cuidadosamente escrutinados pela doutrina nacional, embora o artigo seja mencionado, sem mais, aqui e ali.42 Vou explorar o referido artigo brevemente no prximo item. interessante notar que muitas das suas ideias se assemelham s de L. Lopes, cujos insights permanecem em guia.2 RAZ, DWORKIN, PRINCPIOS E REGRASJoseph Raz faz duas observaes dignas de nota para o que nos interessa. A primeira diz com o que ele chama individuao (individuation), recuperado dos Captulos IV e VI da sua tese de doutoramento em Oxford, The Concept of a Legal System, publicado em 1970.43 Em suma, a individuao da norma jurdica tarefa do flsofo do direito em primeiro lugar; e essa tarefa, diz Raz, dupla: o terico 42Este estudo de Raz passou a ser citado por H. vila s recentemente (Teoria dos Princpios. 2011, p. 131, nota 174; e 2013, p. 139, nota 177), mas no comentado pelo autor. Anote-se que SILVA, Virglio Afonso da. A Cons-ttucionalizao do Direito. So Paulo: Malheiros, 2005, p. 31, se refere ideia de Raz sobre regras e princpios, mas menciona obra posterior de Raz (Practcal Reasons and Norms, 1975), na qual a distno desconsiderada e meramente enunciada por Virglio. DIMOULIS, Dimitri; LUNARDI, Soraya Garpareto. O Positvismo Jurdico Diante daPrincipiologia.In:DIMOULIS,Dimitri;DUARTE,cioOto.TeoriadoDireitoNeoconsttucional:superaoou reconstruo do positvismo jurdico? So Paulo: Mtodo, 2008, p. 179-197, mencionam na p. 186 o artgo de Raz apenas para servir como evidncia da tese correta, penso eu , sustentada pelos autores brasileiros, de que os positvistas aceitam os princpios jurdicos. Embora no tenha sido objeto de anlise especfca, A. Travessoni retra concluses apropriadas do artgo de J. Raz. Ver TRIVISONNO, Alexandre Travessoni Gomes. Princpios Jur-dicos e Positvismo Jurdico: as crtcas de Dworkin a Hart se aplicam a Kelsen? p. 188-9.43Uso a 2. ed., no modifcada, de 1980. Essa ideia retrada por Raz de Kelsen e Bentham. Nenhum dos dois ser aqui tratado.Revista Novos Estudos Jurdicos - Eletrnica, Vol. 19 - n. 1 - jan-abr 2014ISSN Eletrnico 2175-0491 305do direito deve formular (1) os critrios pelos quais ser determinada a identidade do material jurdico dotado de autoridade (authoritative legal material) e (2) os princpiosdeindividuaodasnormas,paradeterminarquantodamatria contida no sistema como um todo servir para construir o direito.44 Simplifcando muito,oqueRazpretendedizerqueaconstruodeumsistemajurdico edasnormasjurdicas,quaisquernormas,regrasouprincpios,sejaoque signifquem depende de uma bastante complexa, varivel e intrincada relao entre o material jurdico dotado de autoridade ou fonte jurdica autoritativa (authoritative legal material) encontrada em cada sistema jurdico. Diz Raz:Todateoriasobreasespcieslgicasdenormaspressupeuma doutrinadaindividuaodasnormas,eviaderegraelapodeser atacada ou defendida somente atacando ou defendendo sua implcita doutrina da individuao.45 O ponto para o qual Raz chama ateno aqui o de que a estrutura interna de um sistema jurdico, por um lado, e a individuao do que compe esse sistema denormas,poroutro,quedeveserdiscutido;docontrrio,observouRazh mais de quarenta anos, falar no status ou no peso dos princpios no faz sentido. EoprprioRazesclareceoponto:algumasvezesascortesfazemrefernciaa princpios, ou anunciam princpios, que nada mais so do que uma breve aluso a um conjunto de regras. Por exemplo, algum dir que nos USA (ou no Brasil) existe oprincpiodaliberdadedeexpresso;perguntandooqueissosignifca,esse algum responder que as nicas normas estabelecidas contra essa liberdade se referem segurana militar, e que a censura de flmes, livros e teatro justifcam-se na proteo s crianas e aos adolescentes, que h detalhada regulao normatizando oacessomdiaparatodosossegmentosdasociedade,etc.Ouseja,continua Raz, a explicao sobre o que seja o princpio pode ser vista como um resumo de um grande nmero de normas (a great number of laws), e no a assertiva sobre o contedo de uma norma isolada (a single law). Outra pessoa, se perguntada, pode dizer, contrastando com a primeira, que o princpio da liberdade de expresso incorporado no sistema jurdico, porque o sistema contm uma lei determinando s 44RAZ, Joseph. The Concept of a Legal System: An Introducton to the Theory of Legal System. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 1980. p. 72.45RAZ, Joseph. Legal Principles and the Limits of Law. Yale Law Journal, v. 81, p. 823-854, 1972, citao da p. 827.Disponvel em: www.univali.br/periodicosDoi: 10.14210/nej.v19n1.p285-320 306cortes e aos servidores pblicos que protejam a liberdade de expresso em todos os casos, mesmo se no governados por regras especfcas. H.L.A. Hart entende, dizRaz,queDworkinempregaprincpiossomentenosegundocaso,masque Dworkin esquece totalmente o primeiro exemplo, o qual utilizado pelas cortes; da que a referncia a princpios enganosa.46Opontoaqui,segundoRaz,justamentesaberquaisosprincpiosde individuao seria melhor adotar.47 E neste passo os exemplos de Raz so em tudo similares aos exemplos de Karl Engish, citados por Lima Lopes ao sustentar que Dworkin est errado ao referir que os princpios so aplicveis por ponderao, enquanto que as regras, por subsuno. Os exemplos referem-se ao direito penal (leso corporal em Raz; homicdio em L. Lopes). O ponto de ambos demonstrar quehumamiradedejuzosdequalifcaodomaterialjurdicodotadode autoridade (a linguagem de Raz) que ajudaro a construir a regra aplicvel ao caso concreto. Mas fquemos abaixo com o raciocnio do jurista brasileiro.Lima Lopes entende,48 com base em Engish, que o problema estar sempre na construo da premissa menor, na qual ser preciso verifcar a ocorrncia do fato previsto na norma, e essa questo de verifcao do fato (i.e., construo da premissa menor) abranger os problemas da classifcao e da interpretao, osquaisteroosmesmoscontornos,sejanasregras,sejanosprincpios. Estes,repetindoaideiajexpostaantes,seriamapenasregrasmaisgerais.49 Oproblemasersempre,dizL.Lopes,verifcarapertinnciadocasoclasse. Paraexemplifcaroponto(qualseja,odequetantoregrasquantoprincpios dependemdejuzosiguais,deconstruodapremissamenor),L.Lopeslana mo de um exemplo que primeira vista parece simplista: premissa maior: matar algum,pena20anos>>premissamenor:AmatouB>>concluso:A sofrer pena. O raciocnio sempre ser assim, diz L. Lopes; no importa o que se 46RAZ, Joseph. Legal Principles and the Limits of Law. p. 828-9. Raz trabalha com o exemplo da liberdade de expres- Raz trabalha com o exemplo da liberdade de expres-so, suponho, porque um dos exemplos que Dworkin usa em Levando os Direitos a Srio (DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. p. 90) para referir-se a princpios como proposies que descrevem direitos. Para uma viso igualmente crtca da teoria dualista princpios=balanceamento vs. regras=subsuno, ver POSCHER, Ralf. Insights, Erros and Self-Misconceptons of the Theory of Principles. p. 438-41. 47RAZ, Joseph. Legal Principles and the Limits of Law. p. 831.48LOPES, Jos Reinaldo de Lima. Juzo jurdico e a falsa soluo dos princpios e das regras. p. 52-3.49A estruturaidntcaentre regrase princpios tambm defendidaporPOSCHER,Ralf.Insights, Erros and Self-Misconceptons of the Theory of Principles. passim, especifcamente p. 433 e 438.Revista Novos Estudos Jurdicos - Eletrnica, Vol. 19 - n. 1 - jan-abr 2014ISSN Eletrnico 2175-0491 307decida juridicamente, o ponto ser sempre a construo da premissa menor, i.e., saber se A matou B no sentido jurdico. Ele pode ter agido em legtima defesa, por exemplo,parafcarmosnasaparentestrivialidades.Precisareientointerpretar as normas (regras ou princpios ou o que for) de legtima defesa para saber se houve mesmo, no sentido jurdico, um homicdio.50 Podemos testar os argumentos complicando os exemplos e tornando mais difceis os casos. Qual a normatividade que eu retiro do preceito constitucional que diz que a sade um direito social? No que me ajuda eu dizer que esse preceito um princpio e no uma regra? Qual o real ganho de racionalidade o intrprete tem se souber de antemo que o princpio tem uma dimenso de peso e que, se fosse uma regra, ela seria aplicada maneira tudo ou nada? claro que terei de examinar os demais preceitos do ordenamento jurdico para ver ao fnal e o processo de interpretao,deindividuao,declassifcaopodeserlongoqualregrade direito, para fcarmos com a linguagem da common law antiga, aplicvel. Ora,oproblemadaclassifcaojurdica,quemuitasvezesnospassa despercebido,idntico,dizL.Lopes,aodainterpretao.Eisso,oformar juzosjurdicosviaclassifcao,ouinterpretao(ou,nalinguagemdeRaz, individuao),quedecidiramaioriadoscasos;issojustamenteoquens, operadores do direito tericos e prticos, fazemos todos os dias. Para fcar com alinguagemconsagrada,oscasosdifceis(etambmosfceis)so,viade regra, casos de classifcao, de individuao da regra de direito, entendida no mais lato sentido, que deve ser aplicada. Lano aqui um exemplo do momento, to complexo quanto importante para vida de todos os cidados brasileiros e tambm do Estado brasileiro, que talvez chegue aos tribunais: no fnal do sculo passado, iniciou-se no Brasil o Programa de Apoio Reestruturao e ao Ajuste Fiscal dos Estados. Em apertada sntese, deu-se o seguinte: a fm de evitar que a crtica situao fnanceira dos Estados-membros (doravante estados) viesse a comprometer o plano de estabilizao econmicapostoemmarchanasegundametadedosanos1990,aUnio Federal, autorizada pelo art. 1 da Lei 9.496, de 11.09.1997, assumiu uma srie de 50Anote-se a concordncia de MacCormick sobre o dedutvismo como mtodo de raciocnio jurdico (ver MAcCORMI-CK, Neil. Rhetoric and the Rule of Law: A Theory of Legal Reasoning. Oxford: Oxford University Press, 2005. cap. 4).Disponvel em: www.univali.br/periodicosDoi: 10.14210/nej.v19n1.p285-320 308obrigaes fnanceiras (dvidas pblicas mobilirias, emprstimos tomados junto Caixa Federal, obrigaes decorrentes de operaes de crdito ou contratual dosEstados-membroseoutras)dosestados;emcontrapartidaassunoda dvidapelaUnio,operou-seumrefnanciamentodadvidadessesestados; esse refnanciamento deu-se por meio de contratos, negociados entre Unio e cada um dos estados, pactuando-se o pagamento da dvida em 360 prestaes mensaissucessivas,ajurosquevariamentre6%a7,5%aoano,atualizados monetariamenteporumdeterminadondicedecorreo(nocaso,oIGP-DI). Em palavras simples: o governo federal assumiu as dvidas estaduais e fnanciou seus pagamentos por trinta anos; ao frmar os contratos de fnanciamento com os estados, a Unio negociou caso a caso e passou a ser credora de dvidas, que vm sendo pagas desde ento a uma taxa de juros que varia de 6% a 7,5%, mais correo monetria pelo IGP-DI, comprometendo a receita corrente lquida dos estados em valores que variam de 11,5% e 15%. Ocorre que hoje, o ndice de reajuste pactuado acabou por tornar essa dvida pblica dos estados ainda mais impagvel do que era quando os credores eram os bancos privados; a diferena que, agora, o credor a Unio Federal. Seria possvel aplicar aqui a teoria da impreviso ou qualquer outra concepo havida na doutrina doscontratospblicos?Aperguntachavepassaaser:queespciedecontrato este?Pblicoouprivado?Adependerdaresposta,i.e.,daclassifcaodesse contrato, abrem-se possibilidades diversas de soluo do caso, com a aplicao de institutos distintos para cada hiptese, se contrato pblico, ou se contrato privado (ou,comounsjaventaram,contratoconstitucional).Amiradedenormas jurdicas aplicveis direcionar a interpretao do operador do direito num longo processo de individuao que no se resolver simplesmente com a distino entre regras de aplicao tudo ou nada e princpios com dimenso de peso. Haver regras mais especfcas ou mais gerais (princpios), tanto na Constituio Federal quanto na vastssima legislao ordinria, que devero ser aplicadas por meio de um complexo, difcil e lento processo de individuao aser feito pelo intrprete; as defnies ou os critrios diferenciadores entre regras e princpios dworkinianos no faro diferena signifcativa na resoluo desse caso difcil.51 51Ofatodeesteproblemaconcretoestarsendohojeresolvidonaesferapolticatalvez uma prova de que os princpios jurdicos tm menos fora do que se imagina. H imenso Revista Novos Estudos Jurdicos - Eletrnica, Vol. 19 - n. 1 - jan-abr 2014ISSN Eletrnico 2175-0491 309claroquequalqueroperadordodireitotericoouprticojsedeparou com uma encruzilhada classifcatria e viu que era daquela classifcao que viria a resposta. E qual a importncia disso para o direito? Ora, so as vrias regras jurdicas, mais ou menos gerais, do sistema que conduziro a resposta jurdica a um ou outro caminho. Esse caminho pode ser intrincado o bastante para permitir, nalguns casos, mais de uma soluo (embora ainda alguns defendam a tese da nica resposta correta, que nem mesmo Dworkin mais uma vez mantm; mas essa outra conversa). O ponto aqui, entretanto, lembrar que todo esse processointerpretativo,quenadamaisdoqueodia-a-diadosoperadores do direito, vem a ser o que Raz chama de individuao, a qual explica as inter-relaes sistemticas entre as vrias partes do sistema jurdico. VoltemosaRazeL.Lopes.precisosalientarque,primeiravista,Raze L.Lopesparecemnoconcordaremtudo.Raz,porexemplo,contrariamente aL.Lopes,afrmaexpressamentequeDworkinestcertoemsustentarhaver uma distino lgica entre regras e princpios (embora Raz no concorde com afaltadedimensodepesoparaasregras,quetambmpodemconfitar).52 Raz entende, contudo, que as normas (laws) geralmente chamadas de regras nososempredomesmotipo,omesmoocorrendocomasnormas(laws) chamadasprincpios.Oquediferenciaasregrasdosprincpios,paraRaz(e isso ocorreria tanto nas normas jurdicas quanto nas normas nojurdicas, ponto que Raz anuncia, mas propositadamente no aborda neste artigo), o carter de ao prescrita (character of the norm-act prescried): as regras prescreveriam atos relativamente especfcos, enquanto que os princpios prescreveriam aes altamenteinespecfcas.53Vistasassimascoisas,parecequenoh,porm, muitadiferenaentreRazeL.Lopes,umavezqueesteinclusivefaz,depois, consideraes sobre o carter provisrio dos princpios. esforo dos Estados-membros mais endividados (SP, RS, MG, para citarmos trs grandes) em conseguir repactuar a dvida com a Unio Federal. At quando entrego este artigo publicao (novembro de 2013), a soluo de compromisso parece bem encaminhada no Congresso Nacional, aguardando ainda votao.52Na minha opinio, a razo aqui est com L. Lopes. No mesmo sentido, ver POSCHER, Ralf. Insights, Erros and Self-Misconceptions of the Theory of Principles. p. 433-8 e 449.53RAZ, Joseph. Legal Principles and the Limits of Law. p. 838. Neste ponto, impressiona a semelhana das posies de J. Raz, em 1972, com as defnies de regras e princpios propostas por de H. vila desde sempre (ver VILA, Humberto. Teoria dos Princpios, 2003, p. 70).Disponvel em: www.univali.br/periodicosDoi: 10.14210/nej.v19n1.p285-320 310Nada do que foi dito signifca que no haja princpios no direito, menos ainda que eles no sejam utilizados na interpretao jurdica. Obviamente no isso.54 Como refere expressamente um autor alemo crtico da teoria dos princpios de AlexyeDworkin,[Joseph]Esser,Dworkineoutroscorretamentesalientamque princpios podem ter importante papel nas decises jurdicas, especialmente em casos difceis nos quais standards jurdicos no podem ser aplicados por subsuno oumerasubsuno.55Razexpressamentereconhecequehprincpios(bem compreendidos)nodireito,assimcomoL.Lopesofaz(humitemnotrabalho deL.Lopestratandodisso,item1.3.,noqualsodadoscomoexemplosde princpios em sentido prprio a boa-f e a isonomia).56 Raz inclusive refere cinco funes aos princpios (sem dizer se so morais ou jurdicos): 1. Fundamento para interpretao das normas (laws). 2. Fundamento para alterao das normas (laws). 3. Fundamento para excees particulares das normas (laws). 4. Fundamento para construir novas regras. 5. nico fundamento para ao em casos especfcos.57 Os pontos importantes so estes: (1) salvo no ltimo caso, os princpios operam por meio da mediao de regras; (2) dada a diferena entre o grau de especifcidade dadeterminaodacondutadevidaentreregraseprincpios,osvrioscampos jurdicos podem, por sua natureza, preferir muitas vezes as regras aos princpios, i.e., regular uma rea com mais ou menos preciso. Mas isso sempre uma questo de poltica (policy), o que abriria outro fanco ao debate.58 Permitam-sealgumasquestesbastantesimpleseattriviais:serqueo princpiodalegalidadeumprincpiodemesmaestruturanormativaqueo da igualdade ou da boa-f? E os princpios da efcincia e da moralidade daAdministraoPblica(art.37,caput,CF/88)?Eesses,comparadosaoda razoabilidade? Ser que a presuno de inocncia (ningum ser considerado 54No mesmo sentdo, ver POSCHER, Ralf. Insights, Erros and Self-Misconceptons of the Theory of Principles. p. 438.55POSCHER, Ralf. Insights, Erros and Self-Misconceptons of the Theory of Principles. p. 441. O autor corretamen- O autor corretamen-te refere que certamente tambm mrito da teoria dworkiniana ter rejeitado as simplifcaes positvistas da deciso judicial, bem como ter mostrado que o argumento de princpiopode servir para mostrar que o direito pode abrigar conceitos morais e tcos, o que nada tem a ver com a tese equivocada de que a moral se insere no conceito de validade jurdica por meio de princpios (p. 448-9). 56R. Poscher refere, critcando a teoria de R. Alexy, que o princpio da boa-f no requer qualquer otmizao, mas simplesmente obedincia estrita, no estando sujeito a qualquer balanceamento (POSCHER, Ralf. Insights, Erros and Self-Misconceptons of the Theory of Principles. p. 442).57RAZ, Joseph. Legal Principles and the Limits of Law. p. 838-841.58Nesseponto,comosabemos,Dworkinfoiduramentecritcadonasuapropostadedividirprincpiosepoltca. Mesmo que eu estvesse preparado para enfrent-lo com propriedade, no temos tempo nem espao para isso.Revista Novos Estudos Jurdicos - Eletrnica, Vol. 19 - n. 1 - jan-abr 2014ISSN Eletrnico 2175-0491 311culpado at o trnsito em julgado de sentena penal condenatria art. 5, LVII, CF/88) um princpio cuja normatividade equivale do chamado princpio do devido processo legal (ningum ser privado da liberdade ou dos seus bens sem o devido processo legal art. 5, LIV, CF/88) ou o da livre apreciao da prova nos processos penal e civil? Ser que os princpios da proibio de transferir mais direitos do que possui ou, para fcarmos no exemplo clssico de Dworkin Riggs v. Palmer (o caso da herana do rapaz que matou o av),59 a proibio de locupletar-se da prpria torpeza (nemo locupletari debet cum aliena injuria vel jactura; no Digesto, livro V, ttulo III, fragmento 38, h preceito semelhante, de Paulo: non debet petitor exalienajacturalucrumfacere,i.e,opostulantenodevetirarlucrodajactura alheia)60,equivalem,emnormatividade,aoprincpiodaconfanalegtima? Em 9 de julho de 1926 o STF julgou por maioria de votos o Recurso Criminal n 552,naqualreferiuexpressamenteserprincpiofundamentaldonossoregime constitucional a proeminncia da Constituio e leis federais sobre as Constituies e leis estaduais.61 O caso tratava de imunidades parlamentares de deputados da Paraba que contrariavam as leis federais; para o STF, isso no poderia ocorrer em razo de um princpio. Os exemplos poderiam ser multiplicados ad aeternum e de resto no nenhuma novidade dizer que alguns desses anunciados princpios na verdade ensejam regras, se usada a classifcao de R. Dworkin.Aqui crucial saber do que estamos tratando quando falamos de princpios jurdicos e quando usamos essa expresso. Devemos ter sempre em mente o alerta de Joseph Raz: nem tudo que parece um princpio jurdico um princpio jurdico, aomenosnonosentidoqueoProfessorDworkintememmente.62Voltamos ao ponto de partida, e eu cito novamente Raz, que no incio do seu artigo lembra algo to trivial quanto crucial: Classifcar as normas em categorias distintas tem sido sempre uma das maiores tarefas da flosofa do direito.63 Mais uma vez temos aqui o problema da classifcao (a classifcao orientar a deciso) e da estrutura interna do sistema jurdico, arquitetura essa que ser sempre uma opo poltica. 59DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. p. 23.60Os exemplos latnos e as tradues so de MAXIMILIANO, Carlos. Hermenutca e Aplicao do Direito. 20. ed. Rio de Janeiro, Forense, 2011 [1940]. p. 212. 61Publicado em Revista de Direito (Bento de Faria), v. 84, p. 476-82, jun. 1927.62RAZ, Joseph. Legal Principles and the Limits of Law. p. 828. No mesmo sentdo, alertando para a polissemia do termo princpio, ver POSCHER, Ralf. Insights, Erros and Self-Misconceptons of the Theory of Principles. p. 442.63RAZ, Joseph. Legal Principles and the Limits of Law. p. 825.Disponvel em: www.univali.br/periodicosDoi: 10.14210/nej.v19n1.p285-320 312Seessasobservaesfazemsentido,aquestopassaentoaser:qual anormatividadedosprincpiosjurdicos?64interessanteanotarqueRaz sugereumadiferenaentreosprincpiosdotadoseosnodotadosde normatividade. E que Dworkin parece preocupar-se somente com os dotados denormatividade,ouseja,princpiosdestinadosaorientaracondutaecriar obrigaes.Masprecisamosclassifc-loseinterpret-losnumcomplexode normas que raramente permitem, se permitem nalgum caso, concluses fxas e nicas, no bastando a meno ao lugar-comum representado por duas frases soltas no ar, quais sejam, a de que as normas jurdicas dividir-se-iam em duas espcies, princpios e regras, e a de que os princpios so normas e por isso seu descumprimento pode acarretar sanes jurdicas. Oponto,parece-me,oproblemadeidentifcarqualfunocumpremas regras jurdicas mais ou menos gerais. Essa funo sempre depender da complexa arquitetura normativa na qual o princpio jurdico est inserido, e sua correta normatividadegeralmentenodependerdaconsideraoisoladadeumas regradedireito(nosentidolato)aplicvel,menosaindadeumsupostamente latente princpio jurdico ou moral (ou um conjunto deles) a ser eventualmente construdo,segundoumamticaintegridadeapresentadadoaltoporum hermeneuta que tem, ao contrrio dos demais, uma iluminada viso flosfca que lanar sobre o caso concreto uma melhor luz. Porfm,querominimamenteabriroutralinhaderaciocnioaindatendo osprincpiosdeDworkincomoobjetodoquechameiprovocativamente dedesmistifcao.Voujuntar,numasconversa,astemticasprincpios, positivismo e moral, tema de fundo da obra de Dworkin. claro que a ideia aqui no desfazer o n cego que se tornou o debate entre juspositivistas e jusnaturalistas.65

64Novamente preciso anotar que H. vila, a partr da 12. ed., cuida do assunto e faz o mesmo alerta (VILA, Hum-berto. Teoria dos Princpios. 12. ed. So Paulo: Malheiros, 2011, p. 122-32, item 2.6, acrescido de longo pargrafo na 13. ed., de 2012, p. 130-41, mesmo item 2.6, reproduzido sem qualquer alterao na 14. ed., de 2013, p. 130-41). No surpreende o ttulo que o autor escolheu ao subitem: a fora normatva dos princpios.65Um exemplo talvez baste: o juspositvista de Oxford John Gardner afrmou em 2001 que a tese segundo a qual no h conexo necessria entre direito e moral absurda e nenhum jusflsofo digno de nota jamais a endos-sou da forma como referida (GARDNER, John. Legal Positvism: 5 Myths. American Journal of Jurisprudence, v. 46, p. 199-227, 2001, citao da p. 223). Revista Novos Estudos Jurdicos - Eletrnica, Vol. 19 - n. 1 - jan-abr 2014ISSN Eletrnico 2175-0491 3133 LARRY ALEXANDER, PRINCPIOS JURDICOS, POSITIVISMO E MORALEmbora os positivistas reconheam a existncia e a importncia de princpios jurdicos na metodologia jurdica, h excees.66 A principal delas, a posio de Larry Alexander, a que apresentarei aqui resumidamente. A ideia de apresentar essaexceodesmistifcaropensamentodeDworkinnumsentidoum poucodiferente:pretendosimplesmentemostrarumaposiopositivistaque explicitamente incorpora o raciocnio moral no raciocnio jurdico sem que isso sejaconsideradoumainovaoouumarevoluoouumagrandenovidade metodolgica. Trata-se de uma leitura peculiar da concepo de princpios de R. Dworkin, mas no exporei as ideias de L. Alexander porque concordo com elas, e sim porque elas destoam da viso comumente aceita e porque, repito, podem contribuir para o que apelidei de desmistifcao. Larry Alexander escreve muitas vezes a quatro mos, e os parceiros trocam. Vou-me referir a L. Alexander somente. Desde que escreveu, com Kenneth Kress, artigo intitulado Against Legal Principles, publicado em 1995 e republicado dois anos depois,67 L. Alexander vem sustentando basicamente os mesmos argumentos numasriedetrabalhos,mormentedoislivros,TheRuleofRules,de2001,e Demystifying Legal Reasoning, de 2008, ambos escritos com Emily Sherwin. Alexander sustenta que os princpios so logicamente incapazes de impor limites ao raciocnio jurdico, e por isso os juzes no podem usar os princpios jurdicos como razes para decidir casos.68 Mais que isso, utilizar princpios jurdicos pode, de fato, diz o autor, prejudicar a qualidade do processo decisrio. O argumento bsicoeste:princpiosjurdicosincorporamoerromoralsemosbenefcios compensatriosderegrassrias.69Seosprincpiosjurdicosincorporamerros 66D. Dimoulis e S. Lunardi no perceberam a exceo. Em artgo escrito para sustentar de resto corretamente que os positvistas sempre aceitaram os princpios jurdicos, provocaram: at prova em contrrio, no h posit-vistas assumindo uma postura que ignore ou menospreze os princpios jurdicos positvados (DIMOULIS, Dimitri; LUNARDI, Soraya Garpareto. O Positvismo Jurdico Diante da Principiologia. p. 186).67Alexander & ALEXANDER, Larry; KRESS, Kenneth. Against Legal Principles. Iowa Law Review, v. 82, p. 739-786, 1997. 68Ver ALEXANDER, Larry; SHERWIN, Emily. Demystfying Legal Reasoning. p. 98.69ALEXANDER, Larry; SHERWIN, Emily. Demystfying Legal Reasoning. p. 99.Disponvel em: www.univali.br/periodicosDoi: 10.14210/nej.v19n1.p285-320 314moraiseosperpetuam,entoosprincpiosjurdicos,emvezdeaperfeioaro sistema jurdico, acabam por prejudicar a qualidade do processo decisrio. Por que os princpios jurdicos incorporariam erros morais? Essa premissa, que Alexander fxa j no seu primeiro trabalho sobre o assunto em 1995 e no mais abandona, precisa de explicao e est aqui a peculiaridade da leitura de L. Alexander referida acima. Aparentemente, essa leitura vai de encontro ao senso comum (brasileiro?) segundo o qual os princpios jurdicos dworkinianos de certa forma equivalem a princpios morais. L. Alexander chama ateno para o fato de que Dworkin expressamente no sustenta isso.70 Dworkin desenvolve o raciocnio sobre os princpios no de uma s vez, mas ao longo de sua primeira coletnea de artigos, Taking Rights Seriously, e depois retoma o ponto em Laws Empire. Em Taking Rights Seriously, a compreenso do que sejam e como operam os princpios jurdicos no dada integralmente no captulo 2 (republicao do artigo The Model of Rules I, de 1967), mas, lembra L. Alexander, deve esperar at o captulo 4 (Hard Cases),71 quando Dworkin esclarece como operam os princpios jurdicos, os quais no so o mesmo que princpios morais (embora passem por um teste moral); menos ainda os princpios jurdicos so equivalentes moral pessoal de Hrcules, o juiz ideal de Dworkin.72 LarryAlexanderrefereque,emDworkin,hduasmaneirasdedistinguiros princpiosjurdicosdosprincpiosmorais:(1)osprincpiosjurdicosdevemter alguma sustentao institucional, i.e., devem estar refetidos de alguma maneira naconstituio,nasleis,nasdecisesjudiciaisouadministrativas;(2)osjuzes devemolharparatrsedescobrirnaintegridadedosprecedentes( judiciaise administrativos)edasleis(constitucionaiseinfraconstitucionais)quaissoos princpios jurdicos que melhor se ajustam (ft) histria e tradio do direito analisado para ento aplic-los sob a sua melhor luz moral.73 Aqui temos vrios 70Ver ALEXANDER, Larry; SHERWIN, Emily. The Rule of Rules: Morality, Rules, & Dilemas of Law. Durham: Duke Uni-versity Press, 2001. cap. 8.71ALEXANDER, Larry; SHERWIN, Emily. The Rule of Rules. p. 159-61.72Para as primeiras observaes do autor sobre o ponto, ver DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. p. 123-30. Ver tambm o artgo esclarecedor de POSCHER, Ralf. Insights, Erros and Self-Misconceptons of the Theory of Principles. p. 431.73Para a ideia de ajuste (ft) na teoria dworkiniana de direito como integridade, ver DWORKIN, Ronald. Laws Empire. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1986, p. 254-8.Revista Novos Estudos Jurdicos - Eletrnica, Vol. 19 - n. 1 - jan-abr 2014ISSN Eletrnico 2175-0491 315pontos que poderiam gerar controvrsia (descobrir, se ajustam, melhor luz), mas a nfase a ser dada a soma dessa dimenso histrica do direito, esse olhar paratrs,comaintegridadedainterpretao,asquaisseriam,paraDworkin, restries que mostram o quanto exagerada a queixa comum de que a leitura moraldaosjuzesumpoderabsolutoparaimporatodosnssuasprprias convicesmorais.74SeriaaprpriateoriadeDworkin,portanto,queestaria impondo a si mesma as restries advindas da histria dos precedentes e das leis. Simplifcando muito, a crtica de Alexander remonta ao seguinte: o prprio Dworkin que prope se deve o juiz decidir com base na melhor interpretao possvel retirada dos princpios contidos nos precedentes e nas leis; mas esses princpios,porestaremrestritossdecisesjtomadasedevendoaelasse ajustar (ft), podem obrigar o juiz a ter que tomar decises moralmente erradas. Alexanderreferequeosprincpiosjurdicossoimperfeitosdopontodevista moral,porquesoconstrudossobredecisesjudiciaisanterioresquepodem conter impropriedades morais; dessa forma, os princpios jurdicos so inferiores em relao ao raciocnio natural, que refete perfeitamente ideais morais.75Seassim,propeL.Alexander,entoomelhorafazersimplesmente abandonarosprincpiosjurdicosefcarcomosjconhecidosemelhores princpiosmorais.Emsuma:emnohavendoregrasoustandardsaserem aplicadosaocasoconcreto,bastaria,dizAlexander,aaplicaodeprincpios moraiscorretos.Emsuma,osprincpiosjurdicosnadateriamafazerna argumentao jurdica; pior, eles na verdade atrapalham, diz Alexander.Sempre trabalhando com a sua prpria interpretao do que Dworkin entenderia por princpio, Larry Alexander tambm faz coro aos vrios autores que criticaram a ideia de peso dos princpios, classifcao que Alexander diz se misteriosa: No h nada nas decises anteriores elas mesmas que possa determinar o peso do princpio jurdico.76 Nem o nmero de decises, nem o eventual peso moral de 74DWORKIN,Ronald.LawsEmpire.p.16-7.EssasrestriessoenfatzadastambmporMcCAFFERY,EdwardJ. RonaldDworkin,Inside-Out.CaliforniaLawReview,v.85,p.1043-1086,1997,especifcamentep.1052-3.Ver igualmente FRYDMAN, Benot. Les Sens des Lois: histoire de linterprtaton et de la raison juridique. 3me d. Bruxelles: Bruylant, 2011, p. 644.75ALEXANDER, Larry; SHERWIN, Emily. Demystfying Legal Reasoning. p. 99.76ALEXANDER, Larry; SHERWIN, Emily. Demystfying Legal Reasoning. p. 95.Disponvel em: www.univali.br/periodicosDoi: 10.14210/nej.v19n1.p285-320 316um princpio jurdico pode ajudar aqui, porque princpios morais corretos no tm como ajudar princpios jurdicos baseados em decises morais incorretas. Ademais, diz Alexander, no h nenhuma mtrica para aquilatar a dimenso do ajuste (ft) proposto por Dworkin. Alexander se engaja ento em tentar demonstrar, por longo exemplo,comodifcilretirar,deumasriedecasossimilarescujasregrasso contraditrias, qual o princpio jurdico correto. A concluso do autor de que num sistema de princpios jurdicos, no podemos ter regras srias.77CONSIDERAES FINAISNoinciodoseuartigode1972Razlembraalgototrivialquantocrucial: Classifcar as normas em categorias distintas tem sido sempre uma das maiores tarefas da flosofa do direito.78 Dworkin sempre soube disso e partiu de um dito geral da common law, o de que direito so regras jurdicas aplicveis ao caso concreto,paraconstruirumateoriajurdicaancorada emprincpiosjurdicos, os quais incorporariam ideias morais da comunidade poltica em questo. No pretendinestebreveensaiorefutaraintegralidadedateoriadodireitodeR. Dworkin;busqueisimplesmentecontextualizarsuateoriadosprincpiosno ambientequeelanasceuesedesenvolveu,apontandodepoisalgumasdas principais crticas que a ela se levantaram. No h dvidas de que Dworkin, ao colocar os princpios jurdicos no centro da cena, contribuiu para elevar o debate da teoria do direito na segunda metade dosculoXX,enfatizandopontosqueningumanteshaviafeito.Anovidade estava na nfase imposta funo dessas regras jurdicas mais gerais, os princpios jurdicos. Pessoalmente entendo que as ideias de Lima Lopes (e Joseph Raz) sobre os princpios jurdicos so essencialmente corretas, e que o insight fundamental do Professor Jos Reinaldo de Lima Lopes sobre os princpios jurdicos dez anos atrsdeveriaserlevadoasrio.79Nateoriadodireitomundoafora,muitosa levaram,80 mas a doutrina brasileira, com raras excees, parece alheia ao debate 77ALEXANDER, Larry; SHERWIN, Emily. Demystfying Legal Reasoning. p. 100.78RAZ, Joseph. Legal Principles and the Limits of Law. p. 825.79Se a teoria do direito de Dworkin se mantm de p sem a distno entre regras e princpios um outro problema. 80Referncias em POSCHER, Ralf. Insights, Erros and Self-Misconceptons of the Theory of Principles. p. 433, n. 28 Revista Novos Estudos Jurdicos - Eletrnica, Vol. 19 - n. 1 - jan-abr 2014ISSN Eletrnico 2175-0491 317e continua vendo nos princpios jurdicos um poder que eles no tm.Mesmo que sejam criticveis ou imprprios ou mesmo errados os argumentos deste estudo, ele pode ter um valor que o leitor de boa-f saber, espero, apreciar: o estudo talvez evite que o fosso que separa o debate anglo-americano/europeu do debate brasileiro sobre o assunto se torne um oceano tambm est a uma razo ao ttulo provocativo deste breve ensaio.Porfm,lembroqueDworkin,falecidoemfevereirode2013,eraumgenial polemista, um debatedor implacvel, um provocador instigante, e, mesmo que suas ideias, mormente sua teoria dos princpios, no tenham sido sempre seguidas e tenham sido, ao contrrio, criticadas com veemncia, nenhum jurista srio do mundo moderno as ignorou ao contrrio, sempre as levou a srio. A maior homenagem que podemos prestar ao Professor Ronald Dworkin, tenho certeza, , sem reverncia, continuar a apreciar criticamente os seus trabalhos, para que possamos construir uma teoria do direito elevada, como ele tentou fazer durante toda a sua longa e produtiva vida. Contextualizar sua obra e desmistifc-la, creio eu, seja ainda, no Brasil, um passo necessrio na direo dessa construo. REFERNCIAS ALEXANDER, Larry; KRESS, Kenneth. Against Legal Principles. Iowa Law Review, v. 82, p. 739-786, 1997.ALEXANDER, Larry; SHERWIN, Emily. Demystifying Legal Reasoning. New York: Cambridge University Press, 2008.______. The Rule of Rules: Morality, Rules, & Dilemas of Law. Durham: Duke University Press, 2001.VILA, Humberto. Teoria dos Princpios. So Paulo: Malheiros, 2003.______. Teoria dos Princpios. 12. ed. So Paulo: Malheiros, 2011.______. Teoria dos Princpios. 13. ed. 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