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1 A OPINIÃO PÚBLICA NÃO EXISTE 1 Pierre Bourdieu Primeiramente eu gostaria de deixar claro que o meu objetivo não é denunciar de uma forma mecânica e fácil as pesquisas de opinião, mas, sim proceder a uma análise rigorosa de seu funcionamento e suas funções. O que supõe o questionamento de seus três postulados implícitos. Qualquer pesquisa de opinião supõe que todo mundo pode ter uma opinião; ou, colocando de outra maneira, que a produção de uma opinião está ao alcance de todos. Mesmo sabendo que poderei me chocar com um sentimento ingenuamente democrático, contestarei este primeiro postulado. Segundo postulado: supõe-se que todas as opiniões têm valor. Acho que é possível demonstrar que não é nada disso e que o fato de se acumular opiniões que absolutamente não possuem a mesma força real, faz com que se produza artefatos sem sentido. Terceiro postulado implícito: pelo simples fato de se colocar a mesma questão a todo mundo, está implícita, a hipótese de que há um consenso sobre os problemas, ou seja, que há um acordo sobre as questões que merecem ser colocadas. Estes três postulados implicam, parece-me, toda uma série de distorções observadas mesmo quando todas as condições do rigor metodológico são preenchidas na coleta e na análise dos dados. Costuma-se freqüentemente fazer críticas técnicas às pesquisas de opinião. Por exemplo, coloca-se em dúvida a representatividade das amostras. Acho que no estado atual dos meios utilizados pelos escritórios de produção de pesquisas, a objeção não é muito fundamentada. Reprovam-lhes também o fato de colocar questões contendo viéses ou, mais ainda, de colocar viéses na formulação das questões: isto já é mais verdadeiro e freqüentemente a resposta é induzida através da maneira de se colocar a questão. Assim, por exemplo, transgredindo o preceito elementar da 1 Comunicação feita em Noroit (Arras) em janeiro de 1972 e publicada em Les Temps Modernes, 318, janeiro de 1973.

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A OPINIÃO PÚBLICA NÃO EXISTE 1

Pierre Bourdieu

Primeiramente eu gostaria de deixar claro que o meu objetivo não é

denunciar de uma forma mecânica e fácil as pesquisas de opinião, mas, sim

proceder a uma análise rigorosa de seu funcionamento e suas funções. O que

supõe o questionamento de seus três postulados implícitos. Qualquer

pesquisa de opinião supõe que todo mundo pode ter uma opinião; ou,

colocando de outra maneira, que a produção de uma opinião está ao alcance

de todos. Mesmo sabendo que poderei me chocar com um sentimento

ingenuamente democrático, contestarei este primeiro postulado. Segundo

postulado: supõe-se que todas as opiniões têm valor. Acho que é possível

demonstrar que não é nada disso e que o fato de se acumular opiniões que

absolutamente não possuem a mesma força real, faz com que se produza

artefatos sem sentido. Terceiro postulado implícito: pelo simples fato de se

colocar a mesma questão a todo mundo, está implícita, a hipótese de que há

um consenso sobre os problemas, ou seja, que há um acordo sobre as

questões que merecem ser colocadas. Estes três postulados implicam,

parece-me, toda uma série de distorções observadas mesmo quando todas

as condições do rigor metodológico são preenchidas na coleta e na análise

dos dados.

Costuma-se freqüentemente fazer críticas técnicas às pesquisas de

opinião. Por exemplo, coloca-se em dúvida a representatividade das

amostras. Acho que no estado atual dos meios utilizados pelos escritórios de

produção de pesquisas, a objeção não é muito fundamentada. Reprovam-lhes

também o fato de colocar questões contendo viéses ou, mais ainda, de

colocar viéses na formulação das questões: isto já é mais verdadeiro e

freqüentemente a resposta é induzida através da maneira de se colocar a

questão. Assim, por exemplo, transgredindo o preceito elementar da

1 Comunicação feita em Noroit (Arras) em janeiro de 1972 e publicada em Les Temps Modernes, 318, janeiro de 1973.

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construção de um questionário que exige que se "dê oportunidade" a todas as

respostas possíveis, omite-se freqüentemente nas questões ou nas respostas

propostas uma das opções possíveis, ou ainda, propõe-se muitas vezes a

mesma opção sob formulações diferentes. Existem todos estes tipos de

viéses e seria interessante se perguntar sobre as condições sociais que

propiciam seu aparecimento. Na maioria das vezes, eles têm a ver com as

condições em que trabalham as pessoas que produzem os questionários.

Mas devem-se principalmente ao fato de que as problemáticas fabricadas

pelos institutos de pesquisa de opinião estão subordinadas a uma demanda

de tipo particular. Assim, empreendendo a análise de uma grande pesquisa

nacional sobre a opinião dos franceses a respeito do sistema de ensino, nós

localizamos, nos arquivos de alguns centros de estudos, todas as questões

referentes ao ensino. Isto nos fez ver que mais de duzentas perguntas sobre

o sistema de ensino foram feitas depois de Maio de 68, contra menos de vinte

entre 1960 e 1968. Isto significa que as problemáticas impostas a este tipo de

organismo estão profundamente ligadas à conjuntura e dominadas por um

certo tipo de demanda social. A questão do ensino, por exemplo, só pôde ser

colocada por um instituto de opinião pública quando se tornou um problema

político. Vê-se imediatamente a distância que separa estas instituições dos

centros de pesquisas que engendram suas problemáticas, senão em céu

aberto, pelo menos com uma distância muito maior em relação à demanda

social sob sua forma direta e imediata.

Uma análise estatística sumária das questões colocadas nos mostrou

que a grande maioria se ligava diretamente às preocupações políticas do

"pessoal político". Se esta noite quiséssemos nos divertir brincando com

papeizinhos e se eu lhes dissesse para escrever as cinco questões que lhes

parecem mais importantes sobre o ensino, seguramente obteríamos uma lista

muito diferente da que obtemos a partir das questões que foram efetivamente

colocadas pelas pesquisas de opinião. A pergunta: "Deve-se introduzir a

política nas escolas secundárias?" (ou variantes) foi colocada com muita

freqüência, enquanto a pergunta: "Deve-se modificar os programas?" ou

"Deve-se modificar o modo de transmissão dos conteúdos?", raramente foi

colocada. Da mesma forma: "Deve-se reciclar os professores?". E tantas

questões que são muito importantes, pelo menos em outra perspectiva.

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As problemáticas que são propostas pelas pesquisas de opinião se

subordinam a interesses políticos, e isto dirige de maneira muito acentuada o

significado das respostas e, ao mesmo tempo, o significado dado à publicação

dos resultados, Em seu estado atual, a pesquisa de opinião é um instrumento

de ação política; sua função mais importante consiste talvez em impor a ilusão

de que existe uma opinião pública que é a soma puramente aditiva de opiniões

individuais; em impor a idéia de que existe algo que seria uma coisa assim

como. a média das opiniões ou a opinião média. A "opinião pública" que se

manifesta nas primeiras páginas dos jornais sob a forma de percentagens

(60% dos franceses são favoráveis à...), esta opinião pública é um artefato

puro e simples cuja função é dissimular que o estado da opinião em um dado

momento do tempo é um sistema de forças, de tensões e que não há nada

mais inadequado para representar o estado da opinião do que uma

percentagem.

Sabemos que todo exercício da força se acompanha de um discurso

visando a legitimar a força de quem o exerce; podemos mesmo dizer que é

próprio de toda relação de força só ter toda sua força na medida em que se

dissimula como tal. Em suma, falando simplesmente, o homem político é

aquele que diz: "Deus está conosco". O equivalente atual de "Deus está

conosco" é "a opinião pública está conosco". Tal é o efeito fundamental da

pesquisa de opinião: constituir a idéia de que existe uma opinião pública

unânime, portanto legitimar uma política e reforçar as relações de força que a

fundamentam ou a tornam possível.

Tendo dito no começo o que queria dizer no fim, vou tentar indicar muito

rapidamente quais são as operações através das quais se produz este efeito

de consenso. A primeira operação, que tem como ponto de partida o postulado

segundo o qual todo mundo deve ter uma opinião, consiste em ignorar as não-

respostas. Por exemplo, você pergunta às pessoas: "Você é favorável ao

governo Pompidou?" Você registra 30% de não-resposta, 20% de sim, 50% de

não. Você pode dizer: a parte das pessoas desfavoráveis é superior à parte

das pessoas favoráveis e depois há este resíduo de 30%. Você também pode

recalcular as percentagens favoráveis e desfavoráveis excluindo as não-

respostas. Esta simples escolha é uma operação teórica de uma importância

fantástica, sobre a qual eu gostaria de refletir com vocês.

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Eliminar as não-respostas, é fazer aquilo que se faz numa consulta

eleitoral onde há votos nulos ou brancos; é impor à pesquisa de opinião a

filosofia implícita da pesquisa eleitoral. Se olharmos mais de perto,

observamos que a taxa de não-respostas é de um modo geral mais elevada

entre as mulheres do que entre os homens, que a distância entre as mulheres

e os homens torna-se maior quando os problemas colocados são de ordem

mais propriamente política. Outra observação: quanto mais uma pergunta se

refere a problemas de saber, de conhecimento, maior é a distância entre as

taxas de não-respostas dos não-instruídos e dos menos instruídos. Ao

contrário, quando as perguntas se referem a problemas éticos, as variações

das não-respostas segundo o nível de instrução são fracas (exemplo: "Deve-

se ser severo com as crianças?"). Outra observação: quanto mais uma

pergunta coloca problemas conflitivos, se refere a algum ponto contraditório

(por exemplo, uma pergunta sobre a situação na Tchecoslováquia para

pessoas que votam nos comunistas), mais ela gera tensões para uma

determinada categoria, maior a freqüência de não-respostas nesta categoria.

Conseqüentemente, a simples análise estatística das não-respostas dá uma

informação sobre o que significa a pergunta e também sobre a categoria

considerada, sendo esta definida tanto pela probabilidade a ela imputada de

ter uma opinião quanto pela probabilidade condicional de ter uma opinião

favorável ou desfavorável.

A análise científica das pesquisas de opinião mostra que praticamente

não existe problema omnibus: não existe pergunta que não seja reinterpretada

em função dos interesses das pessoas às quais ela é colocada e o primeiro

imperativo seria o de se perguntar a que pergunta as diferentes categorias de

inquiridos pensaram estar respondendo. Um dos efeitos mais perniciosos da

pesquisa de opinião consiste precisamente em colocar pessoas respondendo

perguntas que elas não se perguntaram.. Como por exemplo as questões que

giram em torno dos problemas da moral, tratem elas sobre a severidade dos

pais, as relações entre professores e alunos, a pedagogia diretiva ou não-

diretiva, etc., problemas que são encarados como problemas éticos à medida

em que se desce na hierarquia social, mas que podem ser considerados como

problemas políticos pelas classes superiores. Um dos efeitos da pesquisa

consiste em transformar as respostas éticas em respostas políticas pelo

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simples efeito de imposição da problemática.

De fato, há muito princípios a partir dos quais se pode engendrar uma

resposta. Primeiramente, há aquilo que podemos chamar de competência

política em relação a uma definição de política ao mesmo tempo arbitrária e

legítima, isto é, dominante e dissimulada enquanto tal. Esta competência

política não é repartida universalmente. Ela, a grosso modo, varia como o nível

de instrução. Dito de outra maneira, a probabilidade de se ter uma opinião

sobre todas as questões que supõem um saber político é bastante comparável

à probabilidade de ir ao museu. Podemos observar diferenças fantásticas:

onde um estudante engajado em qualquer movimento esquerdista percebe

quinze divisões à esquerda do PSU, um quadro médio não vê nada. Na escala

política (extrema-esquerda, centro-esquerda, centro, centro-direita, direita,

extrema-direita, etc.) que as pesquisas de ciências políticas empregam como

algo óbvio, certas categorias sociais utilizam intensamente um cantinho da

extrema-esquerda; outras utilizam unicamente o centro, outras utilizam a

escala inteira. Finalmente uma eleição é a agregação de espaços inteiramente

diferentes; soma-se pessoas que tiram as medidas por centímetros com

pessoas que o fazem por quilômetros, ou seja, pessoas que graduam de 0 a

20 e pessoas que graduam de 9 a 11. Mede-se a competência, entre outras

coisas, pelo grau de requinte da percepção (é a mesma coisa em estética,

alguns podendo distinguir os cinco ou seis estilos sucessivos de um único

pintor).

Esta comparação pode ser levada mais longe. Em matéria de percepção

estética há, em primeiro lugar, uma condição permissiva: é preciso que as

pessoas pensem a obra de arte como obra de arte. Depois de tê-la percebido

como obra de arte é preciso que tenham categorias de percepção para

construí-la, estruturá-la, etc. Suponhamos uma pergunta formulada assim:

"Você é a favor de uma educação diretiva ou de uma educação não-diretiva?"

Para alguns, ela será constituída como política onde a representação das

relações pais-filhos se integra numa visão sistemática da sociedade; para

outros, é uma pura questão moral. Assim, o questionário que elaboramos e

onde perguntamos às pessoas se, para eles, fazer greve, ter cabelos longos,

participar de um festival pop, etc., são coisas políticas ou não, mostrou

variações muito grandes dependendo das classes sociais. A primeira condição

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para responder adequadamente a uma pergunta política é, portanto, ser capaz

de constituí-Ia enquanto política. A segunda, tendo-a constituído como política,

é ser capaz de aplicar a ela categorias propriamente políticas que podem ser

mais ou menos adequadas, mais ou menos refinadas, etc. Tais são as

condições específicas da produção de opiniões, que a pesquisa de opinião

supõe estarem universal e uniformemente preenchidas com o seu primeiro

postulado segundo o qual todo mundo pode produzir uma opinião.

O segundo princípio a partir do qual as pessoas podem produzir uma

opinião é o que chamo de "ethos de classe" (para não dizer "ética de classe"),

isto é, um sistema de valores implícitos que as pessoas interiorizam desde a

infância e a partir dos quais produzem respostas a problemas extremamente

diferentes. As opiniões que as pessoas podem trocar na saída de uma partida

de futebol entre Roubaix e Valenciennes devem uma grande parte de sua

coerência, de sua lógica, ao ethos de classe. Uma enorme quantidade de

respostas, consideradas como políticas, são na realidade produzidas a partir

do ethos de classe e podem se revestir, ao mesmo tempo, de um significado

inteiramente diferente quando são interpretados no terreno político. Aqui,

tenho que fazer uma referência a uma tradição sociológica, divulgada

principalmente entre certos sociólogos da política nos Estados Unidos, que

falam muito comumente de um conservadorismo e de um autoritarismo das

classes populares. Estas teses estão baseadas na comparação internacional

de pesquisas ou de eleições que tendem a mostrar que cada vez que se

interroga as classes populares, em qualquer país que seja, sobre problemas

referentes às relações de autoridade, liberdade individual, liberdade de

imprensa, etc., elas dão respostas mais "autoritárias" do que as outras

classes. E daí se conclui, de uma maneira global, que há um conflito entre os

valores democráticos (no autor em que estou pensando, Lipset, trata-se de

valores democráticos americanos) e os valores que as classes populares

interiorizam, valores de tipo autoritário e repressivo. Daí se tira uma espécie de

visão escatológica: elevemos o nível de vida; elevemos o nível de instrução,

pois já que a propensão à repressão, ao autoritarismo, etc., está ligada às

baixas rendas, aos baixos níveis de instrução, etc., produziremos assim bons

cidadãos da democracia americana. A meu ver, o que está em questão é o

significado das respostas a algumas perguntas. Suponhamos um conjunto de

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questões do tipo seguinte: Você é favorável a igualdade de sexos? Você é

favorável à liberdade sexual dos cônjuges? Você é favorável a uma educação

não-repressiva? Você é favorável à nova sociedade?, etc. Suponhamos um

outro conjunto de questões do tipo: Os professores devem fazer greve quando

sua situação se encontrar ameaçada? Os docentes devem ser solidários aos

outros funcionários nos períodos de conflito social?, etc. Estes dois conjuntos

de perguntas dão respostas com estruturas estritamente inversas quanto à

classe social. O primeiro conjunto de perguntas, que se refere a um certo tipo

de renovação nas relações sociais, na forma simbólica das relações sociais,

suscita respostas muito mais favoráveis quando se sobe na hierarquia social e

na hierarquia segundo o nível de instrução; inversamente, as perguntas que se

referem às transformações reais das relações de força entre as classes sociais

suscitam respostas mais e mais desfavoráveis à medida que se sobe na

hierarquia social.

Resumindo, a proposição "as classes populares são repressivas" não é

nem verdadeira nem falsa. É verdadeira na medida em que, diante de todo um

conjunto de problemas como os que tocam à moral doméstica, às relações

entre as gerações ou entre os sexos, as classes populares têm a tendência de

se mostrar muito mais severas do que as outras classes sociais. Ao contrário,

sobre as questões de estrutura política, que colocam em jogo a conservação

ou a transformação da ordem social, e não apenas a conservação ou a

transformação dos modos de relação entre os indivíduos, as classes populares

são muito mais favoráveis à inovação, isto é, a uma transformação das

estruturas sociais. Vocês podem ver como certos problemas colocados em

Maio de 68, e freqüentemente mal colocados, no conflito entre o Partido

Comunista e os esquerdistas, ligam-se diretamente ao problema central que

tentei colocar esta noite, o da natureza das respostas, isto é, do princípio a

partir do qual elas são produzidas. A oposição que fiz entre estes dois grupos

de perguntas se remete, com efeito, à oposição entre dois princípios da

produção de opiniões: um princípio propriamente político e um princípio ético,

sendo o problema do conservadorismo das classes populares produto da

ignorância desta distinção.

O efeito de imposição da problemática, efeito exercido por qualquer

pesquisa de opinião e por qualquer interrogação política (a começar pela

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eleitoral), resulta do fato de que às perguntas colocadas numa pesquisa de

opinião não são perguntas que realmente se colocam a todas as pessoas

interrogadas e as respostas não são interpretadas em função da problemática

que servia efetivamente como referência, às diferentes categorias de

inquiridos. Assim, a problemática dominante, cuja imagem é revelada pela lista

de perguntas feitas durante dois anos pelos institutos de pesquisas de opinião,

ou seja, a problemática que interessa essencialmente às pessoas que detêm o

poder e querem ser informadas sobre os meios de organizar sua ação política,

é dominada de forma bastante desigual pelas diferentes classes sociais. E,

fato importante, estas estão mais ou menos aptas a produzir uma contra-

problemática. A respeito do debate televisionado entre Servan-Schreiber e

Giscard d'Estaing, um instituto de pesquisa de opinião colocou perguntas do

tipo: "0 sucesso escolar se deve ao talento, à inteligência, ao trabalho, ao

mérito?" As respostas obtidas efetivamente liberam uma informação (ignorada

por aqueles que as produziam) sobre o grau de consciência das diferentes

classes sociais a respeito das leis de transmissão hereditária do capital

cultural: a adesão ao mito do talento e da ascensão através da escola, da

justiça escolar, da eqüidade da distribuição dos cargos em função dos títulos,

etc., é muito forte nas classes populares. A contra-problemática pode existir

para alguns intelectuais, mas não tem força social, embora tenha sido

retomada por alguns partidos e grupos. A verdade científica é submetida às

mesmas leis de difusão que a ideologia. Uma proposição científica é como

uma bula papal sobre o controle da natalidade que só prega aos convertidos.

A idéia de objetividade numa pesquisa de opinião é associada ao fato de

se fazer a pergunta nos termos mais neutros possíveis para dar chances a

todas as respostas. Na verdade, a pesquisa de opinião estaria, sem dúvida,

muito mais próxima do que acontece na realidade se, transgredindo

completamente as regras da "objetividade", fossem dados às pessoas os

meios para que elas se situassem da mesma forma como realmente se situam

na prática real, isto é, em relação a opiniões já formuladas. Se por exemplo,

em vez de dizer "Há pessoas que são favoráveis ao controle da natalidade e

outras são desfavoráveis e você?...", se enunciasse uma série de tomadas de

posição explícita de grupos solicitados para constituir e difundir opiniões, de

modo que as pessoas pudessem se situar em relação à respostas já

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constituídas. Fala-se freqüentemente de “tomadas de posição"; existem

posições que já são previstas e que são tomadas. Mas isso não acontece por

acaso. Uma pessoa toma as posições que está predisposta a tomar em função

da posição que ocupa num certo campo. Uma análise rigorosa visa explicar as

relações entre a estrutura de posições a serem tomadas e a estrutura do

campo das posições objetivamente ocupadas.

Se as pesquisas de opinião apreendem muito mal os estados virtuais da

opinião e mais exatamente os movimentos de opinião, é, entre outras razões,

porque a situação na qual elas apreendem as opiniões é inteiramente artificial.

Nas situações em que se constitui a opinião, em particular as situações de

crise, as pessoas se encontram diante de opiniões constituídas, de opiniões

sustentadas por grupos, de forma que escolher entre duas opiniões é

evidentemente escolher entre grupos. Tal é o princípio do efeito de politização

que produz a crise: é preciso escolher entre grupos que se definem

politicamente e definir cada vez mais tomadas de posição em função de

princípios explicitamente políticos. De fato, o que me parece importante é que

a pesquisa de opinião trata a opinião pública como uma simples soma de

opiniões individuais, recolhidas numa situação que no fundo é a da cabine

indevassável, onde o indivíduo vai exprimir furtivamente, no isolamento, uma

opinião isolada. Nas situações reais, as opiniões são forças e as relações

entre opiniões são conflitos de força entre os grupos.

Uma outra lei resulta destas análises: tem-se muito mais opiniões sobre

um problema quando se está mais interessado por este problema, isto é,

quando se tem mais interesse neste problema. Por exemplo, a taxa de

respostas sobre o sistema de ensino está muito intimamente ligada ao grau de

proximidade em relação ao sistema de ensino, e a probabilidade de ter uma

opinião varia em função da probabilidade de ter poder sobre o que se opina. A

opinião que se afirma enquanto opinião, espontâneamente, é a opinião das

pessoas cuja opinião tem peso, como se costuma dizer. Se um Ministro da

Educação agisse em função de uma pesquisa de opinião (ou pelo menos a

partir de uma leitura superficial da pesquisa), ele não faria o que ele faz

quando age realmente como um homem político, isto é, a partir dos

telefonemas que recebe, da visita de tal responsável sindical, de tal decano,

etc. De fato, ele age em função destas forças de opinião realmente

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constituídas que só afloram à sua percepção à medida em que têm força e têm

força porque são mobilizadas.

Quanto a prever o que será da Universidade nos próximos dez anos,

acho que a opinião mobilizada constitui a melhor base. No entanto, o fato -

atestado pelas não-respostas - de que as disposições de certas categorias não

acedem ao estatuto de opinião, isto é, de discurso constituído aspirando à

coerência, aspirando a ser ouvido, a se impor, etc., não deve levar à conclusão

de que, em situações de crise, as pessoas que não tivessem nenhuma opinião

escolheriam ao acaso. Se o problema está politicamente constituído para eles

(problemas salariais e de ritmo de trabalho para os operários), eles vão

escolher em termos de competência política. Se trata-se de um problema que

não está politicamente constituído para eles (caráter repressivo das relações

na empresa), ou se está em vias de constituição, as pessoas serão guiadas

pelo sistema de disposições profundamente inconsciente que orienta as

escolhas nos mais diferentes domínios, desde a estética ou o esporte até as

preferências econômicas. A pesquisa de opinião tradicional ignora, ao mesmo

tempo, os grupos de pressão e as disposições virtuais que às vezes não se

exprimem sob a forma de discurso explícito. É por isto que ela não é capaz de

produzir nenhuma previsão razoável sobre o que acontecerá numa situação de

crise.

Suponhamos um problema como o do sistema de ensino. Pode-se

perguntar: "0 que você acha da política de Edgar Faure?" É uma pergunta

muito próxima a de uma pesquisa eleitoral, no sentido de que à noite todos os

gatos são pardos: grosso modo, todo mundo está de acordo sem saber sobre

o que; sabe-se o que significou o voto por unanimidade da lei Faure na

Assembléia Nacional. Em seguida, pergunta-se "Você é favorável à introdução

da política nos colégios secundários?" Aqui, observa-se uma divisão muito

nítida. Ocorre o mesmo quando se pergunta: "Os professores podem fazer

greve?" Neste caso, os membros das classes populares, por uma

transferência de sua competência política específica, sabem o que responder.

Pode-se perguntar ainda: "Deve-se transformar os programas? Você é

favorável à aferição contínua dos resultados? Você é favorável que os pais de

alunos entrem para os conselhos de professores? Você é a favor da

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agrégation?"2, etc. Na pergunta "você é favorável a Edgar Faure?", havia todas

estas perguntas e as pessoas tomaram uma única posição de uma só vez

sobre um conjunto de problemas que um bom questionário só poderia colocar

através de pelo menos sessenta perguntas a propósito das quais se

observariam variações em todos os sentidos. Em alguns casos as opiniões

estariam positivamente ligadas à posição na hierarquia social, em outros,

negativamente, às vezes de maneira muito forte, às vezes de maneira fraca,

ou não teriam nenhuma ligação. Basta pensar que uma consulta eleitoral

representa o limite de uma pergunta como, "você é favorável a Edgar Faure?",

para compreender porque os especialistas de sociologia política notam que a

relação que se observa habitualmente, em quase todos os domínios da prática

social, entre a classe social e as práticas ou as opiniões, é muito fraca quando

se trata de fenômenos eleitorais, a tal ponto que alguns não hesitam em

concluir que não há qualquer relação entre a classe social e o fato de votar na

direita ou na esquerda. Se vocês tiveram em mente que uma consulta eleitoral

coloca numa única pergunta sincrética aquilo que só poderia ser

razoavelmente apreendido em duzentas perguntas, que uns medem em

centímetros e outros em quilômetros, que a estratégia dos candidatos consiste

em colocar mal as perguntas e se esforçar ao máximo para esconder as

clivagens e ganhar votos indecisos, e tantas outras coisas, vocês concluirão

que talvez seja preciso inverter a questão tradicional da relação entre voto e

classe social e se perguntar por que, apesar de tudo, constata-se uma relação,

mesmo fraca; e se interrogar sobre a função do sistema eleitoral, instrumento

que por sua própria lógica, tende a atenuar os conflitos e as clivagens. O que é

certo é que estudando o funcionamento das pesquisas de opinião, pode-se ter

uma idéia da maneira como funciona este tipo particular de pesquisa que é a

consulta eleitoral e do efeito que ela produz.

Em suma, o que eu quis dizer foi que a opinião pública não existe, pelo

menos na forma que lhe atribuem os que têm interesse em afirmar sua

existência. Disse que por um lado haviam opiniões constituídas, mobilizadas,

grupos de pressão mobilizados em torno de um sistema de interesses

explicitamente formulados; e por outro lado, disposições que, por definição,

2 Agrégation: o titulo mais alto recebido após a conclusão de certos cursos superiores, como por exemplo o curso de Letras ou História.

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não constituem opinião, se por esta palavra compreendemos, como fiz ao

longo desta análise, alguma coisa que pode ser formulada num discurso com

uma certa pretensão à coerência. Esta definição da opinião não é a minha

opinião sobre a opinião. É simplesmente uma explicitação da definição

revelada através das próprias pesquisas de opinião, ao pedirem às pessoas

para tomarem posição sobre opiniões formuladas, e ao produzirem, através de

simples agregação estatística as opiniões assim produzidas, este artefato que

é a opinião pública. O que digo é apenas que a opinião pública na acepção

que é implicitamente admitida pelos que fazem pesquisas de opinião ou

utilizam seus resultados, esta opinião não existe.