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273 Cad. Cedes, Campinas, vol. 30, n. 82, p. 273-277, set.-dez. 2010 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> APRESENTAÇÃO Por que refletir sobre o que significa educar para a compreensão do tempo? orge Luiz Borges nos deixou, entre seu vasto legado poético, a com- preensão de que o tempo é a substância da qual todos nós somos feitos e que, a despeito de sua centralidade e profundidade em nos- sos processos de constituição identitária, ele nada mais é do que uma convenção. Talvez a maior e mais invisível das convenções humanas e, por isso mesmo, uma das marcas culturais mais inatingíveis e inacessí- veis aos sentidos. A experiência com o tempo – que advém da passagem dos even- tos da vida humana e das práticas de sociabilidade a que os indivíduos são expostos desde a infância – pressupõe um longo e complexo pro- cesso de estabelecimento de relações com uma cultura já posta e cons- tituída em seus referentes, a partir de múltiplos processos de definição de marcadores e balizadores da experiência humana, entre os quais o calendário é sua substância mais complexa, particularmente porque emana de vastas sínteses históricas. Norbert Elias, em sua obra, nos de- monstrou isso muito bem. Mas, para além do calendário, nossa expe- riência de relação com um presente nos leva ao desafio de compreen- são da mudança e da percepção de que o que somos hoje só foi possível em virtude de um vasto legado humano, que deixou para nós aspectos da vida que mudaram e permaneceram, continuidades e descontinui- dades que se apresentam como grandes desafios de aprendizagem. São aspectos de uma imbricada teia conceitual, transversal a diversos cam- pos do saber, que nos chegam por meio de diversos processos e espaços educativos, escolares e não escolares, não sem inúmeras dificuldades em

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  • 273Cad. Cedes, Campinas, vol. 30, n. 82, p. 273-277, set.-dez. 2010Disponvel em

    Sandra Regina Ferreira de Oliveira & Sonia Regina Miranda (Organizadoras)

    APRESENTAO

    Por que refletir sobre o que significa educar para a compreenso dotempo?

    orge Luiz Borges nos deixou, entre seu vasto legado potico, a com-preenso de que o tempo a substncia da qual todos ns somosfeitos e que, a despeito de sua centralidade e profundidade em nos-

    sos processos de constituio identitria, ele nada mais do que umaconveno. Talvez a maior e mais invisvel das convenes humanas e,por isso mesmo, uma das marcas culturais mais inatingveis e inacess-veis aos sentidos.

    A experincia com o tempo que advm da passagem dos even-tos da vida humana e das prticas de sociabilidade a que os indivduosso expostos desde a infncia pressupe um longo e complexo pro-cesso de estabelecimento de relaes com uma cultura j posta e cons-tituda em seus referentes, a partir de mltiplos processos de definiode marcadores e balizadores da experincia humana, entre os quais ocalendrio sua substncia mais complexa, particularmente porqueemana de vastas snteses histricas. Norbert Elias, em sua obra, nos de-monstrou isso muito bem. Mas, para alm do calendrio, nossa expe-rincia de relao com um presente nos leva ao desafio de compreen-so da mudana e da percepo de que o que somos hoje s foi possvelem virtude de um vasto legado humano, que deixou para ns aspectosda vida que mudaram e permaneceram, continuidades e descontinui-dades que se apresentam como grandes desafios de aprendizagem. Soaspectos de uma imbricada teia conceitual, transversal a diversos cam-pos do saber, que nos chegam por meio de diversos processos e espaoseducativos, escolares e no escolares, no sem inmeras dificuldades em

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    Apresentao

    sua construo, especialmente por parte da criana. em torno dareflexo sobre esses desafios, mas ao mesmo tempo das potencia-lidades inerentes a diversas prticas e reflexes em movimentos plu-rais de pesquisa, que esse nmero dos Cadernos CEDES Educar paraa compreenso do tempo apresentado comunidade acadmicae ao pblico em geral.

    Encontram-se aqui pesquisadores da rea de ensino de Hist-ria de diferentes pases, regies brasileiras e espaos acadmicos, dife-rentes reas de atuao e olhares, todos com o objetivo de trazer tona, em seus textos, desafios envolvidos na difcil, porm prazerosatarefa de educar para a compreenso do tempo e do procedimentohistrico.

    Joan Pags Blanch e Antoni Santisteban Fernndez, ambos daUniversidad Autnoma de Barcelona, nos brindam com um texto quebusca sintetizar os grandes dilemas e os eixos em torno dos quais preciso que a escola reflita a respeito do que significa ensinar e apren-der sobre o tempo histrico para a criana, nos anos iniciais de esco-larizao.

    No rumo de refletir sobre tais desafios, segue-se o texto de Alexiade Pdua Franco, do Colgio de Aplicao da Universidade Federal deUberlndia, dedicado discusso relativa aos desenhos animados in-fantis e revistas que focalizam o tempo na apresentao de temticashistricas, bem como os problemas e incompreenses derivadas detransposies que podem gerar dificuldades de interpretao da diver-sidade temporal, dado o peso de atitudes anacrnicas e fortalecedorasde olhares etnocntricos por parte da criana, mas que, por outro lado,se devidamente refletidas e apropriadas, apresentam-se como veculosdotados de potncia para favorecer a aprendizagem.

    Na sequncia, a doutoranda Andrea Borges de Medeiros, queatua como coordenadora pedaggica em uma escola municipal deJuiz de Fora (MG), parte de uma pergunta aparentemente simples Do que se lembram as crianas e como o fazem a partir da experi-ncia de escolarizao? e envereda, em seu texto, por uma narra-tiva capaz de nos interpelar fortemente em torno de uma perspec-tiva metodolgica e investigativa que tem, como principal diferencial,o objetivo de trazer a voz da criana cena central do debate aca-dmico. Sob esse eixo, a pesquisadora, pautando-se pela mediao

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    de artefatos produzidos no interior do cotidiano escolar, discute acompreenso do tempo a partir da anlise da capacidade de narrarverificvel na criana, quando mediada por objetos que seguram otempo.

    Ernesta Zamboni, da Universidade Estadual de Campinas, e Sel-va Guimares Fonseca, da Universidade Federal de Uberlndia, ambaspossuidoras de uma vasta e rica trajetria intelectual e acadmica nocampo do ensino de Histria, nos apresentam um texto compartilha-do que aborda a compreenso do tempo histrico a partir das poten-cialidades da literatura infantil. Uma pergunta central Como a lin-guagem literria ficcional, constitutiva do processo de formao dacriana, contribui para a aprendizagem da temporalidade histrica nosprimeiros anos de escolaridade? orienta a reflexo das pesquisadorase nos apresenta caminhos reflexivos imbricados com a apresentao depossibilidades concretas de enfrentamento metodolgico na escola.Uma pista poderosa para orientar o trabalho escolar, particularmentenos anos iniciais.

    As pesquisadoras Magda Madalena Peruzin Tuma, Marlene RosaCainelli e Sandra Regina Ferreira de Oliveira, todas vinculadas Uni-versidade Estadual de Londrina, compartilham com professores e pes-quisadores os resultados de uma pesquisa institucional mais ampla,dedicada compreenso de como ocorrem deslocamentos temporais eaprendizagem da Histria nos anos iniciais. O objetivo de seu artigo problematizar as representaes temporais constitudas pelas crianas,a partir de uma vivncia temporal fragmentada e fragmentria, e verifi-car em que medida sua relao com o tempo presente mediada pelosdiversos processos culturais que ocorrem dentro e fora da escola possi-bilita a constituio de um pensamento histrico.

    Sonia Regina Miranda, da Universidade Federal de Juiz de Fora,tambm pesquisadora do campo do ensino de Histria, traz em seutexto questes que nos permitem refletir acerca das interfaces entre aaprendizagem temporal que se processa dentro e fora da escola, a par-tir da discusso de como a criana, nos anos iniciais de escolarizao,opera com a compreenso da mudana e explica o tempo. Sob esse foco,a partir da mediao apresentada por objetos museais, numa situaoem que, pela primeira vez, um grupo de crianas era apresentado oportunidade de visitar um museu, a autora discute como a criana

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    estranha e interpreta esse passado aparentemente to distante e desco-nexo de seu tempo presente, mas, ao mesmo tempo, como esse tempopresente lhe confere chaves de leitura que precisam ser compreendidascomo objetos necessrios de problematizao e dilogo no interior doespao escolar.

    No movimento final desse Caderno, trs textos se relacionam ese completam naquilo que nos remete necessria discusso acerca dasinterfaces entre os espaos escolares e no escolares, com particular n-fase na questo da compreenso do tempo histrico em museus e espa-os de memria.

    Francisco Rgis Lopes Ramos, da Universidade Federal do Cear,nos conduz reflexo sobre os tempos da memria que so partesconstitutivas das culturas socialmente institudas e que no devem serconfundidos com os modos pelos quais a Histria lida com os conflitose os acordos entre as temporalidades. Nesta trilha, o pesquisador nosalerta para o fato de que museus, praas, depoimentos, monumentos,objetos e outros suportes de lembranas fazem parte de nossas aprendi-zagens despercebidas do tempo e que devem ser tratados, na aoeducativa, como objetos da interpretao historicamente fundamentada.

    Os pesquisadores Jnia Sales Pereira, da Universidade Federal deMinas Gerais, e Marcus Vinicius Corra Carvalho, da Universidade Es-tadual de Minas Gerais, ao pensarem os encontros e desencontros en-tre escolas e museus, nos conduzem ao reencontro com a riquezaeducativa desses ltimos e a fora do papel mediador de professores eeducadores de museus, aqui assumidos como agentes potencializadoresda capacidade inventiva e criadora do pblico visitante que, em ummovimento corporal especfico, se depara com uma morada de objetosque perderam seus sentidos primordiais em um contexto de vida coti-diano. Dentro de um museu, uma caneta que um dia fez algum selembrar de um momento essencial de sua vida no mais uma caneta,mas um objeto que morreu em seu sentido original. No serve maispara escrever. Assim, ao ressignificar os objetos humanos, destitudosagora de sua fora de vida, os museus, em escolhas que educam e ge-ram sentidos interpretativos sobre o passado, transformam esses obje-tos agora em vitrines de espaos de memria e, por isso, projetam-secomo importantes vetores, capazes de servir reflexo e construoda conscincia temporal.

  • 277Cad. Cedes, Campinas, vol. 30, n. 82, p. 273-277, set.-dez. 2010Disponvel em

    Sandra Regina Ferreira de Oliveira & Sonia Regina Miranda (Organizadoras)

    Por fim, a seo Caleidoscpio organizada com um espao dis-tintivo dos Cadernos CEDES nos brinda com notcias e cenrios a res-peito de experincias de museus que tm buscado caminhos originaisde atuao, trazidas pela doutoranda Carina Martins Costa. Tais not-cias nos instigam a viajar para conhecer aqueles espaos, ainda que demodo virtual, com o suporte da web, e tambm nos convidam a pen-sar no fato de que refletir sobre o tempo em museus pode nos levar aatitudes de exposio e reteno, nos conduzindo tambm constru-o da mudana e fabricao de horizontes projetados.

    Portanto, estamos certas de que essa coleo de textos trar, parao professor, para outros pesquisadores e para o pblico em geral, umpouco da seduo e do fascnio que ns, organizadoras desse dossi,sentimos ao elabor-lo.

    SANDRA REGINA FERREIRA DE OLIVEIRASONIA REGINA MIRANDA

    (Organizadoras)

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