22
95 6. Dinâmica de Elétrons em Sólidos 6.1 O modelo de Drude Neste Capítulo trataremos da dinâmica de elétrons em sólidos, que consiste no estudo da resposta eletrônica a campos elétricos e magnéticos externos. Veremos que, em muitas situações, esta a resposta é bastante diferente do que se poderia esperar de um elétron isolado, ou seja, o potencial cristalino exerce um papel fundamental, dando origem a efeitos inusitados. Iremos, portanto, utilizar os diversos conceitos introduzidos no capítulo anterior, e veremos que será fundamental considerarmos a natureza quântica dos elétrons. Porém, é conveniente iniciarmos este estudo com um modelo clássico de condução cristalina. Faremos isto não apenas por razões históricas, mas também para introduzirmos alguns conceitos básicos e até mesmo para apontar as insuficiências deste modelo clássico, que tornaram clara a necessidade de uma formulação quântica da dinâmica eletrônica. Este modelo é conhecido como modelo de Drude. Em 1900, ou seja, apenas 3 anos depois da descoberta do elétron por J. J. Thomson, P. Drude formulou um modelo para a dinâmica daquelas então recém- descobertas partículas com o objetivo de explicar, entre outras coisas, a condução de eletricidade e calor pelos metais. Naquela época, antes do surgimento da Mecânica Quântica, as ferramentas de Drude eram a Mecânica Newtoniana e a Termodinâmica. Drude então supôs que os elétrons em um sólido se comportavam como um gás de partículas clássicas, o que era a melhor suposição possível na ocasião. Drude supôs ainda que os elétrons se moviam em um cristal sofrendo seguidas colisões com os íons da rede, como está esquematizado na Fig. 6.1. Como vimos no Capítulo anterior, isto não é correto: em um potencial cristalino periódico um elétron de Bloch tem uma velocidade média independente do tempo. Se a hipótese de colisões com os íons estacionários fosse verdadeira, o livre caminho médio de um elétron no sólido seria da ordem das distâncias interatômicas, ou seja, apenas alguns angstrons. Como vimos, a baixas temperaturas o livre caminho médio pode chegar a alguns centímetros! Hoje sabemos que os mecanismos de espalhamento mais importantes para os elétrons não são os íons cristalinos estacionários, mas sim os defeitos da rede (como impurezas, vacâncias, etc.), as vibrações cristalinas (espalhamento elétron-fônon) e o espalhamento elétron-elétron. No entanto, podemos estudar o modelo de Drude sem nos preocuparmos com o mecanismo específico de espalhamento. Vamos fazer apenas as seguintes suposições: 1. A probabilidade que um elétron sofra uma colisão entre os instantes t e t+dt é dada simplesmente por dt , onde é o tempo de relaxação. As colisões são portanto eventos não-correlacionados. 2. Entre duas colisões, o elétron viaja em linha reta, como uma partícula livre.

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95

6. Dinâmica de Elétrons em

Sólidos

6.1 – O modelo de Drude

Neste Capítulo trataremos da dinâmica de elétrons em sólidos, que consiste no

estudo da resposta eletrônica a campos elétricos e magnéticos externos. Veremos que, em

muitas situações, esta a resposta é bastante diferente do que se poderia esperar de um

elétron isolado, ou seja, o potencial cristalino exerce um papel fundamental, dando

origem a efeitos inusitados. Iremos, portanto, utilizar os diversos conceitos introduzidos

no capítulo anterior, e veremos que será fundamental considerarmos a natureza quântica

dos elétrons. Porém, é conveniente iniciarmos este estudo com um modelo clássico de

condução cristalina. Faremos isto não apenas por razões históricas, mas também para

introduzirmos alguns conceitos básicos e até mesmo para apontar as insuficiências deste

modelo clássico, que tornaram clara a necessidade de uma formulação quântica da

dinâmica eletrônica. Este modelo é conhecido como modelo de Drude.

Em 1900, ou seja, apenas 3 anos depois da descoberta do elétron por J. J.

Thomson, P. Drude formulou um modelo para a dinâmica daquelas então recém-

descobertas partículas com o objetivo de explicar, entre outras coisas, a condução de

eletricidade e calor pelos metais. Naquela época, antes do surgimento da Mecânica

Quântica, as ferramentas de Drude eram a Mecânica Newtoniana e a Termodinâmica.

Drude então supôs que os elétrons em um sólido se comportavam como um gás de

partículas clássicas, o que era a melhor suposição possível na ocasião.

Drude supôs ainda que os elétrons se moviam em um cristal sofrendo seguidas

colisões com os íons da rede, como está esquematizado na Fig. 6.1. Como vimos no

Capítulo anterior, isto não é correto: em um potencial cristalino periódico um elétron de

Bloch tem uma velocidade média independente do tempo. Se a hipótese de colisões com

os íons estacionários fosse verdadeira, o livre caminho médio de um elétron no sólido

seria da ordem das distâncias interatômicas, ou seja, apenas alguns angstrons. Como

vimos, a baixas temperaturas o livre caminho médio pode chegar a alguns centímetros!

Hoje sabemos que os mecanismos de espalhamento mais importantes para os

elétrons não são os íons cristalinos estacionários, mas sim os defeitos da rede (como

impurezas, vacâncias, etc.), as vibrações cristalinas (espalhamento elétron-fônon) e o

espalhamento elétron-elétron. No entanto, podemos estudar o modelo de Drude sem nos

preocuparmos com o mecanismo específico de espalhamento. Vamos fazer apenas as

seguintes suposições:

1. A probabilidade que um elétron sofra uma colisão entre os instantes t e t+dt é

dada simplesmente por dt , onde é o tempo de relaxação. As colisões

são portanto eventos não-correlacionados.

2. Entre duas colisões, o elétron viaja em linha reta, como uma partícula livre.

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96

3. Após a colisão, o elétron "perde a memória" sobre sua velocidade anterior, e

sua nova velocidade tem direção aleatória e módulo dado pela distribuição

de Maxwell.

Iremos agora obter a equação de movimento dos elétrons segundo este modelo.

Suponhamos que no instante t o momento linear médio dos elétrons seja )(tp . Qual

será então o momento médio no instante t+dt ? Bem, o momento de um elétron pode ser

alterado por uma força externa )(tf ou por colisões. Como dissemos, um elétron sofre

uma colisão entre t e t+dt com probabilidade dt . Assim, a fração dos elétrons que

colidem neste intervalo é dt , e a fração dos elétrons que não colidem é )1( dt .

Assim, a contribuição para )( dtt p dos elétrons que não colidem é:

)1()()()( dtdtttdtt fpp .

Os elétrons que sofreram colisão no intervalo de tempo considerado também

contribuem para )( dtt p , já que após a colisão eles continuam sendo acelerados pela

força f(t). Podemos dizer que a contribuição destes elétrons é menor que dtdtt )(f , já

que não sabemos o instante exato da colisão. Este termo contribui apenas em ordem (dt)2

para o momento médio final. Mantendo apenas os termos lineares em dt, temos

dttdtttdtt )()()()( pfpp ,

que nos permite então encontrar a equação de movimento:

pf

p

dt

d ,

onde, para simplificar a notação, abandonamos os colchetes para as quantidades médias.

Fica implícito, porém, que esta não é uma equação para um elétron específico, mas

(6.1)

(6.2)

(6.3)

Figura 6.1 – Modelo clássico de dinâmica eletrônica proposto por Drude, segundo o qual os elétrons

sofreriam colisões clássicas com os íons.

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descreve o movimento médio dos elétrons. Note que ela é uma equação de Newton com

um termo dissipativo, devido às colisões.

Vamos analisar as previsões que esta equação fornece para alguns casos

importantes:

(A) Campo elétrico constante: Lei de Ohm

No caso de um campo elétrico constante, temos Ef e . A Equação (6.3) torna-

se então

pE

p e

dt

d .

Estamos interessados principalmente na solução estacionária, ou seja, quando 0dtdp .

Impondo esta condição, obtemos

m

e Ev

,

onde mpv é a velocidade média dos elétrons, conhecida como velocidade de

arraste. A velocidade de arraste está relacionada à densidade de corrente vj ne , onde

n é a densidade de elétrons. Assim, obtemos

EEj Dm

ne

2

,

onde m

neD

2

é a condutividade de Drude. A Equação (6.6) é a conhecida lei de

Ohm da condução elétrica, uma lei empírica que acabamos de demonstrar a partir de

argumentos sobre o movimento microscópico dos elétrons. A expressão para a

condutividade de Drude contém o tempo de relaxação como único parâmetro

desconhecido, já que a massa eletrônica e a densidade de elétrons no metal são, em

princípio, conhecidas. Ela nos permite, portanto, a partir de medidas experimentais da

condutividade, obter o tempo de relaxação, um importante parâmetro associado ao

movimento microscópico eletrônico. A Tabela 6.1 mostra resultados para para diversos

metais alcalinos a diferentes temperaturas. Note que é da ordem de 10-14

s e diminui

fortemente com o aumento da temperatura. Assim, a resistividade dos metais aumenta

com a temperatura, o que é verificado experimentalmente e é uma das características que

os distingue dos semicondutores, como veremos futuramente.

(6.4)

(6.5)

(6.6)

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98

Metal T = 77 K T = 273 K

Li 7,3 10-14

s 0,88 10-14

s

Na 17 10-14

s 3,2 10-14

s

K 18 10-14

s 4,1 10-14

s

Podemos entender de forma mais completa as razões do aumento da resistividade

com a temperatura analisando os diversos tipos de espalhamento que um elétron pode

sofrer. Como já dissemos, um elétron pode ser espalhado por impurezas. A concentração

de impurezas é independente da temperatura, portanto espera-se que a resistividade

associada a este processo de espalhamento também seja razoavelmente independente da

temperatura, ou seja, constantei . Um outro mecanismo de espalhamento é através de

vibrações cristalinas. Estudaremos este mecanismo em mais detalhe no próximo capítulo,

mas podemos adiantar que a resistividade associada a este mecanismo é linear com T a

temperaturas altas ( Tv ) e proporcional a T5 a temperaturas baixas. O terceiro

mecanismo é o espalhamento elétron-elétron. Como vimos brevemente no Capítulo

anterior, a seção de choque do espalhamento elétron-elétron é proporcional a T2 a baixas

temperaturas, e portanto a resistividade associada a este mecanismo tem a mesma

dependência. Assim, a resistividade dos metais a baixas temperaturas é dominada por este

termo quadrático:

Tabela 6.1 – Tempo de relaxação em alguns metais alcalinos em função da temperatura.

(6.7)

Figura 6.2 – Medidas experimentais da resistividade do potássio a baixas temperaturas. Note o

comportamento quadrático, convergindo para uma constante (resistividade devido a impurezas) a T = 0.

Os dados se referem a duas amostras com diferentes graus de pureza. (Fonte: Kittel)

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99

2)( ATT i ,

esta expressão é conhecida como Regra de Matthiessen. A temperaturas altas o

mecanismo de espalhamento elétron-elétron deixa de ser quadrático, e a resistividade é

dominada pelo espalhamento elétron-fônon, linear com a temperatura. A verificação

experimental da Regra de Matthiessen está mostrada na Fig. 6.2.

(B) Campo elétrico e magnético constantes: Efeito Hall

Na presença de campos elétricos e magnéticos, a força que atua sobre um elétron

é a força de Lorentz:

BvEf e .

A equação de movimento no regime estacionário torna-se, portanto,

0

pBpE

me .

Uma geometria particular, porém de grande interesse prático, ocorre quando os

campos elétrico e magnético aplicados são perpendiculares um ao outro. Esta geometria

dá origem ao chamado Efeito Hall, descoberto por E. H. Hall em 1879 (ou seja, antes da

descoberta do elétron). Considere um campo elétrico na direção x e um campo magnético

na direção z, como mostra a Fig. 6.3. No regime transiente, um elétron inicialmente

acelerado pelo campo elétrico longitudinal Ex é defletido na direção transversal –y pela

força de Lorentz. Como a amostra é finita nesta direção, isto gera um acúmulo de carga

negativa de um lado e positiva do outro, que produz um campo elétrico transversal na

direção y que, no regime estacionário, cancela a componente transversal da força de

Lorentz.

(6.8)

(6.9)

x

y

z B = Bz

Exx

Eyy

v j

+ + + + + + + + + +

- - - - - - - - - -

Figura 6.3 – Esquema do Efeito Hall. B e Ex são os campo aplicados, enquanto que o campo transversal

Ey surge devido ao acúmulo de elétrons na parte anterior da amostra mostrada na figura.

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100

Como veremos a seguir, as quantidades de interesse são a magnetoresistividade

longitudinal , x

x

j

EB )( e o coeficiente Hall,

Bj

ER

x

y

H . Vamos calcular estas duas

quantidades resolvendo as equações de movimento do modelo de Drude. Se B = Bz,

então Bpp xy yxBp . Usando a definição de frequência de cíclotron, m

eBc ,

as componentes x e y da equação de movimento tornam-se

0

0

y

xcy

xycx

ppeE

ppeE

Multiplicando ambas equações por

m

ne e usando as definições de D e j, temos

0

0

yxcyD

xycxD

jjE

jjE

.

No regime estacionário, 0yj . Assim, da 1a equação temos

Dx

x

j

EB

1)( ,

ou seja, no modelo de Drude a magnetoresistência é independente do campo magnético.

Este resultado foi inicialmente um sucesso do modelo de Drude, já que confirmou os

resultados iniciais de Hall de que B era de fato independente de B. No entanto,

medidas subsequentes em diferentes materiais e faixas de campo magnético mais

extensas mostraram que, em alguns casos, B pode ter uma dependência forte com B,

o que não pode ser explicado por um modelo clássico como o de Drude.

Da 2a equação, obtemos o coeficiente Hall

neBj

ER

x

y

H

1 .

Este resultado é extremamente interessante e útil. Note que RH não depende do tempo de

relaxação. Medidas de RH medem diretamente a densidade de elétrons e, o que é mais

interessante, o sinal da carga dos mesmos. Veja alguns resultados na Tabela 6.2.

(6.10)

(6.11)

(6.12)

(6.13)

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101

Metal RH (exp)/(-1/ne)

Li 0,8

Na 1,2

K 1,1

Al -0,3

Mg -0,2

Note que o valor de Drude está em bom acordo com os resultados experimentais

para os metais alcalinos. Mas, para outros metais, o modelo falha completamente, até

mesmo no sinal da carga dos portadores. Aparentemente, os portadores de eletricidade

nestes materiais são positivos! Entenderemos melhor este aparente mistério nas próximas

seções. Medidas experimentais mostram também uma forte dependência de RH com B, o

que o modelo de Drude também não prevê.

(C) Condutividade AC de metais

Consideremos agora o caso de um metal sob a ação de um campo elétrico

dependente do tempo de forma harmônica:

tiet EE Re)( . (6.14)

Esta é a situação relevante, por exemplo, no caso de uma onda eletromagnética

propagando-se por um metal. Procuramos uma solução estacionária da Eq. (6.4), de modo

que

tiet pp Re)( . (6.15)

Substituindo em (6.4), obtemos

i

e

ei

1

Ep

Ep

p

. (6.16)

Sabendo que mnepj e tiet jj Re)( , obtemos a relação entre j e E:

E

Ej

i

mne

1

2

, (6.17)

onde é a condutividade AC:

Tabela 6.2 – Resultados experimentais para o coeficiente Hall de alguns metais.

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102

i

D

1, (6.18)

e D é a condutividade DC de Drude (Eq. (6.6)).

Para fazer uma conexão deste resultado com as propriedades óticas de um metal,

temos que relembrar nossos conhecimentos sobre as equações de Maxwell em um meio

material. Em unidades SI,

tt

EE

EjB 0000

. (6.19)

Sabendo que EE it , então

tt

i

EEB 000

, (6.20)

onde podemos identificar a função dielétrica complexa dependente da frequência:

i 0 . (6.21)

Esta é uma equação muito importante, que relaciona a função dielétrica com a

condutividade. A partir da Eq. (6.18) e supondo que 1 1, chegamos ao resultado:

2

2

1

P

0 , (6.22)

onde

21

0

2

m

neP

(6.23)

é a chamada frequência de plasma.

Vamos analisar fisicamente as consequências da Eq. (6.22). Se a função dielétrica

for real e negativa, a radiação eletromagnética não se propaga no metal. De fato, este é o

resultado que entendemos como usual para metais e ocorre para P . No entanto, se

P , a função dielétrica é positiva e a radiação se propaga pelo metal sem ser

atenuada. De fato, observa-se que os metais alcalinos tornam-se transparentes para

frequências em torno do ultravioleta ou maiores. A Tabela 6.3 mostra a comparação entre

a predição teórica (a partir da Eq. (6.23)) e o valor medido do comprimento de onda de

1 A validade desta aproximação de altas frequências está discutida em Ashcroft (p. 18).

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103

plasma PP c 2 para vários metais alcalinos. O acordo é razoável, considerando as

aproximações envolvidas.

Metal λP teórico

(102 nm)

λP experimental

(102 nm)

Li 1,5 2,0

Na 2,0 2,1

K 2,8 3,1

Rb 3,1 3,6

Cs 3,5 4,4

A propagação de ondas eletromagnéticas em um metal está associada também a

oscilações de carga, como pode ser concluído a partir da existência de uma densidade de

corrente oscilatória j(ω) no material. Uma maneira qualitativa de entender essas

oscilações de carga que o metal pode sustentar (também conhecidas como oscilações de

plasma ou plásmons) é através do modelo simplificado que está ilustrado na Fig. 6.4.

Considere um gás de elétrons com densidade n que se desloca como um todo por uma

distância x em relação aos núcleos positivos. Este deslocamento irá produzir densidades

densidade superficiais de carga σ (não confundir com a condutividade) em faces opostas

do sólido, como mostra a figura, com nex . Forma-se então, instantaneamente, a

configuração de um capacitor de placas paralelas, com um campo elétrico homogêneo e

igual a 0 . Este campo causará uma força restauradora no gás de elétrons como um

todo. De fato, cada elétron estará sujeito a uma força restauradora 0

2 xneF , que

dará origem uma oscilação harmônica com frequência angular 21

0

2 mne , que é

precisamente a frequência de plasma.

Tabela 6.3 – Comprimento de onda de plasma (experimental e teórico) para os metais alcalinos. Fonte:

Ashcroft, p. 18.

-

-

-

-

+

+

+

+

x

Figura 6.4 – Modelo simplificado para as oscilações de plasma. A região cinza representa o gás de elétrons.

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104

(D) Condutividade Térmica: Lei de Wiedemann-Franz

Um dos maiores sucessos do modelo de Drude foi a explicação da Lei de

Wiedemann-Franz. Há muito tempo sabia-se que os metais eram bons condutores de

eletricidade e de calor. Suspeitava-se portanto de um mesmo mecanismo microscópico

para os dois fenômenos. Drude supôs que este mecanismo seria o movimento dos elétrons

nos metais.

A Lei de Wiedemann-Franz é uma lei empírica descoberta a partir de medidas da

condutividade térmica e elétrica de diversos metais:

AT

,

onde é a condutividade térmica, é a condutividade elétrica, T é a temperatura e A é

uma constante. O que torna essa lei ainda mais interessante é o fato de que a constante A

parecia ser razoavelmente independente do metal, variando entre 2,0-2,5 10-8

WK-2

para os mais diversos materiais2.

Podemos obter a Lei de Wiedemann-Franz a partir dos argumentos de Drude

sobre o movimento dos elétrons. Apresentaremos aqui uma demonstração simplificada,

usando um modelo unidimensional. A condutividade térmica é definida por

TQ

j ,

onde jQ é a densidade de corrente de energia térmica e T

é o gradiente da temperatura,

Vamos supor uma barra metálica bastante fina, ao longo da direção x, com a temperatura

diminuindo da esquerda para a direita, como mostra a Fig. 6.5. Os elétrons que chegam

em um dado ponto x da barra vindos da esquerda sofreram sua última colisão, em média,

no ponto vx , enquanto que os elétrons que chegam pela direita sofreram sua última

colisão, em média, no ponto vx . Como se nota, os elétrons vindos da esquerda têm

maior energia cinética, pois a temperatura é maior daquele lado. Haverá portanto um

fluxo de energia da esquerda para a direita. A densidade de corrente de energia térmica

transportada pelos elétrons que vêm da esquerda é vxTvn 2 , onde n/2 é a

densidade de elétrons que viajam para da esquerda para a direita e (T) é a energia

térmica por elétron correspondente à temperatura no ponto de onde os elétrons vieram.

Analogamente, a densidade de corrente de energia térmica transportada pelos elétrons

oriundos da direita é vxTvn 2 . O fluxo total é, portanto,

dx

dT

dT

dnv

vxTvxTnvj Q

2

2

1

2 Veja a Tabela 1.6 do Ashcroft.

(6.24)

(6.26)

(6.25)

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105

Para obtermos uma expressão análoga para o caso tridimensional, basta notarmos

que, na expressão acima, a velocidade corresponde à média da componente x. Usando

que 2

3

12 vv x , e sabendo que vcVdTdEdTdVNdTdn , onde cv

é o calor específico eletrônico, temos

Tcv v

Q

23

1j ,

ou seja, a condutividade térmica é dada por vcv 2

3

1 . Para obtermos o a lei de

Wiedemann-Franz, basta dividirmos pela condutividade elétrica de Drude (Eq. 6.6):

2

2

3

1

ne

mvcv

Aplicando, como Drude fez, as leis da termodinâmica clássica, Bv nkc2

3 e

Tkmv B2

32

2

1 , obtemos

Te

k B

2

2

3

.

Segundo o modelo de Drude, portanto, há uma constante de proporcionalidade A

universal, como sugeriam os resultados experimentais. O valor numérico desta constante

é de 1,1 10-8

WK-2

, aproximadamente metade do valor experimental. Porém, na época

Drude errou por um fator 2 o cálculo de sua condutividade (veja problema da lista),

encontrando exatamente o valor experimental, o que soou como um sucesso estrondoso

da teoria. Na verdade, além deste erro de cálculo, há outras duas discrepâncias por um

fator de 100 que fortuitamente se cancelam: como vimos no capítulo passado, o calor

específico à temperatura ambiente é tipicamente 100 vezes menor que o resultado

clássico, enquanto que as velocidades quadráticas médias são da ordem de 100 vezes

maiores, devido ao Princípio de Exclusão de Pauli.

x x - v x + v

T alta T baixa

(6.27)

(6.28)

(6.29)

Figura 6.5 – Transporte de energia em uma barra metálica com um gradiente de temperatura.

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106

6.2 - Teoria Semi-Clássica

Como vimos, o modelo de Drude, apesar de servir como uma introdução

qualitativa à dinâmica eletrônica em sólidos, contém diversas limitações fundamentais

por ser um modelo clássico. Nesta Seção, iremos descrever uma teoria muito mais

elaborada da dinâmica eletrônica, a teoria semi-clássica.

Na descrição semi-clássica a interação elétron-cristal é tratada quanticamente

através da estrutura de bandas (supostamente conhecida) )(kn , que é obtida, como

vimos no Capítulo anterior, a partir da solução da equação de Schrödinger com um

potencial periódico. Já a interação dos elétrons com os campos elétrico e magnético será

descrita classicamente, daí o nome de teoria semi-clássica.

Os estados estacionários em um potencial periódico podem ser descritos pelas

funções de Bloch )(rk . Funções de Bloch têm o vetor de onda k bem definido, e

portanto são deslocalizadas espacialmente, ou seja, a probabilidade de se encontrar um

elétron em qualquer célula unitária do cristal é a mesma. Esta descrição satisfaz o

princípio da incerteza, 1 kx pois a incerteza no vetor de onda é nula, enquanto que a

incerteza na posição é total.

Para descrevermos uma dinâmica semi-clássica, precisaremos determinar

simultaneamente a posição e o momento de um elétron sem violar o princípio da

incerteza. Isto só é possível porque não precisamos de precisão absoluta nesta

determinação. A posição r do elétron deve ser bem definida se comparada com o

comprimento de onda dos campos externos aplicados, enquanto que o vetor de onda k

deve ser bem definido se comparado às dimensões da Zona de Brillouin.

Este objetivo é alcançado através de um pacote de ondas de Bloch, construído de

forma análoga a um pacote de ondas planas usual em Mecânica Quântica:

k

k krkkr ti

gt nnn )(exp)()(),,(

.

O vetor de onda k do pacote será bem definido se os coeficientes g(k') forem diferentes

de zero apenas em uma pequena vizinhança k em torno de k muito menor que as

dimensões da Zona de Brillouin, ou seja, ak 1 , como mostra Fig. 6.6.

Figura 6.6 - Apenas os coeficientes de Fourier de ondas de Bloch na região cinza contribuem para o

pacote de ondas, definindo k em relação às dimensões da ZB.

(6.30)

kx

ky

Região onde

g(k') 0

k

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107

A partir da relação de incerteza 1 kx , isto implica em que ax , ou seja, a

largura do pacote no espaço real é muito maior que as distâncias interatômicas. Como

condição de validade da aproximação semi-clássica, esta largura deve ainda ser muito

menor que o comprimento de onda dos campos externos para que possamos supor que o

campo que atua em um elétron é bem definido. Estas condições estão esquematizadas na

Fig. 6.7.

As condições de validade descritas acima têm uma faixa de aplicação bastante

ampla. A luz visível, por exemplo, tem comprimentos de onda na faixa de 104 Å, muito

maiores portanto que as distâncias interatômicas típicas.

Assim, de agora em diante, quando falarmos de um "elétron" estaremos nos

referindo ao pacote de ondas de Bloch definido acima, com posição r, vetor de onda k e

energia )(kn bem definidos. A velocidade do elétron é também bem definida, e dada

pela velocidade de grupo do pacote de ondas:

)(1

)( kk

kv k nnd

d

.

Reobtemos o resultado para a velocidade de um elétron de Bloch (Equação (5.44)), agora

dentro de um contexto diferente.

A dinâmica eletrônica no modelo semi-clássico é regida por um conjunto de

regras, definidas a seguir:

1. O índice de banda n é uma constante do movimento. Transições banda-banda

causadas pelos campos (absorção ou emissão de fótons) são efeitos quânticos

que o modelo semi-clássico não se propõe a descrever.

2. O vetor de onda k é definido na 1a Zona de Brillouin, ou seja, elétrons com

vetor de onda k e k+G são o mesmo elétron. Consequentemente, se a

dinâmica alterar o valor de k para fora da 1a ZB, automaticamente subtrai-se

um vetor G para que tenhamos de volta k na 1a ZB.

3. As equações semi-clássicas de movimento são:

a

x

Figura 6.7 - Ilustração das condições de validade do modelo semi-clássico no espaço real: a<<x<<.

(6.31)

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108

BkvEFk

kkvr

)(

)(1

)(

next

nn

e

A Equação (6.33) merece uma justificativa. Mostramos no Capítulo anterior que

k não é o momento do elétron, mas sim o momento cristalino. Pode então parecer

estranho que extFk , onde Fext é a força externa, no nosso caso a força de Lorentz.

Mas não há nenhuma inconsistência nisso, já que a força externa não é a força total no

elétron. As forças devido ao potencial cristalino já estão, de alguma forma, incluídas na

relação de dispersão )(kn .

Vamos analisar em detalhe algumas das consequências das equações semi-

clássicas:

(A) Bandas totalmente preenchidas não contribuem para condução

Vamos analisar a dinâmica semi-clássica dos elétrons sob a ação de um campo

elétrico constante em uma banda totalmente preenchida, como a da Fig. 6.8. A força

externa é simplesmente EF eext . Podemos então resolver a Equação (6.33), obtendo

te

t

Ekk )0()( .

Note que, após um pequeno intervalo dt, os vetores de onda de todos os elétrons mudam

pela mesma quantidade. Uma banda que está inicialmente preenchida continua

exatamente da mesma maneira, com a única diferença que há uma permutação entre os

vetores de onda dos elétrons, como mostra a Fig. 6.8.

(6.32)

(6.33)

(6.34)

Figura 6.8 - Ilustração da dinâmica eletrônica a campo elétrico constante em uma banda totalmente

preenchida. Todos os elétrons têm seu vetor de onda k alterado pelo mesmo valor, ocorrendo apenas uma

permutação dos elétrons (indicados pelos números) pelos diferentes k's permitidos.

k

10

9

8

7

6 5

4

3

2

1

k

1

10

9

8

7 6

5

4

3

2

E

t = 0 t = dt

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109

Vamos mostrar agora que a densidade de corrente elétrica associada a uma banda

totalmente preenchida é nula. A densidade de corrente é dada por vj ne . A

velocidade média deve ser encontrada somando-se sobre todos os pontos k da 1a ZB:

ZB

de

Nne )(

)2(

2)(

23

kkkvj k

k

.

Usamos agora os seguintes fatos: (i) A função )(k é periódica no espaço recíproco, com

período igual à 1a ZB: )()( Gkk ; (ii) (Teorema) A integral sobre uma célula

unitária do gradiente de qualquer função periódica é zero. Este teorema está demonstrado

no Apêndice I do Ashcroft. Assim, mostramos que 0j para uma banda completamente

preenchida. Este resultado justifica a definição de condutores e isolantes que fizemos na

Seção 5.3, ou seja, materiais isolantes têm todas as bandas totalmente preenchidas ou

vazias, enquanto que materiais condutores ou metálicos têm pelo menos uma banda semi-

preenchida, e só participam da condução de eletricidade os elétrons destas bandas.

(B) Buracos

Um dos resultados mais intrigantes apresentados na Seção anterior foi a medida

do coeficiente Hall em alguns metais que aparentemente indicava que os portadores de

carga seriam positivos. Veremos que a razão deste fenômeno está no comportamento

coletivo dos elétrons em uma banda semi-preenchida que é muitas vezes melhor

compreendido se interpretarmos a ausência de elétrons em alguns níveis como

"partículas" de carga positiva, conhecidas como buracos. Vejamos algumas propriedades

do buracos:

(i) Uma banda totalmente preenchida tem momento total igual a zero, ou seja,

0k

kk total . Isto ocorre porque para cada vetor de onda k permitido existe um -k. Se

retiramos um elétron com vetor de onda ke da banda, esta terá momento total -ke, ou

podemos equivalentemente dizer que criou-se um buraco com momento eb kk , como

mostra a Fig. 6.9. O buraco é a uma representação efetiva dos demais elétrons que

restaram na banda.

(ii) A energia do buraco é o negativo da energia do elétron ausente,

)()( eebb kk . Isto ocorre pois quanto mais baixa a energia do nível desocupado,

maior será a energia total dos elétrons que restaram, ou seja, do buraco. Pode-se então

definir uma banda virtual de buracos, com concavidade oposta à banda de elétrons, como

mostra a Fig. 6.9.

(6.35)

k kb

ke

Figura 6.9 - Duas descrições equivalentes do mesmo sistema físico: uma banda de elétrons com um

único nível vazio, de energia e e vetor de onda ke, ou uma banda de buracos com um único nível

ocupado, de energia b=-e e vetor de onda kb=- ke.

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110

(iii) A velocidade do buraco é igual à velocidade que teria o elétron ausente,

eb vv . Isto pode ser verificado notando-se que as derivadas de )(k na Fig. 6.9 são

idênticas tanto para o elétron como para o buraco.

(iv) Se eb kk e eb vv , então a equação de movimento para buracos é :

BvEk bb e ,

ou seja, é a equação de movimento para uma partícula de carga positiva +e!

Estas 4 características definem o conceito de buraco. Mas, como dissemos, a

descrição da dinâmica dos elétrons em uma banda pode ser feita ou não utilizando-se este

conceito. Veremos a seguir em que situações a utilização da idéia de buracos será mais

útil.

(C) Massa efetiva

Em alguns casos de interesse, principalmente em semicondutores, o

preenchimento das bandas é tal que uma das situações esquematizadas na Fig. 6.10 pode

ocorrer: o nível de Fermi está localizado próximo do fundo ou do topo de uma banda. Na

vizinhança de um máximo ou mínimo, a relação de dispersão pode sempre ser

aproximada por uma expressão quadrática. Em uma dimensão, teríamos:

2

00)( kkAk ,

onde o sinal (+) descreve a banda em torno de um mínimo e o sinal (-) em torno de um

máximo.

Por analogia com os elétrons livres, onde mk 2)( 22k , define-se uma massa

efetiva m tal que

mA 22 . Assim,

2

0

2

02

)( kkm

k

.

(6.36)

(6.37)

Figura 6.10 - Situações importantes onde o conceito de massa efetiva é útil: banda ocupada apenas em

torno de um mínimo (esquerda) ou desocupada em torno de um máximo (direita).

(6.38)

F

k k0

F

k k0

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111

A velocidade e a aceleração podem então ser calculadas analiticamente:

m

F

m

kva

kkmdk

dkv

ext

)(

1)( 0

Vejamos estas relações em maior detalhe. Na vizinhança de um mínimo, temos

amFext

, ou seja, o elétron se comporta como uma partícula livre com uma massa

efetiva. A massa efetiva pode ser numericamente bastante diferente da massa do elétron

(como veremos quando estudarmos os materiais semicondutores), o que irá alterar

profundamente as propriedades dinâmicas dos elétrons, tornando-os mais “leves” ou mais

“pesados”. Note que todo o efeito do potencial cristalino está embutido neste único

parâmetro. Na vizinhança de um máximo, a situação torna-se ainda mais interessante e

inesperada: amFext

, ou seja, a aceleração é em sentido oposto à força externa, como

se o elétron tivesse uma massa efetiva negativa! Neste caso é útil o conceito de buracos3.

Para a banda de buracos associada (veja Fig. 6.9) temos uma massa efetiva positiva e,

como mostra a Eq. (6.36), uma equação de movimento para partículas de carga positiva.

Assim, em situações como a mostrada na Fig. 6.10 (direita), em que o nível de Fermi

passa perto do topo de uma banda, diz-se que os portadores de carga são buracos e não

elétrons.

Em geral, a massa efetiva depende da direção cristalina. A generalização de (6.37)

para três dimensões é

kMkk 12

02

)(

n ,

onde M-1

é o tensor massa efetiva inversa:

ji

ijkk

2

2

1 1

M .

Portanto, no caso mais geral, a aceleração não estará necessariamente na direção da força

externa. Mais uma vez, isto pode ser entendido lembrando que a força externa não é a

força total. A influência do potencial cristalino é importante, e está elegantemente

embutida no tensor massa efetiva.

(D) Dinâmica semi-clássica para campo elétrico constante

Vamos agora resolver as equações semiclássicas (6.32) e (6.33) para alguns casos

simples, porém interessantes. Vejamos inicialmente o que ocorre para um campo elétrico

constante. Vamos supor que temos uma banda (como a que está mostrada na Fig. 6.11)

ocupada por um único elétron. Como já vimos, a trajetória dos elétrons no espaço

recíproco é dada pela Equação (6.34), ou seja, em um mesmo intervalo de tempo este

elétron mudaria seu vetor de onda k pela mesma quantidade. Dado um intervalo de tempo

bastante longo, o elétron percorreria no espaço recíproco toda a extensão da 1a Zona de

3 Os físicos não se sentem muito confortáveis em lidar com partículas de massa negativa...

(6.39)

(6.40)

(6.41)

(6.42)

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112

Brillouin, até ser “refletido” de volta ao início pela regra Gkk (segunda regra do

modelo semi-clássico). Como seria a trajetória deste elétron no espaço real? Bem, a

velocidade é dada pela Equação (6.32). Mostramos na Fig. 6.11 um exemplo

unidimensional, onde a velocidade é simplesmente proporcional a dkd . Como

eEtktk )0()( , o eixo k pode ser simplesmente interpretado como o eixo –t, ou seja,

o movimento do elétron é oscilatório. Chegamos assim a um resultado inesperado: em um

cristal, um campo elétrico DC gera uma corrente AC! Estes movimentos oscilatórios são

conhecidos como oscilações de Bloch, e sua origem está no fato que, na vizinhança dos

pontos de máximo das bandas, a aceleração é contrária à força, como discutimos

anteriormente.

O fenômeno das oscilações de Bloch parece destoar da nossa experiência diária.

Sabemos que, quando se aplica um campo elétrico constante a um metal, observa-se uma

corrente elétrica DC (Lei de Ohm). De fato, as oscilações de Bloch ainda não foram

observadas em metais comuns. Mostramos a seguir que a razão está no espalhamento dos

elétrons, que discutimos na Seção anterior.

Para que as oscilações sejam observadas, é necessário que o elétron percorra uma

“distância” k no espaço recíproco da ordem das dimensões da ZB, ou seja, -110 m 102 ak . Podemos então calcular o período deste movimento oscilatório:

eEkT . Para campos elétricos típicos (E ~ 1 V/m), temos T ~ 10-5

s. Este deve ser o

tempo de percurso livre de um elétron para que pudéssemos observar uma oscilação de

Bloch. No entanto, vimos na Seção anterior que o tempo de relaxação (tempo médio entre

duas colisões) dos elétrons em metais é da ordem de 10-14

s, ou seja, o elétron colide bem

antes de realizar um ciclo completo pela ZB.

Apesar destas dificuldades em metais, o fenômeno das oscilações de Bloch já foi

observado em sistemas semicondutores artificiais, conhecidos como super-redes4. Uma

super-rede do tipo mais simples é produzida pela deposição sequencial de 2 materiais

diferentes, digamos A e B, com cada camada contendo vários planos atômicos, como

4 K. Leo, P. H. Bolivar, F. Bruggemann, R. Schwelder e K. Kohler, Solid State Comm. 84, 943 (1992).

k

(k)

v(k)

t

Figura 6.11 – Exemplo unidimensional das oscilações de Bragg de um elétron sob a ação de um campo

elétrico constante.

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113

mostra a Fig. 6.12. Assim, a periodicidade no espaço real é modificada artificialmente: a

célula unitária torna-se muito maior. Isto implica que, no espaço k, a ZB torna-se muito

menor. Com um k muito pequeno, torna-se possível observar as oscilações de Bloch.

(E) Dinâmica semi-clássica para campo magnético constante

No caso de um campo magnético constante, a equação (6.33) torna-se:

])([ BkvFk eext .

Nota-se então que k é perpendicular tanto a B quanto a )(k

(que é proporcional a

v(k)). Portanto, no espaço recíproco o elétron se move em uma superfície de energia

constante e em um plano perpendicular ao campo magnético, como mostra a Fig. 6.13.

Vamos analisar como seria então o movimento deste elétron no espaço real. Seja

o campo magnético orientado na direção z, zB B . A Equação (6.43) torna-se

A B A B … …

a

Figura 6.12 – Exemplo de uma super-rede AB. Cada camada consiste em diversos planos atômicos.

Assim, a célula unitária (indicada pelo parâmetro de rede a) torna-se muito maior do que a célula unitária

de um cristal típico, tornando então a ZB muito menor.

(6.43)

k(0)

kx

ky

kz

B = Bz

= constante

Figura 6.13 – Órbita de um elétron no espaço recíproco sob a ação de um campo magnético constante. O

vetor de onda do elétron se move em uma linha formada pela interseção da superfície de energia

constante com um plano perpendicular ao campo magnético.

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114

Bvek

Bvek

xy

yx

,

que podemos integrar e obter

)()(

)()(

0

0

tkeB

yty

tkeB

xtx

x

y

Esta é portanto a trajetória do elétron no espaço real que, dependendo da complexidade

da superfície de energia constante, pode ser bem complicada. Vamos tomar, como um

exemplo simples, a trajetória elíptica mostrada na Fig. 6.13. Vamos supor que a elipse

correspondente à trajetória no espaço k tenha seu semi-eixo maior ao longo de x. A Fig.

6.14(a) mostra uma projeção desta trajetória no plano kz = 0. Estão mostrados alguns

instantes da trajetória e seus vetores k correspondentes. Analisando as equações (6.44),

obtemos as componentes x e y da velocidade no espaço real (Fig. 6.14(b))

correspondentes aos mesmos instantes da figura (a). Nota-se que a trajetória no espaço

real é também no sentido anti-horário (como se esperaria de um elétron sob a ação de um

campo magnético), porém girada de 90o com relação à trajetória no espaço recíproco. Se

levarmos em conta a componente vz da velocidade, que neste caso é constante, chegamos

à conclusão que a trajetória do elétron é uma espiral.

O exemplo específico discutido acima pertence a uma classe de órbita conhecida

como órbita de elétron. No entanto, este não é o único tipo de órbita. Os tipos de órbita

possíveis estão descritos a seguir.

(6.44)

(6.45)

kx

ky

1

4

3 2

x

y

1

2

3

4

(a) (b)

Figura 6.14 – Projeção no plano xy das órbitas no espaço recíproco (a) e no espaço real (b) de um elétron

sob a ação de um campo magnético constante na direção z. Ambas as órbitas correspondem a um

movimento no sentido anti-horário, mas estão giradas de 90o entre si.

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115

1

1

2

3

2

3

4 4 1

2

3

4

(a) (b)

Figura 6.14 – Órbita de buraco, no sentido horário.

B

(i) Órbita de elétron

Se a superfície de Fermi não cruza os planos de Bragg que delimitam a 1a ZB (por

exemplo, metais alcalinos), as órbitas dos elétrons mais energéticos têm sentido anti-

horário, como mostra a Fig. 6.15.

(ii) Órbita de buraco

Consideremos agora uma situação onde a superfície de Fermi toca a borda da ZB.

Isto ocorre, por exemplo, para os metais bivalentes. A Fig. 6.16(a) mostra esta situação

no esquema de zona reduzida. Repare que a trajetória no elétron no espaço recíproco é tal

que o elétron percorre uma certa distância ao longo da superfície de Fermi até sair da 1a

ZB, quando então é trazido de volta por uma translação de um vetor G. A trajetória

obedece à seqüência 14321 mostrada na figura. É instrutivo analisar esta

trajetória no esquema de zona repetida, na Fig. 6.16(b). Note que o elétron percorre uma

órbita no sentido horário, como se fosse uma partícula de carga positiva! Mais uma vez

notamos que o conceito de buraco aparece de como uma maneira natural para descrever a

dinâmica destas partículas, e isto ocorre pois a superfície de Fermi encontra-se numa

região próxima a um máximo da banda. As regiões desocupadas que a superfície de

Fermi engloba (círculos brancos na figura) são chamadas bolsos de buracos ("hole

pockets") .

Figura 6.14 – Órbita de elétron, no sentido anti-horário.

1a ZB

B

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116

B

Pode-se mostrar que, na vizinhança de um mínimo ou máximo de banda, a

frequência do movimento periódico dos elétrons ou buracos é dada pela frequência de

cíclotron

m

eBc , onde m

* é a massa efetiva ciclotrônica. Pode-se mostrar (Problema 2,

Capítulo 12 do Ashcroft, que deixamos como um exercício opcional um tanto

desafiador), que a massa efetiva ciclotrônica pode ser obtida a partir do tensor massa

efetiva da seguinte forma:

21

zz

mM

M,

onde M é o determinante de M e o campo aplicado está na direção z. Um método

bastante poderoso para determinação da superfície de Fermi em metais é baseado nesta

relação: a ressonância ciclotrônica. Neste método, aplica-se um campo magnético e

constante e incide-se simultaneamente radiação de microondas no cristal. A radiação será

mais atenuada quando a frequência da radiação incidente estiver em ressonância com a

frequência de cíclotron. Variando-se a magnitude e a orientação do campo magnético,

pode-se então mapear a superfície de Fermi.

No Capítulo 5, mencionamos também a existência da massa efetiva térmica, que

pode ser obtida a partir de medidas de calor específico. A massa efetiva térmica,

Tm ,

também se relaciona com o determinante do tensor massa efetiva:

31

M

Tm .

(iii) Órbitas abertas

Um terceiro tipo de órbita são as órbitas abertas, esquematizadas na Fig. 6.15. Em

3 dimensões, as órbitas abertas podem ser obtidas variando-se a direção do campo

magnético aplicado, como mostra a Figura 12.8 do Ashcroft.

Referências:

- Ashcroft, Capítulos 1 e 12.

- Kittel, Capítulos 8 e 9.

(6.46)

(6.47)

Figura 6.15 – Órbita aberta.