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6 O mundo diante do homem: sobre a natureza das Coisas 6.1 Introdução Para cada coisa é definido um limite próprio, uma com-posição que define sua natureza mesma. Mas no pensamento epicurista a noção de limite não implica, no entanto, uma rigidez monolítica. Ela indica antes a definição de uma região dos modos de ser, própria para cada composto específico, um gradiente em torno do qual cada coisa determinada pode variar sem, contudo, deixar de ser aquilo que ela é. A transgressão desse limite significa, de outra parte, uma ruptura irreversível, uma espécie de fronteira (ou ângulo) que uma vez rompida (o) não pode ser restabelecida. São os pactos da natureza (foedera naturae). Conforme uma lei geral explicitada nestes pactos, tem-se que toda coisa compósita, isto é, tudo aquilo que não é nem átomo nem vazio é, por natureza, perecível: pertence ao tempo, à duração, ao limite. Imutáveis apenas os átomos e o vazio; tudo o que está sujeito à mudança, ao movimento e às transformações está igualmente submetido às leis de mortalidade 1 . Com efeito o mundo é o composto por excelência: composto de compostos, não poderia ele gozar do privilégio que obriga tudo o que é constituído a limitar-se a uma duração determinada. O mundo não é, afinal, uma totalidade acabada. Ainda que se configure como instância derradeira, o todo pensado pelos epicuristas está sempre em vias de indeterminação, e é o estatuto indefinido dessa totalidade, de toda totalidade constituída, que é preciso reter. Não há estrutura ontológica do mundo, 1 É preciso considerar que isso a que denominamos submissão ao tempo não passa, a rigor de uma expressão corrente, um lugar comum indicador da perecibilidade de algo. A rigor o tempo é, antes, ele mesmo expressão do caráter movediço (e perecível) da totalidade.

6 O mundo diante do homem: sobre a natureza das Coisas

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O mundo diante do homem: sobre a natureza das

Coisas

6.1 Introdução

Para cada coisa é definido um limite próprio, uma com-posição que define

sua natureza mesma. Mas no pensamento epicurista a noção de limite não implica, no

entanto, uma rigidez monolítica. Ela indica antes a definição de uma região dos

modos de ser, própria para cada composto específico, um gradiente em torno do qual

cada coisa determinada pode variar sem, contudo, deixar de ser aquilo que ela é. A

transgressão desse limite significa, de outra parte, uma ruptura irreversível, uma

espécie de fronteira (ou ângulo) que uma vez rompida (o) não pode ser restabelecida.

São os pactos da natureza (foedera naturae). Conforme uma lei geral

explicitada nestes pactos, tem-se que toda coisa compósita, isto é, tudo aquilo que não

é nem átomo nem vazio é, por natureza, perecível: pertence ao tempo, à duração, ao

limite. Imutáveis apenas os átomos e o vazio; tudo o que está sujeito à mudança, ao

movimento e às transformações está igualmente submetido às leis de mortalidade1.

Com efeito o mundo é o composto por excelência: composto de compostos,

não poderia ele gozar do privilégio que obriga tudo o que é constituído a limitar-se a

uma duração determinada. O mundo não é, afinal, uma totalidade acabada. Ainda que

se configure como instância derradeira, o todo pensado pelos epicuristas está sempre

em vias de indeterminação, e é o estatuto indefinido dessa totalidade, de toda

totalidade constituída, que é preciso reter. Não há estrutura ontológica do mundo,

1 É preciso considerar que isso a que denominamos submissão ao tempo não passa, a rigor de uma expressão corrente, um lugar comum indicador da perecibilidade de algo. A rigor o tempo é, antes, ele mesmo expressão do caráter movediço (e perecível) da totalidade.

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nem níveis de ser, nem lugares privilegiados, nem ilhas de impermanência no fluxo2.

Este mundo é, pois, uma estrutura que permanece na duração – que por definição é

finita – a despeito da voragem que tudo consome e que repõe incessantemente os

elementos. Poder-se-ia, talvez, dizer que o mundo é um todo estruturado, desde que

se fizesse a ressalva de que a estrutura é, nesse caso, fugidia e, de nenhum modo,

anterior ao mundo ele mesmo.

À questão “por que isto (o mundo, por exemplo) se mantém?” Lucrécio

responde: tão somente porque isto não se mantém inteiramente. Para que haja uma

natureza, como de fato há; para que esta natureza seja pensável, é preciso um mínimo

de desaprumo, um mínimo de desvio, uma diferenciação mínima. A natureza,

potência infinita e geradora, é algo que se insinua através de um hiato, através de uma

diferença delicada, sutil. Pela diferença sutil em relação à estabilidade universal – isto

é, o caos – a estabilidade (sempre provisória, precária) se mantém.

O que é a natura? Um sistema aberto. O que é o mundo? Um sistema aberto.

O que é o corpo? Um sistema aberto. O que é o homem? Um sistema aberto. O

homem é, como tudo mais, o que vem-a-ser, isto é, a irrupção de uma duração no

infinito da totalidade aberta: espaço e tempo. A questão a ser compreendida na física

epicurista é a do sentido, mas trata-se, nesse caso, do sentido do movimento em uma

direção dada. Todas as coisas que vêm a ser comportam-se simultaneamente como

receptáculo de fluxos e como fluxos.

Será em conformidade com esta argumentação em torno da noção de limite –

na qual retoma e aprofunda a idéia de que para cada espécie de coisa há uma

determinação geral e finita (finita potestas) – que Lucrécio irá retomar aquele que é o

leitmotiv da filosofia epicurista: o antiprovidencialismo. Segue-se um

desenvolvimento de alguns versos no livro V; neles, Lucrécio ataca frontalmente as

teses dos representantes da teologia astral3. Nestes versos é combatida a tese de que

aos astros, ao mundo, estariam aliados uma alma e uma inteligência. Estes, de acordo

2 Exceção feita aos deuses e suas moradas. 3 D.R.N, V 126 – 145.

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com os epicuristas, não são possuidores de uma natureza divina: “uma ordem fixa

assinala o lugar onde cada coisa pode crescer e residir”4. Nesta passagem Lucrécio

remete-se, ainda que implicitamente, ao desenvolvimento do livro III do D.R.N, no

qual é tratado o tema da natureza da alma e do espírito, e das condições de

desenvolvimento de ambos – conforme já vimos anteriormente. As circunstâncias nas

quais se dá o desenvolvimento da alma, do espírito e do pensamento são reunidas

segundo uma ordem determinada, através de uma estrutura que advém de uma certa

organização prévia da matéria. Já a matéria bruta não pode, por si mesma, pensar.

O mundo não é obra de uma inteligência divina. Modelos vivos de

sabedoria, os deuses vivem ignorados5 de todo cuidado que não seja seu próprio bem-

estar e felicidade. Que benefício seres perfeitos – realização viva da felicidade

suprema – poderiam esperar de nosso reconhecimento6? Além disso, de onde teriam

os deuses extraído o modelo para criar o mundo, o homem?

Vale dizer, com isso, que o monopólio da criação pertence à natureza

(natura creatrix)7. Não obstante, conforme já vimos, essa natureza não é um

pensamento criador, um poder estruturante. Ela é, antes, uma potência cega que só se

dá ao pensamento e à consciência (epifenômenos de sua atividade) após ter sido

criada por seu próprio dinamismo. Marcel Conche observa que ao fazer da sensação

critério de verdade os epicuristas sinalizam sem hesitações que não há nada que

preceda a natureza (nem pensamento, nem consciência, nem espírito ou coisa que o

valha): o mundo está presente8.

Para Lucrécio, o conhecimento da verdadeira natureza das coisas é o veículo

que permite ao homem tomar uma posição sábia diante do mundo. Uma posição sábia

significa nada esperar deste mundo mesmo, isto é, não expor o espírito ao desamparo

dos desejos vãos, das aspirações ao falso infinito. De ordinário, o homem espera algo

4 D.R.N, V 131: Certum ac dispositumst ubi quicquid crescat t insit. 5 Conforme a fórmula fixada pela sabedoria epicurista: vive ignorado. 6 D.R.N, V 165 – 167. 7 D.R.N, I, 29 e II, 1117. 8 Lucrèce et l’experiénce, páginas 71 – 72.

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da vida, mas a consciência vigilante dos epicuristas adverte incessantemente que não

há nada a esperar, que a promessa é geradora de angústias e que, enquanto nos

perturbamos pelas sombras do falso, não realizamos em nós o bem supremo. O que se

pensa ordinariamente dos deuses e do mundo é, na verdade, um não pensamento. Da

natureza das coisas – acaso e necessidade, descontinuidade e continuidade,

instabilidade e estabilidade – os epicuristas determinam a natureza do bem do homem

– o prazer – a verdadeira natureza dos deuses e o significado último daquilo que é a

eudaimonia. Além disso é possível colher outras evidências: são tais os defeitos e as

imperfeições da natureza –inclua-se aí a natureza humana – que aos olhos do

epicurista significa impiedade apresentá-la como obra de um poder divino. Perfeitos

por definição, como poderiam os deuses criarem algo cuja marca é, precisamente,

imperfeição e inacabamento?

Mesmo que eu ignorasse quais são os princípios das coisas, ousaria, no entanto,

apenas pelo estudo dos fenômenos celestes e de outras coisas além, sustentar que

de nenhum modo a natureza foi criada para nós por uma vontade divina: tão

grandes são os seus defeitos!9

Estes versos e aqueles que o sucedem parecem escritos sob medida para se

opor a Platão e sua concepção acerca da criação do mundo. Logo após afirmar que o

mundo teve nascimento, “[...] pois tudo o que é sensível e pode ser apreendido pela

opinião com a ajuda da sensação, está sujeito ao devir e ao nascimento”, Platão

afirma que tudo aquilo que vem a ser nasce sob o efeito de uma causa. A “causa”,

bem o sabemos, é o Demiurgo. Mas a determinação do “caráter” desse Demiurgo é o

que nos chama atenção no texto platônico.

Outro ponto que precisamos deixar claro é saber qual dos dois modelos tinha em

vista o arquiteto quando o construiu: o imutável e sempre igual a si mesmo ou o

9 D.R.N, V 195 – 199.

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que está sujeito ao nascimento? Ora, se este mundo é belo e for bom o seu

construtor, sem dúvida nenhuma este fixara a vista no modelo eterno; e se for o

nem se poderá mencionar, no modelo sujeito ao nascimento. Mas, para todos nós

é mais do que claro que ele tinha em mira o paradigma eterno; entre as coisas

nascidas não há o que seja mais belo do que o mundo, sendo seu autor a melhor

das causas.10

Esta passagem não deixa de ter um caráter surpreendente. Nela Platão parte

da evidência de que o mundo é belo para deduzir que sua construção é obra de um

bom artesão, a partir de um modelo eterno. Mas o epicurismo, muito embora afirme

sem tergiversações que o prazer supremo pode ser alcançado, não se esquiva de

indicar igualmente uma sorte de dor universal. Prazer e dor são esses dois pólos

irredutíveis entre os quais a vida senciente oscila sem intermediações. Alcançável, a

paz de espírito que vem da perfeição espiritual não é um dado, tampouco uma

evidência. Ela deve ser conquistada em um mundo que possui traços marcantes de

uma indiferença hostil para com a sorte humana. Senão, como explicar a dureza do

trabalho humano para garantir sua subsistência; a luta heróica e silenciosa do homem

do campo; as secas e as inundações que ignoram todo esse esforço; as doenças

sazonais aportadas pelos ventos; a morte prematura que vem colher os recém-natos?

De certo modo, algumas dentre as "filosofias escatológicas" (Anaximandro,

Pitágoras, Empédocles, mesmo Platão) são uma tentativa de resposta dessa

consciência inquieta diante da dor do mundo. Buscam o amparo pois estão

comprometidas de antemão com o sentido, isto é, partem da intuição prévia de que a

causa daquilo que é o mundo é exterior e superior ao mundo ele mesmo. Assim, a

experiência humana é, na verdade, uma odisséia religiosa: a busca pelo sentido

rompido e a "religação" com essa ordem suprema de que somos a queda.

Mas para os epicuristas não há “religação” possível porque não há elo a ser

recuperado. O mundo não é criado pelos deuses para o homem. Tampouco é um

mundo hostil. A dor é um dado objetivo, tanto quanto o prazer e a felicidade. Mas,

10 Timeu, 28 c – 29 a. Obviamente os grifos são nossos.

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em última análise, o mundo não possui um sentido. A experiência humana verdadeira,

sábia, longe de ser a correta determinação do sentido, é, na realidade,a do

aprendizado dessa indiferença absoluta do mundo para com o homem.

Marcel Conche assinala que em várias ocasiões o De rerum natura sinaliza a

incompatibilidade da presença da dor universal com a idéia de uma providência.

Avec la physique d'Epicure, les aspects doulourex du monde ne sont que le

résultat sans significations de causes qui se mêlent sans dessein. Le mal se réduit

à la douleur en tant qu'elle fait souffrir. Il n'est pas injustiable car il n'y a pas à

justifier; il n'est pas absurde car il n'y a pas à chercher ou exiger un sens; De

telles notions témoignent encore d'une mentalité finaliste qui cherche des

intentions où il n'y a que le hasard des rencontres heureuses ou malheureuses et

rien d'autre. Le poème de Lucrèce est le long cri de joie de l'homme enfin

soulagé parce qu'il n'y a pas de sens aux choses et qui trouve la paix dans

l'acceptation du hasard et du néant11.

6.2 As condições de imortalidade

Para que o mundo fosse eterno seria necessário que ele preenche-se as

condições de imortalidade. Para tanto seria necessário que ele fosse: a) ou

absolutamente pleno e impenetrável como o átomo, de tal modo que nenhum choque

ou movimento interno pudesses desagregá-lo; b) ou absolutamente intangível, como o

vazio, de modo que nenhum choque pudesse atingi-lo e desagregá-lo: c) ou, ainda,

que ele fosse o universo, o todo, para além do qual não há exterioridade que possa

ameaçá-lo, e que sempre permanece idêntico a si mesmo. Ameaça, neste sentido,

significa uma exterioridade cujo assalto pode romper um equilíbrio dado, seja de

modo violento e definitivo, seja aos poucos, como um trabalho de erosão. Mas o

vazio é não só o índice da infinita potência criadora da natureza como também de sua

impermanência inalienável. É lá, nesse infinitamente alhures, que está a gênese do

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mundo. É do vazio infinito que acorrem, pela força do acaso, os átomos, reunidos em

grande número; e uma vez que este concurso se associa de um modo determinado, o

mundo se manifesta. É deste mesmo vazio que os átomos continuam a migrar para

renovar as partes erodidas do mundo e compensar as perdas, pois tudo se move. Uma

composição tal como esta – este equilíbrio sutil que só se sustenta em equilíbrio por

não alcançar um equilibro pleno, este composto de compostos – jamais poderia ser

contado no número dos imortais. A mortalidade do mundo é uma evidência racional.

Corpo composto como todos os demais que são produzidos pela natureza, o

mundo tem fixado, segundo as leis inabaláveis dessa natureza mesma, um fim. Mas

trata-se de um fim qualquer: isto significa que este fim não está determinado, deste ou

daquele modo. O quando e o como permanecem à margem de qualquer fixação

prévia, abusiva, conservam-se indeterminados, não apenas para nós, mas em si

mesmos. O clinamen é uma diferencial permanente que, em lugar e tempo incertos,

introduz uma variação mínima que é a ruptura com a determinação física. Reaparece

aqui o tema da flutuação. A indeterminação do processo causal acaba por diluir os

fenômenos, eles mesmos determinados, em uma nuvem de indeterminação. O destino

do mundo, totalidade incerta na qual os fenômenos se dão segundo uma certa

orquestração é o destino comum de todos os seres: pertence, ainda uma vez mais, ao

acaso.

Somatório de corpos, o mundo não pode ter existido desde sempre. A

própria natureza humana oferece testemunho do mundo como devir e não como uma

realidade sempiterna: a aventura humana não recua longamente no tempo, como o

indicam as narrativas heróicas e seu passado relativamente recente. O progresso das

técnicas nos mais diversos âmbitos é, segundo Lucrécio, índice da juventude do

mundo e da “humanidade”.

11 Conche, M. Lucrèce et l’experiénce, páginas 72 – 73.

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[...] segundo penso, tudo é novo neste mundo, tudo é recente, e há bem pouco

tempo ele teve seu começo. Eis a razão pela qual certas artes se aperfeiçoam e

ainda hoje vão progredindo. Ainda hoje acessórios são acrescentados aos navios,

e há não muito tempo os músicos produziram melodias novas. Enfim, essa

natureza, essa razão das coisas que eu exponho é uma descoberta recente, e eu

mesmo sou o primeiro entre os primeiros a traduzi-la em nossa língua.12

6.3 A formação do mundo: acaso e necessidade.

Após reconhecer no mundo uma organização transitória, perecível, Lucrecio

põe-se a tratar do processo a partir do qual ele foi formado13. Mas não se trata de

descrever a origem, nem tampouco de um narrar um momento fundador. Como

vimos, não há gesto eficaz (divino) que seja criador do mundo. O mundo é um devir

que, em última análise – isto é, segundo a ontologia atomista – não tem princípio nem

fim. A descontinuidade material, sabemos, permite em contrapartida uma

continuidade de movimento. Assim, se pensarmos o mundo como um conjunto

descontínuo de unidades moventes, vê-se que, em vista do estado geral do universo, a

existência desse mundo nada acrescenta nem subtrai. O universo permanece estável e

idêntico a si mesmo em vista dessa formação transitória: “[...] o movimento que

anima agora os corpos primordiais é o mesmo que tiveram em idades remotas e o

mesmo que terão no futuro”14.

Não é por outra razão que Epicuro e Lucrécio, diferentemente de Demócrito,

não estabelecem, a rigor, uma clivagem ontológica, definitiva, entre as realidades

últimas – átomos e vazio – e o devir, aquilo que aparece no nível dos compostos: “os

corpos (corpora) são em parte formados pelos elementos (primordia rerum) e em

parte formados pelo que resulta da reunião desses elementos (concilia)15.

12 D.R.N. V, 330 – 337. 13 D.R.N. V, 416 – 508. 14 D.R.N. II, 297 – 299. 15 D.R.N. I, 483 – 484. Epicuro, Carta a Heródoto, 40 – 41.

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L’apparition d’une catégorie englobant à la fois les atomes et les composés

montre qu’il n’y a plus de rupture ontologique dans les passage à l’organization

et c’est ce qui explique pourquoi, dans la physique épicuriénne, les composés

n’ont plus seulement la pseudo-existence conventionelle que leur attibuait

Démocrite, mais une existence réelle.16

Nota-se aqui que o estabelecimento de uma ontologia em sentido estrito,

tarefa com a qual se comprometeu o pensamento dos abderianos, não é o bastante

para prestar contas de uma complexidade movente como a do mundo; e no entanto,

afirmam os epicuristas, é o mundo mesmo que deve ser explicado.

A gênese do mundo, tema anunciado de forma reincidente em repetidas

ocorrências anteriores, ganha finalmente uma imagem detalhada. De que modo, a

partir de uma massa tempestuosa de elementos, surgiram a terra, o céu, os abismos

que contém os oceanos, o sol e a lua e seus respectivos cursos ordenados, bem como

toda a gama de seres viventes? A princípio Lucrécio recupera a idéia de um caos-

nuvem originário, inteiramente regido pelo acaso.

Com efeito, não foi em virtude um plano determinado, nem por conta de um

espírito sagaz que os elementos das coisas se colocaram em sua ordem;

tampouco combinaram entre si seus movimentos. Em grande número, os

elementos das coisas, abalados por choques de mil espécies, foram sempre

levados por seu próprio peso e agregaram-se de todas as maneiras, não cessando

de se moverem e de experimentarem todas as coisas que podiam ser criadas

através de sua união; eis a razão pela qual, por força de errarem durante o infinito

do tempo experimentando todas as uniões e movimentos possíveis, acabaram

finalmente por formar aquilo que, depois de reunido, torna-se a origem dos

grandes objetos naturais, a terra, o mar, o céu e as espécies viventes.17

16 Morel, P.-M. Atome et nécessité, pág. 50.

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A descrição feita inicialmente por Lucrécio traça o quadro do estado caótico

do movimento dos corpos originários. Mas esta imagem do caos já fora fixada em

momentos anteriores do poema, ocorrências nas quais tratava-se de definir a natureza

do movimento dos átomos. Em uma passagem determinada, Lucrécio evoca como

ilustrativo dos movimentos invisíveis da matéria a imagem, democriteana, dos grãos

de poeira errando claridade do sol18. Esse estado geral de movimento é uma mistura

confusa de “distâncias, direções, combinações, densidades, choques, encontros e

movimentos”19. Mas esse amontoado tempestuoso, inteiramente cego em seus

desígnios, é como que uma infinita potência de distribuição de partes. Nesse estado

proto-embrionário os átomos estão distribuídos de forma dispersa, mas a formação do

mundo indica que em um momento – não determinado – as grandes massas de

elementos começaram a se agrupar, de modo que os corpos reuniram-se segundo

relações de semelhança. Os elementos formadores da terra, mais pesados, começaram

a ocupar as partes centrais, mais baixas, ao mesmo tempo em que, nesse movimento

de reunião, expulsavam os elementos mais leves que futuramente dariam origem aos

oceanos e, ainda os astros mais o sol e a lua – constituídos por elementos mais leves.

Com efeito, inicialmente, todos os elementos da terra, em virtude de seu peso e

de estarem presos uns aos outros, tendiam a se reunir no centro e a ocupar em

massa as regiões mais baixas; e quanto mais eles estreitavam sua união e seu

enganchamento, com mais força expulsavam de sua matéria aquilo que viria a

constituir o mar, os astros, o sol, a lua e as muralhas do vasto mundo. Todos

estes corpos compõem-se de sementes mais lisas e redondas, seus elementos são

bem menores que os da terra. Assim, atravessando os vazios e os poros da terra

ainda pouco densa, libertando-se por fim desta, eleva-se em primeira mão o éter

cheio de fogo; este, ligeiro, arrasta consigo um grande número de fogos, mais ou

menos como vemos, com freqüência, os raios matutinos do radiante sol tingidos

de vermelho com o orvalho das ervas peroladas, e um vapor se eleva dos lagos e

dos rios inesgotáveis, a tal ponto que muitas vezes parece a nós fumegar a terra.

17 D.R.N. V, 419 – 431. Ver ainda: I, 1021 – 1026 e II, 1061 – 1063. 18 D.R.N. II, 125 – 132. 19 D.R.N. V, 436 – 439.

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Todas essas emanações que se elevam vão se reunir nas alturas formando um

corpo denso de nuvens capazes de nos ocultar o céu. Foi desse modo que, nesse

momento, o éter ligeiro e volátil, tendo-se condensado, formou a abóboda que

envolve o mundo e espalhando-se ao longe, por toda a parte e em todas as

direções, envolveu tudo com um abraço ávido e passou a servir de recinto às

coisas. Nasceram depois o sol e a lua, cujos globos giram pelos ares por não

terem sido incorporados nem pela substância da terra, nem tampouco pelo éter

imenso: pois não eram graves o bastante para ocupar o centro do mundo nem

leves o bastante para deslizar até as regiões superiores. Estão, todavia, de tal

modo estão suspensos nos espaços intermediários, que giram como corpos vivos

e fazem parte do conjunto do mundo; do mesmo modo que podem, em nosso

corpo, ficar alguns membros em repouso, mesmo que outros estejam em

movimento.20

Lucrécio inscreve o mundo, tanto em seu processo de formação quanto em

sua permanência, sob o signo do fluxo e do movimento; quanto a este aspecto note-se

que, ao ilustrar o processo de acúmulo das grandes massas de terra e da expulsão dos

corpos formados por elementos mais leves como o éter, recorre a fenômenos ainda

hoje facilmente observáveis. Daqui depreende-se que o mecanismo desse processo

prossegue atuante no funcionamento da totalidade organizada que é o mundo.

As condições iniciais estão dadas: uma vasta população de átomos, uma

extensão infinita (continuidade de movimento), desvio (clinamen), movimentos

erráticos e choques. Este panorama é o caos-nuvem21 originário ao qual nos

referíamos mais acima, o acaso operando os movimentos atômicos, isto é, ausência

total de plano ou de finalidade. A experimentação cega desse grande número de

átomos, os encontros e desencontros repetidos um sem-número de vezes é a potência

que, enfim, dispõe os átomos apropriados em uma formação capaz de fazer emergir

um esquema de ordem e equilíbrio tal como o mundo. Ocorre que a esse grande

número reunido ao acaso passa a corresponder a uma dinâmica de movimento que é

precursora da ordem emergente. O movimento em si mesmo, isto é, o movimento do

20 D.R.N. V, 449 – 479.

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átomo, em nada é alterado; é o conjunto que adquire um comportamento singular.

Isso não significa que o conjunto adquira um movimento autônomo em relação

àquele das partículas, da matéria em seu estado último. Trata-se, antes, da criação de

um estado de equilíbrio, de uma certa forma em movimento que, uma vez constituída,

alcança o dinamismo sistêmico tal qual podemos perceber no funcionamento do

mundo. Mas nesse caso, por uma questão de precaução terminológica, é preciso

salientar que a forma é segunda em relação ao movimento. Forma em movimento

significa forma em devir, isto é, jamais uma forma prévia, dada, nem tampouco uma

forma que se “realiza”. A forma em movimento é o próprio estado de equilíbrio.

O que é, pois, esse estado de equilíbrio senão uma sorte de movimento cujo

estatuto é o mesmo que poderíamos atribuir à necessidade? Passagem do caos à

ordem: passagem da soberania do movimento, do acaso (ausência de formas) para o

da necessidade (forma em movimento)? De um certo modo, sem dúvida. Mas, com

efeito, se insistirmos um pouco mais nas implicações ontológicas dessa transição,

veremos que muito pouco sobra a ser detectado: apenas que certas condições,

absolutamente imprevisíveis são criadoras, mas o que é criado em nada acrescenta

nem em nada subtrai ao estado elementar. Não há, a rigor, mudança de movimento:

os átomos não passam de um “nível” de movimento (caótico) a outro estágio

(ordenado).

É o conjunto que emerge desses movimentos de átomos desgarrados –

lembremo-nos uma vez mais do grande número – e passa a se comportar como

conjunto. A natureza tão-somente dá testemunho de que uma grande população de

elementos diversos movidos ao acaso pode, em tempo em certo e lugar incerto, passar

a obedecer a um padrão singular de distribuição dessa população.

Não há diferenciação entre estágios de movimento: acaso e necessidade são,

do ponto de vista ontológico, absolutamente equivalentes. São nomeações que

atribuímos ao par ordem-desordem com o qual ingenuamente confrontamos o mundo

21 Cf. A expressão de Michel Serres, O nascimento da física no texto de Lucrécio, pág. 51 e ss.

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do alto de nossas parcialidades, de nossos interesses. A ordem que emerge não

pressupõe a inteligência, ela a cria. Segundo os epicuristas a suposição filosófica de

uma inteligência soberana e criadora revela, antes, uma inquietação da consciência

humana diante do mistério do mundo. O projeto filosófico epicurista acena com uma

desmistificação, uma “desmitificação” do problema da ordem: trata-se de explicá-la,

desobstruí-la de nossas inquietações metafísicas e fazer ver que, em si mesma ,ela não

é nada, que ela em nada difere do caos que tanto tememos e que, segundo podemos

perceber todo tempo, resvala o mundo.

6.4 A “Natureza das coisas”

Os Pactos da natureza (foedera Naturae)22

Se a contingência é primeira, como explicar que desse caos surja a

organização e a constância23? A busca de uma resposta a esta questão implica uma

retomada da noção de limite. Como vimos, Lucrécio restringe o infinito ao número de

átomos e ao vazio, ao passo que a quantidade de formas de átomos, ainda que

inumeráveis, permanece finita. Nesse sentido as possibilidades de composição, ainda

que infinitas na sucessão e na simultaneidade, não são, em absoluto, admitidas quanto

aos tipos distintos, mesmo que sua grande quantidade escape a nossa capacidade de

compreensão ou sistematização. A natureza é ela mesma o limite de suas

possibilidade, já que atua segundo certos “pactos” ou “leis” (foedera naturae). A

localização desses pactos torna pensáveis os dispositivos que regulam a constância

dos fenômenos e, também o surgimento e continuidade das espécies vivas24.

22 Neste desenvolvimento sobre os foedera nature somos quase que integralmente devedores do estudo de Gabriel Droz-Vincent:. “Les foedera naturae chez Lucrèce” in Le concept de nature à Rome., págs 191 – 211. 23 Indagação feita por Cícero em seu De finibus, I, VI, 20. 24 De rerum natura, I, 584 - 592

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O reconhecimento daquilo que é verdadeiramente infinito (número de

átomos e vazio) e daquilo que não é (formas atômicas e modalidades de combinação)

define o equilíbrio necessário à multiplicidade que é pensada como causa de todas as

coisas e a maneira segundo a qual ela se distribui para a manutenção de uma certa

constância – mesmo que precária. A racionalidade constata, de uma parte, a

existência de um limite de combinações possíveis entre os átomos. De outra parte,

considerando o movimento eterno dos átomos, temos que a limitação do número de

átomos no universo perderia sua validade, visto que os compostos ou tenderiam a

uma rápida desagregação ou nem mesmo poderiam se constituir. É, pois, necessária

uma “reserva infinita de átomos” que, vindos do espaço infinito, repõem nos

compostos as perdas causadas pelo próprio movimento dos átomos25.

A recusa de um princípio originário inteligente faz com que os epicuristas

procurem alhures uma explicação para a organização de estruturas como o mundo e

tudo o que nele está contido. Trata-se de compreender em termos naturalistas as

modalidades de funcionamento da natureza, “o que pode e o que não pode nascer,

enfim as leis que delimitam o poder de cada coisa através de limites inabaláveis”26. A

noção de limite é trabalhada por Lucrécio através de termos sinônimos tais como

terminus27, ou ainda quando se trata de fixar os limites que regulam os desejos e os

temores28, ou ainda quando se trata de admitir e reconhecer as leis ou pactos da

natureza (foedera naturae). O sentido usual do termo foedus pertence ao campo

jurídico: significa tratado ou, ainda, pacto, convenção, aliança. Convém aqui não

esquecer que uma das tarefas enfrentadas por Lucrécio é a de tornar o idioma latino

permeável aos conceitos filosóficos criados pelos gregos, o que o obriga a trabalhar

para a formação de um léxico filosófico próprio. Lucrécio escreve em latim, e muitas

25 De rerum natura, I, 1051 e ss. 26 Lucrécio, De rerum natura, I 75 – 77. Esta fórmula, “o que pode e o que não pode nascer, enfim as leis que delimitam o poder de cada coisa através de limites inabaláveis” (finita potestas denique cuique

quanam sit ratione atque alte terminus haerens) é retomada integralmente em I, 595 – 596, V 89 – 90 e VI 64 – 65. 27 Nestes casos trata-se da morte entendida como limite de compostos vivos tais como o Homem: terminus vitae II, 1087; terminus malorum III, 1020. 28 D.R.N. VI, 25.

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vezes vê-se na obrigação de tomar de empréstimo da linguagem corrente certos

termos e forjar, a partir deles, noções filosóficas. É o caso de foedus. A escolha de

Lucrécio por este vocábulo para agrupar os desenvolvimentos referentes aos temas da

ordem e estabilidade da natureza põe, de antemão, a questão sobre o sentido daquilo

que é definido como “fixo” no devir das coisas. Tratados, pactos, convenções e

alianças evocam a idéia de uma duração inerente: são firmados de acordo com as

circunstâncias favoráveis e prestam-se à ruptura ou à dissolução. Insinua-se aqui, uma

vez mais, esse elemento de flutuação que não nos permite atribuir uma determinação

inflexível destes pactos que a natureza estabelece consigo própria em sua abertura

infinita.

Segundo Droz-Vincent há doze ocorrências do termo foedus ao longo do

poema; dentre estas, cinco ao menos concernentes aos foedera naturae: I, 585; II,

302; V, 310 e 924; VI 906. Há ainda uma ocorrência de foedus em V, 5729; muito

embora a expressão foedera naturae não apareça, neste caso, em sentido literal, o uso

do termo foedus impõe-se segundo esse mesmo sentido de foedera naturae, isto é

“pacto” ou “lei da natureza”30.

Droz-Vincent, em sua análise sobre os foedera naturae no poema de

Lucrécio, parte da última ocorrência – canto VI, 906. A expressão é utilizada aqui no

singular: Lucrécio trata nesta passagem de oferecer uma explicação naturalista de um

intrigante (ao menos para os antigos) fenômeno: o magnetismo. Com efeito, a

intenção de Lucrécio aqui não é a de “estabelecer uma lei positiva”31 que explique a

atração exercida pelo imã sobre o ferro; tem em vista, antes, seguir o princípio

segundo o qual “tous les phénomènes naturels sont susceptibles d’une explication

scientifique aus sens que les Epicuriens confèrent à ce terme, c’est-à-dire qui écarté le

mythe”32. Droz-Vincent acena então que o uso de foedus no singular indica que

Lucrécio vale-se, nesta exposição, de um princípio geral amplamente explorado em

29 Literalmente: ac doceo dictis quo quaeque creata foedere sint. 30 Droz-Vincent, G. Op. cit., pág. 192. 31 Droz-Vincent, G. Op. cit., pág. 194. 32 Droz-Vincent, G. Op. cit., pág. 194.

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ocasiões anteriores para explicar um caso, isto é, um fenômeno determinado; de outro

modo, o caso particular do magnetismo reafirma um princípio geral já familiar ao

leitor a que se destina o poema. As outras cinco passagens nas quais os foedera

naturae são evocados concernem a “pontos nodais da argumentação” lucreciana,

relativos à determinação dos princípios e aos processos de formação e desagregação

dos compostos. São passagens que Droz-vincent localiza como aquelas nas quais está

em jogo a determinação do possível que, em sua leitura de Lucrécio, se identifica

com o real.

A primeira ocorrência dos foedera naturae no poema encerra um importante

desenvolvimento do Livro I (503 – 508). Na seqüência desta passagem são

apresentados oito argumentos que são articulados com o intuito de provar a

indestrutibilidade dos corpos primeiros. Estes corpos primeiros, por sua

indestrutibilidade, opõem-se aos compostos (concilia). Estes últimos são aqueles

dados a nossa sensibilidade, partícipes do movimento incessante do vir-a-ser. Embora

fluam – o que pertence ao sensível é o que flui – mantêm em seus movimentos uma

regularidade que não se pode explicar a não ser reportando-se à existência de um

princípio material estável, indestrutível, substrato de propagação do fluxo e resistente

a este. Cumpre atender aqui ao axioma, fixado em primeira mão na idade pré-

socrática, que funda a idéia de natureza e toda física que dela decorre: nada do que

existe pode surgir do nada nem tampouco o que quer que exista pode ser reduzido a

nada33.

Entre os versos 584 – 598 Lucrécio observa que a manutenção dos caracteres

específicos das diferentes espécies de seres vivos não pode ser explicada a não ser

através da presença, nelas, de elementos imutáveis. Mas isto parece não bastar, pois a

própria noção de espécie implica, para além desta imutabilidade, uma certa

permanência em relação aos limites impostos pela natureza das coisas. Isso não

significa, contudo, que os elementos eles mesmos tenham de ser mantidos; pelo

contrário, o princípio de produção da natureza, tal como o entende Lucrécio, exige

que haja fluxo, isto é, mobilidade constante de elementos. A coisa que permanece é o

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“tipo”: “[...] les foedera naturae, appliqués au vivant, ne s’étendent pas jusqu’à

l’individu mais déterminent un type spécifique”34. Para além das diferenças que

distinguem os indivíduos de uma mesma espécie é preciso considerar a questão sob

um aspecto “específico”: uma modificação em um indivíduo qualquer que o leve a

exceder os limites determinados por sua natureza significará a morte disto que era até

então – o que neste caso nada tem a ver com o indivíduo ele mesmo35. Os foedera

naturae são, pois, como que uma reafirmação, no campo teórico, da percepção de que

há, de fato, uma certa ordem que diferencia a natureza de um simples movimento

aleatório. A natureza apresenta-se de um certo modo regular em suas constantes

diferenciações, e é em virtude desta regularidade que estamos aptos a, através de

nossa sensibilidade (que em substância não difere do pensamento), recolher e dispor

de forma organizada, nossas experiências. Forçoso é reconhecer que há, de algum

modo, uma racionalidade imanente às produções da natureza – embora isto não possa

ser confundido com algo como um plano, ou diretriz, ou sentido, ou coisa afim – sem

a qual não haveria fenômenos a pensar, sem a qual todas as coisas estando entregues

ao caos e à obscuridade. Aliás, não seria possível nem ao menos falar de

“fenômenos” se já não se considerasse uma ordem perceptível a ser pensada. Mas se

há uma tal racionalidade – o que implica, também necessariamente, uma certa

concepção de limite e finitude – ela é uma racionalidade de fato, dada à experiência,

atestada pela contemplação do mobilismo das coisas; ela não supõe, ou não deveria

supor, o primado da razão sobre o mundo, ou ainda a confusão de se tomar a razão

pelo próprio mundo.

No universo das formas que vêm-a-ser no mundo, o caso dos seres vivos

merece, em particular, uma resposta satisfatória de um pensamento que coloca essas

formas mesmas sob o signo de um acaso criador. Estruturas extraordinariamente

complexas e de performance altamente diferenciada em relação àquela dos seres

inanimados, as formas vivas são como que uma evidência simples capaz de arruinar

33 D.R.N. I, 158 – 173. 34 Droz-Vincent, G. Op. cit., pág. 196. 35 Ver; D.R.N. I, 670-1; II, 763; III, 519.

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decisivamente o princípio assumido pelos atomistas de que a ordem é segunda em

relação à desordem. A simples manutenção dessa complexidade ordenada que

caracteriza o ciclo de um ser vivo, bem como, sobretudo, a transferência regular dessa

complexidade por gerações sucessivas bastariam para refutar a tese fundamental

desses pensadores do acaso: a ausência de finalidade nas produções naturais. Os

adversários dos atomistas – em última análise todos eles representantes de filosofias

finalistas, o que constitui uma espécie de “dimensão hegemônica do pensamento” –

aproveitam-se desta aparente debilidade para desautorizá-los como filósofos capazes

de pensar o mundo: pois a despeito dessa permanente transformação, o mundo

mesmo e tudo aquilo que nele há de estável testemunham que algo escapa à voragem

infinita do devir. Não se trataria, nesse caso, de apenas de um substrato material que

resiste, em caráter último, à aparente fragmentação material. O objeto do pensamento

é a forma; esta por seu estatuto mesmo de incorruptibilidade, constitui-se como

realidade apartada da matéria. A renuncia atomista ao primado da forma em relação

ao devir significa, segundo esta análise, uma renúncia análoga à idéia mesma de que a

natureza funciona como um todo acabado e orgânico, sem o que a própria idéia de

natureza – a explicação do que é o mundo – passa a carecer de sentido. Segundo esta

análise o acaso, compreendido como ausência de um sentido determinado, nada pode

explicar.

Segundo Droz-Vincent esta obediência necessária a um conjunto definido de

condições, quando referida ao conjunto de espécies vivas, implica que a vida – um

fenômeno em última análise – define-se a partir da constituição de um tipo, de um

conjunto de caracteres comuns transmissíveis de uma geração à outra. As condições

de vida de um ser vivo individual pertencem propriamente à espécie; jamais são

encontráveis em um ser isolado. O que significaria a formação de um “tipo” vivo

isolado, um exemplar único (ver II,541 - 568)? É preciso considerar ainda que a

manutenção do tipo ou da forma que define a espécie ao longo das gerações

pressupõe um conjunto de condições especiais que lhe assegurem a estabilidade, isto

é, seu “habitat” específico.

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Nos versos 309-310 os foedera naturae são associados ao finis fati36. Esta

associação é como que uma reafirmação da recusa epicurista em relação ao

determinismo, ou a certas modalidades de determinismo. De fato, salta aos olhos que

o anti-determinismo lucreciano não significa a assunção de que a natureza opera sem

qualquer tipo de determinação: é a partir de alguma determinação que, por exemplo, o

“tipo” permanece na duração.

A regularidade dos foedera naturae é atestada através de um contínuo que se

estende desde um passado remoto até os nossos dias. Tudo aquilo que nasce obedece

às mesmas leis de sempre e a elas estarão submetidas de maneira irrevogável37. Não

apenas a formação e desenvolvimento dos compostos mas também sua degeneração e

desaparecimento estão, de maneira idêntica, submetidos às mesmas leis eternas do

movimento dos átomos, o que ressalta a constância relativa de todas as coisas

existentes. Neste contexto, como ressalta P.-M. Morel38, afirmar a necessidade, longe

de ser paradoxal, abre um novo campo de atuação deste conceito. Ao invés da

determinação cega e irrestrita os epicuristas tentam fazer prevalecer a liberdade de

ação do indivíduo para, ao obedecer às determinações da necessidade, agir de acordo

com sua própria natureza.

A natureza: natura gubernans / natura creatrix

De outra parte, certas expressões utilizadas por Lucrécio ao longo do poema,

mesmo que dispensemos alguma liberdade ao exercício do gênero poético, parecem

sugerir que a natureza estaria constituída como uma espécie de sujeito organizador do

mundo39 cujo poder fosse criador (natura creatrix) e soberano (natura gubernans).

No entanto a radicalidade anti-providencial e anti-teleológica torna problemática uma

36 Neste verso em oposição aos foedera fati (as leis do destino), II, 254, no desenvolvimento que trata da declinação do átomo. Ernout, em sua edição do poema (volume 1, pág. 53) acrescenta em nota: “ces lois naturelles, foedera naturai, s’opposent évidemment au fati foedera du v. 254. Elles ont sans doute, elles aussi, un caractère de nécessité, mais tempéré par la liberté de déclinaison inhérente à l’atome.” 37 De rerum natura, II, 297 – 308. 38 Morel, P.-M. Op. cit. pp. 48.

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intepretação desta ordem. Até então vimos que o poder criador da natureza não

poderia ser outro senão aquele exercido pelos próprios átomos, dentro dos limites de

suas características materiais e mecânicas.

Vimos que Lucrécio recusa explicitamente uma interpretação animista: os

átomos, apesar de não inteiramente submetidos à determinação da queda vertical, não

são dotados de uma mente ou inteligência. É em virtude da espontaneidade e da

diversidade de seus movimentos que os corpos elementares são investidos dessa

possibilidade incessante de combinações, o que lhes permite a produção de estruturas

estáveis. A natureza, para os epicuristas, ao invés de uma mera executora de um plano

elaborado segundo uma lei divina, ou de um acaso submetido integralmente ao

regime da necessidade, é caracterizada como um horizonte inesgotável de

possibilidades40. A esse respeito Morel observa que:

[...] la passage du désordre à l’ordre ne découle pas seulement du principe de

limitation que constituent les foedera naturae. Il s’explique également par la

spontanéité de l’apparition des structures. La géneration n’est pas autre chose en

effet qu’un mouvement local et elle ne suppose aucune sorte de plan. Dès lors

qu’une combinaison viable se forme, il y a déjà géneration et organization.41

Mas a pergunta pelo significado da noção de natureza em Lucrécio ganha,

novamente, um caráter problemático quando é introduzida a expressão natura

gubernans. A natureza é apresentada claramente como sujeito, agente de um poder,

de um governo. Trata-se de uma metáfora? Se natura gubernans é, com efeito um

metáfora, sua interpretação coloca para o estudioso uma série de dificuldades. O que,

com efeito, a natureza governa? Como exerce tal governo? Em última análise é ainda

a pergunta “o que é a natureza?”, este algo que, afinal, estabelece pactos e governa.

39 Ver por exemplo De rerum natura, I, 629.; II, 1117; V 77. 40 Ver Conche, M. Op. cit., pp 57. 41 Morel, P.-M. Op. cit. pp. 49-50.

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Lucrécio introduz a expressão natura gubernans no canto V, após o elogio

de Epicuro e da exposição de um sumário no qual são apresentados os temas que

serão desenvolvidos em seguida: a mortalidade do mundo; as origens da vida na terra

e os limites que a natureza impõe à geração dos seres; o aparecimento do fenômeno

da linguagem; os primórdios das concepções religiosas e o despontar do temor aos

deuses.

Além disso, explicarei por que força inflete e governa a natureza (natura

gubernans) o curso do sol e o andamento da lua, para que não se acredite por

acaso que eles prosseguem espontânea e eternamente nos seus caminhos entre

céu e terra, a fim de favorecer o crescimento de plantas e de animais, nem se

julgue que giram impelidos por qualquer vontade divina. De fato, aqueles que

aprenderam que os deuses levam vida sossegada procuram, no entanto, saber por

que lei tudo acontece, sobretudo no que diz respeito àquelas coisas que se vêem

acima da cabeça, nas regiões etéreas. E lá voltam às antigas religiões e fazem

intervir senhores terríveis que os pobres julgam ter todos os poderes, porque não

sabem o que o que pode e o que não pode existir e o poder limitado que tem cada

uma das coisas segundo uma lei fixa marcada por limites rígidos.42

Articula-se, assim, um discurso que visa sobrepor a ordem soberana da

natureza a todo tipo de explicação de caráter religioso, seja ela vulgar ou filosófica. A

regularidade dos fenômenos celestes coloca para o pensador epicurista a evidência

empírica de uma ordem estrita e a tarefa de ter de explicá-la sem romper com os

princípios que orientam seu pensamento, isto é, sem recorrer a uma explicação que

introduza um concepção finalista. Não há “força” exterior (transcendente) à natureza,

às coisas; isto é, não há “sobrenatureza”. Percebe-se nesta passagem uma polêmica de

fundo na qual Lucrécio se opõe aos partidários da Teologia Astral.

Parece, pois, um passo “natural” aquele dado por Lucrécio: subtrair aos

deuses o governo do mundo e reconhecer a natureza como a única instância detentora

42 D.R.N. V, 74 – 90.

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da prerrogativa de presidir o curso dos acontecimentos: criar, manter, dissolver. É

evidente que Lucrécio não dispõe de uma outra alternativa que não aquela de manter-

se dentro dos limites de uma explicação naturalista. Mas, de outra parte, não fica

menos claro que esse mesmo naturalismo estrito vê-se seriamente ameaçado pela

idéia de uma “natureza soberana” – natura gubernans. Com efeito a natura é sujeito

de uma ação, de um papel diretor (gubernare)? O que ela governa? Como ela exerce

um tal poder? A natureza, vista desse modo, parece adquirir uma existência autônoma

em relação às coisas, em conflito com as convicções que orientam o pensamento

epicurista: soberania, governo, unidade que distribui e articula as partes segundo uma

estrutura, ela mesma; se é estrutura é, já, dobra sobre si mesma (as partes), outra que

ela mesma, instância supranatural ou sobrenatural, metafísica.

Em um artigo específico sobre esta passagem, Alain Gigandet43 apresenta

três diferentes alternativas, sucessivas, de interpretação da natura gubernans

lucreciana – e em última análise, de todo o poema. Explora algumas tensões e aporias

do De rerum natura pondo à vista o núcleo para o qual todos esses fios convergem: o

problema da ordem em um universo que tem como princípio o acaso. Neste estudo

Gigandet faz referência ao incômodo dos comentadores diante de uma expressão que

parece representar a idéia de uma natureza diretora. Metáfora poética, no dizer de

Robin44, totalmente em desacordo com os princípios do mecanismo epicurista. A

expressão pode, ao que parece, ser compreendida como uma metáfora; mas de que

espécie de coisa (soberania, governo) ela trata?

Robin busca uma neutralização da metáfora: interpreta a expressão natura

gubernans como uma licença poética desprovida de significação filosófica mais

profunda. Neste caso a metáfora seria uma pura imagem45 sem nenhuma repercussão,

tanto sobre a noção de natureza quanto sobre o seu “agir”, isto é sobre a causalidade

43 Gigandet, A. “Natura Gubernans (Lucrèce, V, 77) in Le Concepte de nature à Rome, páginas 213 – 225. 44 A. Ernout et L. Robin, Lucrèce, De rerum natura, Commentaire exégétique et critique, pág. 13. 45 Gigandet, A. Op. cit., página 215.

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sobre a qual opera seu governo. A interpretação de Robin parece considerar que a

idéia de uma natureza organizadora, calculante – isto é, uma inteligência metafísica –

evocada pela imagem de uma natura gubernans é irreconciliável com os princípios

antiteológicos e antiteleológicos do epicurismo; neste caso a expressão não possui

qualquer relevância do ponto de vista filosófico. Mas a interpretação de Robin parece

problemática, pois se voltamos ao texto46, vemos que Lucrécio se dispõe a dizer por

qual força (qua ui) a natureza governa (natura gubernans) o curso do sol e da lua.

A natureza em Lucrécio, summa summarum, é soma de todas as coisas, isto

é, soma infinita, ou ainda “soma sem soma”47. Os movimentos dessa estranha suma

de coisas são presididos por uma força infinita, material, a uis materiai que em

diversas passagens do poema é evocada. Esta força, potência de criação e de

destruição, nada mais é do que a determinação da direção de movimento dos átomos.

Ela pode, pois, ser decomposta no peso (pondus), nos choques (plagae) e declinação

(clinamen). Fatalidade externa (choques), fatalidade interna (peso) e a componente de

emancipação que faz dos átomos partículas autônomas, eles mesmo princípios de

espontaneidade, isto é, princípios de determinação do movimento.

A articulação destes diferentes componentes da uis mteriai (choque, peso e

desvio) reafirmam uma imagem da natureza que (se) faz e (se) desfaz sem nenhum

plano diretor: é através do acaso dos choques que tudo se produz e se desfaz. A

metáfora “dirigista” que evoca a idéia de governo ganha sentido quando lida no

interior de uma disputa entre o antiteologismo epicurista e as idéias que fundam a

teologia astral.

Esta interpretação é, todavia, provisória. Ela ganha sentido na medida em

que, pela sua fragilidade, coloca o pensamento em vigilância diante de uma questão

filosófica que, à primeira vista, parece escapar na extensão do poema. Outras

ocorrências ao longo do texto lucreciano, nas quais a natureza aparece como sujeito –

46 Ainda no referido verso 77, canto V 47 Gigandet, A. Op. cit., página 215.

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isto é, como ser, agente e pensante – só serviriam para fortalecer a questão e

intensificar a tensão naquilo que parece ser a maior dificuldade interna do

pensamento de Lucrécio.

Tentar neutralizar ou minimizar a metáfora, como sugere Robin, só ganha

sentido se se pretende enfraquecer o pensamento de Lucrécio; significa atribuir-lhe

uma consciência filosófica que recorre a um “expediente poético” para subtrair-se a

uma questão radical. É separar analiticamente o poeta e o investigador da natureza,

isto é, enfraquecer o pensador. É reproduzir a imagem segundo a qual Lucrécio, o

discípulo, teria se restringido a cantar em seus versos a epopéia do verdadeiro filósofo

– Epicuro.

Gigandet propõe um segundo modo de interpretação da expressão natura

gubernans; mas desta vez a metáfora é levada a sério. Os versos 76 – 81, citados

acima, anunciam uma explicação para os movimentos regulares dos astros48.

Or, ce qui est difficile à penser à partir des seuls chocs atomiques aléatoires, c’est

la constituition d’un ordre cosmique, certes, mais plus encore peut-être la

reconduction de cet ordre, sa stabilité, dont les mouvements réguliers des astres

sont ici le signe exemplaire, conformément à une longue tradition. Lucrèce peut-

il vraiment penser au-delà ou à côté du modèle finaliste, et directement ou

indirectement intentionnel, qui est celui d’une causalité organisatrice – celle-là

même que, dans Platon, réclamait Socrate, avec et contre Anaxagore? La

métaphore ne sonnerait-elle pas ici comme un aveu de relatie impuissance?49

Gigandet recupera outras passagens nas quais o funcionamento da uis

materiai parece sugerir um controle da natureza. Interpreta-as estabelecendo um

paralelo entre o modo segundo o qual a natureza governa a matéria e o papel exercido

pela alma em sua relação com o corpo. Estas aproximações parecem sugerir que do

mesmo modo que a força que determina o espírito, através da alma, é capaz de impor

48 D.R.N. V 509 – 530. 49 Gigandet, A. Op. cit., página 218 - 219.

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aos membros do corpo uma direção50, também parece operar sobre as partes materiais

inertes uma força – uis materiai – organizadora e exterior a elas.

No entanto, em ao menos duas passagens (II, 1090 – 1104 / V 91 – 234)

Lucrécio faz referência explicita à estreiteza de relações entre idéias cosmológicas

finalistas e concepções teológicas. Além disso, em outras duas ocorrências (I, 1021 –

1023 / V 419), rejeita expressamente a idéia de uma inteligência exterior aos átomos.

Em última análise: o infinito não admite ordem (exterior): “De fato [...]quem poderia

ter mãos bastante firmes para manejar as fortes rédeas do infinito [...]?51

O problema filosófico com que se bate Lucrécio permanece em discussão:

subtrair aos deuses o governo (potestas; imperium) do mundo, a ordem, a

regularidade dos movimentos celestes. Mas este novo “governo”, da natureza, não se

torna inteligível a partir de uma simples transmissão de poderes: saem de cena os

deuses, entra a natureza. A rigor uma substituição dessa ordem já havia sido operada

anteriormente, no quadro do pensamento pré-socrático. A imagem da natureza

proposta por Lucrécio, como vimos, jamais permitiria uma simples substituição. É a

própria idéia de poder, sua estrutura, que deve ser substituída. Vale dizer com isso,

conforme assinala Alain Gigandet, que é a própria noção de causalidade que deve ser

repensada52.

A metáfora da natura gubernans indica, antes, um impasse diante do qual o

pensamento atomista entra em tensão consigo próprio. Deve-se recusá-la: a) tanto

como uma imagem poética destituída de rigor filosófico quanto; b) como símbolo do

alcance limitado do pensamento epicurista, o qual seria incapaz de oferecer uma

explicação para a ordem natural. Em outras palavras, o uso da expressão natura

gubernans em uma passagem capital do poema por si só esvazia uma interpretação

que proponha neutralizá-la como imagem filosófica; tampouco parece suficiente

50 O ser é a direção. A liberdade é a direção. A questão toda do “ser”, para Lucrécio parece convergir para o problema da direção. 51 De rerum natura, 1095 – 1099. 52 Gigandet, A. Op. cit., página 221. Remetemo-nos aqui para a discussão sobre o estatuto dessa causalidade pensada no poema de Lucrécio, feita no capítulo dedicado ao tema da declinação.

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admitir que a metáfora assinala um limite no qual o atomismo perde o impulso e vê

ruir todos os seus esforços para não conferir à natureza – isto é, a suma de todas as

coisas – um estatuto de exterioridade em relação as suas “partes”.

Lucrécio anuncia aqui uma explicação dos fenômenos celestes, domínio no

qual as idéias de ordem e regularidade alcançam um estatuto privilegiado que se

sobrepõe de modo soberano à (aparente) desordem do mundo sub-lunar. Mas, diante

deste problema delicado, o pensador se posiciona sem denegar os pressupostos

antifinalistas de sua teoria. Há ordem, sem dúvida, mas tal ordem não é sobreposta

aos fenômenos, às coisas, não é superior à dispersão do todo infinito que não se deixa

governar.

A ordem é flutuante, circunstancial, segunda em relação a uma estado

primeiro de desordem. Aquilo que nos aparece como ordem procede da desordem. Do

estado de desgoverno total – isto é, de movimentos atômicos que são caóticos, mas

apenas se confrontados com as idéias de totalidade, sentido ou finalidade – a ordem

surge como coisa circunstancial, fortuita, mas tão previsível quanto o encontro de

dois átomos quaisquer. A natureza dispõe do infinito (matéria em quantidade infinita

no espaço infinito: tempo) para que, em tempo e lugar incertos, haja a irrupção de

produções organizadas. Em última análise, a ordem (total) é impossível no infinito.

No verso 107 do canto V, trinta versos após a ocorrência do natura

gubernans, Lucrécio introduz uma outra expressão que “acentua ainda mais a tensão

conceitual”53: fortuna gubernans.

E agora, para não te reter mais tempo com promessas, observa primeiro os mares

e as terras e o céu; é tríplice a sua natureza, três os corpos, Mêmio, três os

aspectos tão diferentes, três as suas contexturas; e no entanto um só dia os

lançará à destruição e ruirá a enorme massa que compõe a máquina do mundo

por tantos anos sustentada! E não ignoro o quanto isto é admirável para o

espírito, que venha a dar-se no futuro a destruição do céu e da terra e quão difícil

te convencer pelas minhas palavras; é o que sempre sucede quando se leva aos

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ouvidos alguma coisa não habitual, sem que se possa, por outro lado, submetê-la

à vista dos olhos ou pô-la debaixo das mãos, o que é o mais seguro caminho, e o

mais fácil, para levar a verdade ao peito humano e aos templos do espírito. E no

entanto falarei. Talvez os acontecimentos confirmem minhas palavras e tu vejas

em pouco tempo um grande terremoto balar tudo com os seus movimentos. Mas

oxalá a fortuna soberana (fortuna gubernans) possa afastar isso de nós, e possa a

razão, de preferência ao fato, persuadir-te que o mundo inteiro, vencido, possa

desabar em um terrível fragor.54

Mesmo considerando uma mudança de contexto – com efeito trata-se já

nesta passagem de introduzir um longo desenvolvimento acerca da mortalidade do

mundo – a proximidade das ocorrências sugere fortemente uma equivalência entre os

dois termos: natura e fortuna; natureza e acaso. Se é assim, em que medida poder-se-

ia acenar com a imagem de uma natureza-acaso sem se quedar diante de uma

contradição, ou de uma aporia? Em que medida uma natureza pode ser equivalente ao

acaso como princípio produtor de todas as coisas?

Podemos, através de diversas abordagens, compreender que, para Lucrécio, a

idéia de estabilidade implica, em sua definição mesma, uma instabilidade de fundo

sem a qual não ela não poderia nem ao menos ser pensada. Não há na natureza “a

estabilidade” ou “a instabilidade” em estado puro; pensá-las como tais é sucumbir a

uma mania do espírito que não encontra respaldo em qualquer das produções naturais.

São noções relativas, excludentes, mas complementares. Cada coisa que é (estável)

está sendo ao preço de um fazer-se e desfazer-se simultâneo e contínuo, durante o

tempo que lhe é fixado pelos pactos que a natureza estabelece consigo própria.

La condamnation finale, inéluctable, qui pèse sur l’ensemble des étants [...] et, au

premier chef, sur le monde lui-même, met en lumière ce que tente de penser

53 Gigandet, A. Op. cit., página 222. 54 D.R.N. V 91 – 109.

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l’épicurisme: une théorie de la causalité élémentaire (uis materiai) comme

«nécessité contingente». Avec le monde s’abolissent les pactes mêmes sur

lesquels celui-ci reposait, ce qui dénonce leur origine elle-même contingente:

natura gubernans, fortuna gubernans ensemble indiquent la tâche de penser la

nécessité elle même comme effet local du hasard, les lois comme agencement

précaire de la contingence, etc.55

Em suma: a posição de Lucrécio ao longo de todo o desenvolvimento de seu

poema faz conciliar o acaso – compreendido como uma ausência de finalidade,

ausência de inteligência exterior ao mundo e à natureza (compreendida como

“natureza das coisas”) – e a necessidade – domínio das produções que vêm a ser e se

desintegram na infinita mobilidade do universo. A causalidade, conforme já vimos, é

mantida; trata-se de uma causalidade que diz respeito aos elementos dispersos ao

longo do espaço, os quais, todavia, estão todo o tempo em vias de composição. A

possibilidade mais simples de composição – um átomo mais outro átomo – não

possui nenhuma determinação prévia, donde o acaso de toda origem. Mas de outra

parte essa possibilidade mantém-se dentro dos limites da causalidade determinada

pelo pensamento e que são os da causalidade material: vê-se aqui o domínio onde a

necessidade. Em conformidade com o pensamento epicurista seria um equívoco

considerar o acaso e a necessidade como noções excludentes. Eles coexistem.

Reconhecer o acaso de toda formação não exclui que algumas delas atinjam o estado

de “coisas estáveis” a exemplo do mundo. Reconhecer uma necessidade natural – a

causalidade que opera o funcionamento de um composto como o mundo – não

implica uma afirmação do sentido exterior e uma negação do acaso originário. Dois

átomos que se encontram não geram um “dado novo”, não criam uma negação do

caráter descontínuo do universo. De certa forma este encontro, fortuito como todo

encontro, inscreve-se no reino do fenômeno que existe enquanto fenômeno, mas que

não supera jamais o seu estatuto de realidade fortuita e acidental. O que o epicurismo

nos ensina com isso é que todo fenômeno é precário, a despeito de sua duração.

55 Gigandet, A. Op. cit., página 223

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