6
O mundo diante do homem: sobre a natureza das
Coisas
6.1 Introdução
Para cada coisa é definido um limite próprio, uma com-posição que define
sua natureza mesma. Mas no pensamento epicurista a noção de limite não implica, no
entanto, uma rigidez monolítica. Ela indica antes a definição de uma região dos
modos de ser, própria para cada composto específico, um gradiente em torno do qual
cada coisa determinada pode variar sem, contudo, deixar de ser aquilo que ela é. A
transgressão desse limite significa, de outra parte, uma ruptura irreversível, uma
espécie de fronteira (ou ângulo) que uma vez rompida (o) não pode ser restabelecida.
São os pactos da natureza (foedera naturae). Conforme uma lei geral
explicitada nestes pactos, tem-se que toda coisa compósita, isto é, tudo aquilo que não
é nem átomo nem vazio é, por natureza, perecível: pertence ao tempo, à duração, ao
limite. Imutáveis apenas os átomos e o vazio; tudo o que está sujeito à mudança, ao
movimento e às transformações está igualmente submetido às leis de mortalidade1.
Com efeito o mundo é o composto por excelência: composto de compostos,
não poderia ele gozar do privilégio que obriga tudo o que é constituído a limitar-se a
uma duração determinada. O mundo não é, afinal, uma totalidade acabada. Ainda que
se configure como instância derradeira, o todo pensado pelos epicuristas está sempre
em vias de indeterminação, e é o estatuto indefinido dessa totalidade, de toda
totalidade constituída, que é preciso reter. Não há estrutura ontológica do mundo,
1 É preciso considerar que isso a que denominamos submissão ao tempo não passa, a rigor de uma expressão corrente, um lugar comum indicador da perecibilidade de algo. A rigor o tempo é, antes, ele mesmo expressão do caráter movediço (e perecível) da totalidade.
164
nem níveis de ser, nem lugares privilegiados, nem ilhas de impermanência no fluxo2.
Este mundo é, pois, uma estrutura que permanece na duração – que por definição é
finita – a despeito da voragem que tudo consome e que repõe incessantemente os
elementos. Poder-se-ia, talvez, dizer que o mundo é um todo estruturado, desde que
se fizesse a ressalva de que a estrutura é, nesse caso, fugidia e, de nenhum modo,
anterior ao mundo ele mesmo.
À questão “por que isto (o mundo, por exemplo) se mantém?” Lucrécio
responde: tão somente porque isto não se mantém inteiramente. Para que haja uma
natureza, como de fato há; para que esta natureza seja pensável, é preciso um mínimo
de desaprumo, um mínimo de desvio, uma diferenciação mínima. A natureza,
potência infinita e geradora, é algo que se insinua através de um hiato, através de uma
diferença delicada, sutil. Pela diferença sutil em relação à estabilidade universal – isto
é, o caos – a estabilidade (sempre provisória, precária) se mantém.
O que é a natura? Um sistema aberto. O que é o mundo? Um sistema aberto.
O que é o corpo? Um sistema aberto. O que é o homem? Um sistema aberto. O
homem é, como tudo mais, o que vem-a-ser, isto é, a irrupção de uma duração no
infinito da totalidade aberta: espaço e tempo. A questão a ser compreendida na física
epicurista é a do sentido, mas trata-se, nesse caso, do sentido do movimento em uma
direção dada. Todas as coisas que vêm a ser comportam-se simultaneamente como
receptáculo de fluxos e como fluxos.
Será em conformidade com esta argumentação em torno da noção de limite –
na qual retoma e aprofunda a idéia de que para cada espécie de coisa há uma
determinação geral e finita (finita potestas) – que Lucrécio irá retomar aquele que é o
leitmotiv da filosofia epicurista: o antiprovidencialismo. Segue-se um
desenvolvimento de alguns versos no livro V; neles, Lucrécio ataca frontalmente as
teses dos representantes da teologia astral3. Nestes versos é combatida a tese de que
aos astros, ao mundo, estariam aliados uma alma e uma inteligência. Estes, de acordo
2 Exceção feita aos deuses e suas moradas. 3 D.R.N, V 126 – 145.
165
com os epicuristas, não são possuidores de uma natureza divina: “uma ordem fixa
assinala o lugar onde cada coisa pode crescer e residir”4. Nesta passagem Lucrécio
remete-se, ainda que implicitamente, ao desenvolvimento do livro III do D.R.N, no
qual é tratado o tema da natureza da alma e do espírito, e das condições de
desenvolvimento de ambos – conforme já vimos anteriormente. As circunstâncias nas
quais se dá o desenvolvimento da alma, do espírito e do pensamento são reunidas
segundo uma ordem determinada, através de uma estrutura que advém de uma certa
organização prévia da matéria. Já a matéria bruta não pode, por si mesma, pensar.
O mundo não é obra de uma inteligência divina. Modelos vivos de
sabedoria, os deuses vivem ignorados5 de todo cuidado que não seja seu próprio bem-
estar e felicidade. Que benefício seres perfeitos – realização viva da felicidade
suprema – poderiam esperar de nosso reconhecimento6? Além disso, de onde teriam
os deuses extraído o modelo para criar o mundo, o homem?
Vale dizer, com isso, que o monopólio da criação pertence à natureza
(natura creatrix)7. Não obstante, conforme já vimos, essa natureza não é um
pensamento criador, um poder estruturante. Ela é, antes, uma potência cega que só se
dá ao pensamento e à consciência (epifenômenos de sua atividade) após ter sido
criada por seu próprio dinamismo. Marcel Conche observa que ao fazer da sensação
critério de verdade os epicuristas sinalizam sem hesitações que não há nada que
preceda a natureza (nem pensamento, nem consciência, nem espírito ou coisa que o
valha): o mundo está presente8.
Para Lucrécio, o conhecimento da verdadeira natureza das coisas é o veículo
que permite ao homem tomar uma posição sábia diante do mundo. Uma posição sábia
significa nada esperar deste mundo mesmo, isto é, não expor o espírito ao desamparo
dos desejos vãos, das aspirações ao falso infinito. De ordinário, o homem espera algo
4 D.R.N, V 131: Certum ac dispositumst ubi quicquid crescat t insit. 5 Conforme a fórmula fixada pela sabedoria epicurista: vive ignorado. 6 D.R.N, V 165 – 167. 7 D.R.N, I, 29 e II, 1117. 8 Lucrèce et l’experiénce, páginas 71 – 72.
166
da vida, mas a consciência vigilante dos epicuristas adverte incessantemente que não
há nada a esperar, que a promessa é geradora de angústias e que, enquanto nos
perturbamos pelas sombras do falso, não realizamos em nós o bem supremo. O que se
pensa ordinariamente dos deuses e do mundo é, na verdade, um não pensamento. Da
natureza das coisas – acaso e necessidade, descontinuidade e continuidade,
instabilidade e estabilidade – os epicuristas determinam a natureza do bem do homem
– o prazer – a verdadeira natureza dos deuses e o significado último daquilo que é a
eudaimonia. Além disso é possível colher outras evidências: são tais os defeitos e as
imperfeições da natureza –inclua-se aí a natureza humana – que aos olhos do
epicurista significa impiedade apresentá-la como obra de um poder divino. Perfeitos
por definição, como poderiam os deuses criarem algo cuja marca é, precisamente,
imperfeição e inacabamento?
Mesmo que eu ignorasse quais são os princípios das coisas, ousaria, no entanto,
apenas pelo estudo dos fenômenos celestes e de outras coisas além, sustentar que
de nenhum modo a natureza foi criada para nós por uma vontade divina: tão
grandes são os seus defeitos!9
Estes versos e aqueles que o sucedem parecem escritos sob medida para se
opor a Platão e sua concepção acerca da criação do mundo. Logo após afirmar que o
mundo teve nascimento, “[...] pois tudo o que é sensível e pode ser apreendido pela
opinião com a ajuda da sensação, está sujeito ao devir e ao nascimento”, Platão
afirma que tudo aquilo que vem a ser nasce sob o efeito de uma causa. A “causa”,
bem o sabemos, é o Demiurgo. Mas a determinação do “caráter” desse Demiurgo é o
que nos chama atenção no texto platônico.
Outro ponto que precisamos deixar claro é saber qual dos dois modelos tinha em
vista o arquiteto quando o construiu: o imutável e sempre igual a si mesmo ou o
9 D.R.N, V 195 – 199.
167
que está sujeito ao nascimento? Ora, se este mundo é belo e for bom o seu
construtor, sem dúvida nenhuma este fixara a vista no modelo eterno; e se for o
nem se poderá mencionar, no modelo sujeito ao nascimento. Mas, para todos nós
é mais do que claro que ele tinha em mira o paradigma eterno; entre as coisas
nascidas não há o que seja mais belo do que o mundo, sendo seu autor a melhor
das causas.10
Esta passagem não deixa de ter um caráter surpreendente. Nela Platão parte
da evidência de que o mundo é belo para deduzir que sua construção é obra de um
bom artesão, a partir de um modelo eterno. Mas o epicurismo, muito embora afirme
sem tergiversações que o prazer supremo pode ser alcançado, não se esquiva de
indicar igualmente uma sorte de dor universal. Prazer e dor são esses dois pólos
irredutíveis entre os quais a vida senciente oscila sem intermediações. Alcançável, a
paz de espírito que vem da perfeição espiritual não é um dado, tampouco uma
evidência. Ela deve ser conquistada em um mundo que possui traços marcantes de
uma indiferença hostil para com a sorte humana. Senão, como explicar a dureza do
trabalho humano para garantir sua subsistência; a luta heróica e silenciosa do homem
do campo; as secas e as inundações que ignoram todo esse esforço; as doenças
sazonais aportadas pelos ventos; a morte prematura que vem colher os recém-natos?
De certo modo, algumas dentre as "filosofias escatológicas" (Anaximandro,
Pitágoras, Empédocles, mesmo Platão) são uma tentativa de resposta dessa
consciência inquieta diante da dor do mundo. Buscam o amparo pois estão
comprometidas de antemão com o sentido, isto é, partem da intuição prévia de que a
causa daquilo que é o mundo é exterior e superior ao mundo ele mesmo. Assim, a
experiência humana é, na verdade, uma odisséia religiosa: a busca pelo sentido
rompido e a "religação" com essa ordem suprema de que somos a queda.
Mas para os epicuristas não há “religação” possível porque não há elo a ser
recuperado. O mundo não é criado pelos deuses para o homem. Tampouco é um
mundo hostil. A dor é um dado objetivo, tanto quanto o prazer e a felicidade. Mas,
10 Timeu, 28 c – 29 a. Obviamente os grifos são nossos.
168
em última análise, o mundo não possui um sentido. A experiência humana verdadeira,
sábia, longe de ser a correta determinação do sentido, é, na realidade,a do
aprendizado dessa indiferença absoluta do mundo para com o homem.
Marcel Conche assinala que em várias ocasiões o De rerum natura sinaliza a
incompatibilidade da presença da dor universal com a idéia de uma providência.
Avec la physique d'Epicure, les aspects doulourex du monde ne sont que le
résultat sans significations de causes qui se mêlent sans dessein. Le mal se réduit
à la douleur en tant qu'elle fait souffrir. Il n'est pas injustiable car il n'y a pas à
justifier; il n'est pas absurde car il n'y a pas à chercher ou exiger un sens; De
telles notions témoignent encore d'une mentalité finaliste qui cherche des
intentions où il n'y a que le hasard des rencontres heureuses ou malheureuses et
rien d'autre. Le poème de Lucrèce est le long cri de joie de l'homme enfin
soulagé parce qu'il n'y a pas de sens aux choses et qui trouve la paix dans
l'acceptation du hasard et du néant11.
6.2 As condições de imortalidade
Para que o mundo fosse eterno seria necessário que ele preenche-se as
condições de imortalidade. Para tanto seria necessário que ele fosse: a) ou
absolutamente pleno e impenetrável como o átomo, de tal modo que nenhum choque
ou movimento interno pudesses desagregá-lo; b) ou absolutamente intangível, como o
vazio, de modo que nenhum choque pudesse atingi-lo e desagregá-lo: c) ou, ainda,
que ele fosse o universo, o todo, para além do qual não há exterioridade que possa
ameaçá-lo, e que sempre permanece idêntico a si mesmo. Ameaça, neste sentido,
significa uma exterioridade cujo assalto pode romper um equilíbrio dado, seja de
modo violento e definitivo, seja aos poucos, como um trabalho de erosão. Mas o
vazio é não só o índice da infinita potência criadora da natureza como também de sua
impermanência inalienável. É lá, nesse infinitamente alhures, que está a gênese do
169
mundo. É do vazio infinito que acorrem, pela força do acaso, os átomos, reunidos em
grande número; e uma vez que este concurso se associa de um modo determinado, o
mundo se manifesta. É deste mesmo vazio que os átomos continuam a migrar para
renovar as partes erodidas do mundo e compensar as perdas, pois tudo se move. Uma
composição tal como esta – este equilíbrio sutil que só se sustenta em equilíbrio por
não alcançar um equilibro pleno, este composto de compostos – jamais poderia ser
contado no número dos imortais. A mortalidade do mundo é uma evidência racional.
Corpo composto como todos os demais que são produzidos pela natureza, o
mundo tem fixado, segundo as leis inabaláveis dessa natureza mesma, um fim. Mas
trata-se de um fim qualquer: isto significa que este fim não está determinado, deste ou
daquele modo. O quando e o como permanecem à margem de qualquer fixação
prévia, abusiva, conservam-se indeterminados, não apenas para nós, mas em si
mesmos. O clinamen é uma diferencial permanente que, em lugar e tempo incertos,
introduz uma variação mínima que é a ruptura com a determinação física. Reaparece
aqui o tema da flutuação. A indeterminação do processo causal acaba por diluir os
fenômenos, eles mesmos determinados, em uma nuvem de indeterminação. O destino
do mundo, totalidade incerta na qual os fenômenos se dão segundo uma certa
orquestração é o destino comum de todos os seres: pertence, ainda uma vez mais, ao
acaso.
Somatório de corpos, o mundo não pode ter existido desde sempre. A
própria natureza humana oferece testemunho do mundo como devir e não como uma
realidade sempiterna: a aventura humana não recua longamente no tempo, como o
indicam as narrativas heróicas e seu passado relativamente recente. O progresso das
técnicas nos mais diversos âmbitos é, segundo Lucrécio, índice da juventude do
mundo e da “humanidade”.
11 Conche, M. Lucrèce et l’experiénce, páginas 72 – 73.
170
[...] segundo penso, tudo é novo neste mundo, tudo é recente, e há bem pouco
tempo ele teve seu começo. Eis a razão pela qual certas artes se aperfeiçoam e
ainda hoje vão progredindo. Ainda hoje acessórios são acrescentados aos navios,
e há não muito tempo os músicos produziram melodias novas. Enfim, essa
natureza, essa razão das coisas que eu exponho é uma descoberta recente, e eu
mesmo sou o primeiro entre os primeiros a traduzi-la em nossa língua.12
6.3 A formação do mundo: acaso e necessidade.
Após reconhecer no mundo uma organização transitória, perecível, Lucrecio
põe-se a tratar do processo a partir do qual ele foi formado13. Mas não se trata de
descrever a origem, nem tampouco de um narrar um momento fundador. Como
vimos, não há gesto eficaz (divino) que seja criador do mundo. O mundo é um devir
que, em última análise – isto é, segundo a ontologia atomista – não tem princípio nem
fim. A descontinuidade material, sabemos, permite em contrapartida uma
continuidade de movimento. Assim, se pensarmos o mundo como um conjunto
descontínuo de unidades moventes, vê-se que, em vista do estado geral do universo, a
existência desse mundo nada acrescenta nem subtrai. O universo permanece estável e
idêntico a si mesmo em vista dessa formação transitória: “[...] o movimento que
anima agora os corpos primordiais é o mesmo que tiveram em idades remotas e o
mesmo que terão no futuro”14.
Não é por outra razão que Epicuro e Lucrécio, diferentemente de Demócrito,
não estabelecem, a rigor, uma clivagem ontológica, definitiva, entre as realidades
últimas – átomos e vazio – e o devir, aquilo que aparece no nível dos compostos: “os
corpos (corpora) são em parte formados pelos elementos (primordia rerum) e em
parte formados pelo que resulta da reunião desses elementos (concilia)15.
12 D.R.N. V, 330 – 337. 13 D.R.N. V, 416 – 508. 14 D.R.N. II, 297 – 299. 15 D.R.N. I, 483 – 484. Epicuro, Carta a Heródoto, 40 – 41.
171
L’apparition d’une catégorie englobant à la fois les atomes et les composés
montre qu’il n’y a plus de rupture ontologique dans les passage à l’organization
et c’est ce qui explique pourquoi, dans la physique épicuriénne, les composés
n’ont plus seulement la pseudo-existence conventionelle que leur attibuait
Démocrite, mais une existence réelle.16
Nota-se aqui que o estabelecimento de uma ontologia em sentido estrito,
tarefa com a qual se comprometeu o pensamento dos abderianos, não é o bastante
para prestar contas de uma complexidade movente como a do mundo; e no entanto,
afirmam os epicuristas, é o mundo mesmo que deve ser explicado.
A gênese do mundo, tema anunciado de forma reincidente em repetidas
ocorrências anteriores, ganha finalmente uma imagem detalhada. De que modo, a
partir de uma massa tempestuosa de elementos, surgiram a terra, o céu, os abismos
que contém os oceanos, o sol e a lua e seus respectivos cursos ordenados, bem como
toda a gama de seres viventes? A princípio Lucrécio recupera a idéia de um caos-
nuvem originário, inteiramente regido pelo acaso.
Com efeito, não foi em virtude um plano determinado, nem por conta de um
espírito sagaz que os elementos das coisas se colocaram em sua ordem;
tampouco combinaram entre si seus movimentos. Em grande número, os
elementos das coisas, abalados por choques de mil espécies, foram sempre
levados por seu próprio peso e agregaram-se de todas as maneiras, não cessando
de se moverem e de experimentarem todas as coisas que podiam ser criadas
através de sua união; eis a razão pela qual, por força de errarem durante o infinito
do tempo experimentando todas as uniões e movimentos possíveis, acabaram
finalmente por formar aquilo que, depois de reunido, torna-se a origem dos
grandes objetos naturais, a terra, o mar, o céu e as espécies viventes.17
16 Morel, P.-M. Atome et nécessité, pág. 50.
172
A descrição feita inicialmente por Lucrécio traça o quadro do estado caótico
do movimento dos corpos originários. Mas esta imagem do caos já fora fixada em
momentos anteriores do poema, ocorrências nas quais tratava-se de definir a natureza
do movimento dos átomos. Em uma passagem determinada, Lucrécio evoca como
ilustrativo dos movimentos invisíveis da matéria a imagem, democriteana, dos grãos
de poeira errando claridade do sol18. Esse estado geral de movimento é uma mistura
confusa de “distâncias, direções, combinações, densidades, choques, encontros e
movimentos”19. Mas esse amontoado tempestuoso, inteiramente cego em seus
desígnios, é como que uma infinita potência de distribuição de partes. Nesse estado
proto-embrionário os átomos estão distribuídos de forma dispersa, mas a formação do
mundo indica que em um momento – não determinado – as grandes massas de
elementos começaram a se agrupar, de modo que os corpos reuniram-se segundo
relações de semelhança. Os elementos formadores da terra, mais pesados, começaram
a ocupar as partes centrais, mais baixas, ao mesmo tempo em que, nesse movimento
de reunião, expulsavam os elementos mais leves que futuramente dariam origem aos
oceanos e, ainda os astros mais o sol e a lua – constituídos por elementos mais leves.
Com efeito, inicialmente, todos os elementos da terra, em virtude de seu peso e
de estarem presos uns aos outros, tendiam a se reunir no centro e a ocupar em
massa as regiões mais baixas; e quanto mais eles estreitavam sua união e seu
enganchamento, com mais força expulsavam de sua matéria aquilo que viria a
constituir o mar, os astros, o sol, a lua e as muralhas do vasto mundo. Todos
estes corpos compõem-se de sementes mais lisas e redondas, seus elementos são
bem menores que os da terra. Assim, atravessando os vazios e os poros da terra
ainda pouco densa, libertando-se por fim desta, eleva-se em primeira mão o éter
cheio de fogo; este, ligeiro, arrasta consigo um grande número de fogos, mais ou
menos como vemos, com freqüência, os raios matutinos do radiante sol tingidos
de vermelho com o orvalho das ervas peroladas, e um vapor se eleva dos lagos e
dos rios inesgotáveis, a tal ponto que muitas vezes parece a nós fumegar a terra.
17 D.R.N. V, 419 – 431. Ver ainda: I, 1021 – 1026 e II, 1061 – 1063. 18 D.R.N. II, 125 – 132. 19 D.R.N. V, 436 – 439.
173
Todas essas emanações que se elevam vão se reunir nas alturas formando um
corpo denso de nuvens capazes de nos ocultar o céu. Foi desse modo que, nesse
momento, o éter ligeiro e volátil, tendo-se condensado, formou a abóboda que
envolve o mundo e espalhando-se ao longe, por toda a parte e em todas as
direções, envolveu tudo com um abraço ávido e passou a servir de recinto às
coisas. Nasceram depois o sol e a lua, cujos globos giram pelos ares por não
terem sido incorporados nem pela substância da terra, nem tampouco pelo éter
imenso: pois não eram graves o bastante para ocupar o centro do mundo nem
leves o bastante para deslizar até as regiões superiores. Estão, todavia, de tal
modo estão suspensos nos espaços intermediários, que giram como corpos vivos
e fazem parte do conjunto do mundo; do mesmo modo que podem, em nosso
corpo, ficar alguns membros em repouso, mesmo que outros estejam em
movimento.20
Lucrécio inscreve o mundo, tanto em seu processo de formação quanto em
sua permanência, sob o signo do fluxo e do movimento; quanto a este aspecto note-se
que, ao ilustrar o processo de acúmulo das grandes massas de terra e da expulsão dos
corpos formados por elementos mais leves como o éter, recorre a fenômenos ainda
hoje facilmente observáveis. Daqui depreende-se que o mecanismo desse processo
prossegue atuante no funcionamento da totalidade organizada que é o mundo.
As condições iniciais estão dadas: uma vasta população de átomos, uma
extensão infinita (continuidade de movimento), desvio (clinamen), movimentos
erráticos e choques. Este panorama é o caos-nuvem21 originário ao qual nos
referíamos mais acima, o acaso operando os movimentos atômicos, isto é, ausência
total de plano ou de finalidade. A experimentação cega desse grande número de
átomos, os encontros e desencontros repetidos um sem-número de vezes é a potência
que, enfim, dispõe os átomos apropriados em uma formação capaz de fazer emergir
um esquema de ordem e equilíbrio tal como o mundo. Ocorre que a esse grande
número reunido ao acaso passa a corresponder a uma dinâmica de movimento que é
precursora da ordem emergente. O movimento em si mesmo, isto é, o movimento do
20 D.R.N. V, 449 – 479.
174
átomo, em nada é alterado; é o conjunto que adquire um comportamento singular.
Isso não significa que o conjunto adquira um movimento autônomo em relação
àquele das partículas, da matéria em seu estado último. Trata-se, antes, da criação de
um estado de equilíbrio, de uma certa forma em movimento que, uma vez constituída,
alcança o dinamismo sistêmico tal qual podemos perceber no funcionamento do
mundo. Mas nesse caso, por uma questão de precaução terminológica, é preciso
salientar que a forma é segunda em relação ao movimento. Forma em movimento
significa forma em devir, isto é, jamais uma forma prévia, dada, nem tampouco uma
forma que se “realiza”. A forma em movimento é o próprio estado de equilíbrio.
O que é, pois, esse estado de equilíbrio senão uma sorte de movimento cujo
estatuto é o mesmo que poderíamos atribuir à necessidade? Passagem do caos à
ordem: passagem da soberania do movimento, do acaso (ausência de formas) para o
da necessidade (forma em movimento)? De um certo modo, sem dúvida. Mas, com
efeito, se insistirmos um pouco mais nas implicações ontológicas dessa transição,
veremos que muito pouco sobra a ser detectado: apenas que certas condições,
absolutamente imprevisíveis são criadoras, mas o que é criado em nada acrescenta
nem em nada subtrai ao estado elementar. Não há, a rigor, mudança de movimento:
os átomos não passam de um “nível” de movimento (caótico) a outro estágio
(ordenado).
É o conjunto que emerge desses movimentos de átomos desgarrados –
lembremo-nos uma vez mais do grande número – e passa a se comportar como
conjunto. A natureza tão-somente dá testemunho de que uma grande população de
elementos diversos movidos ao acaso pode, em tempo em certo e lugar incerto, passar
a obedecer a um padrão singular de distribuição dessa população.
Não há diferenciação entre estágios de movimento: acaso e necessidade são,
do ponto de vista ontológico, absolutamente equivalentes. São nomeações que
atribuímos ao par ordem-desordem com o qual ingenuamente confrontamos o mundo
21 Cf. A expressão de Michel Serres, O nascimento da física no texto de Lucrécio, pág. 51 e ss.
175
do alto de nossas parcialidades, de nossos interesses. A ordem que emerge não
pressupõe a inteligência, ela a cria. Segundo os epicuristas a suposição filosófica de
uma inteligência soberana e criadora revela, antes, uma inquietação da consciência
humana diante do mistério do mundo. O projeto filosófico epicurista acena com uma
desmistificação, uma “desmitificação” do problema da ordem: trata-se de explicá-la,
desobstruí-la de nossas inquietações metafísicas e fazer ver que, em si mesma ,ela não
é nada, que ela em nada difere do caos que tanto tememos e que, segundo podemos
perceber todo tempo, resvala o mundo.
6.4 A “Natureza das coisas”
Os Pactos da natureza (foedera Naturae)22
Se a contingência é primeira, como explicar que desse caos surja a
organização e a constância23? A busca de uma resposta a esta questão implica uma
retomada da noção de limite. Como vimos, Lucrécio restringe o infinito ao número de
átomos e ao vazio, ao passo que a quantidade de formas de átomos, ainda que
inumeráveis, permanece finita. Nesse sentido as possibilidades de composição, ainda
que infinitas na sucessão e na simultaneidade, não são, em absoluto, admitidas quanto
aos tipos distintos, mesmo que sua grande quantidade escape a nossa capacidade de
compreensão ou sistematização. A natureza é ela mesma o limite de suas
possibilidade, já que atua segundo certos “pactos” ou “leis” (foedera naturae). A
localização desses pactos torna pensáveis os dispositivos que regulam a constância
dos fenômenos e, também o surgimento e continuidade das espécies vivas24.
22 Neste desenvolvimento sobre os foedera nature somos quase que integralmente devedores do estudo de Gabriel Droz-Vincent:. “Les foedera naturae chez Lucrèce” in Le concept de nature à Rome., págs 191 – 211. 23 Indagação feita por Cícero em seu De finibus, I, VI, 20. 24 De rerum natura, I, 584 - 592
176
O reconhecimento daquilo que é verdadeiramente infinito (número de
átomos e vazio) e daquilo que não é (formas atômicas e modalidades de combinação)
define o equilíbrio necessário à multiplicidade que é pensada como causa de todas as
coisas e a maneira segundo a qual ela se distribui para a manutenção de uma certa
constância – mesmo que precária. A racionalidade constata, de uma parte, a
existência de um limite de combinações possíveis entre os átomos. De outra parte,
considerando o movimento eterno dos átomos, temos que a limitação do número de
átomos no universo perderia sua validade, visto que os compostos ou tenderiam a
uma rápida desagregação ou nem mesmo poderiam se constituir. É, pois, necessária
uma “reserva infinita de átomos” que, vindos do espaço infinito, repõem nos
compostos as perdas causadas pelo próprio movimento dos átomos25.
A recusa de um princípio originário inteligente faz com que os epicuristas
procurem alhures uma explicação para a organização de estruturas como o mundo e
tudo o que nele está contido. Trata-se de compreender em termos naturalistas as
modalidades de funcionamento da natureza, “o que pode e o que não pode nascer,
enfim as leis que delimitam o poder de cada coisa através de limites inabaláveis”26. A
noção de limite é trabalhada por Lucrécio através de termos sinônimos tais como
terminus27, ou ainda quando se trata de fixar os limites que regulam os desejos e os
temores28, ou ainda quando se trata de admitir e reconhecer as leis ou pactos da
natureza (foedera naturae). O sentido usual do termo foedus pertence ao campo
jurídico: significa tratado ou, ainda, pacto, convenção, aliança. Convém aqui não
esquecer que uma das tarefas enfrentadas por Lucrécio é a de tornar o idioma latino
permeável aos conceitos filosóficos criados pelos gregos, o que o obriga a trabalhar
para a formação de um léxico filosófico próprio. Lucrécio escreve em latim, e muitas
25 De rerum natura, I, 1051 e ss. 26 Lucrécio, De rerum natura, I 75 – 77. Esta fórmula, “o que pode e o que não pode nascer, enfim as leis que delimitam o poder de cada coisa através de limites inabaláveis” (finita potestas denique cuique
quanam sit ratione atque alte terminus haerens) é retomada integralmente em I, 595 – 596, V 89 – 90 e VI 64 – 65. 27 Nestes casos trata-se da morte entendida como limite de compostos vivos tais como o Homem: terminus vitae II, 1087; terminus malorum III, 1020. 28 D.R.N. VI, 25.
177
vezes vê-se na obrigação de tomar de empréstimo da linguagem corrente certos
termos e forjar, a partir deles, noções filosóficas. É o caso de foedus. A escolha de
Lucrécio por este vocábulo para agrupar os desenvolvimentos referentes aos temas da
ordem e estabilidade da natureza põe, de antemão, a questão sobre o sentido daquilo
que é definido como “fixo” no devir das coisas. Tratados, pactos, convenções e
alianças evocam a idéia de uma duração inerente: são firmados de acordo com as
circunstâncias favoráveis e prestam-se à ruptura ou à dissolução. Insinua-se aqui, uma
vez mais, esse elemento de flutuação que não nos permite atribuir uma determinação
inflexível destes pactos que a natureza estabelece consigo própria em sua abertura
infinita.
Segundo Droz-Vincent há doze ocorrências do termo foedus ao longo do
poema; dentre estas, cinco ao menos concernentes aos foedera naturae: I, 585; II,
302; V, 310 e 924; VI 906. Há ainda uma ocorrência de foedus em V, 5729; muito
embora a expressão foedera naturae não apareça, neste caso, em sentido literal, o uso
do termo foedus impõe-se segundo esse mesmo sentido de foedera naturae, isto é
“pacto” ou “lei da natureza”30.
Droz-Vincent, em sua análise sobre os foedera naturae no poema de
Lucrécio, parte da última ocorrência – canto VI, 906. A expressão é utilizada aqui no
singular: Lucrécio trata nesta passagem de oferecer uma explicação naturalista de um
intrigante (ao menos para os antigos) fenômeno: o magnetismo. Com efeito, a
intenção de Lucrécio aqui não é a de “estabelecer uma lei positiva”31 que explique a
atração exercida pelo imã sobre o ferro; tem em vista, antes, seguir o princípio
segundo o qual “tous les phénomènes naturels sont susceptibles d’une explication
scientifique aus sens que les Epicuriens confèrent à ce terme, c’est-à-dire qui écarté le
mythe”32. Droz-Vincent acena então que o uso de foedus no singular indica que
Lucrécio vale-se, nesta exposição, de um princípio geral amplamente explorado em
29 Literalmente: ac doceo dictis quo quaeque creata foedere sint. 30 Droz-Vincent, G. Op. cit., pág. 192. 31 Droz-Vincent, G. Op. cit., pág. 194. 32 Droz-Vincent, G. Op. cit., pág. 194.
178
ocasiões anteriores para explicar um caso, isto é, um fenômeno determinado; de outro
modo, o caso particular do magnetismo reafirma um princípio geral já familiar ao
leitor a que se destina o poema. As outras cinco passagens nas quais os foedera
naturae são evocados concernem a “pontos nodais da argumentação” lucreciana,
relativos à determinação dos princípios e aos processos de formação e desagregação
dos compostos. São passagens que Droz-vincent localiza como aquelas nas quais está
em jogo a determinação do possível que, em sua leitura de Lucrécio, se identifica
com o real.
A primeira ocorrência dos foedera naturae no poema encerra um importante
desenvolvimento do Livro I (503 – 508). Na seqüência desta passagem são
apresentados oito argumentos que são articulados com o intuito de provar a
indestrutibilidade dos corpos primeiros. Estes corpos primeiros, por sua
indestrutibilidade, opõem-se aos compostos (concilia). Estes últimos são aqueles
dados a nossa sensibilidade, partícipes do movimento incessante do vir-a-ser. Embora
fluam – o que pertence ao sensível é o que flui – mantêm em seus movimentos uma
regularidade que não se pode explicar a não ser reportando-se à existência de um
princípio material estável, indestrutível, substrato de propagação do fluxo e resistente
a este. Cumpre atender aqui ao axioma, fixado em primeira mão na idade pré-
socrática, que funda a idéia de natureza e toda física que dela decorre: nada do que
existe pode surgir do nada nem tampouco o que quer que exista pode ser reduzido a
nada33.
Entre os versos 584 – 598 Lucrécio observa que a manutenção dos caracteres
específicos das diferentes espécies de seres vivos não pode ser explicada a não ser
através da presença, nelas, de elementos imutáveis. Mas isto parece não bastar, pois a
própria noção de espécie implica, para além desta imutabilidade, uma certa
permanência em relação aos limites impostos pela natureza das coisas. Isso não
significa, contudo, que os elementos eles mesmos tenham de ser mantidos; pelo
contrário, o princípio de produção da natureza, tal como o entende Lucrécio, exige
que haja fluxo, isto é, mobilidade constante de elementos. A coisa que permanece é o
179
“tipo”: “[...] les foedera naturae, appliqués au vivant, ne s’étendent pas jusqu’à
l’individu mais déterminent un type spécifique”34. Para além das diferenças que
distinguem os indivíduos de uma mesma espécie é preciso considerar a questão sob
um aspecto “específico”: uma modificação em um indivíduo qualquer que o leve a
exceder os limites determinados por sua natureza significará a morte disto que era até
então – o que neste caso nada tem a ver com o indivíduo ele mesmo35. Os foedera
naturae são, pois, como que uma reafirmação, no campo teórico, da percepção de que
há, de fato, uma certa ordem que diferencia a natureza de um simples movimento
aleatório. A natureza apresenta-se de um certo modo regular em suas constantes
diferenciações, e é em virtude desta regularidade que estamos aptos a, através de
nossa sensibilidade (que em substância não difere do pensamento), recolher e dispor
de forma organizada, nossas experiências. Forçoso é reconhecer que há, de algum
modo, uma racionalidade imanente às produções da natureza – embora isto não possa
ser confundido com algo como um plano, ou diretriz, ou sentido, ou coisa afim – sem
a qual não haveria fenômenos a pensar, sem a qual todas as coisas estando entregues
ao caos e à obscuridade. Aliás, não seria possível nem ao menos falar de
“fenômenos” se já não se considerasse uma ordem perceptível a ser pensada. Mas se
há uma tal racionalidade – o que implica, também necessariamente, uma certa
concepção de limite e finitude – ela é uma racionalidade de fato, dada à experiência,
atestada pela contemplação do mobilismo das coisas; ela não supõe, ou não deveria
supor, o primado da razão sobre o mundo, ou ainda a confusão de se tomar a razão
pelo próprio mundo.
No universo das formas que vêm-a-ser no mundo, o caso dos seres vivos
merece, em particular, uma resposta satisfatória de um pensamento que coloca essas
formas mesmas sob o signo de um acaso criador. Estruturas extraordinariamente
complexas e de performance altamente diferenciada em relação àquela dos seres
inanimados, as formas vivas são como que uma evidência simples capaz de arruinar
33 D.R.N. I, 158 – 173. 34 Droz-Vincent, G. Op. cit., pág. 196. 35 Ver; D.R.N. I, 670-1; II, 763; III, 519.
180
decisivamente o princípio assumido pelos atomistas de que a ordem é segunda em
relação à desordem. A simples manutenção dessa complexidade ordenada que
caracteriza o ciclo de um ser vivo, bem como, sobretudo, a transferência regular dessa
complexidade por gerações sucessivas bastariam para refutar a tese fundamental
desses pensadores do acaso: a ausência de finalidade nas produções naturais. Os
adversários dos atomistas – em última análise todos eles representantes de filosofias
finalistas, o que constitui uma espécie de “dimensão hegemônica do pensamento” –
aproveitam-se desta aparente debilidade para desautorizá-los como filósofos capazes
de pensar o mundo: pois a despeito dessa permanente transformação, o mundo
mesmo e tudo aquilo que nele há de estável testemunham que algo escapa à voragem
infinita do devir. Não se trataria, nesse caso, de apenas de um substrato material que
resiste, em caráter último, à aparente fragmentação material. O objeto do pensamento
é a forma; esta por seu estatuto mesmo de incorruptibilidade, constitui-se como
realidade apartada da matéria. A renuncia atomista ao primado da forma em relação
ao devir significa, segundo esta análise, uma renúncia análoga à idéia mesma de que a
natureza funciona como um todo acabado e orgânico, sem o que a própria idéia de
natureza – a explicação do que é o mundo – passa a carecer de sentido. Segundo esta
análise o acaso, compreendido como ausência de um sentido determinado, nada pode
explicar.
Segundo Droz-Vincent esta obediência necessária a um conjunto definido de
condições, quando referida ao conjunto de espécies vivas, implica que a vida – um
fenômeno em última análise – define-se a partir da constituição de um tipo, de um
conjunto de caracteres comuns transmissíveis de uma geração à outra. As condições
de vida de um ser vivo individual pertencem propriamente à espécie; jamais são
encontráveis em um ser isolado. O que significaria a formação de um “tipo” vivo
isolado, um exemplar único (ver II,541 - 568)? É preciso considerar ainda que a
manutenção do tipo ou da forma que define a espécie ao longo das gerações
pressupõe um conjunto de condições especiais que lhe assegurem a estabilidade, isto
é, seu “habitat” específico.
181
Nos versos 309-310 os foedera naturae são associados ao finis fati36. Esta
associação é como que uma reafirmação da recusa epicurista em relação ao
determinismo, ou a certas modalidades de determinismo. De fato, salta aos olhos que
o anti-determinismo lucreciano não significa a assunção de que a natureza opera sem
qualquer tipo de determinação: é a partir de alguma determinação que, por exemplo, o
“tipo” permanece na duração.
A regularidade dos foedera naturae é atestada através de um contínuo que se
estende desde um passado remoto até os nossos dias. Tudo aquilo que nasce obedece
às mesmas leis de sempre e a elas estarão submetidas de maneira irrevogável37. Não
apenas a formação e desenvolvimento dos compostos mas também sua degeneração e
desaparecimento estão, de maneira idêntica, submetidos às mesmas leis eternas do
movimento dos átomos, o que ressalta a constância relativa de todas as coisas
existentes. Neste contexto, como ressalta P.-M. Morel38, afirmar a necessidade, longe
de ser paradoxal, abre um novo campo de atuação deste conceito. Ao invés da
determinação cega e irrestrita os epicuristas tentam fazer prevalecer a liberdade de
ação do indivíduo para, ao obedecer às determinações da necessidade, agir de acordo
com sua própria natureza.
A natureza: natura gubernans / natura creatrix
De outra parte, certas expressões utilizadas por Lucrécio ao longo do poema,
mesmo que dispensemos alguma liberdade ao exercício do gênero poético, parecem
sugerir que a natureza estaria constituída como uma espécie de sujeito organizador do
mundo39 cujo poder fosse criador (natura creatrix) e soberano (natura gubernans).
No entanto a radicalidade anti-providencial e anti-teleológica torna problemática uma
36 Neste verso em oposição aos foedera fati (as leis do destino), II, 254, no desenvolvimento que trata da declinação do átomo. Ernout, em sua edição do poema (volume 1, pág. 53) acrescenta em nota: “ces lois naturelles, foedera naturai, s’opposent évidemment au fati foedera du v. 254. Elles ont sans doute, elles aussi, un caractère de nécessité, mais tempéré par la liberté de déclinaison inhérente à l’atome.” 37 De rerum natura, II, 297 – 308. 38 Morel, P.-M. Op. cit. pp. 48.
182
intepretação desta ordem. Até então vimos que o poder criador da natureza não
poderia ser outro senão aquele exercido pelos próprios átomos, dentro dos limites de
suas características materiais e mecânicas.
Vimos que Lucrécio recusa explicitamente uma interpretação animista: os
átomos, apesar de não inteiramente submetidos à determinação da queda vertical, não
são dotados de uma mente ou inteligência. É em virtude da espontaneidade e da
diversidade de seus movimentos que os corpos elementares são investidos dessa
possibilidade incessante de combinações, o que lhes permite a produção de estruturas
estáveis. A natureza, para os epicuristas, ao invés de uma mera executora de um plano
elaborado segundo uma lei divina, ou de um acaso submetido integralmente ao
regime da necessidade, é caracterizada como um horizonte inesgotável de
possibilidades40. A esse respeito Morel observa que:
[...] la passage du désordre à l’ordre ne découle pas seulement du principe de
limitation que constituent les foedera naturae. Il s’explique également par la
spontanéité de l’apparition des structures. La géneration n’est pas autre chose en
effet qu’un mouvement local et elle ne suppose aucune sorte de plan. Dès lors
qu’une combinaison viable se forme, il y a déjà géneration et organization.41
Mas a pergunta pelo significado da noção de natureza em Lucrécio ganha,
novamente, um caráter problemático quando é introduzida a expressão natura
gubernans. A natureza é apresentada claramente como sujeito, agente de um poder,
de um governo. Trata-se de uma metáfora? Se natura gubernans é, com efeito um
metáfora, sua interpretação coloca para o estudioso uma série de dificuldades. O que,
com efeito, a natureza governa? Como exerce tal governo? Em última análise é ainda
a pergunta “o que é a natureza?”, este algo que, afinal, estabelece pactos e governa.
39 Ver por exemplo De rerum natura, I, 629.; II, 1117; V 77. 40 Ver Conche, M. Op. cit., pp 57. 41 Morel, P.-M. Op. cit. pp. 49-50.
183
Lucrécio introduz a expressão natura gubernans no canto V, após o elogio
de Epicuro e da exposição de um sumário no qual são apresentados os temas que
serão desenvolvidos em seguida: a mortalidade do mundo; as origens da vida na terra
e os limites que a natureza impõe à geração dos seres; o aparecimento do fenômeno
da linguagem; os primórdios das concepções religiosas e o despontar do temor aos
deuses.
Além disso, explicarei por que força inflete e governa a natureza (natura
gubernans) o curso do sol e o andamento da lua, para que não se acredite por
acaso que eles prosseguem espontânea e eternamente nos seus caminhos entre
céu e terra, a fim de favorecer o crescimento de plantas e de animais, nem se
julgue que giram impelidos por qualquer vontade divina. De fato, aqueles que
aprenderam que os deuses levam vida sossegada procuram, no entanto, saber por
que lei tudo acontece, sobretudo no que diz respeito àquelas coisas que se vêem
acima da cabeça, nas regiões etéreas. E lá voltam às antigas religiões e fazem
intervir senhores terríveis que os pobres julgam ter todos os poderes, porque não
sabem o que o que pode e o que não pode existir e o poder limitado que tem cada
uma das coisas segundo uma lei fixa marcada por limites rígidos.42
Articula-se, assim, um discurso que visa sobrepor a ordem soberana da
natureza a todo tipo de explicação de caráter religioso, seja ela vulgar ou filosófica. A
regularidade dos fenômenos celestes coloca para o pensador epicurista a evidência
empírica de uma ordem estrita e a tarefa de ter de explicá-la sem romper com os
princípios que orientam seu pensamento, isto é, sem recorrer a uma explicação que
introduza um concepção finalista. Não há “força” exterior (transcendente) à natureza,
às coisas; isto é, não há “sobrenatureza”. Percebe-se nesta passagem uma polêmica de
fundo na qual Lucrécio se opõe aos partidários da Teologia Astral.
Parece, pois, um passo “natural” aquele dado por Lucrécio: subtrair aos
deuses o governo do mundo e reconhecer a natureza como a única instância detentora
42 D.R.N. V, 74 – 90.
184
da prerrogativa de presidir o curso dos acontecimentos: criar, manter, dissolver. É
evidente que Lucrécio não dispõe de uma outra alternativa que não aquela de manter-
se dentro dos limites de uma explicação naturalista. Mas, de outra parte, não fica
menos claro que esse mesmo naturalismo estrito vê-se seriamente ameaçado pela
idéia de uma “natureza soberana” – natura gubernans. Com efeito a natura é sujeito
de uma ação, de um papel diretor (gubernare)? O que ela governa? Como ela exerce
um tal poder? A natureza, vista desse modo, parece adquirir uma existência autônoma
em relação às coisas, em conflito com as convicções que orientam o pensamento
epicurista: soberania, governo, unidade que distribui e articula as partes segundo uma
estrutura, ela mesma; se é estrutura é, já, dobra sobre si mesma (as partes), outra que
ela mesma, instância supranatural ou sobrenatural, metafísica.
Em um artigo específico sobre esta passagem, Alain Gigandet43 apresenta
três diferentes alternativas, sucessivas, de interpretação da natura gubernans
lucreciana – e em última análise, de todo o poema. Explora algumas tensões e aporias
do De rerum natura pondo à vista o núcleo para o qual todos esses fios convergem: o
problema da ordem em um universo que tem como princípio o acaso. Neste estudo
Gigandet faz referência ao incômodo dos comentadores diante de uma expressão que
parece representar a idéia de uma natureza diretora. Metáfora poética, no dizer de
Robin44, totalmente em desacordo com os princípios do mecanismo epicurista. A
expressão pode, ao que parece, ser compreendida como uma metáfora; mas de que
espécie de coisa (soberania, governo) ela trata?
Robin busca uma neutralização da metáfora: interpreta a expressão natura
gubernans como uma licença poética desprovida de significação filosófica mais
profunda. Neste caso a metáfora seria uma pura imagem45 sem nenhuma repercussão,
tanto sobre a noção de natureza quanto sobre o seu “agir”, isto é sobre a causalidade
43 Gigandet, A. “Natura Gubernans (Lucrèce, V, 77) in Le Concepte de nature à Rome, páginas 213 – 225. 44 A. Ernout et L. Robin, Lucrèce, De rerum natura, Commentaire exégétique et critique, pág. 13. 45 Gigandet, A. Op. cit., página 215.
185
sobre a qual opera seu governo. A interpretação de Robin parece considerar que a
idéia de uma natureza organizadora, calculante – isto é, uma inteligência metafísica –
evocada pela imagem de uma natura gubernans é irreconciliável com os princípios
antiteológicos e antiteleológicos do epicurismo; neste caso a expressão não possui
qualquer relevância do ponto de vista filosófico. Mas a interpretação de Robin parece
problemática, pois se voltamos ao texto46, vemos que Lucrécio se dispõe a dizer por
qual força (qua ui) a natureza governa (natura gubernans) o curso do sol e da lua.
A natureza em Lucrécio, summa summarum, é soma de todas as coisas, isto
é, soma infinita, ou ainda “soma sem soma”47. Os movimentos dessa estranha suma
de coisas são presididos por uma força infinita, material, a uis materiai que em
diversas passagens do poema é evocada. Esta força, potência de criação e de
destruição, nada mais é do que a determinação da direção de movimento dos átomos.
Ela pode, pois, ser decomposta no peso (pondus), nos choques (plagae) e declinação
(clinamen). Fatalidade externa (choques), fatalidade interna (peso) e a componente de
emancipação que faz dos átomos partículas autônomas, eles mesmo princípios de
espontaneidade, isto é, princípios de determinação do movimento.
A articulação destes diferentes componentes da uis mteriai (choque, peso e
desvio) reafirmam uma imagem da natureza que (se) faz e (se) desfaz sem nenhum
plano diretor: é através do acaso dos choques que tudo se produz e se desfaz. A
metáfora “dirigista” que evoca a idéia de governo ganha sentido quando lida no
interior de uma disputa entre o antiteologismo epicurista e as idéias que fundam a
teologia astral.
Esta interpretação é, todavia, provisória. Ela ganha sentido na medida em
que, pela sua fragilidade, coloca o pensamento em vigilância diante de uma questão
filosófica que, à primeira vista, parece escapar na extensão do poema. Outras
ocorrências ao longo do texto lucreciano, nas quais a natureza aparece como sujeito –
46 Ainda no referido verso 77, canto V 47 Gigandet, A. Op. cit., página 215.
186
isto é, como ser, agente e pensante – só serviriam para fortalecer a questão e
intensificar a tensão naquilo que parece ser a maior dificuldade interna do
pensamento de Lucrécio.
Tentar neutralizar ou minimizar a metáfora, como sugere Robin, só ganha
sentido se se pretende enfraquecer o pensamento de Lucrécio; significa atribuir-lhe
uma consciência filosófica que recorre a um “expediente poético” para subtrair-se a
uma questão radical. É separar analiticamente o poeta e o investigador da natureza,
isto é, enfraquecer o pensador. É reproduzir a imagem segundo a qual Lucrécio, o
discípulo, teria se restringido a cantar em seus versos a epopéia do verdadeiro filósofo
– Epicuro.
Gigandet propõe um segundo modo de interpretação da expressão natura
gubernans; mas desta vez a metáfora é levada a sério. Os versos 76 – 81, citados
acima, anunciam uma explicação para os movimentos regulares dos astros48.
Or, ce qui est difficile à penser à partir des seuls chocs atomiques aléatoires, c’est
la constituition d’un ordre cosmique, certes, mais plus encore peut-être la
reconduction de cet ordre, sa stabilité, dont les mouvements réguliers des astres
sont ici le signe exemplaire, conformément à une longue tradition. Lucrèce peut-
il vraiment penser au-delà ou à côté du modèle finaliste, et directement ou
indirectement intentionnel, qui est celui d’une causalité organisatrice – celle-là
même que, dans Platon, réclamait Socrate, avec et contre Anaxagore? La
métaphore ne sonnerait-elle pas ici comme un aveu de relatie impuissance?49
Gigandet recupera outras passagens nas quais o funcionamento da uis
materiai parece sugerir um controle da natureza. Interpreta-as estabelecendo um
paralelo entre o modo segundo o qual a natureza governa a matéria e o papel exercido
pela alma em sua relação com o corpo. Estas aproximações parecem sugerir que do
mesmo modo que a força que determina o espírito, através da alma, é capaz de impor
48 D.R.N. V 509 – 530. 49 Gigandet, A. Op. cit., página 218 - 219.
187
aos membros do corpo uma direção50, também parece operar sobre as partes materiais
inertes uma força – uis materiai – organizadora e exterior a elas.
No entanto, em ao menos duas passagens (II, 1090 – 1104 / V 91 – 234)
Lucrécio faz referência explicita à estreiteza de relações entre idéias cosmológicas
finalistas e concepções teológicas. Além disso, em outras duas ocorrências (I, 1021 –
1023 / V 419), rejeita expressamente a idéia de uma inteligência exterior aos átomos.
Em última análise: o infinito não admite ordem (exterior): “De fato [...]quem poderia
ter mãos bastante firmes para manejar as fortes rédeas do infinito [...]?51
O problema filosófico com que se bate Lucrécio permanece em discussão:
subtrair aos deuses o governo (potestas; imperium) do mundo, a ordem, a
regularidade dos movimentos celestes. Mas este novo “governo”, da natureza, não se
torna inteligível a partir de uma simples transmissão de poderes: saem de cena os
deuses, entra a natureza. A rigor uma substituição dessa ordem já havia sido operada
anteriormente, no quadro do pensamento pré-socrático. A imagem da natureza
proposta por Lucrécio, como vimos, jamais permitiria uma simples substituição. É a
própria idéia de poder, sua estrutura, que deve ser substituída. Vale dizer com isso,
conforme assinala Alain Gigandet, que é a própria noção de causalidade que deve ser
repensada52.
A metáfora da natura gubernans indica, antes, um impasse diante do qual o
pensamento atomista entra em tensão consigo próprio. Deve-se recusá-la: a) tanto
como uma imagem poética destituída de rigor filosófico quanto; b) como símbolo do
alcance limitado do pensamento epicurista, o qual seria incapaz de oferecer uma
explicação para a ordem natural. Em outras palavras, o uso da expressão natura
gubernans em uma passagem capital do poema por si só esvazia uma interpretação
que proponha neutralizá-la como imagem filosófica; tampouco parece suficiente
50 O ser é a direção. A liberdade é a direção. A questão toda do “ser”, para Lucrécio parece convergir para o problema da direção. 51 De rerum natura, 1095 – 1099. 52 Gigandet, A. Op. cit., página 221. Remetemo-nos aqui para a discussão sobre o estatuto dessa causalidade pensada no poema de Lucrécio, feita no capítulo dedicado ao tema da declinação.
188
admitir que a metáfora assinala um limite no qual o atomismo perde o impulso e vê
ruir todos os seus esforços para não conferir à natureza – isto é, a suma de todas as
coisas – um estatuto de exterioridade em relação as suas “partes”.
Lucrécio anuncia aqui uma explicação dos fenômenos celestes, domínio no
qual as idéias de ordem e regularidade alcançam um estatuto privilegiado que se
sobrepõe de modo soberano à (aparente) desordem do mundo sub-lunar. Mas, diante
deste problema delicado, o pensador se posiciona sem denegar os pressupostos
antifinalistas de sua teoria. Há ordem, sem dúvida, mas tal ordem não é sobreposta
aos fenômenos, às coisas, não é superior à dispersão do todo infinito que não se deixa
governar.
A ordem é flutuante, circunstancial, segunda em relação a uma estado
primeiro de desordem. Aquilo que nos aparece como ordem procede da desordem. Do
estado de desgoverno total – isto é, de movimentos atômicos que são caóticos, mas
apenas se confrontados com as idéias de totalidade, sentido ou finalidade – a ordem
surge como coisa circunstancial, fortuita, mas tão previsível quanto o encontro de
dois átomos quaisquer. A natureza dispõe do infinito (matéria em quantidade infinita
no espaço infinito: tempo) para que, em tempo e lugar incertos, haja a irrupção de
produções organizadas. Em última análise, a ordem (total) é impossível no infinito.
No verso 107 do canto V, trinta versos após a ocorrência do natura
gubernans, Lucrécio introduz uma outra expressão que “acentua ainda mais a tensão
conceitual”53: fortuna gubernans.
E agora, para não te reter mais tempo com promessas, observa primeiro os mares
e as terras e o céu; é tríplice a sua natureza, três os corpos, Mêmio, três os
aspectos tão diferentes, três as suas contexturas; e no entanto um só dia os
lançará à destruição e ruirá a enorme massa que compõe a máquina do mundo
por tantos anos sustentada! E não ignoro o quanto isto é admirável para o
espírito, que venha a dar-se no futuro a destruição do céu e da terra e quão difícil
te convencer pelas minhas palavras; é o que sempre sucede quando se leva aos
189
ouvidos alguma coisa não habitual, sem que se possa, por outro lado, submetê-la
à vista dos olhos ou pô-la debaixo das mãos, o que é o mais seguro caminho, e o
mais fácil, para levar a verdade ao peito humano e aos templos do espírito. E no
entanto falarei. Talvez os acontecimentos confirmem minhas palavras e tu vejas
em pouco tempo um grande terremoto balar tudo com os seus movimentos. Mas
oxalá a fortuna soberana (fortuna gubernans) possa afastar isso de nós, e possa a
razão, de preferência ao fato, persuadir-te que o mundo inteiro, vencido, possa
desabar em um terrível fragor.54
Mesmo considerando uma mudança de contexto – com efeito trata-se já
nesta passagem de introduzir um longo desenvolvimento acerca da mortalidade do
mundo – a proximidade das ocorrências sugere fortemente uma equivalência entre os
dois termos: natura e fortuna; natureza e acaso. Se é assim, em que medida poder-se-
ia acenar com a imagem de uma natureza-acaso sem se quedar diante de uma
contradição, ou de uma aporia? Em que medida uma natureza pode ser equivalente ao
acaso como princípio produtor de todas as coisas?
Podemos, através de diversas abordagens, compreender que, para Lucrécio, a
idéia de estabilidade implica, em sua definição mesma, uma instabilidade de fundo
sem a qual não ela não poderia nem ao menos ser pensada. Não há na natureza “a
estabilidade” ou “a instabilidade” em estado puro; pensá-las como tais é sucumbir a
uma mania do espírito que não encontra respaldo em qualquer das produções naturais.
São noções relativas, excludentes, mas complementares. Cada coisa que é (estável)
está sendo ao preço de um fazer-se e desfazer-se simultâneo e contínuo, durante o
tempo que lhe é fixado pelos pactos que a natureza estabelece consigo própria.
La condamnation finale, inéluctable, qui pèse sur l’ensemble des étants [...] et, au
premier chef, sur le monde lui-même, met en lumière ce que tente de penser
53 Gigandet, A. Op. cit., página 222. 54 D.R.N. V 91 – 109.
190
l’épicurisme: une théorie de la causalité élémentaire (uis materiai) comme
«nécessité contingente». Avec le monde s’abolissent les pactes mêmes sur
lesquels celui-ci reposait, ce qui dénonce leur origine elle-même contingente:
natura gubernans, fortuna gubernans ensemble indiquent la tâche de penser la
nécessité elle même comme effet local du hasard, les lois comme agencement
précaire de la contingence, etc.55
Em suma: a posição de Lucrécio ao longo de todo o desenvolvimento de seu
poema faz conciliar o acaso – compreendido como uma ausência de finalidade,
ausência de inteligência exterior ao mundo e à natureza (compreendida como
“natureza das coisas”) – e a necessidade – domínio das produções que vêm a ser e se
desintegram na infinita mobilidade do universo. A causalidade, conforme já vimos, é
mantida; trata-se de uma causalidade que diz respeito aos elementos dispersos ao
longo do espaço, os quais, todavia, estão todo o tempo em vias de composição. A
possibilidade mais simples de composição – um átomo mais outro átomo – não
possui nenhuma determinação prévia, donde o acaso de toda origem. Mas de outra
parte essa possibilidade mantém-se dentro dos limites da causalidade determinada
pelo pensamento e que são os da causalidade material: vê-se aqui o domínio onde a
necessidade. Em conformidade com o pensamento epicurista seria um equívoco
considerar o acaso e a necessidade como noções excludentes. Eles coexistem.
Reconhecer o acaso de toda formação não exclui que algumas delas atinjam o estado
de “coisas estáveis” a exemplo do mundo. Reconhecer uma necessidade natural – a
causalidade que opera o funcionamento de um composto como o mundo – não
implica uma afirmação do sentido exterior e uma negação do acaso originário. Dois
átomos que se encontram não geram um “dado novo”, não criam uma negação do
caráter descontínuo do universo. De certa forma este encontro, fortuito como todo
encontro, inscreve-se no reino do fenômeno que existe enquanto fenômeno, mas que
não supera jamais o seu estatuto de realidade fortuita e acidental. O que o epicurismo
nos ensina com isso é que todo fenômeno é precário, a despeito de sua duração.
55 Gigandet, A. Op. cit., página 223