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São Paulo, 2011 60 anos de ACNUR Perspectivas de futuro André de Carvalho Ramos, Gilberto Rodrigues e Guilherme Assis de Almeida (orgs.)

60 anos de ACNUR · últimos 15 anos – somam-se aos conflitos antigos cujo prolongamento ultrapassa as previsões originais e continuam causando deslocamento humano e impedindo

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  • So Paulo, 2011

    60 anos de ACNUR

    Perspectivas de futuro

    Andr de Carvalho Ramos,Gilberto Rodrigues e

    Guilherme Assis de Almeida (orgs.)

  • Editor: Fabio HumbergAssistente editorial: Cristina BragatoCapa: OsiresDiagramao: Joo Carlos PortoReviso: Renata Rocha Inforzato

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990, queentrou em vigor no Brasil em 1 de janeiro de 2009.

    Produo:Editora CLA Cultural Ltda.Rua Coronel Jaime Americano 30 sala 1205351-060 So Paulo SPTel: (11) 3766-9015 e-mail: [email protected]

    Novembro/2011

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    60 anos de ACNUR : perspectivas de futuro / Andr de

    Carvalho Ramos, Gilberto Rodrigues e Guilherme

    Assis de Almeida, (orgs.). So Paulo : Editora CL-A

    Cultural, 2011.

    Bibliografia.

    1. ACNUR - Alto Comissariado das Naes Unidas

    para os Refugiados - Histria I. Ramos, Andr de

    Carvalho. II. Rodrigues, Gilberto. III. Almeida,

    Guilherme Assis de.

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. ACNUR : Alto Comissariado das Naes Unidas

    para Refugiados : Histria 327.09

    11-12457 CDD-327.09

  • ndice

    Apresentao ............................................................................................ 5

    Introduo ................................................................................................. 7

    Parte 1: Conceitos e Instituies .......................................................... 13

    Asilo e Refgio: semelhanas, diferenas e perspectivas ......................... 15

    O caso dos haitianos no Brasil e a via da proteo

    humanitria complementar ........................................................................ 45

    CONARE: Balano de seus 14 anos de existncia ................................... 69

    O panorama da proteo dos refugiados na Amrica Latina .................... 93

    Valores constitucionais e lei 9.474 de 1997. Reflexes sobre

    a dignidade humana, a tolerncia e a solidariedade como

    fundamentos constitucionais da proteo e integrao

    dos refugiados no Brasil ........................................................................... 111

    A integrao de refugiados no Brasil ....................................................... 131

    Sade mental e refugiados: interfaces entre o universal

    e o relativo no direito sade.................................................................. 147

    Parte 2: Desafios Contemporneos.................................................... 161

    A Judicializao do Refgio .................................................................... 163

    O papel dos Comits Estaduais de polticas de ateno

    aos refugiados no Brasil .......................................................................... 179

    Uma anlise sobre os fluxos migratrios mistos ...................................... 201

    Uma viso brasileira do conceito refugiado ambiental .......................... 221

  • O aporte jurdico do direito dos refugiados

    e a proteo internacional dos refugiados ambientais .......................... 241

    Refugiados ambientais decorrentes do impacto do material

    nuclear atmico no ecossistema: o caso Fukushima............................... 271

    Direito dos refugiados e realidade: a necessria diminuio

    das distncias entre o declarado e o alcanado ..................................... 289

    Quem so os autores ........................................................................... 313

  • 5

    Apresentao

    O tema dos refugiados, deslocados internos e aptridas tem despertado o

    interesse da academia brasileira nos ltimos anos. Desde a promulgao da Lei

    9.474/1997, que regulamentou a aplicao do Estatuto do Refugiado no Pas,

    observa-se que a contribuio brasileira ao tema, ainda que tmida no recebimento

    de refugiados se comparada aos pases vizinhos , tem assumido dimenso

    qualitativa, pela moldura legal, pela atuao do CONARE, pelas aes

    governamentais e no governamentais associadas ao ACNUR e pelo prprio

    engajamento da sociedade civil.

    Nessa quadra, o desenvolvimento e a gradativa afirmao da Ctedra Sergio

    Vieira de Mello tm mostrado que a produo acadmica e a difuso do Direito

    Internacional dos Refugiados e, num aspecto mais amplo, dos Direitos Humanos ,

    aliadas a projetos de integrao dos refugiados, no esprito da Declarao do Mxico

    (2004), tm gerado uma massa crtica inovadora e consistente no Brasil.

    Criada pelo ACNUR em homenagem ao grande brasileiro que dedicou sua

    carreira proteo de refugiados, a Ctedra teve sua instalao no Brasil em

    meados dos anos 2000. Nos ltimos anos ganhou flego e, com o apoio do prprio

    ACNUR, realizou seus primeiros Seminrios Nacionais (Santos, 2010; Vila Velha,

    2011), o que permitiu reunir e agregar experincias e trabalhos relevantes, que

    estavam dispersos e pouco conhecidos do pblico.

    Nessa linha, a Ctedra Sergio Vieira de Mello, por meio de alguns de seus

    representantes, no contexto da celebrao dos 60 anos do Estatuto dos Refugiados,

    dos 50 anos da Conveno da Apatridia e dos 150 anos do nascimento de Fridtjof

    Nansen, decidiu contribuir com uma obra para refletir, analisar e debater os temas

    contemporneos do refgio, a partir de um olhar brasileiro e das demandas que o

    Pas tem recebido dos cenrios nacional, regional e global.

    O livro est dividido em duas partes: I- Conceitos e Instituies; II Desafios

    contemporneos. Nas duas sees, o leitor encontrar perspectivas novas, fruto

    de pesquisas e anlises atuais e ainda pouco conhecidas, inclusive do pblico

    especializado. Trata-se de coletnea que mostra a vocao e a caracterstica

    interdisciplinar do tema do refgio, sendo por isso de grande interesse para vrias

  • 6

    reas de conhecimento e para distintos profissionais que pensam e atuam nesse

    campo.

    Refugiados, deslocados internos e aptridas pedem aes efetivas da

    comunidade internacional, que espera do governo e da sociedade brasileira um

    crescente compromisso com a proteo e a integrao dessas populaes

    vulnerveis. Entendemos que a proposta do livro, amparada na Ctedra Sergio

    Vieira de Mello, contribui para adensar esse compromisso.

    Finalmente, registramos o nosso agradecimento ao Escritrio do ACNUR

    no Brasil e Associao Nacional de Direitos Humanos Ps-Graduao e Pesquisa

    (ANDHEP), cujos apoios tornaram possvel a publicao da presente obra.

    Andr de Carvalho Ramos,

    Gilberto M. A. Rodrigues e

    Guilherme Assis de Almeida

    Organizadores

  • 7

    Introduo

    2011 um ano muito especial para o ACNUR. Neste ano comemora-se o

    60o aniversrio da Conveno de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados,

    instrumento fundamental que estabelece a normativa jurdica internacional para

    a proteo dos refugiados. Tambm so celebrados o 50o aniversrio da

    Conveno de 1961 sobre Apatridia, ferramenta chave do direito internacional

    para a preveno e reduo da apatridia no mundo, e o 150o aniversrio de

    nascimento do noruegus Fridtjof Nansen, cuja magna obra humanitria foi

    precursora e visionria. Seu legado sintetiza os mais altos valores humanos e, j

    no incio do sculo 20, representou o nascimento de uma concepo jurdica que

    buscava entender a importncia da proteo das pessoas vtimas de perseguio,

    e que, pouco mais de trs dcadas depois, se tornaria referncia e fonte de

    inspirao das Convenes acima citadas.

    No entanto, no somente pelo anteriormente exposto que 2011 um ano

    especial para o ACNUR. Por ironia histrica, este ano ser recordado pela

    convergncia de diversos conflitos e desastres naturais de diferentes tipos. Tais

    acontecimentos tm originado fluxos de deslocamento humano tanto internos,

    confinados dentro dos limites geogrficos dos pases, quanto internacionais, em

    que os fluxos migratrios forados se expressam com a desesperada e trgica

    fuga de milhares de civis. Na maioria das vezes, essas pessoas se refugiam em

    pases economicamente desfavorecidos, com carncias endmicas da

    infraestrutura mais bsica e dos servios pblicos mais elementares.

    Como se isso no bastasse, os novos desastres ocasionados por conflitos

    polticos e causas naturais que surgiram com a maior taxa de natalidade dos

    ltimos 15 anos somam-se aos conflitos antigos cujo prolongamento ultrapassa

    as previses originais e continuam causando deslocamento humano e impedindo

    a repatriao das populaes refugiadas. Como, por exemplo, no caso dos afegos

    no Paquisto e no Ir, e dos iraquianos na Sria e na Jordnia.

    Quando parecia que os grandes conflitos que estiveram na base dos

    deslocamentos humanos massivos em meados dos anos 1990 como ocorreu

    na regio dos Grandes Lagos da frica Central, Libria e Serra Leoa, na frica

    Ocidental, e na regio dos Balcs, no corao da Europa passariam a segundo

  • 8

    plano na atual tendncia marcada pelo deslocamento resultante de catstrofes

    naturais, este ano tem demonstrado contundentemente que essa possibilidade era

    uma miragem.

    Desde fevereiro, a Primavera rabe comeou a tomar fora, quando as velhas

    ditaduras rabes foram colocadas em xeque, primeiramente na Tunsia e Egito.

    Depois se espalhou por outros pases, como Lbia, Sria e Imen, em todos os casos

    resultando em deslocamento forado de pessoas. Na Lbia, o movimento ganhou

    propores particularmente significativas, em especial aps a interveno da OTAN

    em que milhares de refugiados lbios fugiram principalmente para os pases

    vizinhos Egito e Tunsia.

    Ao mesmo tempo, na Costa do Marfim, diante do no reconhecimento do

    resultado das eleies por parte do ento presidente Ngabo e de seus seguidores,

    desencadeou-se uma verdadeira guerra civil que gerou o deslocamento interno de

    cerca de 1 milho de pessoas alm de mais de meio milho de refugiados

    distribudos principalmente em oito pases da frica Ocidental.

    Por outro lado, a clara tendncia de crescentes desastres naturais continuou

    a se acentuar. Assim, no Paquisto o ACNUR tem socorrido a populao mediante

    a entrega de milhares de tendas e de kits de ajuda. No momento em que escrevia

    estas linhas, muitas das famlias deslocadas continuavam a viver em alojamentos

    improvisados. Ao todo, neste pas asitico, mais de 5 milhes de pessoas foram

    afetadas pelas inundaes deste ano, e o governo estima que mais de 200 mil

    pessoas precisem urgentemente de alojamento de emergncia. Muitos dos que

    agora sofrem as consequncias sangrentas e devastadoras das fortes chuvas

    estavam se recuperando das cruis inundaes do ano passado. Contudo, o mais

    terrvel que o Paquisto sofre tambm do agudo conflito interno fruto do

    enfrentamento do Talib com o governo e o exrcito, o que j causou o

    deslocamento interno de milhares de pessoas.

    O exposto mostra que os desafios humanitrios do mundo de hoje

    demandam respostas efetivas aos fenmenos complexos em que se justapem

    causas polticas e desastres naturais. Esse grande desafio evidente no caso flagrante

    e dramtico da Somlia, pas arrasado por um antigo conflito interno, ao qual se

    soma a terrvel seca que devasta o Chifre da frica, afetando o Qunia, Etipia,

    Imen e Djibuti (pases de acentuada pobreza e tambm afetados pela mesma

  • 9

    seca, que tiveram de receber milhares de refugiados somalis que chegam a estes

    pases em condies de sade extremamente deterioradas e com ndices de

    desnutrio infantil severa e alarmante). O deslocamento em direo a esses pases

    tem sido muitas vezes precedido de um tortuoso e extenuante movimento

    populacional interno, enquanto uma porcentagem significativa daqueles que ainda

    no puderam fugir do pas so deslocados internos, muitos deles se amontoando

    em Mogadscio em condies patticas.

    Todas essas situaes calamitosas acontecem em um mundo aoitado por

    uma profunda e recorrente crise financeira originada nos pases desenvolvidos e

    com impacto maior nestes, mas sem deixar de afetar os pases em desenvolvimento.

    Ao mesmo tempo, a crise reduz ainda mais tanto a vontade poltica para priorizar

    recursos que garantam respostas adequadas e efetivas das organizaes

    humanitrias, como a vontade poltica dos Estados para desenvolver polticas de

    maior abertura e respeito aos padres internacionais estabelecidos pela Conveno

    de 1951 e pelo Protocolo de 1967.

    A Amrica Latina e o Caribe no so excees. Apesar de os efeitos perversos

    da crise financeira terem sido relativamente menores, o certo que os pases da

    regio no foram subtrados de todos seus estragos. Novas modalidades de

    violncia delinquencial incubadas h alguns anos se converteram em perigosa e

    poderosa praga. Hoje, os horrores do narcotrfico e de outras modalidades do

    crime organizado como as chamadas maras e outras gangues

    transformaram-se em novas formas de perseguio da populao civil, sobretudo

    no Mxico e na Amrica Central. Mais uma vez, novas ondas de deslocamento

    forado afetam todos os setores da sociedade, forando pessoas a cruzar fronteiras

    internacionais para recorrer proteo internacional diante da incapacidade dos

    seus pases de origem de lhes garantir sua devida proteo.

    Algo similar ocorre na Colmbia, onde o desmembramento e

    enfraquecimento de grupos paramilitares e da guerrilha levaram a novas

    modalidades de perseguio, impedindo o retorno das comunidades a seus lugares

    de origem e causando novos deslocamentos no somente no interior, mas ao

    exterior do pas, em um contexto em que no se pode dizer que o velho conflito

    tenha desaparecido. Assim, os avanos significativos deste ano, impulsionados

    pelo atual governo, tais como o reconhecimento do conflito armado e a aprovao

  • 10

    da lei de restituio de terras e reparao de vitimas por parte da Suprema Corte

    de Justia, no puderam se traduzir, para todos os propsitos prticos, na

    eliminao dos graves riscos para a populao civil.

    Por outro lado, por conta do destruidor terremoto que afetou gravemente o

    Haiti no incio de 2010, fluxos de pessoas desse pequeno pas saram para vrios

    pases do continente, quando ainda cerca de 600 mil pessoas se encontram

    deslocadas no interior do pas por terem perdido suas casas. Como amplamente

    sabido, neste caso trata-se de longe do pas mais pobre das Amricas e, ainda que

    a imensa maioria dos haitianos deslocados internamente ou que saram do pas

    buscando sobreviver em outros pases no possa ser reconhecida como refugiada,

    sua situao extremamente difcil o que exigiu uma resposta humanitria e

    imps um desafio para os pases da Amrica Latina aonde os haitianos tm chegado

    e continuam chegando.

    Desta forma, o ACNUR e as organizaes humanitrias enfrentam desafios

    enormes a nvel mundial perante um panorama particularmente complexo, prprio

    de um mundo em recorrente crise, convulso e catico. Mais que em transio,

    parece um mundo deriva no meio de uma tempestade imprevisvel. Da poca

    da Guerra Fria, em que surgiram as Convenes de Apatridia de 1954 e 1961,

    passou-se a um mundo unipolar hegemonizado pelos Estados Unidos depois da

    queda do Muro de Berlim, em 1989, e a subsequente desintegrao do bloco

    sovitico. Hoje, vivemos em um mundo que parece encontrar contrapesos

    importantes nos pases emergentes, mas que ainda no permite que se fale com

    seriedade de um mundo multipolar consolidado.

    neste contexto complexo e incerto, caracterizado tambm pela entrada da

    Terra em uma nova era geolgica, o antropoceno, cujas caractersticas essenciais

    se resumem a um forte impacto das atividades humanas no planeta, que a

    comunidade cientfica especializada em temas do meio ambiente demanda de

    maneira urgente uma mudana radical e proativa para parar as atuais e

    alarmantes tendncias destrutivas, como ficou pateticamente demonstrado com

    o tsunami devastador no Japo, que no s arrasou cidades inteiras, como destruiu

    a planta nuclear de Fukushima.

    Conclui-se que, para o ACNUR e para os estudiosos dos fenmenos dos

    refugiados e deslocados, neste ano de comemoraes, os desafios so enormes e

  • 11

    cada vez mais diversos.

    O esforo para reunir um conjunto de acadmicos brasileiros para abordar

    alguns dos aspectos importantes desses desafios j em si um mrito. Nesta

    compilao apresentam-se vrios ensaios de estudiosos do tema do deslocamento

    forado, que podem ser agrupados em duas grandes partes: uma primeira em que

    se reflete sobre as diversas facetas do problema, sujeitando opinio do leitor

    consideraes terico jurdicas e praticas do fenmeno na Amrica Latina e no

    Brasil; na segunda parte, pretende-se analisar de modo mais abstrato alguns dos

    principais desafios comentados brevemente acima, que esto ganhando impulso

    nos movimentos populacionais contemporneos, incluindo os fluxos mistos dentro

    das correntes migratrias e de deslocamento forado originados por desastres

    naturais.

    Andrs Ramirez

    Representante do ACNUR no Brasil

  • Parte 1

    Conceitos e Instituies

  • 15

    Asilo e Refgio:semelhanas, diferenas e perspectivas

    Andr de Carvalho Ramos

    Introduo

    Para vrios doutrinadores, asilo e refgio so termos considerados

    equivalentes1. Em alguns pases da Amrica Latina2 e, em especial no Brasil3, os

    termos designam institutos diferentes, com caractersticas distintas. Este artigo

    visa abordar a origem da distino entre os institutos, seus atuais desenhos

    normativos (destacando-se as semelhanas e diferenas) e as perspectivas para o

    futuro.

    1. O gnero: o asilo em sentido amplo

    Inicialmente, cabe assinalar o contexto comum no qual os dois institutos

    (refgio e asilo poltico) convivem: o acolhimento daquele que sofre uma

    perseguio e que, portanto, no pode continuar vivendo no seu local de

    nacionalidade ou residncia. Esse contexto de acolhida marca o gnero denominado

    asilo em sentido amplo: este consiste no conjunto de institutos que asseguram o

    acolhimento de estrangeiro que, em virtude de perseguio odiosa (sem justa

    causa), no pode retornar ao local de residncia ou nacionalidade. Suas espcies

    so: 1) asilo poltico, que se subdivide em asilo territorial, asilo diplomtico e

    asilo militar; 2) refgio, cujas caractersticas veremos abaixo.

    1 Mesmo no Alto Comissariado para as Naes Unidas sobre Refugiados (ACNUR) h vrios textos que utilizam, de modo intercambiante,a expresso asylum e refuge. Ver KAPFERER, Sibylle. The Interface between Extradition and Asylum, Legal and protection Policy.Research series. Department of International Protection, United Nations High Commissioner For Refugees, 2003. Na doutrina, ver, emlngua inglesa, HATHAWAY, James C. e HARVE, Colin J. Framing Refugee Protection in the New World Disorder 34 Cornell InternationalLaw Journal (2001), p. 257 et seq; no idioma espanhol, ver FERNNDEZ SOLA, Natividad. Valores e intereses en la proteccin de losderechos humanos por la Unin Europea. El caso de la poltica de asilo in FERNNDEZ SOLA, Natividad (org.). Unin Europea yderechos fundamentales en perspectiva constitucional. Madrid: Dykinson, 2004, pp. 193-233.2 Sobre a distino terminolgica entre asilo x refgio em vrios pases da Amrica Latina, ver FRANCO, Leonardo. Investigacin: elasilo y la proteccin de los Refugiados en Amrica Latina - Acerca de la confusin terminolgica asilo-refugio, 2001. Disponvel em http://www.acnur.org/biblioteca/pdf/0269.pdf?view=1, ltimo acesso em 30 de agosto de 2011.3 BARRETO, Luiz Paulo F. Teles. Das diferenas entre os institutos jurdicos do asilo e do refgio. Disponvel em: www.migrante.org.br/Asilo%20e%20Refugio%20diferencas.doc ltimo acesso em: 30 de agosto de 2011.

  • 16

    2. O asilo

    2.1 Conceito

    O asilo poltico espcie do gnero asilo em sentido amplo e consiste no

    conjunto de regras que protege o estrangeiro perseguido por motivos polticos e,

    que, por isso, no pode permanecer ou retornar ao territrio do Estado de sua

    nacionalidade ou residncia. um dos institutos mais longevos da humanidade,

    com razes na Antiguidade Ocidental. A palavra, alis, vem do termo grego silon

    e do termo do latim asylum, significando lugar inviolvel, templo, local de

    proteo e refgio. Da Antiguidade Grega e Romana, o asilo ganhou ainda

    contornos religiosos, aprofundados na Idade Mdia europeia, sendo concedido

    em templos, mosteiros e igrejas, associado piedade divina e ao arrependimento.

    Contudo, o asilo antigo e medieval distingue-se do asilo do Estado Constitucional

    pelo tipo de conduta cometida pelo solicitante de asilo: em geral, tratava-se de

    criminosos comuns. Os perseguidos polticos, pelo contrrio, eram sujeitos

    extradio (outro instituto de origens remotas, mas que sofreu transformao

    profunda na emergncia do Direito Internacional da sociedade interestatal).

    Com as revolues liberais e o anseio de controle do poder arbitrrio do

    governante, o asilo perdeu sua veste de defesa de criminosos comuns (sujeitos ao

    processo de arrependimento perante a divindade, por isso era dado em locais

    sagrados) e passou a ser justamente concedido ao perseguido poltico, ou seja, ao

    indivduo que havia sofrido ataque injustificado do poder. O asilo passa a ser mais

    uma garantia essencial promoo de direitos, pois impede a violao da liberdade

    de expresso e direitos de participao poltica. J o criminoso comum, que

    tambm era perseguido, porm de forma adequada (processo penal e pena a ser

    cumprida), deixou de ser abrigado pelo asilo e passou a ser passvel de extradio.

    Por isso, o termo asilo poltico poderia at ser visto como pleonasmo, pois, por

    definio, o asilo concedido para abrigar o estrangeiro sujeito perseguio

    poltica. Porm, como o termo asilo poltico consta da prpria Constituio de

    1988 (artigo 4, X), consideramos seu uso adequado.

  • 17

    2.2 Os diplomas nacionais e internacionais

    O asilo, aps as revolues liberais e com a consolidao do Estado de Direito,

    passou a ser importante garantia de direitos de expresso e participao poltica.

    Por isso, as Constituies e leis locais passaram a reger o instituto. No Brasil, o

    asilo foi, pela primeira vez, introduzido no texto constitucional pelo artigo 4, X

    da Constituio de 1988, no qual consta que a concesso de asilo poltico um

    dos princpios regentes das relaes internacionais do Brasil. Indiretamente, a

    Constituio brasileira tambm favorece o asilo ao dispor que no cabe extradio

    por crime poltico ou de opinio (artigo 5, LII no ser concedida extradio

    de estrangeiro por crime poltico ou de opinio). Claro que a Constituio poderia

    ter se restringido meno de crime poltico, que abrangeria tambm o chamado

    delito de opinio, porm os constituintes optaram pela possvel redundncia

    justamente para frisar o repdio brasileiro ao uso incorreto da extradio para

    perseguir os divergentes.

    Assim, o extraditando no ser entregue caso tenha ocorrido a chamada

    extradio dissimulada, na qual um Estado Requerente camufla a perseguio

    poltica solicitando a extradio de um indivduo por suposto crime comum.

    Tambm rege o asilo no Brasil a Lei 6.815/80, que trata do Estatuto do

    Estrangeiro, em seus artigos 28 e 29. A prpria lei brasileira reconhece que o asilo

    tambm instituto regido pelo Direito Internacional, ao dispor, em seu artigo 28,

    que o estrangeiro admitido no territrio nacional na condio de asilado poltico

    ficar sujeito, alm dos deveres que lhe forem impostos pelo Direito Internacional,

    a cumprir as disposies da legislao vigente e as que o Governo brasileiro lhe

    fixar.

    Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal admitiu ser o asilo um benefcio

    regido pelo Direito das Gentes (Extradio 524, Rel. Min. Celso de Mello,

    julgamento em 31-10-1990, Plenrio, DJ de 8-3-1991).

    No que tange ao Direito Internacional, houve um desenvolvimento pioneiro

    e centenrio nas Amricas na temtica do asilo pela edio de vrios tratados

    interamericanos, como o Tratado sobre Direito Internacional Penal (Montevidu,

    1889), Conveno sobre Asilo (Havana, 1928), Conveno sobre Asilo Poltico

    (Montevidu, 1933), o Tratado sobre Asilo e Refgio Poltico (Montevidu, 1939),

  • 18

    e a Conveno sobre Asilo Diplomtico e a Conveno sobre Asilo Territorial (ambas

    de Caracas, 1954).

    Quanto aos diplomas internacionais universais, o asilo passou

    definitivamente ao mbito do Direito Internacional no bojo da

    internacionalizao dos direitos humanos. A Declarao Americana de Direitos e

    Deveres do Homem (Declarao de Bogot, abril de 1948) dispe, em seu artigo

    XXVII, que Toda pessoa tem o direito de procurar e receber asilo em territrio

    estrangeiro, em caso de perseguio que no seja motivada por delitos de direito

    comum, e de acordo com a legislao de cada pas e com as convenes

    internacionais.

    Ainda em 1948, a Declarao Universal de Direitos Humanos (Declarao

    de Paris, dezembro de 1948) prev, em seu artigo XIV, que 1. Toda pessoa, vtima

    de perseguio, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros pases; 2. Este

    direito no pode ser invocado em caso de perseguio legitimamente motivada

    por crimes de direito comum ou por atos contrrios aos propsitos e princpios das

    Naes Unidas, o que consequncia natural do artigo anterior, XIII, que, em

    seu numeral 2 dispe que Todo homem tem direito de deixar qualquer pas,

    inclusive o prprio, e a este regressar.

    No plano regional africano, prev a Carta Africana dos Direitos Humanos e

    dos Povos (Carta de Banjul, 1981) em seu artigo 12.3 que Toda pessoa tem o

    direito, em caso de perseguio, de buscar e de obter asilo em territrio estrangeiro,

    em conformidade com a lei de cada pas e as convenes internacionais.

    Por fim, de importncia fundamental para o Brasil, cabe lembrar que a

    Conveno Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jos, novembro de

    1969) consagra o direito de solicitar asilo no artigo 22.7: Toda pessoa tem o direito

    de buscar e receber asilo em territrio estrangeiro, em caso de perseguio por

    delitos polticos ou comuns conexos com delitos polticos, de acordo com a

    legislao de cada Estado e com as Convenes internacionais.

    A consequncia da internacionalizao do asilo a possibilidade do crivo

    internacional das decises de concesso ou denegao de asilo. A antiga

    discricionariedade plena da concesso de asilo passa, agora, por ser um tema de

    direito internacional, a ser regulada e o Estado pode vir a ser chamado perante

  • 19

    um tribunal (por exemplo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, por

    violao do Pacto de So Jos e da Declarao de Bogot4).

    Assim, o Direito Internacional reconhece o direito de solicitar asilo como

    parte integrante das garantias de defesa dos direitos humanos.

    2.3 Os pressupostos do asilo e as clusulas de excluso: a limitaoda discricionariedade do Estado pelo Direito Internacional dosDireitos Humanos

    A prtica estatal consolidou-se no sentido de exigir trs pressupostos para a

    caracterizao da chamada situao de asilo: do ponto de vista subjetivo, deve

    ser o futuro asilado um estrangeiro; do ponto de vista objetivo, a natureza da

    conduta realizada pelo estrangeiro deve ser poltica, no caracterizando crime

    comum nem atos contrrios aos propsitos e princpios das Naes Unidas; e, por

    fim, do ponto de vista temporal, deve existir o estado de urgncia, com a

    constatao da atualidade da perseguio poltica (e no passada ou hipottica

    para o futuro).

    Nota-se que, como pressuposto subjetivo, somente o estrangeiro ser

    considerado asilado, pois o nacional tem o direito de ingresso no territrio do Estado

    de sua nacionalidade (previsto tambm nos tratados de direitos humanos e na

    prtica costumeira dos Estados).

    Como pressuposto objetivo, exigida a natureza poltica da perseguio,

    excluindo a criminalidade comum e ainda os atos contrrios aos propsitos das

    Naes Unidas. Esse ltimo componente do pressuposto objetivo mencionado

    expressamente na Declarao Universal de Direitos Humanos e consolidou-se ao

    longo das dcadas em sintonia com o desenvolvimento dos chamados crimes de

    jus cogens (crimes contra os valores essenciais da comunidade internacional, como

    o genocdio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra). Assim, por exemplo,

    o eventual autor do chamado discurso de dio que props e estimulou o genocdio

    no pode ser protegido por um Estado, sob a alegao de perseguio por opinio

    poltica, mesmo se o crime em questo no esteja regulado internamente.

    4 A Corte Interamericana de Direitos Humanos utiliza a Declarao de Bogot (embora no vinculante) como elemento para a interpretaodos deveres de proteo de direitos humanos previstos na Conveno Americana de Direitos Humanos e na Carta da Organizao dosEstados Americanos. Ver mais em CARVALHO RAMOS, Andr de. Processo Internacional de Direitos Humanos. 2 ed., So Paulo:Saraiva, 2011.

  • 20

    A apreciao dos pressupostos recai, inicialmente, no Estado asilante, que,

    na viso tradicional do instituto, possuiria discricionariedade plena para avaliar a

    existncia de uma situao de asilo. Essa viso tradicional est amparada, por

    exemplo, na Res. 2.314 da Assembleia Geral da ONU (denominada Declarao

    sobre Asilo Territorial) de 1967, que, em seu artigo 1.2 dispe que cabe ao Estado

    qualificar as causas que motivaram um asilo por ele concedido. No plano regional

    americano, a Conveno Interamericana sobre Asilo Territorial (Conveno de

    Caracas, 1954) afirma que o direito de concesso do asilo do Estado, que pode

    livremente conced-lo ou neg-lo sem ser obrigado, inclusive, a tornar pblicas

    as causas da concesso ou denegao. Assim, o asilo direito do Estado, que no

    outorga qualquer direito pblico subjetivo ao indivduo solicitante do asilo, nessa

    viso tradicional do instituto.

    Do nosso ponto de vista, entretanto, consideramos que o Direito Internacional

    dos Direitos Humanos atual ultrapassou essa viso clssica sobre a liberdade plena

    dos Estados no que tange ao asilo a estrangeiros. O asilo passou a ser regido tambm

    por tratados e por declaraes de direitos humanos de claro contedo

    consuetudinrio no plano internacional, o que gerou uma vigilncia internacional

    das decises outrora totalmente livres do Estado. A Conveno Americana de

    Direitos Humanos de 1969 e vincula o Brasil. Alm disso, essa Conveno no

    pode ser livremente interpretada pelo Brasil, pois deve o Estado brasileiro obedincia

    interpretao internacionalista da Corte Interamericana de Direitos Humanos

    (Corte IDH), que constantemente atualiza a sua interpretao e cria maiores

    obrigaes aos Estados5.

    De fato, o asilo no mais um tema exclusivamente nacional e no pode

    mais o Estado desprezar a necessidade de fundamentao adequada (alegando

    que o asilo compe seu absoluto domnio reservado) na deciso sobre o asilo,

    para que cumpra os tratados de direitos humanos. A discricionariedade nacional

    regrada e sua fundamentao pode ser rechaada pelos rgos internacionais.

    Por exemplo, se o Brasil denegar injustamente a concesso de asilo a um indivduo

    que ser perseguido em seu Estado de origem (caso venha a ser devolvido), poder

    ser processado perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos por violao

    5 Ver mais sobre a interpretao internacionalista dos direitos humanos em CARVALHO RAMOS, Andr de. Teoria Geral dos DireitosHumanos na Ordem Internacional. 2 Ed., So Paulo: Saraiva, 2011.

  • 21

    do Pacto de San Jos. De fato, o artigo 22.8 da Conveno Americana de Direitos

    Humanos, dispe que em nenhum caso o estrangeiro pode ser expulso ou entregue

    a outro pas, seja ou no de origem, onde seu direito vida ou liberdade pessoal

    esteja em risco de violao em virtude de sua raa, nacionalidade, religio, condio

    social ou de suas opinies polticas. Essa frmula genrica representada pela

    expresso entregue a outro pas impede que a denegao do asilo pelo Brasil

    leve ao retorno do indivduo a territrio no qual sua vida ou liberdade estejam em

    risco pelas suas posies polticas. No sistema europeu de direitos humanos, todos

    os atos de devoluo de estrangeiros (denegao de asilo, extradio, expulso,

    deportao) podem ser questionados perante a Corte Europeia de Direitos

    Humanos6.

    Por sua vez, o Estado que deseja a extradio do estrangeiro que obtm

    asilo em outro Estado pode questionar perante os rgos internacionais de

    direitos humanos ou ainda nos mecanismos de soluo de controvrsias entre

    Estados a fundamentao eventualmente equivocada do Estado asilante.

    O asilo deturpado pode violar os direitos das vtimas das condutas anteriores

    do asilado, como, por exemplo, o direito verdade e justia. Assim, no pode um

    Estado, impunemente, distorcer o asilo sob a unilateral alegao de perseguio

    poltica, concedendo-o a estrangeiro que praticou grave crime comum (e

    denegando, assim, a extradio), com claro prejuzo cooperao jurdica

    internacional e aos direitos das vtimas que anseiam por justia.

    O Supremo Tribunal Federal j reconheceu a possibilidade de crivo judicial

    interno da concesso de asilo, pois, em caso de asilo concedido equivocadamente

    pela Chefia de Estado, o STF no est vinculado ao juzo formulado pelo Poder

    Executivo, podendo autorizar a extradio e, consequentemente, o fim da

    acolhida. (Extradio 524, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 31-10-1990,

    Plenrio, DJ de 8-3-1991). Contudo, aplicando o mesmo entendimento da

    Extradio 1.085 (Caso Battisti, caso de refgio, como veremos abaixo) ao asilo,

    conclumos que o controle judicial do asilo no mbito dos processos extradicionais

    ser apenas aparente.

    que, em 2011, o Supremo Tribunal Federal decidiu que no poderia rever

    6 Ver mais sobre o sistema europeu de direitos humanos, aps a entrada em vigor do Protocolo n 14 em 2010 em CARVALHO RAMOS, Andrde. Processo Internacional de Direitos Humanos. 2 Ed., So Paulo: Saraiva, 2011.

  • 22

    a motivao do presidente da Repblica sobre a existncia de perseguio poltica

    que autorizaria a denegao presidencial da extradio j autorizada pelo STF7.

    Aplicando a mesma ratio ao asilo, temos que, mesmo que o STF considere que

    o asilo foi deturpado (era caso de crime comum, por exemplo) e autorize a extradio,

    pode o Presidente, fundado no seu entendimento peculiar sobre perseguio poltica

    determinar a no implementao da extradio j autorizada judicialmente, sem que

    o STF possa atacar os motivos desse entendimento presidencial.

    2.4 As espcies: o asilo territorial, o asilo diplomtico e o asilo militar

    Desde as suas longevas origens, o asilo dependia da entrada do perseguido

    no territrio de um Estado para que, ento, pudesse pedir asilo. Aps a consolidao

    do Estado de Direito, continuou a caber ao estrangeiro solicitar o asilo no territrio

    do Estado asilante, concretizando o chamado asilo territorial.

    Na Amrica Latina, consolidou-se, em tratados e no costume regional latino-

    americano o asilo diplomtico, que consiste no acolhimento do estrangeiro

    perseguido poltico nas instalaes da Misso Diplomtica. O Estado de acolhida

    (Estado Acreditante, no jargo das relaes diplomticas) do perseguido poltico

    exige o chamado salvo conduto ao Estado Acreditado (Estado que recebe a Misso)

    para assegurar a sada protegida do perseguido do seu territrio. O Estado

    Acreditado obrigado, ento, a conceder o salvo conduto.

    Devemos observar trs pontos importantes sobre o asilo diplomtico existente

    hoje na Amrica Latina.

    Em primeiro lugar, sua origem remota est associada antiga sacralidade

    das misses diplomticas, que no podiam sofrer embaraos ao seu funcionamento

    (ne impediatur legatio), o que gerou o ultrapassado entendimento de que a Misso

    Diplomtica era territrio estrangeiro. Se a Misso era territrio estrangeiro

    poderia, consequentemente, at mesmo conceder asilo a perseguidos polticos.8

    Essa origem remota, no mximo, inspirou a formao do instituto na

    7 BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Extradio 1085 Petio avulsa/Repblica Italiana, rel. orig. Min. Gilmar Mendes, red. p/ o acrdoMin. Luiz Fux, 8.6.2011. (Ext-1085); Reclamao 11243/Repblica Italiana, rel. orig. Min. Gilmar Mendes, red. p/ o acrdo Min. Luiz Fux,8.6.2011.8 Ver sobre essa origem remota do asilo diplomtico em SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de Direito Internacional Pblico. SoPaulo: Atlas, 2002, p. 375.

  • 23

    Amrica Latina, cuja prtica representa a origem prxima do asilo diplomtico.

    Essa prtica regional foi forjada na instabilidade poltica da regio, fazendo que as

    Misses Diplomticas fossem envolvidas no acolhimento a perseguidos polticos.

    No final do sculo XIX, o asilo diplomtico foi mencionado no Tratado de Direito

    Penal Internacional de Montevidu, de 1889, em especial no seu artigo 17

    (excluindo de sua abrangncia o criminoso comum). Aps, foi celebrada a

    Conveno sobre Asilo de Havana, aprovada na VI Conferncia Panamericana

    de 1928, que, em seu artigo 1 reconhece o asilo em Misses Diplomticas e tambm

    em navios de guerra, aeronaves militares e eventuais locais militares estrangeiros

    existentes em um outro Estado; logo depois, foi celebrada a Conveno sobre

    Asilo Poltico na VII Conferncia Internacional Panamericana de Montevidu,

    em 1933; em 1939, foi editado o Tratado sobre Asilo e Refgio Poltico de

    Montevidu e, j sob a gide da Organizao dos Estados Americanos, a Conveno

    sobre Asilo Diplomtico em 1954. Essa extenso do asilo diplomtico a navios,

    aeronaves e locais militares foi denominada de asilo militar.

    Em segundo lugar, o asilo diplomtico exceo especialmente difundida

    na Amrica Latina ao tradicional asilo territorial e, por isso, basta que um Estado

    no celebre tratados sobre o tema ou ainda que no aceite o costume latino-

    americano para no ser obrigado a conceder o salvo conduto aos perseguidos

    polticos abrigados nas Misses Diplomticas estrangeiras em seu territrio. Guido

    Soares relata casos de acolhimento de perseguidos em Misses Diplomticas

    ocidentais na Europa do Leste, na poca da guerra fria, nos quais a sada dos

    indivduos s ocorreu aps lentas e custosas negociaes diplomticas9. Mesmo

    na Amrica Latina, houve caso clebre na Corte Internacional de Justia, no qual

    o Peru no foi obrigado a conceder salvo conduto para a sada segura de Victor

    Raul Haya de La Torre (importante poltico peruano, que havia buscado asilo na

    Embaixada da Colmbia), pela ausncia de dispositivo convencional que o

    obrigasse (Corte Internacional de Justia, Caso Haya de La Torre, Colmbia versus

    Peru, 1950-1951). Haya de La Torre ficou cinco anos na Embaixada, at sua sada

    acordada do Peru em 1954, aps intensas negociaes entre os pases.

    Em terceiro lugar, aplicam-se ao asilo diplomtico os mesmos pressupostos

    do regime jurdico do asilo, uma vez que o asilo diplomtico (e tambm o asilo

    9 SOARES, Guido Fernando Silva. Curso de Direito Internacional Pblico. So Paulo: Atlas, 2002, p. 376.

  • 24

    militar) uma etapa rumo ao asilo territorial.

    2.5 As caractersticas tradicionais do asilo e a crtica pro homine

    Pelo visto acima, o asilo possui as seguintes caractersticas distintivas (que

    sero teis na diferenciao, brasileira, do instituto do refgio): 1) um instituto

    voltado acolhida do estrangeiro alvo de perseguio poltica atual; 2) direito do

    Estado e no do indivduo, sendo sua concesso discricionria, no sujeita

    reclamao internacional de qualquer outro Estado ou ainda do prprio indivduo

    solicitante; 3) sua natureza jurdica constitutiva, ou seja, no h direito do

    estrangeiro: ele ser asilado apenas aps a concesso, que tem efeito ex nunc; 4)

    pode ser concedido inclusive fora do territrio, nas modalidades do asilo diplomtico

    e do asilo militar; 5) no Brasil, no h rgo especfico ou trmite prprio (tal

    qual no refgio, como veremos abaixo): h livre atuao da diplomacia na anlise

    do caso concreto.

    Contudo, renovamos nossa crtica a essa viso tradicional, que deveria levar

    em considerao o desenvolvimento dos mecanismos internacionais de direitos

    humanos.

    Sob a tica dos direitos humanos internacionais, o asilo hoje uma garantia

    internacional de direitos humanos, que consta da Declarao Universal de Direito

    Humanos (artigo XIV) e da Conveno Americana de Direitos Humanos (artigo

    22.3). Logo, tanto a concesso quanto a denegao do asilo so passiveis de

    controle, no sendo mais livre o Estado.

    Por exemplo, o Brasil, aps a ratificao da Conveno Americana de Direitos

    Humanos (1992) e reconhecimento da jurisdio obrigatria da Corte

    Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH, em 1998), no poder mais

    conceder ou denegar asilo sem temer a vigilncia internacional dos direitos

    humanos e eventual sentena condenatria vinculante da Corte IDH.

    3. Refgio

    3.1 Origens histricas e definio restrita e ampla do refgio

    At o sculo XX, o Direito Internacional no possua instituies ou regras

    voltadas especificamente aos que, aps fugir de seu Estado de residncia, buscavam

  • 25

    abrigo em outro pas. O tratamento dado aos refugiados dependia, ento, da

    generosidade (ou no) das leis nacionais10, em especial aquelas relativas concesso

    de asilo.

    Somente aps o estabelecimento da Sociedade das Naes, em 1919, que

    houve uma intensa discusso sobre o papel da comunidade internacional no

    adequado tratamento a ser dado aos refugiados, em especial depois da Revoluo

    Comunista na Rssia e das crises no antigo Imprio Otomano. Assim, em 1921, o

    Conselho da Sociedade das Naes autorizou a criao de um Alto Comissariado

    para Refugiados. A inteno inicial era que fosse criado um rgo voltado

    especificamente para tratar de refugiados russos, porm aps a constatao da

    existncia de refugiados armnios na Grcia, optou-se por uma definio

    abrangente e geral do mandato do Comissariado, voltado para toda e qualquer

    questo relativa aos refugiados. Foi escolhido o noruegus Fridtjof Nansen, que o

    presidiu at sua morte em 1930. Em 1931, foi criado o Escritrio Internacional

    Nansen para Refugiados, atuando sob os auspcios da Sociedade das Naes e

    com a misso de dar apoio humanitrio aos refugiados.

    O grande impulso proteo dos refugiados deu-se com a Declarao

    Universal de Direitos Humanos, que estabeleceu, como vimos acima, em seu artigo

    XIV, que toda pessoa vtima de perseguio tem o direito de procurar e de gozar

    de asilo em outros pases.

    Alguns anos depois, em 1951, foi aprovada a Carta Magna dos refugiados,

    que a Conveno de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados. A importncia

    desse tratado imensa: o primeiro tratado internacional que trata da condio

    genrica do refugiado, seus direitos e deveres. Os tratados anteriores eram aplicveis

    a grupos especficos, como os refugiados russos, armnios e alemes.11 Em 1950,

    foi criado o Alto Comissariado das Naes Unidas para os Refugiados (ACNUR),

    que hoje rgo subsidirio permanente da Assembleia Geral das Naes Unidas

    e possui sede em Genebra.

    A Conveno de 1951 estabeleceu a definio de refugiado, os seus direitos e

    10 Conforme TRK, Volker e NICHOLSON, Frances. Refugee protection in international law: an overall perspective. In: FELLER, Erika;TRK, Volker; NICHOLSON, Frances (eds.). Refugee protection in international law. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p.3-45, em especial p. 3.11Acordo sobre os Refugiados Russos, de 05.07.1922; Acordo sobre Refugiados Armnios, de 31.05.1924 ou diversos acordos sobrerefugiados alemes, como o de 04.07.1936.

  • 26

    deveres bsicos (em especial, o direito de receber documento de viagem, sucedneo

    do antigo Passaporte Nansen), bem como os motivos para a cessao da condio

    de refugiado. A Conveno, contudo, possua uma limitao temporal: era

    aplicvel aos fluxos de refugiados ocorridos antes de 1951. Alm disso, os Estados,

    querendo, poderiam estabelecer uma limitao geogrfica e s aceitar aplicar o

    Estatuto dos Refugiados a acontecimentos ocorridos na Europa.

    Em 1967, foi editado o Protocolo Adicional Conveno sobre Refugiados,

    que suprimiu a limitao temporal da definio de refugiado constante

    originalmente da Conveno.

    J em 1969, foi aprovada a Conveno da Organizao da Unidade Africana

    (hoje Unio Africana) sobre refugiados. Tal Conveno, que entrou em vigor em

    1974, estabeleceu, pela primeira vez, a chamada definio ampla de refugiado,

    que consiste em considerar refugiado aquele que, em virtude de um cenrio de

    graves violaes de direitos humanos, foi obrigado a deixar sua residncia habitual

    para buscar refgio em outro Estado. Em 1984, a definio ampliada de refugiado

    foi acolhida pela Declarao de Cartagena, que, em seu item terceiro, estabeleceu

    que a definio de refugiado deveria, alm de conter os elementos da Conveno

    de 1951 e do Protocolo de 1967, contemplar tambm como refugiados as pessoas

    que tenham fugido dos seus pases porque a sua vida, segurana ou liberdade

    tivessem sido ameaadas pela violncia generalizada, a agresso estrangeira, os

    conflitos internos, a violao macia dos direitos humanos ou outras circunstncias

    que tenham perturbado gravemente a ordem pblica. 12

    O Brasil ratificou a Conveno de 1951 e a promulgou internamente por

    meio do Dec. 50.215, de 28.01.1961. Porm, foi estabelecida pelo Estado brasileiro

    a chamada limitao geogrfica vista acima: s aceitou receber refugiados vindos

    do continente europeu. Em 07.08.1972, foi promulgado internamente o Protocolo

    de 1967, mas manteve a limitao geogrfica anterior. Em 19.12.1989, foi

    abandonada a limitao geogrfica da Conveno de 1951, por meio do Dec.

    98.602/1989.

    J o ACNUR instalou-se no Brasil com misso permanente em 1977 e

    12 Adotada pelo Colquio sobre Proteo Internacional dos Refugiados na Amrica Central, Mxico e Panam: Problemas Jurdicos eHumanitrios, realizado em Cartagena, Colmbia, entre 19 e 22 de novembro de 1984. Participaram do Colquio delegados dos governosde Belize, Colmbia, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Mxico, Nicargua, Panam e Venezuela, bem como especialistas erepresentantes do ACNUR.

  • 27

    possuiu importante e essencial papel tanto na implementao das convenes

    internacionais sobre refugiados celebradas pelo pas, quanto no incentivo e apoio

    tcnico elaborao de uma lei brasileira especfica para os refugiados (a Lei n.

    9.474/97, ora em comento).

    O fundamento maior da proteo do refugiado no Brasil a Constituio de

    1988, com base no 2 do artigo 5 (que trata dos direitos decorrentes de tratados

    de direitos humanos celebrados pelo Brasil) e, analogicamente, com base no artigo

    4, X que trata do asilo poltico.

    Nessa fase anterior lei 9.474/97, houve importante fluxo de refugiados ao

    Brasil, devendo ser feita especial meno ao acolhimento das famlias da f Bahi,

    vtimas de perseguio religiosa no Ir em 1986. Na poca, o Brasil ainda no

    havia suprimido a limitao geogrfica do Estatuto dos Refugiados de 1951.

    Assim, para contornar esse obstculo jurdico, revela ASSIS DE ALMEIDA que a

    misso brasileira do ACNUR negociou ativamente com o governo do ento

    Presidente Sarney, que acabou por conceder o estatuto jurdico de asilados aos

    integrantes destas famlias. A acolhida brasileira fez com que hoje existam 300

    famlias iranianas da f Bahi vivendo no Brasil.13

    3.2 A Lei 9.474/97: o modelo brasileirode proteo aos refugiados em anlise

    3.2.1 A aceitao, pelo Brasil, da definio ampla de refugiado

    A definio jurdica de refugiado oscilou ao longo dos anos. Inicialmente,

    o artigo 1o da Conveno relativa ao Estatuto dos Refugiados de 28 de julho de

    1951 considerava refugiado somente aquele que, em consequncia de

    acontecimentos ocorridos antes de 1 de Janeiro de 1951, e, em virtude de

    perseguio ou fundado temor de perseguio14 baseada em sua raa, religio,

    nacionalidade, opinies polticas ou pertena a certo grupo social, no pudesse

    retornar ao pas de sua residncia.

    Sendo assim, o refugiado aquele que tem fundados temores de perseguio

    por motivos odiosos. Para a doutrina, o fundado temor de perseguio critrio

    objetivo que deve ser comprovado por fatos. Tal expresso (fundado temor)

    13 ALMEIDA, Guilherme Assis de. Direitos Humanos e no-violncia. So Paulo: Ed. Atlas, 2001, p. 122.14 Ou seja, no se exige a concretizao da perseguio, bastando o fundado temor.

  • 28

    demonstra um temor baseado em razovel expectativa de perseguio. Essa

    expectativa de perseguio no pode estar apenas na mente do solicitante de

    refgio, mas deve ser comprovada por um critrio objetivo, baseado na situao

    do Estado de origem. Entra em cena um juzo de possibilidade, sendo desnecessrio

    que se prove a inevitabilidade da perseguio, mas somente que ela possvel. 15

    Por outro lado, a restrio temporal acima citada mostrava que a Conveno

    de 1951 era destinada aos casos de refugiados gerados no perodo anterior 2a

    Guerra Mundial, no seu decurso e no ps-guerra. Alm disso, o artigo 1 B

    estabelecia que cada Estado poderia entender que a expresso acontecimentos

    ocorridos antes de 1o de janeiro de 1951 inserida no artigo 1 A poderia ser lida

    como acontecimentos ocorridos antes de 1o de janeiro de 1951 na Europa. Ou

    seja, alm desta clusula temporal, os Estados poderiam ainda limitar a concesso

    do estatuto de refugiado aos acontecimentos ocorridos na Europa to-somente.

    A Guerra Fria foi crucial para essa redao eurocntrica da Conveno.

    HATHAWAY recorda que os Estados ocidentais desenvolvidos preocuparam-

    se muito em expor a situao dos dissidentes polticos dos pases comunistas, para

    facilitar a condenao geral ao bloco sovitico. Assim, a definio de refugiado

    foi especialmente focada em reconhecidas reas de desrespeito de direitos humanos

    dos pases comunistas, tendo sido evitada qualquer meno violao de direitos

    sociais.16Com isso, a vulnerabilidade ocidental no tocante aos direitos sociais e

    econmicos foi esquecida no momento da redao da Conveno e do Protocolo

    de 1967.

    As vtimas de violao de direitos civis e polticos poderiam, sob certas

    circunstncias, ser abrigadas sob o estatuto do refugiado, mas as vtimas de violao

    de direitos bsicos, como direito sade, moradia, educao e at alimentao,

    no. Ou seja, seriam imigrantes econmicos, sujeitos deportao.17

    15 GRAHL-MADSEN, A. The Status of Refugees in International Law. vol 1, Leyden, 1966, p. 173. Ver tambm GOODWIN-GILL, GuyS. Entry and Exclusion of Refugees: The Obligations of States and the Protection Function of the Office of the United Nations HighCommissioner for Refugees in 3 Michigan Yearbook of International Legal Studies (1982), pp. 291 e seguintes.16 A viso crtica de Hathaway, no muito comum em autores de pases desenvolvidos de lngua inglesa, demolidora. Nas palavras do autor:By mandating protection for those whose (Western inspired) socio-economic rights are at risk, the Convention adopted an incompleteand politically partisan human rights rationale. Ver HATHAWAY, James. The Law of Refugee Status. Vancouver: Butterworths, 1991,p.7-817 Para Dimopoulos, The history of the Convention shows that to a significant extent, it was entered into to serve Western political andeconomic needs. Ver em DIMOPOULOS, Penny. Membership of a particular group: an appropriate basis for eligilibity for refugeestatus? in 7 Deakin Law Review (2002), pp.367-385, em especial p.370.

  • 29

    Quanto restrio geogrfica, ao menos, v-se que a viso eurocntrica

    logo foi superada. De fato, surgiram mais e mais casos de perseguio e fluxo de

    refugiados em vrios continentes (frica e Amrica Latina, inclusive) o que tornou

    obsoleta e anacrnica a restrio temporal e geogrfica da Conveno de 1951.

    Em 1967, o Protocolo Adicional Conveno suprimiu, da definio de refugiado,

    a limitao aos acontecimentos ocorridos antes de 1951.

    Quanto possibilidade de restrio geogrfica, o Protocolo de 1967 manteve

    a opo dada aos Estados, que, caso desejassem, poderiam limitar seus deveres

    aos refugiados em solo europeu. O Alto Comissariado das Naes Unidas para os

    Refugiados, por seu turno, estimulou os Estados a reconhecerem o estatuto de

    refugiado sem qualquer considerao territorial.

    O Brasil ratificou a Conveno de 1951 com a limitao geogrfica aos

    acontecimentos ocorridos em solo europeu. Consequentemente, o instituto do

    refgio foi pouco utilizado no Brasil ao longo dos anos seguintes, prevalecendo o

    recurso ao asilo, uma vez que os eventos posteriores ocorridos na Amrica Latina,

    como, por exemplo, no Chile da ditadura de Pinochet da dcada de 70 e que gerou

    um nmero expressivo de refugiados, no eram abarcados pela clusula geogrfica

    prevista na prpria Conveno de 1951. Porm, em 19.12.1989, o Brasil finalmente

    desistiu de tal reserva, o que possibilitou a aplicao irrestrita da Conveno e seu

    Protocolo de 1967.

    Anos mais tarde, em 1997, foi editada a Lei brasileira n 9.474 de 1997,

    disciplinando o estatuto do refugiado no Brasil. Tal lei est em sintonia com a

    definio de refugiado prevista na Conveno de 1951. De acordo com o artigo 1o

    da Lei considerado refugiado todo indivduo que, devido a fundados temores de

    perseguio por motivos de raa, religio, nacionalidade, grupo social ou opinies

    polticas, encontre-se fora de seu pas de nacionalidade e no possa ou no queira

    acolher-se proteo de tal pas, ou aquele que no tendo nacionalidade e estando

    fora do pas onde antes teve sua residncia habitual, no possa ou no queira

    regressar a ele, em funo da perseguio odiosa j mencionada.

    A Lei n 9474/97 ainda adotou a definio ampla de refugiado, defendida

    na Declarao de Cartagena vista acima: o artigo 1o, III dispe que ser

    considerado refugiado pelo Brasil todo aquele que devido a grave e generalizada

    violao de direitos humanos, obrigado a deixar seu pas de nacionalidade para

  • 30

    buscar refgio em outro pas. Desde ento, o Brasil j recebeu refugiados de Angola,

    Serra Leoa, Afeganisto e outros sob o abrigo desse dispositivo legal.

    3.2.2 A criao do CONARE e o procedimento administrativode anlise do refgio: as regras de incluso, cessao e excluso

    A Lei 9.474/97 preencheu o vazio administrativo existente no trato dos

    refugiados ao criar, na letra do artigo 11, o Comit Nacional para os Refugiados -

    CONARE, rgo de deliberao coletiva composto de 7 membros e de composio

    majoritariamente governamental, pertencente ao Ministrio da Justia. So

    membros natos do CONARE: um representante do Ministrio da Justia, que o

    presidir; um representante do Ministrio das Relaes Exteriores; um

    representante do Ministrio do Trabalho; um representante do Ministrio da Sade;

    um representante do Ministrio da Educao e do Desporto; um representante do

    Departamento de Polcia Federal; um representante de organizao no

    governamental, que se dedique a atividades de assistncia e proteo de refugiados

    no Pas. Nada impede o convite a representantes de outros entes para que

    participem da reunio, com direito a voz. Esse carter governamental do Comit

    ainda acentuado com a possibilidade de recurso de reviso ao Ministro da Justia,

    no caso de indeferimento do refgio.

    O CONARE representou a plena assuno, pelo Estado brasileiro, de todo o

    procedimento de anlise da solicitao de refgio, bem como da poltica de proteo

    e apoio aos que forem considerados refugiados. Assim, o papel do ACNUR no Brasil,

    essencial na fase pr-lei 9.474/97, diminuiu sensivelmente, restando importante,

    contudo, no que tange ao fornecimento de recursos materiais aos refugiados.

    Compete ao CONARE analisar o pedido e declarar o reconhecimento, em

    primeira instncia, da condio de refugiado, bem como decidir pela cessao e

    perda, em primeira instncia, ex officio ou mediante requerimento das autoridades

    competentes, da condio de refugiado. No caso de deciso negativa, esta dever

    ser fundamentada na notificao ao solicitante, cabendo direito de recurso ao

    Ministro de Estado da Justia, no prazo de 15 dias, contados do recebimento da

    notificao.

    No caso de deciso positiva do CONARE, entendo que no cabe recurso

    administrativo ao Ministro de Estado, pela expressa falta de previso legal, que

  • 31

    obviamente privilegiou a concesso de refgio.

    Alm da funo julgadora, h uma importante funo de orientao e

    coordenao de todas as aes necessrias eficcia da proteo, assistncia e

    apoio jurdico aos refugiados.

    O CONARE deliberar com base na Constituio, na Lei 9.474/97, na

    Conveno relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, no Protocolo sobre o

    Estatuto dos Refugiados de 1967 e ainda fundado nas demais fontes de Direito

    Internacional dos Direitos Humanos. De fato, h um dado interessante: a prpria

    lei, em seu artigo 48, prev que seus dispositivos devero ser interpretados em

    harmonia com a Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948, e com

    todo dispositivo pertinente de instrumento internacional de proteo de direitos

    humanos com o qual o Governo brasileiro estiver comprometido.

    O Alto Comissariado das Naes Unidas para os Refugiados - ACNUR ser

    sempre membro convidado para as reunies do CONARE, com direito a voz, sem

    voto.

    A deciso do CONARE levar em conta o cumprimento das chamadas regras

    de incluso, bem como da inexistncia de causas de cessao e de excluso. As

    regras ou clusulas de incluso consistem em requisitos positivos para a declarao

    da situao jurdica de refugiado, como, por exemplo, o reconhecimento do fundado

    temor de perseguio odiosa. Por sua vez, as regras de cessao tm contedo

    negativo, ou seja, implicam em condutas que levam perda do estatuto de

    refugiado, em geral pelo desaparecimento dos motivos geradores do refgio. J as

    regras de excluso consistem em circunstncias pelas quais determinada pessoa

    no aceita como refugiado, mesmo que preencha os critrios positivos e no

    haja nenhuma causa de cessao. Da mesma maneira do asilo, no cabe a

    concesso de refgio aos indivduos que cometeram crime contra a paz, crime de

    guerra, crime contra a humanidade, crime grave de direito comum e que

    praticaram atos contrrios aos objetivos e princpios das Naes Unidas.

    3.2.3. O princpio do non-refoulement

    O artigo 7 da Lei n 9.474/97 prev que o estrangeiro ao chegar ao territrio

    nacional poder expressar sua vontade de solicitar reconhecimento de sua situao

    jurdica de refugiado a qualquer autoridade migratria e, em hiptese alguma,

  • 32

    ser efetuada sua deportao para fronteira de territrio em que sua vida ou

    liberdade esteja ameaada, em virtude de raa, religio, nacionalidade, grupo social

    ou opinio poltica. Consagrou-se, assim, o princpio da proibio da devoluo

    (ou rechao) ou non-refoulement.

    Tal princpio consiste na vedao da devoluo do refugiado ou solicitante

    de refgio (refugee seeker) para o Estado do qual tenha o fundado temor de ser

    alvo de perseguio odiosa. Para BETHLEHEM e LAUTERPACHT, o non-

    refoulement um princpio bsico do Direito Internacional dos Refugiados que

    prohibits States from returning a refugee or asylum seeker to territories where

    there is a risk that his or her life or freedom would be threatened on account of

    race, religion, nationality, membership of a particular social group, or political

    opinion.18

    Esse princpio encontra-se inserido no artigo 33 da Conveno relativa ao

    Estatuto dos Refugiados de 1951 e tambm em diversos outros diplomas

    internacionais, j ratificados pelo Brasil. De fato, o artigo 22.8 da Conveno

    Americana de Direitos Humanos, dispe que em nenhum caso o estrangeiro pode

    ser expulso ou entregue a outro pas, seja ou no de origem, onde seu direito

    vida ou liberdade pessoal esteja em risco de violao em virtude de sua raa,

    nacionalidade, religio, condio social ou de suas opinies polticas.

    Cumpre, nesse momento, explicitar a aplicabilidade desse princpio. Em

    primeiro lugar, cabe aos agentes estatais e seus delegatrios nas zonas de fronteira

    impedir o refoulement do estrangeiro solicitante de refgio. Mesmo que o solicitante

    ingresse no pas ilegalmente, no cabe a deportao, pois o artigo 31 da Conveno

    de 1951 impede a aplicao de qualquer penalidade derivada da entrada irregular.

    O art. 8 da Lei 9.474/97 tambm expresso em estabelecer que o ingresso irregular

    no territrio nacional no constitui impedimento para o estrangeiro solicitar refgio

    s autoridades competentes.

    Consequentemente, o cumprimento integral do princpio do non-refoulement

    exige uma completa apurao do pedido do solicitante de refgio, para que seja

    confirmado ou no o seu estatuto de refugiado. Tal anlise se faz no Brasil por

    18 Ver em BETHLEHEM, Daniel e LAUTERPACHT, Elihu. The scope and content of the principle of non-refoulement: opinion inFELLER, Erika, TURK, Volker e NICHOLSON, Frances (edits), Refugee Protection in International Law. Cambridge: Cambridge UniversityPress, 2003, pp.87-181, em especial p. 89.

  • 33

    meio de processo administrativo submetido ao Comit Nacional para os Refugiados

    - CONARE. Ademais, a deciso administrativa final sobre a concesso de refgio

    (pelo CONARE ou, na via recursal, pelo Ministro da Justia, no Brasil)

    meramente declaratria.

    Por outro lado, o princpio do non-refoulement tem sofrido desgaste em

    face das migraes em massa ou das alegaes inexistentes prima facie de

    perseguio. Como reao, vrios pases do mundo criaram campos de

    internamento do solicitante de refgio at que seja proferida a deciso final, sintoma

    claro da desconfiana do real motivo da solicitao de refgio.

    No sendo outorgado o refgio no pode, ainda assim, o Estado de acolhida

    devolver o estrangeiro para qualquer territrio no qual possa sua liberdade ou

    vida ser ameaada por razo de raa, religio, nacionalidade, grupo social a que

    pertena ou opinies polticas, de acordo com o artigo 33 da Conveno de 195119.

    Ademais, o Brasil detalhou, em sua legislao sobre refugiados, a proibio do

    refoulement quando existir risco vida, liberdade e integridade fsica do indivduo:

    o artigo 32 da Lei 9.474/97 estabelece que no caso de recusa definitiva de refgio,

    fica proibida sua transferncia para o seu pas de nacionalidade ou de residncia

    habitual, enquanto permanecerem as circunstncias que pem em risco sua vida,

    integridade fsica e liberdade.

    Na prtica, esse mecanismo de proteo adicional previsto na Lei 9.474/97

    de extrema valia. Mesmo que o refgio no seja outorgado h a salvaguarda do

    non-refoulement para o territrio no qual o indivduo possa sofrer atentado sua

    liberdade, vida e integridade fsica em geral (e no somente por perseguio odiosa),

    o que impede que as autoridades brasileiras promovam uma sada compulsria

    do estrangeiro que poderia ameaar tais direitos fundamentais da pessoa humana.

    3.3 O controle judicial da concessoou denegao do refgio: in dubio pro fugitivo

    O controle judicial das decises de mrito do CONARE insere-se em um

    19 Artigo 33. Proibio de expulso ou de rechao. 1. Nenhum dos Estados Contratantes expulsar ou rechaar, de forma alguma, umrefugiado para as fronteiras dos territrios em que a sua vida ou a sua liberdade seja ameaada em virtude da sua raa, da sua religio, da suanacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas opinies polticas. Na Lei 9.474/1997, ficou estipulado no art. 7., 1., que:Em hiptese alguma ser efetuada sua deportao para fronteira de territrio em que sua vida ou liberdade esteja ameaada, em virtude deraa, religio, nacionalidade, grupo social ou opinio poltica.

  • 34

    tema mais amplo que a judicializao da poltica externa ou das relaes

    internacionais do Brasil. H vrios casos com repercusso nacional, no qual o

    Poder Judicirio avaliou atos administrativos, que, em um primeiro momento,

    seriam da alada discricionria do Poder Executivo no exerccio de sua funo de

    gesto das relaes internacionais (artigo 84, VIII, entre outros da Constituio).

    Foi assim no caso da ao do Ministrio Pblico Federal que exigiu que a

    Unio, em nome da reciprocidade diplomtica, tomasse as providncias para que

    os norte-americanos fossem fotografados e tivessem suas impresses digitais

    colhidas assim que ingressassem no Brasil, em reao idntica medida imposta

    nos Estados Unidos aos brasileiros20. E foi assim no caso da suspenso liminar,

    pelo Superior Tribunal de Justia (STJ), da cassao do visto do jornalista Larry

    Rother, que publicara reportagem considerada ofensiva honra do Presidente da

    Repblica da poca.21

    Em ambos os casos o Poder Judicirio foi provocado para fazer valer o Direito

    em um Estado Democrtico como o brasileiro. Tal postura do Judicirio comum

    em outras reas do Direito Administrativo e sua funo de avaliar a correta

    aplicao da lei por parte do Poder Executivo no chama mais a ateno. Mesmo

    em relao aos chamados atos discricionrios, h muito foram desenvolvidos

    instrumentos de controle da chamada convenincia e oportunidade da

    Administrao Pblica, que impedem que, sob o manto da discricionariedade,

    sejam camuflados abusos de todos os tipos. Assim, consolidou-se na jurisprudncia

    o uso da teoria dos motivos determinantes, da teoria do desvio de finalidade e

    abuso de poder e, ultimamente, do princpio da proporcionalidade, que asseguram

    ao Poder Judicirio instrumentos para controlar o abuso e o excesso por parte do

    Poder Executivo.

    No poderia ser diferente a postura do Poder Judicirio no que tange

    atuao do CONARE. H que se levar em considerao o princpio da

    universalidade de jurisdio, previsto no artigo 5, XXXV, que permite a reviso

    20 A ordem judicial foi exarada pelo juiz federal Julier Sebastio da Silva, de Mato Grosso. A liminar foi concedida em Ao cautelarpreparatria de Ao Civil Pblica promovida pelo Ministrio Pblico Federal (Procurador da Repblica em Mato Grosso, Jos PedroTaques). Ver a ntegra da ao em http://conjur.estadao.com.br/static/text/1592,1, ltimo acesso em 11 de maro de 2006.21 O remdio judicial perdeu o objeto, aps nova deciso do Poder Executivo, desistindo de cassar o visto, em atendimento a pedido dereconsiderao por parte do jornalista. BRASIL. Superior Tribunal de Justia. Habeas Corpus 35.445/DF. Impetrante: Srgio Cabral.Impetrado: Ministro de Estado da Justia. Paciente: William Larry Rohter Jnior. Relator: Min. Ministro Francisco Peanha Martins.Braslia, deciso de 13 de maio de 2004, publicada em 18 de maio de 2004.

  • 35

    das decises administrativas pelo Poder Judicirio. Alm disso, no h

    discricionariedade ou espao poltico para a tomada de deciso do CONARE:

    diferentemente do asilo poltico, o refgio direito do estrangeiro perseguido. Ou

    seja, caso o CONARE entenda pela inexistncia dos pressupostos necessrios, pode

    o estrangeiro, associao de defesa dos direitos humanos, Ministrio Pblico Federal

    ou Defensoria Pblica da Unio questionar tal posio judicialmente. 22

    Por outro lado, o reverso da moeda merece anlise mais detida. De fato, o

    princpio da proteo e da proibio do non-refoulement exige do rgo judicial

    um escrutnio estrito de eventual falta de pressuposto (perseguio odiosa ou

    violao macia e grave de direitos humanos) da concesso de refgio. Apenas e

    to-somente na inexistncia de fundamento algum que poderia o Judicirio

    apreciar o ato e, com isso, preservar o prprio instituto do refgio, que se

    desvalorizaria face ao uso abusivo. De fato, chamo a ateno a este ponto, que

    pode parecer paradoxal: a ausncia de controle judicial de ato concessivo de refgio

    pode redundar na eroso da credibilidade do refgio, graas a concesses ilegtimas,

    eivadas de consideraes de convenincia dos poderosos de planto.

    No que tange ao relacionamento do Supremo Tribunal Federal (rgo

    mximo do Poder Judicirio nacional) e a matria em tela, cabe observar que o

    art. 33 da Lei 9.474/97 assegura que o reconhecimento da condio de refugiado

    obstar o seguimento de qualquer pedido de extradio baseado nos fatos que

    fundamentaram a concesso de refgio. Cabe, ento, ao Supremo Tribunal Federal

    verificar se o pedido extradicional refere-se a fatos que, na avaliao do CONARE,

    demonstram a existncia de perseguio ou fundado temor de perseguio odiosa.

    Se a resposta for positiva (os fatos apresentados pelo Estado requerente so

    justamente aqueles que, na viso do CONARE, provam perseguio odiosa), resta

    ainda saber se o Supremo Tribunal Federal (STF) pode reavaliar o mrito da

    deciso do CONARE, ou seja, considerar que no era caso de concesso de refgio

    por inexistirem os pressupostos previstos na lei e nas convenes internacionais

    celebradas pelo Brasil e, consequentemente, autorizar a extradio do refugiado.

    H precedentes na jurisprudncia do STF no que tange ao asilo poltico. De

    fato, j nos anos sessenta, houve posicionamento do STF no sentido de que a

    22 Cabe lembrar que o CONARE um rgo despersonalizado da Unio. Ou seja, em face do artigo 109 da Constituio Federal, oquestionamento de suas decises ser feito perante a Justia Federal.

  • 36

    concesso do asilo diplomtico ou territorial no impede, s por si, a extradio,

    cuja procedncia apreciada pelo Supremo Tribunal e no pelo governo.23 Na

    dcada de 90, h outro precedente importante, no qual o Min. Relator Celso de

    Mello ressaltou que no h incompatibilidade absoluta entre o instituto do asilo

    poltico e o da extradio passiva, na exata medida em que o Supremo Tribunal

    Federal no est vinculado ao juzo formulado pelo Poder Executivo na concesso

    administrativa daquele beneficio regido pelo Direito das Gentes.24

    Porm, h o precedente de no apreciao do mrito da concesso do refgio,

    que ficaria na alada do Poder Executivo (CONARE ou, na fase recursal, do

    Ministro da Justia) da Extradio 1008, cuja ementa no deixa dvidas de que

    se trata de matria de atribuio do Poder Executivo, fruto de sua gesto das

    relaes internacionais ( vlida a lei que reserva ao Poder Executivo a quem

    incumbe, por atribuio constitucional, a competncia para tomar decises que

    tenham reflexos no plano das relaes internacionais do Estado o poder privativo

    de conceder asilo ou refgio25).

    Na Extradio 1.085 (Caso Battisti) e no conexo Mandado de Segurana

    27.875 proposto pela Itlia (atacando o ato do Ministro de Estado concessivo do

    refgio), vrios posicionamentos divergentes foram expostos. Houve quem

    defendesse a aplicao automtica do artigo 33 (nas palavras do Procurador-Geral

    da Repblica: A existncia de obstculo formal ao processamento da extradio

    torna irrelevante, na minha compreenso, a discordncia verificada quanto

    soluo de mrito26). Por sua vez, o Ministro Joaquim Barbosa atacou a

    arrogncia com que a Repblica Italiana litiga neste caso, criticou duramente o

    Embaixador italiano (que teria tido a audcia, nas palavras do Ministro, de pedir

    audincia privada para debater o caso, sem se restringir ao rgo competente o

    Ministrio das Relaes Exteriores) e fez valer a soberania brasileira de conceder

    o refgio, com o arquivamento subsequente do processo de extradio. Para o

    23 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Extradio 232/CA. Requerente: Governo de Cuba. Extraditando: Arsenio Pelayo HernandezBravo. Relator: Min. Victor Nunes. Braslia, julgamento em 14/12/62. Publicado em 17.12.62, p. 70.24 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradio 524/PG. Requerente: Governo do Paraguai. Extraditando: Gustavo Adolfo StroessnerMora. Relator: Min. Celso de Mello. Braslia, julgamento em 31/10/90. Publicado em 08/03/91, p. 2200.25 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Extradio 1008/CB. Requerente: Governo da Colmbia. Extraditando: Francisco Antonio CadenaCollazos ou Oliverio Medina ou Camilo Lopez ou Cura Camilo. Relator Orig. Min. Gilmar Mendes, Relator para o Acrdo Min. SeplvedaPertence. Braslia, julgamento em 21.03.2007. Publicado em 17/08/2007, p. 2426 Ver pargrafo 12 do Segundo Parecer do PGR aps a concesso do refgio. Parecer em mos do autor do presente artigo in BRASIL.Supremo Tribunal Federal. Extradio 1085. Requerente: Governo da Repblica Italiana. Extraditando: Cesare Battisti. Relator: Min. CezarPeluso.

  • 37

    Min. Barbosa, o Mandado de Segurana da Repblica Italiana no pode servir

    para atacar ato de soberania que no pode ser solucionado por uma das Cortes

    envolvidas, pois a Suprema Corte de um Estado tambm rgo de soberania.27

    Por isso, a concesso de refgio no ato administrativo comum, mas de ato de

    soberania, tomado pela Repblica Federativa do Brasil e que reverbera nas relaes

    internacionais, sendo regido pelo Direito das Gentes e inatacvel pelo Judicirio

    nacional. Quanto extradio, lembrou o Ministro Joaquim Barbosa de seu carter

    especial, de proteo ao extraditando. Na viso do Ministro, a interveno do STF

    deve se operar na extradio em prol do extraditando e no em seu detrimento.

    Houve votos favorveis ao judicial review. O Ministro Grau pendeu para a

    reviso judicial do ato administrativo de concesso do refgio em ao prpria,

    com extino do processo de extradio. E, finalmente, o Ministro Peluso

    considerou, como visto, ser possvel a reviso judicial inclusive em preliminar do

    processo de extradio, posio afinal ganhadora.

    O julgamento do STF terminou, em 18.11.2009, com placar apertado: cinco

    Ministros votaram a favor do judicial review da concesso do refgio como

    preliminar da extradio e consideraram o refgio a Cesare Battisti indevido, bem

    como consideraram preenchidos os demais requisitos inexistncia de crime

    poltico, ausncia de prescrio entre outros e autorizaram a extradio (Cezar

    Peluso, Gilmar Mendes, Carlos Britto, Ellen Gracie e Ricardo Lewandowski).

    Porm, quatro Ministros se posicionaram contra a reviso do ato do refgio e

    aplicaram o art. 33 da Lei 9.474/1997 e indeferiram a extradio (Marco Aurlio,

    Joaquim Barbosa, Carmem Lcia e Eros Grau, este ltimo, ao que tudo indica,

    aceita a reviso do ato de refgio em ao prpria). Ainda, o STF, tambm por

    pequena maioria (cinco a quatro), decidiu que cabe ao Presidente da Repblica a

    palavra final de concretizao da extradio j autorizada pelo Supremo.

    Em face da apertada votao e como ainda no participaram da votao do

    Caso Battisti dois Ministros (Celso de Mello e Dias Toffoli, por motivos de foro

    ntimo), a temtica ainda no est pacificada.

    Ponderando tais posies, vejo que a existncia de repercusso nas relaes

    internacionais de determinado ato no possui o condo de excluir a apreciao

    27 Palavras gravadas da sesso de julgamento. O udio est disponvel em: http://direitousf.blogspot.com/2009/09/voto-do-ministro-joaquim-barbosa-no_7142.html , ltimo acesso em 19 de outubro de 2009.

  • 38

    judicial. Tal caminho levaria, ad terrorem, a excluso do Poder Judicirio de vrios

    temas contaminados hoje pelas relaes internacionais, afetas soberania estatal

    e que prejudicam os jurisdicionados. Por outro lado, mesmo reconhecendo que a

    Repblica Italiana no tem realmente direito lquido e certo amparado pelo

    mandamus, no cabe esquecer que o processo de extradio espcie de cooperao

    penal internacional que deve levar em considerao os direitos do extraditando e

    ainda os direitos das vtimas. Em sntese, o processo de extradio deve levar em

    considerao o direito do extraditando ao devido processo legal extradicional, mas

    no pode olvidar os direitos das vtimas que almejam justia pela persecuo

    criminal daquele que ser extraditado. Esquecer a vtima e a consequente

    impunidade gerada pelo fracasso da cooperao internacional penal no atende

    aos ditames do acesso justia previstos na Constituio brasileira, que, na prpria

    viso do STF, atinge brasileiros e estrangeiros, inclusive os no residentes.

    Assim, considero que possvel uma preliminar (ilegitimidade da concesso

    de refgio) em um processo de extradio contra o extraditando, porque tal

    processo , na sua essncia, um controle de legalidade e de respeito aos tratados

    (no caso da existncia de tratados internacionais) do pedido extradicional, que

    deve levar em considerao eventuais direitos do extraditando sem olvidar os direitos

    dos terceiros. Na linha da jurisprudncia da Corte Interamericana de Direitos

    Humanos, h no plano do Direito Internacional dos Direitos Humanos a obrigao

    do Estado de no permitir impunidade dos perpetradores de violaes de direitos

    fundamentais. O Brasil j percebeu tal situao no caso do Sr. Damio Ximenes:

    a impunidade dos autores do homicdio do Sr. Damio gerou condenao brasileira

    perante a Corte de San Jos, em nome do direito dos seus familiares de acesso

    justia e combate impunidade28. Aplicado esse raciocnio ao processo de

    cooperao penal internacional, v-se que cabe a verificao da legitimidade da

    concesso do refgio, para evitar que este importante instituto seja utilizado de

    modo indevido e vulnere o direito das vtimas ao acesso justia.

    Logo, acolho a reviso judicial (judicial review) da concesso do refgio,

    fundado no princpio da universalidade da jurisdio, bem como na possibilidade

    28 CARVALHO RAMOS, Andr de. Anlise Crtica dos casos brasileiros Damio Ximenes Lopes e Gilson Nogueira na Corte Interamericanade Direitos Humanos. II Anurio Brasileiro de Direito Internacional. 1 ed. ; Belo Horizonte: Cedin, 2007, v. 1, pp. 10-31. Ver mais sobrea impunidade e o dever de investigar e punir os violadores de direitos humanos em CARVALHO RAMOS, Andr de. ResponsabilidadeInternacional por Violao de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

  • 39

    de reviso das decises administrativas pelo Poder Judicirio mesmo aquelas

    com impacto nas relaes internacionais e ainda em ser a extradio um instituto

    de cooperao internacional que leva em considerao os direitos do extraditando

    e tambm o direito das vtimas.

    Contudo, a reviso deve ser absolutamente regrada e estrita, em respeito ao

    princpio do non-refoulement. De fato, no tocante ao refgio, essa reviso deve

    ser feita sempre sob o paradigma da interpretao pro homine.29 Por isso, defendo

    que a concesso de refgio no CONARE ou na via recursal ao Ministro da Justia

    faz nascer um nus argumentativo ao Supremo Tribunal, que dever expor, sem

    sombra de dvida, que no havia sequer fundado temor de perseguio odiosa ou

    situao grave de violaes macias de direitos humanos no caso em anlise.

    Assim a dvida milita a favor da concesso do refgio (princpio do in dubio pro

    fugitivo) e ainda s pode ser questionada a deciso do CONARE se houver evidente

    prova de abuso ou desvio de finalidade, como reza a doutrina do controle judicial

    dos atos administrativos.

    A reviso pelo Judicirio (pelo STF, nos processos extradicionais, ou em

    outros tipos de aes, como, por exemplo, uma ao civil pblica interposta pelo

    parquet federal) deve ser feita de modo fundamentado e levar em considerao a

    meta final do Direito dos Refugiados que a preservao da dignidade humana,

    sob pena de expor o Brasil a sua responsabilizao internacional por violao de

    direitos humanos, uma vez que o direito ao acolhimento previsto tambm no

    artigo 22 da Conveno Americana de Direitos Humanos, cuja Corte (Corte

    Interamericana de Direitos Humanos) o Brasil j reconheceu a jurisdio.30

    3.4 As caractersticas do refgio

    Em resumo, o refgio possui as seguintes caractersticas: 1) baseado em

    tratados de mbito universal e ainda possui regulamentao legal especfica no

    Brasil, com tramite e rgo colegiado especfico; 2) buscar proteger um estrangeiro

    perseguido ou com fundado temor de perseguio (no exige a atualidade da

    perseguio); 3) a perseguio odiosa de vrias matrizes: religio, raa,

    29 Conforme explicito em outro livro, em passagem especfica sobre a interpretao pro homine. Ver em CARVALHO RAMOS, Andr de.Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 2 Ed., So Paulo: Saraiva, 2011.30 Ver sobre o tema da responsabilidade internacional por violao de direitos humanos em CARVALHO RAMOS, Andr de. ResponsabilidadeInternacional por Violao de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2004.

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    nacionalidade, pertena a grupo social e opinio poltica, ou seja, a perseguio

    poltica apenas uma das causas possveis do refgio; 4) pode ser invocado

    tambm no caso de indivduo que no possa retornar ao Estado de sua

    nacionalidade ou residncia em virtude da existncia de violaes graves e

    sistemticas de direitos humanos naquela regio no necessrio uma

    perseguio propriamente dita; 5) o solicitante de refgio tem o direito subjetivo

    de ingressar no territrio brasileiro, at que sua situao de refgio seja decidida

    pelo CONARE (ou, em recurso, pelo Ministro da Justia); 6) o refgio territorial;

    7) a deciso de concesso do refgio declaratria, com efeito ex tunc, o que

    implica em reconhecer o direito do solicitante, caso preencha as condies, de

    obter o refgio; 8) cabe reviso judicial interna das razes de concesso ou

    denegao, uma vez que o CONARE tem o dever de fundamentao adequada;

    9) existe a vigilncia internacional dos motivos do refoulement (rechao).

    4. Asilo e Refgio

    Comparando os dois institutos asilo poltico e refgio notamos

    semelhanas e diferenas.

    H cinco semelhanas: 1) ambos os institutos tratam do acolhimento do

    estrangeiro que no pode retornar ao Estado de sua nacionalidade ou residncia

    por motivo odioso; 2) alm disso, ambos os institutos esto amparados em normas

    internacionais e nacionais, constituindo-se, os dois, em garantias essenciais para

    a proteo de direitos essenciais do indivduo; 3) ambos os institutos, se

    corretamente concedidos, impedem a extradio pelos mesmos fatos que geraram

    a concesso; 4) os dois institutos podem ser sujeitos reviso judicial interna,

    como provam os precedentes do STF e 5) por fim, os dois institutos so sujeitos

    vigilncia internacional dos direitos humanos, em especial perante os tribunais

    especializados em direitos humanos como a Corte Interamericana de Direitos

    Humanos.

    Quanto s diferenas existentes entre os dois institutos na Amrica Latina,

    e, em especial no Brasil, cabe mencionar: 1) o refgio regido por tratados

    universais e o asilo pelo costume internacional (inclusive de costume referente a

    direitos humanos) e por tratados regionais na Amrica Latina, desde 1889; 2) o

    asilo busca acolher o perseguido poltico e o refgio destina-se a vrios tipos de

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    perseguio; 3) o refgio pode ser concedido no caso de fundado temor de

    perseguio; o asilo exige a situao de urgncia, ou seja, a atualidade da

    perseguio; 4) o refgio pode ser concedido sem qualquer situao de perseguio,

    bastando que exista um quadro de violao grave e sistemtica de direitos humanos

    na regio para a qual o indivduo no pode retornar; o asilo no contempla tal

    hiptese de concesso; 5) o asilo no conta com uma organizao internacional

    de superviso e capacitao, como o refgio, que possui o ACNUR; 6) no Brasil

    o refgio possui uma lei que estabelece o rgo de julgamento (Conare), um trmite

    e as causas de incluso, cessao e excluso; j o asilo regido brevemente pela lei

    dos estrangeiros, dando azo a maior liberdade administrativa na sua concesso

    ou denegao; 6) no refgio, o solicitante de refgio possui direito pblico subjetivo

    de ingresso no territrio nacional ( o nico estrangeiro que possui tal direito), o

    que no ocorre com o solicitante de asilo; 7) a deciso de concesso do refgio

    tem natureza declaratria e a do asilo constitutiva ou seja, no h direito a

    obter asilo, mas, no caso do refgio, o solicitante que preencher as condies, tem

    direito ao refgio - logo, no pode ter seu pleito indeferido pelo CONARE por

    razes de poltica internacional.

    Em sntese, o asilo instituto mais estreito, voltado perseguio poltica,

    no gerando direito ao solicitante, que fica merc dos humores governamentais

    e da poltica das relaes internacionais. O crivo judicial, at o momento, do STF

    ficou restrito concesso indevida do asilo poltico nos processos extradicionais

    (com efeito prtico nulo, pois basta que o Executivo no determine a extradio,

    mantendo no Brasil o estrangeiro que obteve o asilo deturpado), no havendo

    registro de ao judicial pleiteando a concesso do asilo. Restaria o crivo

    internacional perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma vez

    que o direito ao asilo previsto na Conveno Americana de Direitos Humanos,

    mas, at o momento (2011) no h casos contra o Brasil sobre tal temtica.

    Por outro lado, o refgio mais amplo, gera direitos ao solicitante de refgio,

    inclusive direito de ingresso no territrio nacional e direito de um julgamento

    adequado no CONARE. Justamente por isso, a deciso equivocada de concesso

    ou denegao pode ser mais facilmente combatida perante os rgos nacionais e

    internacionais de direitos humanos.

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    Concluses: as perspectivas para o asilo e refgio

    A normatizao do refgio e do asilo no Brasil permite prever que o refgio

    ser invocado nos casos regulares, abarcando a imensa maioria dos estrangeiros

    que no podem retornar ao Estado de nacionalidade ou residncia por perseguio

    odiosa ou quadro de violao grave e sistemtica de direitos humanos.

    J o asilo poltico ser concedido de modo excepcional em situaes de

    interesse Chefia do Estado, com base na orientao da diplomacia brasileira.

    Claro que seria possvel conceder o refgio a esses casos especiais, mas estariam

    sujeitos ao trmite do CONARE e prtica desse rgo, o que pode no atender os

    interesses da diplomacia brasileira.

    Assim, a manuteno da separao entre os dois institutos no Brasil tem

    explicao pragmtica, que vai alm do tradicional apelo a ser o asilo um costume

    latino-americano: na realidade, o asilo poltico uma carta na manga da

    diplomacia brasileira, que pode ser usada com flexibilidade mpar inclusive nas

    Misses Diplomticas fora do territrio nacional. Com efeito, a flexibilidade do

    asilo, fruto da ausncia proposital - de regulamentao mais precisa (quer

    interna quer internacional), permite sua concesso de modo rpido e s