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UM ACERTO DE CONTAS COM A CIÊNCIA DA LITERATURA SETTING THE SCORES WITH THE SCIENCE OF LITERATURE Giuseppe VARASCHIN UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA, Brasil RESUMO | INDEXAÇÃO | TEXTO | REFERÊNCIAS | CITAR ESTE ARTIGO | O AUTOR RECEBIDO EM 18/04/2014 ● APROVADO EM 27/10/2014 Abstract This article has the purpose of reconsidering, from an analytic perspective, the possibility of constituting an autonomous science of literature. We will argue that such a task is not possible due to the subjective ontology of the literary phenomenon, and that the attempt to perform it results in an illusion that jeopardizes the study and teaching of literature as well. The conclusion will be that the study and the teaching of literature should walk side by side, within a study of culture in a broad sense, because it is only within such scope that literature exists. Resumo Este artigo tem a intenção de reconsiderar, sob uma perspectiva analítica, a possibilidade de constituir uma ciência da literatura autônoma. Argumentar-se-á que tal tarefa não é possível, por conta da ontologia subjetiva dos fenômenos literários, e que a tentativa de realizá-la

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  • UM ACERTO DE CONTAS COM A CINCIA DA LITERATURA

    SETTING THE SCORES WITH THE SCIENCE OF LITERATURE

    Giuseppe VARASCHIN

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA, Brasil

    RESUMO | INDEXAO | TEXTO | REFERNCIAS | CITAR ESTE ARTIGO | O AUTOR RECEBIDO EM 18/04/2014 APROVADO EM 27/10/2014

    Abstract

    This article has the purpose of reconsidering, from an analytic perspective, the possibility of constituting an autonomous science of literature. We will argue that such a task is not possible due to the subjective ontology of the literary phenomenon, and that the attempt to perform it results in an illusion that jeopardizes the study and teaching of literature as well. The conclusion will be that the study and the teaching of literature should walk side by side, within a study of culture in a broad sense, because it is only within such scope that literature exists.

    Resumo

    Este artigo tem a inteno de reconsiderar, sob uma perspectiva analtica, a possibilidade de constituir uma cincia da literatura autnoma. Argumentar-se- que tal tarefa no possvel, por conta da ontologia subjetiva dos fenmenos literrios, e que a tentativa de realiz-la

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    constitui uma iluso que prejudica tanto a compreenso da literatura quanto o seu ensino. A concluso que o estudo e o ensino da literatura devem andar lado a lado, imersas em um estudo da cultura em sentido mais amplo, pois somente no mbito de uma cultura que a literatura existe.

    Entradasparaindexao

    KEYWORDS: Science of Literature. Ontology of Literature. Teaching of Literature. Literary Theory. Autonomy of Literature. PALAVRAS-CHAVE: Cincia da Literatura. Ontologia da Literatura. Ensino da Literatura. Teoria Literria. Autonomia da Literatura.

    Texto integral

    tentador, para qualquer profissional nos dias de hoje especialmente queles ligados s reas de ensino e pesquisa nas universidades , laurear sua atividade com o ttulo de cientfica. Particularmente, as cincias ditas duras so, para ns e no totalmente sem razo , um exemplo de seriedade a ser seguido, haja vista o progresso notvel que se observa nessas reas, alm dos avanos tecnolgicos que elas parecem capitanear. No meu propsito aqui ameaar com quaisquer contestaes essa admirao ingnua pelas cincias naturais enquanto tais, no porque no se possa faz-lo com justeza de fato se pode1 mas porque comum demais faz-lo irresponsavelmente, sem o devido conhecimento da matria2. O que quero problematizar com o perdo pela brevidade a incorporao indevida da imagem das cincias naturais nas cincias humanas, em especial, no estudo da literatura, operada com a inteno consciente ou inconsciente de transferir a credibilidade daquelas a esta. Argumentarei que as cincias naturais no podem fornecer um modelo para a cincia da literatura e que, em verdade, no h (nem pode haver) propriamente uma cincia da literatura, no mesmo sentido em que h uma cincia fsica ou uma cincia biolgica. Quando se pretende incorporar a seriedade cientfica nessas reas, o que resulta , em geral, uma emulao da cincia, uma macaqueao de alguns traos que popularmente indexados ideia de cincia, e no, verdadeiramente, uma atividade cientfica tout court.

    Ora, qual o problema com a cincia da literatura? Levando em conta a origem dessa expresso, podemos formular essa questo da seguinte maneira: quais so os problemas com o projeto terico do New Criticism? Se I.A. Richards, Wimsatt, Beardsley, Ransom, ou mesmo Northrop Frye, Paul de Man3 e, entre ns, Afrnio Coutinho, esto errados, devemos saber dizer exatamente por qu. No pretendo que minhas imputaes sejam exaustivas e definitivas. Um tratamento completo do assunto h de ser feito por algum mais bem informado em filosofia da cincia do que eu e no conheo qualquer estudo que analise seriamente a possibilidade da cincia da literatura sob essa tica 4. O que se segue deve ser tomado como um conjunto, mais ou menos desconexo, de incmodos que a ideia de uma cincia da literatura pode causar, e de uma exposio sucinta e quase

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    impressionista dos motivos desses incmodos. No h aqui, portanto, qualquer pretenso de encerrar o debate.

    A resposta para a pergunta qual o problema com a cincia da literatura? poderia incorrer em um engodo ainda mais grave do que a prpria ideia de cincia da literatura: o dualismo. Poder-se-ia invocar o clich de que o ser humano um bicho muito complexo, e que suas obras so especiais demais para serem totalmente compreendidas por uma cincia fria e impessoal (esquece-se nisso que essa cincia uma dessas suas obras to especiais). O carter exato, matemtico e inexorvel da cincia, embora d conta de explicar o mundo da matria, no alcana os requintes do mundo do esprito, que dele independente. Para mim, assim formulada, essa resistncia um exemplo de autobajulao do pior tipo. Se o ideal matemtico das cincias naturais no lida bem conosco, no porque somos particularmente especiais e vivemos separados do reino da matria. Vivemos em um nico mundo, e cabe a ns explicar como chegar dos eltrons s eleies, dos prtons aos presidentes. Os sonetos de Cames habitam o mesmo mundo sujo, suado e inglrio que os cachorros, as montanhas e os ratos.

    H, contudo, como j insinuei, uma diferena entre os sonetos de Cames e os cachorros, as montanhas e os ratos. E a percepo dessa diferena o fundo de verdade que guarda o clich dualista supracitado. A diferena que os fatos acerca da existncia dos cachorros, das montanhas e dos ratos so o que o filsofo americano John Searle (1969, 1998) de quem se falar mais no decorrer deste ensaio chama de fatos brutos. Os fatos brutos so ontologicamente objetivos, isto , existem independentemente de qualquer conscincia ou subjetividade que os observe. So esses os fatos que so, em geral, estudados pelas cincias naturais. H, no entanto, uma outra categoria de fatos nos quais se inserem os fatos literrios que Searle chama de fatos institucionais. Os fatos institucionais s existem dentro de certas instituies, como a linguagem humana, por exemplo. O fato de que uma folha de papel com determinadas marcas de tinta seja um conto, por exemplo, s existe relativamente s instituies da cultura humana, como a linguagem e a fico. Crises econmicas, candidatos presidncia da repblica, casamentos, notas de dez reais, leiles, promessas, ordens, romances histricos, elegias, universidades e jogos de futebol so exemplos de fatos institucionais. No h nenhuma descrio do mundo em termos puramente fisicalistas (em termos de fatos brutos) que me garanta que uma determinada movimentao de homens na grama um jogo de futebol. possvel, p. ex., imaginar que os mesmos movimentos fazem parte de um ritual religioso, ou que so o resultado de meras movimentaes fortuitas de seus corpos. Do mesmo modo, nenhuma configurao de marcas de tinta em pginas me garante que se trata de um romance de Machado de Assis. Para especificar um tal objeto como um romance de Machado de Assis tenho de pressupor toda uma cultura humana, na qual esto includos, entre outros, o conceito de romance e o conceito de autoria. Perceber algo como um romance de Machado de Assis requer estar imerso em uma cultura, em uma forma de vida, na terminologia de Wittgenstein, em um habitus, na linguagem de Bourdieu, ou mesmo, para antecipar um tema a que retornarei adiante, em uma tradio no sentido que Eliot (1932) d a essa palavra. E essas pressuposies de base so todas relativas a um observador. So partes do Background cultural que

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    ns trazemos baila sempre que compreendemos uma coisa. Amide ns nem pensamos nessas pressuposies, precisamente por elas j estarem to assentadas em ns que automaticamente j reconhecemos algo como um fato institucional, sem quaisquer mediaes como se fosse algo to natural quanto uma pedra ou um rio. Mas essa imediatez com que ns percebemos os fatos institucionais no nos deve enganar quanto sua natureza: eles so ontologicamente subjetivos e s existem para uma cultura historicamente formada que os representa como existentes.

    Da que a pretenso de fundar uma cincia da literatura em paridade com as cincias da natureza seja enganadora5. A pretenso da Nova Crtica de estudar o texto de forma autnoma, independente da cultura na qual ele se insere e a que ele se dirige , por isso mesmo, ilusria pois pressupe aquilo que nega, j que, para a simples considerao de um pedao de papel como uma obra literria, se requer a sua insero dentro de uma cultura ou tradio que o representa para si como uma obra literria. Um bom exemplo de um erro decorrente dessa falsa analogia entre os fatos literrios e os fatos naturais , nos termos de Wimsatt e Beardsley, a suposta falcia da inteno, a qual doravante chamarei de a falcia da falcia da inteno (abreviadamente FFI).

    J observei, em outros lugares, que a recusa a apelar para as intenes do autor, por parte da FFI, parece ser suscitada, em parte, por uma espcie de behaviorismo literrio, que afirma serem misteriosas e inapreensveis as intenes de qualquer pessoa, fazendo com que nos contentemos, por assim dizer, com seus dados comportamentais, no caso do autor, sua obra. Entretanto, assim como o behaviorismo foi superado em psicologia, essa sua sobrevivncia implcita no cerne da teoria literria sob a forma da FFI tambm tem de ser descartada. Deduzir as intenes de um autor a partir da sua obra e de sua biografia to legtimo quanto deduzir as intenes de uma pessoa que conhecemos a partir do que ela nos diz e do que sabemos da sua vida. Fazemos isso o tempo todo, tanto no dia-a-dia quanto na prtica cientfica, e, na maior parte das vezes, acertamos, pois temos boas bases para acreditar que as outras pessoas funcionam de maneira semelhante a ns prprios.

    A crtica que pretendo tecer FFI neste momento , em certo sentido, mais bsica e fundamental. Para tomar algo como um mero ato de fala necessrio pressupor que se trata de uma sequncia de sons ou marcas em um papel produzida com certa inteno. Isso porque o significado lingustico, conforme argumenta Grice (1989), um fenmeno intencional. Quer dizer, se no invocssemos, em algum momento, as intenes do autor, no seramos nem capazes de dizer se um pedao de papel com marcas de tinta composto por um enunciado em portugus6. Nas palavras de Searle, quando algum reconhece um conjunto de marcas em um papel como um ato lingustico:

    uma das coisas envolvidas nesse modo de reconhecer as marcas que a pessoa deve consider-las como tendo sido produzidas por um ser dotado de certas intenes. No as podemos simplesmente tomar como um fenmeno natural, como uma pedra, uma cachoeira ou uma rvore. Para que possamos tratar as marcas

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    como uma instncia de comunicao lingustica, precisamos supor que sua produo foi o que eu estou chamando de ato de fala. um pressuposto lgico, por exemplo, das atuais tentativas de decifrar os hierglifos maias, que ao menos aventemos que a produo das marcas que vemos nas pedras foram produzidas por seres mais ou menos semelhantes a ns, e produzidas com certos tipos de intenes. Se tivssemos certeza de que as marcas foram, digamos, o produto de uma eroso, ento a questo de decifr-las ou mesmo de cham-las de hierglifos nem poderia surgir. (SEARLE, 1991, p. 255).7

    Se assim para os atos lingusticos em geral, um tanto mais ainda para a classe particular de atos lingusticos que constituem as obras literrias. A considerao de um conjunto de frases como uma obra literria pressupe, no somente que elas foram produzidas por um agente com determinadas intenes que conferem a elas suas significaes, mas que elas compem uma obra inserida em uma tradio, de onde ela deriva seu sentido e seu valor tema ao qual se retornar brevemente. E por isso, penso eu, que no possvel termos uma cincia da literatura no sentido que podemos ter uma cincia dos atos lingusticos em geral. Do mesmo modo que nenhuma descrio de quaisquer marcas em um papel enquanto marcas em um papel (isto , enquanto um fato bruto) uma especificao de um fato de linguagem (um fato institucional), nenhuma descrio puramente lingustica de um texto suficiente para sabermos se se trata de um texto literrio.

    Afrnio Coutinho, em seu ensaio O Problema da Crtica, afirma que o principal defeito da antiga crtica era o desacerto entre seu objeto especfico a obra de arte e o mtodo empregado para seu estudo e julgamento que habitualmente era proveniente de disciplinas com mtodos, princpios e objetivos diferentes (COUTINHO, 1957, p. 130-131). Questiono aqui a possibilidade mesma de constituir um objeto e um mtodo autnomo e infalvel para a crtica, independente de inclinaes subjetivas e de interseces caticas entre fatores das mais diversas ordens. muito tentador supor que, para toda cincia cuja fundao seja decretada, haver, de fato, um objeto bem delimitado que a corresponda, uma ontologia regional que inclua todos e somente seus objetos. tentador, mas no me parece estar correto8, segundo Searle (1979):

    no h nenhum trao, ou conjunto de traos, que todas as obras de literatura tenham em comum e que possa constituir as condies necessrias e suficientes para algo ser uma obra literria. Literatura, para usar a terminologia de Wittgenstein, uma noo de semelhana de famlia. (SEARLE, 1979, p. 59).

    Falar de uma cincia da literatura est no mesmo nvel, portanto, que falar de uma cincia do clima de hoje, de uma cincia do desgaste dos sapatos, ou, para usar um exemplo wittgensteiniano, de uma cincia dos jogos. Os fatores que teriam de ser considerados para que se fizesse uma nica explicao em qualquer

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    um desses campos so muito disparatados, h um nmero incontrolvel de variveis, no sabemos bem como definir seus objetos; e, no caso especfico da cincia da literatura, pretende-se ainda que ela transponha o intervalo entre fato e valor, oferecendo avaliaes qualitativas das obras. No se conhece nenhuma outra cincia, no sentido usual, que seja indiscutivelmente capaz de fazer isso.

    claro que a Nova Crtica, propugnada por Coutinho, pretende justamente se livrar desse caos incontrolvel de determinaes externas da literatura com o princpio da autonomia do literrio9. Mas o caos incontrolvel de determinaes externas que motiva a criao desse princpio o que evidencia a sua falsidade. Se o fato de chamarmos uma determinada obra de literria, e de, alm disso, a qualificarmos como boa ou m, depende de toda uma sorte de fatores psicolgicos, histricos, econmicos, polticos, sociolgicos, lingusticos, autobiogrficos e biolgicos, uma cincia da literatura que afirma no ser assim, a ttulo de simplicidade terica, no est construindo um modelo abstrato para ordenar as pesquisas neste campo, est falsificando a realidade.

    Lionel Trilling, em seu ensaio The Sense of the Past, tece uma instigante crtica ao New Criticism mais ou menos nesses termos. Ele comea citando Aristteles, que afirma que todo estudo tem seu prprio grau de certeza (...). E o homem bem treinado aceita esse grau de certeza e no almeja por um maior (TRILLING, 2008, p. 183). Ora, o que o novo crtico parece estar buscando um grau de certeza em seu estudo que a literatura mesma no permite. Eles tentam demais (they try too hard, so as palavras de Trilling). Caem na grande iluso moderna de que qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa, pode ser descoberta, se nos dedicarmos a isso com seriedade e diligncia (TRILLING, 2008, p. 183)10. Porm essa no sua maior culpa, segundo o crtico nova-iorquino. Na sua (justa) reao contra o mtodo historicista, que de fato era demasiado simplista, eles esquecem que a obra literria inelutavelmente um fato histrico, e, o que ainda mais importante, que a historicidade parte da experincia esttica mesma. A literatura, podemos dizer, precisa sempre, em alguma medida, ser um estudo histrico, pois a literatura uma arte histrica (TRILLING, 2008, p. 184). Trilling elenca ento trs sentidos, em ordem crescente de importncia, creio eu, em que podemos dizer que a literatura essencialmente uma arte histrica:

    (1) Grande parte da literatura , direta ou indiretamente, o registro ou a representao de alguma experincia histrica concreta11. essa, talvez, a lio mais importante que podemos aprender com algum como Auerbach. Seu mtodo, o chamado realismo figural, parte do pressuposto de que o modo de representao o estilo, poderamos dizer, para evocarmos o nome da corrente terica a que ele usualmente associado evidencia a condio humana. Por isso a filologia se torna um instrumento possvel para alcanar a totalidade da cultura. Por isso o estudo da literatura se transforma, ao mesmo tempo, no estudo da condio humana. O seu mtodo de explicao de texto no se contenta em descrever estruturas constantes, analisar estratgias de escritura, a funo que certos artifcios cumprem na lgica de uma obra, ou mesmo em fixar um sentido para uma obra em particular.

    Isso porque, para ele, o sentido no imanente obra, mas aponta para fora dela, para o mundo, do qual ela uma representao, uma . Se partirmos da

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    ideia de que a arte mimesis o que no o mesmo que dizer, com Lukcs, que ela reflexo12 o seu estudo , ao mesmo tempo, o estudo daquilo que ela imita, da realidade, do estar-a do homem no mundo. A filologia, enquanto histria da conquista da auto-expresso humana (AUERBACH, 2007, p. 360) , mais do que qualquer outra disciplina, capaz de nos dar uma histria da humanidade, justamente porque a literatura um testemunho dessa histria.

    (2) Toda literatura est necessariamente ciente de seu prprio passado. Nem sempre este reconhecimento consciente, mas ele sempre se d na prtica. este o principal ponto enfatizado por Eliot em seu famoso ensaio Tradition and the Individual Talent. A tradio, para o poeta americano, no apenas algo passado, mas um passado que se faz anacronicamente presente em cada nova obra o que nos remete a certas concepes bem atuais do contemporneo (cf. AGAMBEN, 2009) , e que modificado por cada novo membro includo na tradio.

    Nenhum poeta, nenhum artista de qualquer arte, tem seu sentido completo sozinho. A sua importncia, a sua apreciao a apreciao da sua relao com os poetas e artistas mortos. Voc no pode valor-lo sozinho; voc precisa coloc-lo diante para contrast-lo e compar-lo daqueles que j morreram. (ELIOT, 1932, p. 15).

    No somente o sentido de cada obra, mas tambm o seu valor, s pode ser compreendido relativamente a essa tradio13. As stock-responses inculcadas pelo nosso passado literrio em ns no devem, como quis I.A. Richards, ser condenadas a priori, pois elas, segundo Otto Maria Carpeaux, constituem-se de resduos do fundo potico da humanidade, e se eles faltassem completamente, nenhuma poesia, velha ou moderna, encontraria eco em nosso esprito (CARPEAUX, 1999, p. 281). esse tambm o ponto chave da esttica analtica de Arthur Danto, que afirma que o valor de uma obra individual s surge na medida em que ela se insere, atravs de uma dada teoria artstica, no que ele chama de mundo da arte:

    esse enriquecimento retroativo das entidades no mundo da arte que torna possvel discutir, juntos, Rafael e De Kooning, ou Lichtenstein e Miguelangelo. Quanto maior a variedade de predicados artisticamente relevantes, mais complexos se tornam os membros individuais do mundo da arte. E quanto mais se sabe da populao inteira do mundo da arte, mais rica se torna a experincia de algum com qualquer um dos seus membros. (DANTO, 2006, p. 24).

    Em suma, uma impossibilidade lgica haver uma nica obra literria em toda a histria do universo, porque no seria possvel haver uma obra literria sem o pertencimento a uma tradio literria precedente. Do mesmo modo que a caixa de Brillo de Warhol, sem o mundo da arte, seria s uma caixa de Brillo, um conjunto

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    de folhas com letras escritas seria apenas um conjunto de folhas com letras escritas se no fosse a tradio literria. E essa tradio e esse mundo so, obviamente, histricos. Ns lemos qualquer obra diante de um caleidoscpio de elementos histricos (TRILLING, 2008, p. 184).

    (3) Ao outro sentido em que a literatura intrinsecamente histrica no se parece ter dado tanta ateno, ao menos at o ensaio de Trilling. Lado a lado com os elementos formais de cada obra literria e modificando o sentido desses elementos h um outro fator, que o crtico americano chama de passadidade (pastness), que faz parte da experincia esttica mesma, e no pode ser ignorado. Quando lemos, por exemplo, uma tragdia grega, alm do seu enredo, da sua estrutura e das suas nuances de linguagem, percebemos que se trata de uma obra de outro tempo. Em algumas culturas, a passadidade confere s obras uma autoridade que alavanca seu poder esttico. Essa passadidade:

    em si mesma um fator esttico positivo com relaes aprazveis com outros fatores estticos. parte do que dado em uma obra, algo a que no podemos seno responder. Os New Critics14 sugerem que essa situao no deveria existir, mas ela no pode deixar de existir, e ns temos que lidar com ela. (TRILLING, 2008, p. 185).

    A Nova Crtica afirma que levar a passadidade em conta um obstculo leitura cientfica semelhante queles que I.A. Richards famosamente elencou. Contudo, no faz-lo no compreender verdadeiramente a obra. Isso no significa dizer que ns e os poetas do passado no comungamos de experincias em comum e sim que a percepo de nossas semelhanas pressupe que nossas diferenas sejam tambm percebidas:

    Na recusa, por parte dos New Critics, em reconhecer teoricamente a historicidade de uma obra, h, compreensivelmente, o impulso em tornar as obras do passado mais imediatas e mais reais, em negar que entre o Antes e o Depois haja qualquer diferena essencial, sendo o esprito do homem sempre uno e contnuo. Mas s quando estamos cientes da realidade do passado enquanto passado que o podemos tornar vivo e presente. Se, por exemplo, tentssemos fazer de Shakespeare literalmente um contemporneo, ns o transformaramos em um monstro. Ele s nos contemporneo se soubermos o quanto de um homem de sua prpria poca ele era; ele s nos relevante se percebermos a distncia entre ele e ns. (TRILLING, 2008, p. 186).

    A contemporaneidade no , portanto, negao do tempo, a postulao de um misterioso presente contnuo e imvel, onde habitam todas as obras de arte, porque cada uma dessas obras de arte carrega, dentro de si, seu prprio tempo. E

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    essa internalizao do tempo imediatamente percebida como um fator esttico positivo na experincia que delas temos...

    Ora, as implicaes que essas consideraes podem ter para o ensino da literatura so muitas. No tenho condies de explorar todas elas, apenas elencarei alguns pontos que me parecem relevantes:

    (1) A tradio humanstica, histrica e moralista do ensino da literatura, criticada por Paul De Man (2002) em favor de uma abordagem filolgica -no sentido, no exatamente auerbachiano de ver no detalhe de linguagem um vestgio de uma experincia humana fundamental, mas sim na ateno ao detalhe pelo detalhe, a ser empreendida por profissionais especializados na anlise das estruturas (e no do sentido) da linguagem , no pode ser totalmente abandonada. No deve haver uma prioridade da literatura como potica e retrica sobre a literatura como histria e hermenutica (DE MAN, 2002, p. 25-26), simplesmente porque no h potica e retrica sem histria e hermenutica. A ordem das prioridades parece, a, se levarmos em conta a prpria ontologia do objeto literrio, estar invertida.

    (2) O chamado close reading, porque pressupe o domnio de uma tradio e enriquecido por esse domnio , nunca pode ser e nunca puro. Nunca lemos a obra em si, porque no existe obra em si. Sempre a lemos, quer queiramos ou no, em conjunto com nossa cultura, com a tradio. Isso no significa dizer que o New Criticism no tenha contribudo de nenhuma maneira com os estudos literrios, dado que priorizar o texto e seus aspectos puramente lingusticos possvel, ainda que sustent-los como objeto nico no garanta sua insero no mundo da arte.

    (3) O ensino da literatura no pode dispensar, portanto, ensino da histria, da filosofia, da psicologia, em suma, deve ocorrer no centro daquilo que E. D. Hirsch (1987) chamou de cultural literacy, que consiste no somente no domnio intelectual do repertrio da tradio, no sentido de Eliot, ou do mundo da arte, no sentido de Danto, mas naquilo que Searle (1998) chama de Background: um conjunto de prticas e saberes inconscientes que so como que o cenrio sobre o qual representamos o mundo. Percebemos, no s as obras literrias, mas tudo o mais diante desse pano-de-fundo. Quanto mais rico ele for, mais ricas sero nossas experincias.

    (4) Como bem percebeu Carpeaux (1999), em Poesia e Ideologia, a resistncia poesia no um problema intelectual. um problema, precisamente, de Background e o Background pr-intelectual, a condio de possibilidade de toda intelectualidade. O Background no pode ser ensinado como um conjunto de proposies ou princpios. Ele ser enriquecido gradualmente e naturalmente mediante o contato com a tradio. Por isso no creio que sejam prudentes os ataques recentes ao ensino do chamado cnone. Primeiramente porque nunca houve um cnone o que h precisamente aquilo que Eliot (1932) descreveu como um presente que sempre modifica o passado. Segundo, porque essa tradio, que a tradio ocidental, uma tradio extremante crtica, que, em vez de afundar o indivduo nos preconceitos herdados da situao histrica e geogrfica

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    em que ele nasceu, permite-lhe transcend-las, fazendo com que ele entre em contato com a humanidade como um todo. Searle (1996) comenta:

    No conheo nenhuma tradio intelectual que seja to ferozmente autocrtica quanto a tradio ocidental. (...) Essa a tradio do comentador intelectual extremamente crtico que ataca as crendices, as inadequaes, as inconsistncias e as hipocrisias da comunidade que o circunda. (SEARLE, 1996, p. 92).

    A tradio ocidental comporta indivduos to dspares quanto Plato e Marx, Sto. Toms de Aquino e Nietzsche, Horcio e Mallarm. Pretender ver nessa tradio qualquer tipo de consenso s pode ser justificado por uma profunda ignorncia da tradio, ou, ento, por uma distoro deliberada dos fatos em prol de um projeto poltico.

    Notas

    1 O melhor exemplo que conheo The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology (Northwestern University Press, 1970) de Edmund Husserl. Para uma introduo acessvel, ver Drucker (1999). 2 Uma coletnea clssica de tais equvocos encontra-se em Fashionable Nonsense (BRICMONT; SOKAL, 1998). 3 Sei bem que Paul de Man no um representante do New Criticism, no entanto, ele compartilha, com aqueles que o so, certa tendncia para a leitura internista e uma admirao pela especializao, em detrimento do conhecimento holstico da tradio humanstica e historicista. 4 Gostaria muito de ver uma filosofia da literatura (assim como h hoje uma filosofia da fsica, uma filosofia da psicologia, uma filosofia da biologia) que no tentasse competir com a prpria literatura ou com a crtica literria: que fosse, de fato, um ramo da filosofia da cincia. Quais so os pr-requisitos para um determinado objeto para que ele possa se tornar objeto de uma cincia organizada e unificada? Tenho, hoje, a impresso e no sei exatamente como express-la, ainda assim, tentarei faz-lo, em termos, mais adiante de que o objeto literrio no cumpre com essas exigncias, e que uma cincia da literatura totalmente autnoma, independente de uma sociologia, de uma histria, de uma psicologia, de uma economia e de uma lingustica impossvel. No h literatura se subtrairmos todos esses aspectos ao passo que os objetos estudados pela fsica e a biologia, por exemplo, existiriam independentemente de tudo isso. Por isso, no sei como constituir a cincia da literatura como um campo autnomo, e no sei como estudar cientificamente a literatura seno mesclando, mais ou menos ecleticamente, esses aspectos. Esse, como todo ecletismo, um problema, e definitivamente afasta os cultores da literatura daquele ideal de certeza prometido aos estudiosos da natureza. Outro ponto que, em geral, pensamos uma cincia no somente como uma descrio de fenmenos, mas como uma explicao de fenmenos. Parece-me plausvel constituir um modelo de descrio de obras literrias que seja independente de outras cincias, contudo, quanto explicao, tanto do surgimento quanto dos efeitos das

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    obras literrias, impossvel no invocar a a sociologia e a psicologia, por exemplo, porque a explicao envolve a atribuio de causas. um pressuposto de toda cincia natural, ademais, que toda explicao por causas mostra no somente que um fenmeno poderia acontecer, e sim que, dadas tais e tais condies, tal fenmeno teria necessariamente de acontecer. O determinismo palavra que causa arrepios queles que, como Northrop Frye, desejam uma cincia da literatura parece ser um dos pressupostos de toda cincia, nas quais ele chamado de princpio da razo suficiente. Se as causas citadas no so suficientes para produzir tal efeito, no se explicou o fenmeno. Explicar uma obra literria envolveria, portanto, elencar as causas suficientes para produzi-la. No acho que seja de forma alguma polmico que uma tal tarefa praticamente inexequvel e, todavia, algo que parece ser exigido por uma cincia da literatura, ao menos se tomarmos o termo cincia em seu sentido usual, e no apelarmos para uma redefinio que tornaria todo este debate vazio. 5 Coisa que, contraditoriamente, um dos mais competentes defensores da cincia da literatura, Northrop Frye, j percebera: *The critic+ may want to know something of the natural sciences, but he need waste no time in emulating their methods (FRYE, 1990, p. 19). O que Frye no percebeu foi a radicalidade a que tal considerao deveria conduzi-lo, isto , que o crtico no deveria emular as cincias naturais de forma alguma, nem mesmo querendo fazer da sua prpria atividade uma cincia no mesmo sentido. 6 claro que estou dando uma interpretao demasiadamente radical para a falcia da inteno, e que possvel formular verses mais fracas que no estejam sujeitas objeo que eu estou elencando. Suspeito, alis, que boa parte dos crticos jamais tenha pensado exatamente em que sentido ilegtimo falar das intenes do autor, obscurecendo a distino entre o sentido em que , no s legtimo, mas necessrio, e aquele em que no necessrio e at mesmo ilegtimo. Quando a finalidade construir uma leitura esteticamente rica e criativa da obra, no h porque se manter subjugado interpretao que o prprio autor conferiu. Neste sentido, a sua interpretao to vlida quanto qualquer outra, porque o que se tenciona a estabelecer relaes hipertexuais, propor chaves de leituras, em suma, ir alm do mero sentido literal das frases do texto, inscrevendo-o no quadro mais geral da cultura de onde ele emergiu. Contudo, ainda quando fazemos isso, precisamos pressupor que o autor produziu sua obra intencionalmente, que no se trata, por exemplo, de um conjunto de marcas fisicamente indistinguvel de uma obra literria produzidas pelo martelar de teclas aleatrio de seu macaco de estimao. Sem essa suposio, no conseguimos desvendar nem o sentido literal das frases de um poema. Para resumir: a invocao da inteno do autor enquanto princpio esttico ou crtico desnecessria e desaconselhvel; a invocao da inteno do autor enquanto princpio ontolgico para determinar se algo ou no uma obra necessria e indispensvel. Creio que isso seja bastante bvio, mas algo continuamente confundido. 7 Esta, e todas as demais tradues do ingls do texto, foram feitas por ns. 8 Eu mesmo, em Varaschin (2013), senti-me tentado a adotar tal posio fundacionalista isto , assumindo a ideia de que preciso dar um fundamento ontolgico seguro ao estudo da literatura para torn-lo cientfico. Creio, hoje, depois de outras reflexes, que tal fundamentao possa ser feita para outras cincias, como a biologia e a fsica, embora no pelos meios fenomenolgicos que ento sugerira, mas sim por mtodos objetivos que surgem na prpria atividade cientfica. A questo dos critrios de identidade de um objeto (o que faz um objeto do tipo x ser um objeto do tipo x) est, na verdade, desligada da questo dos critrios que ns usamos, no dia-a-dia, para identificar um determinado objeto. Enquanto a primeira questo objetiva, e s atinge uma resoluo atravs da investigao da realidade (descobre-se empiricamente que a gua idntica a H2O, por exemplo), a segunda no tem uma resposta precisa, e geralmente frouxa e indeterminada (identificamos a gua por ela ser lquida, ou por ser o tipo de lquido que cai do cu quando chove, que corre pelos rios, que

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    vem dentro de determinadas garrafas, etc.). O segundo tipo de critrio, que o critrio fenomenolgico, nunca ser capaz de fornecer condies necessrias e suficientes para determinar a identidade de um objeto nunca nos dar a essncia que promete. E s atravs desse critrio que temos condies de inquirir sobre a literariedade da literatura, j que impossvel uma pesquisa emprica nesse caso, porque os fatos literrios no so, como se viu, fatos brutos. precisamente por isso que tais buscas pela literariedade nunca acabam em nenhum resultado satisfatrio, e sempre frustrem suas prprias condies de adequao explicar por que chamamos tais e tais obras de literrias e no outras -, isto , sempre contradizem a prpria realidade que pretendem explicar em prol de um modelo abstrato que encontrado no meio da pesquisa fenomenolgica. claro que reconhecemos, fenomenologicamente (imediatamente, por experincia, etc.), um dado texto como literrio, e h algo que est subentendido nesse reconhecimento, conforme eu disse nesse meu ensaio anterior. Mas no se trata de nada determinado ao ponto de constituir uma essncia (condies de identidade, propriedades que esto presentes em todos os mundos possveis, etc.), e sim apenas um conglomerado instvel de noes. Talvez haja alguns prottipos, no sentido de Rosch (1973), que nos guiem na categorizao de objetos enquanto literrios (sabemos, por exemplo, que Homero, Shakespeare e Dante so literatura so prottipos de literatura , mas no temos tanta certeza sobre Sherlock Holmes ou Harry Potter no sabemos se esto prximos o bastante daqueles para serem chamados de literatura, da tambm a importncia da tradio). Esses prottipos nos auxiliam na categorizao, na medida em que permitem organizar os objetos segundo uma escala de semelhana em relao a alguns tipos centrais, prototpicos, mas essa semelhana no pode ser formulada em termos de condies necessrias e suficientes, e sim por aquilo que o segundo Wittgenstein chamou de semelhana de famlia. O fato que o predicado literrio um predicado vago, e, enquanto tal, no tem condies de aplicabilidade precisas. Sua aplicao est sujeita a todo um rol de fatores caticos e inabarcveis (histricos, econmicos, estticos, lingusticos, etc.). Fica aqui registrado, pois, meu abandono fenomenologia enquanto mtodo para descobrir essncias. O mtodo para descobrir essncias o mtodo cientfico, tal qual foi formulado de Aristteles a Popper. Creio que essas consideraes estejam um pouco confusas e sejam demasiado sumrias e cabe desenvolv-las em um estudo futuro. 9 Nas palavras de Northrop Frye: The axioms and postulates of criticism (...) have to grow out of the art it deals with. () If criticism exists, it must be an examination of literature in terms of a conceptual framework derivable from an inductive survey of the literary field. (FRYE, 1990, p. 6-7) O que estou questionando, particularmente, aqui, a ideia mesmo de que possa haver axiomas e postulados da crtica. Tais termos, cuja origem remonta geometria clssica, no so utilizados nem nas cincias naturais atuais. duvidoso que haja axiomas, postulados e princpios mesmo na biologia. E, ainda assim, Frye na sua polemical introduction toma como certo talvez devido ao seu objetivismo ingnuo, decorrente de uma epistemologia tacanha que deve haver isso para um campo to catico e impreciso quanto crtica literria. Que esses supostos axiomas possam ser extrados de uma pesquisa emprica do campo literrio ainda mais duvidoso. Primeiro porque axiomas so proposies que no requerem prova (nem indutiva nem dedutiva), segundo, e mais importante, porque o que est em questo justamente a existncia de um campo literrio que possa ser reconhecido autonomamente, independentemente de condies histricas, polticas, sociolgicas, psicolgicas, etc. Frye reconhece isso quando diz que a crtica cannot be a systematic study unless there is a quality in literature which enables it to be so (FRYE, 1990, p. 17). 10 Que corresponde, grosso modo, quilo que Husserl (1970) censurou em Galileu como o pecado original da cincia moderna, que caracteriza seu objetivismo ingnuo sob o rtulo de hiptese geral da indutividade universal, que, contudo, no era compreendida por Galileu (e tambm no o por todos aqueles que hoje pretendem ser cientficos) como uma hiptese,

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    pois desse modo teria ficado claro desde o incio que ela no pode ser provada de maneira alguma. Essa hiptese supe que todos os eventos podem ser abarcados por leis progressivamente mais gerais e exatas, passveis de descrio e estudo sistemtico. Munido dela, o cientista v no mundo um sistema de tipos que instanciam leis (HUSSERL, 1970, p. 38 39). isso que algum como Frye d como pressuposto: que existe algo chamado literatura que passvel de um estudo sistemtico, que lhe prescreva princpios, axiomas e postulados. S que isso ir muito alm dos fenmenos em si mesmos, e projetar sobre eles uma idealizao (injustificada, neste caso). 11 Isto , como bem sabemos, a literatura no se identifica com o que poderamos chamar de fico se bem que a fico mesma tenha graus variados de comprometimento com a realidade. 12 No parece haver, na ideia de representao, a mesma implicao determinista que h na de reflexo. Tambm no parece ser to hermtica quanto a concepo adorniana de mediao. 13 E isto, diz Eliot, vale para cada obra da tradio, ou seja, no se trata de uma canonizao do passado, sempre autorizado censurar e ditar regras para o presente: o presente, na medida em que modifica a tradio, modifica nossa avaliao das prprias obras passadas. No h um passado esttico, como uma rgua, a medir a qualidade do atual: h um espao sempre vivo de contemporneos que dialogam entre si, de onde emergem as valoraes e as atribuies de sentido. Cabe ao crtico familiarizar-se com este espao e evidenci-lo para os leitores. 14 Trilling sugere, alm disso, que esse fato permaneceu obscuro para os proponentes do New Criticism pelo fato de eles exercitarem seu mtodo quase que exclusivamente sobre a poesia lrica, um gnero no qual o elemento histrico propositalmente atenuado embora no totalmente ausente. As inconvenincias de uma anlise puramente intrnseca so menos patentes em um poema deste tipo do que em um romance, por exemplo.

    Referncias

    AGAMBEN, Giorgio. O que o Contemporneo? e outros ensaios. Chapec: Argos, 2009. AUERBACH, Erich. Ensaios de Literatura Ocidental. So Paulo: Editora 34, 2007. BRICMONT, Jean; SOKAL, Alan. Fashionable Nonsense. New York: Picador, 1998. CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios Reunidos, 1942-1978, v. 1. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora e Topbooks, editora, 1999. COUTINHO, Afrnio. Da Crtica e da Nova Crtica. Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira, 1957. DANTO, Arthur. O Mundo da Arte. Artefilosofia, Ouro Preto, v. I, n. 1, p. 13-25, jul. 2006. DE MAN, Paul. The Resistance to Theory. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2002. DRUCKER, Cludia. Husserl, Heidegger e a Superao do Naturalismo. Philsophos, Goinia, v. IV, n. 1, p. 3-23, 1999. ELIOT, T.S. Selected Essays. London: Faber and Faber Ltd., 1932.

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    Para citar este artigo

    VARASCHIN, Giuseppe. Um acerto de contas com a cincia da literatura. Miguilim Revista Eletrnica do Netlli, Crato, v. 3, n. 1, p. 59-72, jan.-abr. 2014.

    O autor

    Giuseppe Varaschin estudante de oitava fase do curso de Letras Portugus na Universidade Federal de Santa Catarina. Tem interesse especialmente nas reas de Filosofia da Linguagem, Pragmtica e Teoria Literria.