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692 JUDICIÁRIO, HISTÓRIA E ARQUIVOLOGIA: GESTÃO DE ARQUIVOS JUDICIAIS COMO FONTES HISTORIOGRÁFICAS ALEXANDRE VEIGA Coordenador do Memorial da Justiça do Trabalho da 4ª região [email protected] Resumo: O presente artigo trata das políticas de gestão documental no Poder Judiciário, considerando as modificações na percepção da importância desse poder, e por conseqüência dos documentos por ele produzidos. Desenvolve as questões relacionadas ao valor jurídico-administrativo e histórico desses documentos, discutindo sua importância em função das possibilidades de pesquisa nos diversos campos do conhecimento. Palavras-chave: gestão arquivística; arquivos judiciais; valor histórico. Nos últimos anos, as questões relacionadas à gestão documental, no Poder Judiciário, vêm tomando proporções contundentes, acionando significativos debates relacionados aos acervos das instituições judiciais, cujos volumes alcançam proporções gigantescas, demandando cada vez mais recursos para sua administração. Ainda que de modo incipiente, longe das necessidades prementes que a área de arquivo exige, observa- se um significativo empenho institucional em torno dessa questão, por força da urgência em encontrar uma solução duradoura para o problema do gerenciamento documental dos registros das atividades judiciais. De modo geral, a questão se coloca no seguinte dilema: o volume de documentos é efetivamente significativo, sendo que, em sua maioria, tratam de litígios já resolvidos, transformando-se, portanto, em documentação de caráter secundário, na concepção arquivística. Com isso tornam-se, para a instituição, um incômodo conjunto de papéis, cuja serventia não é mais considerada, posto que esgotada sua necessidade institucional. No entanto, como são documentos públicos, há certa restrição em se adotar uma política de destruição expressiva, pois sempre se corre o risco de produzir resultados negativos a um indivíduo ou a um grupo de pessoas. Num outro aspecto, mais contundente, relacionado ao interesse social, tais documentos permanecem plenamente relevantes, tornando-se objeto de análise por áreas do conhecimento que os utilizam para sua produção intelectual, notadamente no campo da história. Nesse contexto, estabelecem-se as disputas pela manutenção de tais acervos, à revelia da vontade de grande parte dos gestores, cuja premissa de trabalho pauta-se, quase que exclusivamente, pela exigência de redução de custos. Para esses, desconectados de

692 - XI Encontro Estadual de História – ANPUH-RS · Direito, a Sociologia, a Ciência Política e a Antropologia, entre outros campos do saber. Só para citar um exemplo, basta

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JUDICIÁRIO, HISTÓRIA E ARQUIVOLOGIA: GESTãO DE ARQUIVOS JUDICIAIS COmO fOnTES HISTORIOGRÁfICAS

AlexAndre VeigA

Coordenador do Memorial da Justiça do Trabalho da 4ª regiã[email protected]

Resumo: O presente artigo trata das políticas de gestão documental no Poder Judiciário, considerando as modificações na percepção da importância desse poder, e por conseqüência dos documentos por ele produzidos. Desenvolve as questões relacionadas ao valor jurídico-administrativo e histórico desses documentos, discutindo sua importância em função das possibilidades de pesquisa nos diversos campos do conhecimento.

Palavras-chave: gestão arquivística; arquivos judiciais; valor histórico.

Nos últimos anos, as questões relacionadas à gestão documental, no Poder Judiciário, vêm tomando proporções contundentes, acionando significativos debates relacionados aos acervos das instituições judiciais, cujos volumes alcançam proporções gigantescas, demandando cada vez mais recursos para sua administração. Ainda que de modo incipiente, longe das necessidades prementes que a área de arquivo exige, observa-se um significativo empenho institucional em torno dessa questão, por força da urgência em encontrar uma solução duradoura para o problema do gerenciamento documental dos registros das atividades judiciais.

De modo geral, a questão se coloca no seguinte dilema: o volume de documentos é efetivamente significativo, sendo que, em sua maioria, tratam de litígios já resolvidos, transformando-se, portanto, em documentação de caráter secundário, na concepção arquivística. Com isso tornam-se, para a instituição, um incômodo conjunto de papéis, cuja serventia não é mais considerada, posto que esgotada sua necessidade institucional. No entanto, como são documentos públicos, há certa restrição em se adotar uma política de destruição expressiva, pois sempre se corre o risco de produzir resultados negativos a um indivíduo ou a um grupo de pessoas. Num outro aspecto, mais contundente, relacionado ao interesse social, tais documentos permanecem plenamente relevantes, tornando-se objeto de análise por áreas do conhecimento que os utilizam para sua produção intelectual, notadamente no campo da história.

Nesse contexto, estabelecem-se as disputas pela manutenção de tais acervos, à revelia da vontade de grande parte dos gestores, cuja premissa de trabalho pauta-se, quase que exclusivamente, pela exigência de redução de custos. Para esses, desconectados de

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qualquer compreensão abstrata do problema, o que importa é que tais documentos já se tornaram obsoletos, sendo, portanto, passíveis de eliminação, o que permitira a realocação dos valores dispendidos em seu gerenciamento, para ações efetivamente importantes, do ponto de vista da atividade institucional. Em função dessa disputa, há um nítido tensionamento entre tais grupos – aqueles que defendem a manutenção desses acervos para seu uso científico contra os que pretendem reduzir os gastos com essa tarefa – em que se coloca a necessidade de atuação de profissionais da área de gestão de acervos, os quais precisam mediar visões de mundo que se chocam.

Para realizar essa análise, pretendemos descrever sucintamente a alteração da percepção do Judiciário no meio social, a partir de um novo alcance de suas atividades. Também se pretende discorrer sobre a dinâmica de produção informacional, em sua configuração social, bem como analisar a compreensão do fenômeno histórico sob uma perspectiva teórica. Por último, será apresentada uma proposta de configuração desses condicionantes, buscando contribuir com alternativas de solução para o problema.

O PODER JUDICIÁRIO: PRESEnçA E ImPORTânCIA SOCIAL

A estruturação do Estado Moderno se configurou, desde muito, (BONAVIDES, p. 136) pela divisão de tarefas entre três esferas de poder: o Executivo, responsável por administrar as atividades governamentais; o Legislativo, cuja função é elaborar o corpo legal a ser observado tanto pelo poder público quanto pelos cidadãos de um determinado espaço; e o Judiciário, que tem como tarefa mediar os conflitos, considerando-os em função do corpo jurídico e das regras constitucionais definidas pelo Legislativo. Segundo Boaventura Santos (2005, p. 5), “Os tribunais são um dos pilares do Estado Constitucional moderno, um órgão de soberania de par com o Poder Legislativo e o Poder Executivo”.

Mas dentre estes poderes, o Judiciário sempre foi entendido como tendo uma condição mais técnica, no sentido de que não pode ser ocupado por “qualquer cidadão” – como no caso do Executivo e do Legislativo – pois seu espaço seria o domínio de operadores afeitos a um conhecimento específico, cuja capacitação decorre de uma preparação especial, via ensino superior. É um poder que, no Brasil, não permite à população escolher seus membros dirigentes através do voto, sendo estes definidos por mecanismos internos, seja para ocupar seus principais cargos, seja para a Presidência dos órgãos que o compõem.1 Essas condições fizeram com que o Judiciário fosse identificado, seguidamente, como uma instituição apartada do convívio social. Segundo SOUZA (1999, p.9),

1 Como alternativa a esse modelo, cabe lembrar que, em alguns estados norte-americanos, o juiz é eleito por voto popular, o que garante maior proximidade do sistema com a população.

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O Brasil não cultua o Judiciário. O povo não aprendeu a amá-lo. As elites desdenham-no. Os políticos o desapreciam. Os demais Poderes temem a sua afirmação, dada a competência constitucional de controlar os seus atos. Os meios de comunicação o desvirtuam, por desconhecê-lo. O Poder Judiciário continua “esse desconhecido”. Muitas vezes de seus próprios integrantes.

Sua estrutura interna e funcionamento são tidos como distantes da dinâmica da sociedade, algo como uma esfera de poder que funciona de modo diverso aos interesses sociais, muitas vezes em dissonância com estes – haja vista as várias oportunidades em que as decisões judiciais contrariam o senso comum – e, por força disso, tornam-se discutíveis. Isso porque possui lógica própria, que muitas vezes contraria o chamado senso comum, produzindo resultados incompreensíveis para a sociedade.

Tal realidade, felizmente, vem se modificando ao longo dos anos, a partir da compreensão, pelo próprio Judiciário, de que deveria buscar maior relevância nas questões sociais, não apenas nos momentos em que é chamado legalmente a fazê-lo, mas também em outras oportunidades. Isso também ocorreu porque, dadas as fragilidades do modelo político brasileiro, diversas lacunas na condução das políticas públicas, deixadas pelo Executivo e pelo Legislativo, passaram a ser resolvidas através de decisões judiciais, que acabam tendo força de lei.

Com isso, cresceu o protagonismo político e social do Judiciário, fazendo com que sua atividade, efetivamente significativa, tomasse nova dimensão, ainda mais contundente. Sob esse aspecto, o trabalho desenvolvido por seus membros mostrou-se ainda mais importante como fonte de informação sobre nossa sociedade, somando-se a todos os elementos já identificáveis nos documentos de um processo judicial.

Essas circunstâncias tornam ainda mais relevantes os documentos judiciais recolhidos aos arquivos. Sendo esses o resultado dos episódios relacionados à ação judicial, transformam-se em elementos centrais para a compreensão das manifestações das personagens que envolvem, seja por seus relatos, seja pelos episódios apresentados. Através dos documentos coligidos nos autos, centenas de histórias de vida são identificáveis e fenômenos sociais podem ser melhor investigados, o que transforma tais registros em peças de valor insubstituível para a produção do conhecimento em áreas como a História, o Direito, a Sociologia, a Ciência Política e a Antropologia, entre outros campos do saber.

Só para citar um exemplo, basta lembrar a já clássica obra “Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque”, do renomado historiador brasileiro Sidney Chalhoub, na qual o autor investigou aspectos do dia-a-dia da classe trabalhadora carioca nas primeiras décadas do século XX, abordando as estratégias de sobrevivência, os conflitos étnicos e as relações amorosas, e utilizando-se, como base documental, 140 processos criminais aparentemente sem importância. Sua metodologia foi a seguinte:

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[...] tentar compreender como se produzem e se explicam as diferentes versões que os diversos agentes sociais envolvidos apresentam para cada caso. As diferentes versões produzidas são vistas neste contexto como símbolos ou interpretações cujos significados cabe desvendar (CHALHOUB, 1986, p. 22-3).

Nessa perspectiva, todas as vozes – réus, vítimas, testemunhas, magistrados, advogados, promotores – presentes no processo são igualmente relevantes, pois são elas que permitem examinar as “diferentes versões” enunciadas por Chalhoub. Em termos de gestão documental, isso revela a importância de se preservar os processos de modo a garantir o pleno acesso às informações ali coligidas.

GESTãO DOCUmEnTAL E A QUESTãO DO “VALOR HISTÓRICO”

Para evidenciar esse acesso, contudo, importa saber o que se quer expressar ao definir o objeto de trabalho “processo judicial”. Para isso, é necessário também discutir a evolução do conceito de conhecimento histórico. Como vários outros campos do saber, o campo da história tem experimentado robusta evolução ao longo dos anos, transformando-se efetivamente num espaço de trabalho com regras claras de ação, constituído por profissionais dedicados ao seu metier, os quais tem se qualificado de modo sistemático. Nesse cenário, perdeu vez o historiador diletante, que tinha na produção historiográfica uma atividade secundária, realizada sob o signo da abnegação e da boa vontade. O conhecimento histórico, já desde meados do século passado, é um espaço de atuação que se valoriza na medida em que cresce sua importância na sociedade.

Essa realidade, porém, ainda não foi capaz de fazer valer os direitos dos profissionais da área. Por razões que não são passíveis de análise no escopo desse artigo, ainda há uma percepção equivocada do que significa “fazer história”, bem como sobre a qualidade do profissional dedicado a esta tarefa. Na maioria das vezes, entende-se como historiador apenas o sujeito responsável, no quadro das atividades docentes, por ministrar conteúdos relacionados ao estudo do passado. Seja este profissional um pesquisador do campo historiográfico, ou aquele encarregado pela divulgação desse conhecimento em sala de aula, o senso comum atribui à história um valor de face, necessária apenas como mais uma das disciplinas que devem ser discutidas, no âmbito escolar, sem relacioná-las a seu uso efetivo. A história não teria, nesta interpretação, um valor prático, portanto seu valor social não é manifestamente considerado, como o são outras disciplinas tidas como mais relevantes, tais como matemática e português.

Neste contexto, as instituições que possuem conexões com o fazer historiográfico comungam do mesmo drama. A perspectiva de se inverter recursos, por vezes vultosos, para custear acervos que são fontes imprescindíveis para o conhecimento histórico não só recebe forte recusa, por parte dos gestores – públicos ou privados – como também

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não encontra, na população em geral, apoio muito significativo. Claro que há sempre as exceções de praxe mas, sem querer arriscar uma afirmação categórica, é possível concordar que, colocadas como opções excludentes, a destinação de recursos para a manutenção de documentos antigos perderia para diversas outras necessidades de investimentos, sempre vistas como “mais importantes”.

Não é difícil entender as razões para isso, ao refletirmos sobre as características da nossa sociedade, cujas circunstâncias mais profundas estão gravadas sob o signo do utilitarismo imediatista da sociedade de consumo. Nessa visão, o trabalho científico, de modo geral, só possui valor quando apresenta retornos palpáveis, dignos de serem divulgados como o produto de um determinado recurso investido. Com essa avaliação, tornam-se secundários valores dispendidos em áreas como a educação e a cultura, cujo resultado prático ou não pode ser medido, ou somente surge depois de anos de continuidade.

Em função disso, as políticas de administração de acervos encontram-se embretadas nas restrições em se obter financiamento para manter, ainda que minimamente, as condições de preservação e acesso aos documentos produzidos pelas administrações. Em que pese tais registros terem importância vital para a compreensão do percurso jurídico-administrativo das instituições, ainda assim sua existência está sempre mercê de disponibilidades financeiras, pois sempre se compreende que os valores dispendidos com tais acervos poderiam ter melhor retorno caso utilizados para outros fins, mais “meritórios”.

É nesta dicotomia estruturante que se vê envolvida a prática da gestão documental. Afinal, como definir e estabelecer critérios que permitam obter recursos para gerenciar massas documentais de grandes proporções, constrangidos pela interpretação de valor acima descrita? E de que modo se pode estabelecer o valor histórico de um documento, considerando-se as novas perspectivas historiográficas que se descortinam atualmente? Para isso, é relevante discorrer, ainda que de modo resumido, sobre essa controversa pergunta: o que é “valor histórico”?

Analisemos, de modo sucinto, o que significa a expressão. O conhecimento histórico só se estabeleceu como disciplina específica e com pretensões científicas no final do século XIX, acompanhando o processo de surgimento e consolidação dos Estados Nacionais. Para esse modelo de história, o valor documental era atribuído se pudesse corroborar as análises em torno dos acontecimentos envolvendo os grandes personagens, responsáveis pela construção desse modelo de sociedade, consubstanciada nos princípios da nacionalidade.

Nesse contexto, cabia aos historiadores “resgatarem”, daquela documentação recolhida nos acervos, os subsídios que deveriam confirmar as assertivas sobre o processo

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histórico, efetuado como mecanismo de construção do espaço territorial nacional, bem como suas estruturas e instituições. Para isso, seria necessário realizar a chamada crítica dos documentos, com a intenção de identificar a autenticidade dos registros emitidos pelo Estado, os documentos “oficiais”, responsáveis por comprovar esses atos dos governantes e, por consequência, do Estado, e que justificavam a escolha de determinados atos, considerados dignos de relato pelas narrativas históricas.

Esse modelo de construção histórica não considerava a existência de outros atores que não aqueles de atuação destacada: políticos, reis, militares. Não eram dignos de nota, por esse modelo, as relações sociais quotidianas, os fatos envolvendo o homem comum – exceto quando este interferia, de modo ocasional, nos grandes eventos da sociedade. O que tais narrativas procuravam descrever eram os acontecimentos tido como consagrados, em função dos “grandes personagens” envolvidos, ou aqueles “fatos marcantes” da história, todos ligados às elites políticas, econômicas, culturais, militares e intelectuais, os quais seriam os responsáveis pelo fenômeno chamado “História”. É com essa perspectiva que o grande historiador francês Fustel de Coulanges, representante dessa perspectiva tradicional, afirmava:

A sua única habilidade [do historiador] consiste em tirar dos documentos tudo o que eles contêm e em não lhes acrescentar nada do que eles não contêm. O melhor historiador é aquele que se mantém o mais próximo possível dos documentos” (apud LE GOFF, 1990, p. 536).

Esse modelo de produção historiográfica teve sua lógica alterada a partir do final da década de 1920, quando essa interpretação dos fenômenos históricos passou a ser questionada por sua configuração limitada e elitista. A chamada Escola dos Annales, surgida na França no final dos anos 20, defendia uma história econômica e social que fosse além dos “grandes eventos” e dos “grandes homens”, e buscasse captar os movimentos coletivos, trazendo as ações humanas para o centro da análise. Essa leitura produziu uma nova percepção do documento, que deixava de ter relevância ou valor histórico em si, obtendo essa condição a partir das questões definidas pelo historiador.

Com isso, efetivou-se o que ficou conhecido como a revolução documental, que preconizava a ideia de que todos os objetos, ações e eventos são históricos, portanto qualquer vestígio do passado pode servir de fonte para a leitura da história, já que permite enxergar os fenômenos humanos em sua totalidade, sob todas as perspectivas possíveis. Para Febvre,

Uma grande parte – e, sem dúvida, a mais apaixonante – de nosso trabalho de historiador não consistirá no esforço constante para que as coisas silenciosas se tornem expressivas, levá-las a exprimir o que elas são incapazes de dizer por si mesmas a respeito dos homens e das sociedades que as produziram e, finalmente, para constituir entre elas essa ampla rede de solidariedade e ajuda mútua que supre a falta do documento escrito?” (apud LE GOFF, 1990, p. 540).

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Esse procedimento passou a considerar a possibilidade de leitura do documento como a própria ação historiográfica, na medida em que deu tratamento idêntico a todos os registros. Assim, também os documentos oficiais passaram a ser vistos com outros olhos, considerando os episódios relacionados às ações dos “grandes homens” na mesma medida dos eventos relacionados à vida quotidiana, às experiências das mulheres, a todos os personagens até então desconsiderados no fazer historiográfico. Nessa mesma concepção, tornou-se importante a chamada história quantitativa ou serial, que busca examinar os movimentos de longa duração na história, como as transformações econômicas e demográficas, considerando para isso técnicas estatísticas. Também passaram a ter importância os aspectos antropológicos, como a atitudes das pessoas diante dos fenômenos sociais (o casamento, a morte etc), entre outras temáticas.

Na sequência dessa nova capacidade de leitura historiográfica, somaram-se aos procedimentos de análise as funcionalidades estruturais decorrentes do uso da tecnologia da informação, e de metodologias de análise quantitativa e qualitativa, que permitem visualizar conjuntos de documentos com máxima amplitude, de modo análogo ao que se faz, há muito tempo, nas ciências sociais. Nesse tipo de pesquisa, é fundamental ter acesso a conjuntos documentais completos, para que se possa construir séries estatísticas confiáveis, a fim de que sejam respondidas perguntas como essas: quais os conflitos mais usuais em determinadas épocas e lugares? Quem cometia determinados delitos de acordo com variáveis como a faixa etária, sexo, condição social, local de residência? Como a Justiça se portou diante de certos crimes em alguns períodos e localidades? Sua postura variou, por exemplo, em função de características específicas dos réus?

Em função desse movimento teórico-procedimental, que fez transcender o valor do documento, de um registro específico para o alcance mais abrangente de quaisquer registros escritos, também os procedimentos de gestão documental tiveram que se adaptar, deixando de identificar os documentos importantes – em função da sua dimensão administrativa – para sua condição como registro social. Tais reflexões também devem ser consideradas quando se pensa a gestão documental no âmbito do Poder Judiciário, pois sua gigantesca produção documental exige uma administração e um processamento qualificados (BELLOTTO, 2004, p. 27), visando sua melhor organização, sob pena de inviabilizar qualquer tarefa que se pretenda efetuar com estes documentos.

Para dar efetividade à essa organização, num acervo, contam os gestores com instrumentos teóricos específicos, elaborados a partir da ação prática sobre os mesmos. São eles o Plano de Classificação e o Quadro de Arranjo, responsáveis pela configuração organizacional do conjunto documental, e a Tabela de Temporalidade – instrumento de referência para a questão da manutenção desses documentos ou sua eliminação – onde se registram os valores administrativos, decorrentes de sua trajetória cronológica, sendo

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estes atribuídos a cada documento e/ou conjunto de documentos, os chamados dossiês.

GESTãO DOCUmEnTAL E ARQUIVOS JUDICIAIS Em nOVA PERSPECTIVA

Essa condição de produtores de informação, relacionada aos acervos documentais, precisa ser matizada pela identificação do que se pode denominar como a qualidade informacional de tais registros. Para isso, é necessário entender um pouco mais a formação desse conjunto, pois assim é possível compreender como se dá essa qualificação.

De modo geral, um processo recebe os documentos para estabelecer os seguintes encaminhamentos: o relato do dano (petição inicial), a manifestação da parte que está sendo acusada, as provas da argumentação de ambas e a decisão judicial. Em termos bastante simples, é essa estrutura que vai produzir o resultado final. Posto dessa forma, pode parecer que tais dossiês não possuem nenhum outro valor que não aquele para o qual se prestam neste contexto, resumindo-se a um conjunto de registros cuja única perspectiva é encaminhar o problema, permitindo ao magistrado compreender o fato e deliberar sobre eles, emitindo uma sentença que resolva o litígio.

Tal leitura se desfaz com facilidade, pois, em se tratando de questões oriundas de uma sociedade complexa, os elementos do processo assumem grande relevância, contemplando aspectos que provavelmente não estejam contidos em nenhum outro tipo de registro. Seja nas declarações iniciais, seja nos documentos utilizados como prova, ou mesmo durante a elaboração do texto de sentença, podemos identificar temas de interesse para o conhecimento social. Esses pontos somente podem ser analisados na medida em que se fizer uma leitura adequada dos documentos. Nesse sentido, todos os elementos constantes no processo podem ser considerados importantes, possuindo alto valor social e profunda qualidade informacional, nos termos que aqui está sendo colocado.

Tal é a questão que precisa ser perfeitamente compreendida por todos aqueles envolvidos no tema. A importância histórica de um documento não pode ser definida somente através de critérios dados a priori, sendo extremamente temerário conceber esse conjunto de critérios sem uma análise qualificada dos registros do processo. Há diversos exemplos que demonstram a importância de documentos, analisados de modo isolado do conjunto e localizados dentro dos autos, cuja avaliação, feita em função da natureza do processo, considerando todo o processo, apontava para o descarte imediato.

Esta questão está relacionada ao procedimento de elaboração dos instrumentos de avaliação, principalmente a tabela de temporalidade. Tal ferramenta é elaborada de modo a conformar um determinado sentido ao processo, estabelecendo um regramento que desconsidera questões mais específicas, como é o caso dos autos judiciais. Portanto, é fundamental propor algumas reflexões sobre esse instrumento e tecer considerações sobre sua configuração mas, antes disso, também devemos discutir os termos do que se

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denomina gestão documental, em função do chamado valor histórico dos documentos de arquivo.

A definição dos critérios norteadores da destinação final dos documentos não é um dos temas melhor desenvolvidos sob a perspectiva teórica na literatura da área arquivística. Em função disso, é fundamental compreender que a tabela de temporalidade, instrumento de excelência do fazer arquivístico, precisa ser elaborada de modo criterioso, considerando-se todas as variáveis possíveis, pois é através dos procedimentos nela registrados que o arquivista vai conduzir as ações de gestão documental. Nesse sentido, apesar (e por causa) de seu caráter técnico, a elaboração da tabela de temporalidade deve levar em conta as reflexões e discussões mais atuais referentes ao valor histórico dos acervos.

Estabelecer os critérios para elaborar a tabela é das tarefas mais complexas com que o profissional da área de arquivo se defronta. Essa atividade exige a ação de um grupo de trabalho específico, a chamada Comissão de Avaliação, formada por representantes da instituição e de pessoas externas, que possam contribuir com esse trabalho. Com isso, ganha-se em reflexão teórica e conhecimento técnico, facilitando a identificação dos documentos, seja para a definição de seu valor administrativo, seja para análise como bem cultural. A elaboração desses requisitos, no entanto, não possui indicações teóricas precisas, ficando quase exclusivamente sob a definição dos membros da Comissão. SCHELENBERG (2004) lembra que

De modo geral, a eficácia de um programa de redução de documentos pode ser avaliada de acordo com a correção de suas determinações. Num programa dessa natureza não há substituto para o cuidadoso trabalho de análise. Não há possibilidade de serem inventadas técnicas que reduzam o trabalho de decidir sobre os valores dos documentos a uma operação mecânica. Não há, tampouco, um processo barato e fácil para se descartar documentos, a não ser que se decida pela destruição de tudo o que haja sido criado, jogando-se, por assim dizer, tudo fora. (p. 180)

No que diz respeito ao processo judicial, essa compreensão precisa avançar em dois sentidos bastante importantes. O primeiro diz respeito à necessidade de compreender que a documentação armazenada sob a configuração do processo2 é constituída, na verdade, por documentos diversos, todos portadores de qualidades informacionais diferenciadas, cuja variedade precisa ser discutida na avaliação. Não é possível julgar da mesma forma um documento que registra o andamento do feito (um ofício, por exemplo), cujo objetivo é dar ciência do local em que se encontra o referido processo, com uma petição inicial, ou a manifestação da outra parte, ou então comparar com provas documentais, cuja relevância,

2 �a terminologia arquiv�stica, esse conjunto de documentos também é con�ecido como dos-�a terminologia arquiv�stica, esse conjunto de documentos também é con�ecido como dos-siê.

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em termos da citada qualidade informacional, é absolutamente diversa.Num outro sentido, não é adequado nem coerente pretender avaliar um processo

por força de sua importância jurídico-administrativa, pressupondo-se com isso que daí decorre seu valor histórico. O processo de avaliação3, embora tenha um caráter técnico, no caso do Judiciário precisa ir além. Há causas judiciais que, ensejadas por motivações das mais simples, podem revelar questões fundamentais para a compreensão da sociedade. Não se pode aceitar um processo judicial como mero ordenamento administrativo de fatos, ele possui um significado muito mais amplo. Daí a importância da participação, nas comissões de avaliação, dos profissionais da área da história, familiarizados com os métodos da pesquisa em seu campo e com os debates historiográficos mais relevantes.

Outro aspecto, também crucial, diz respeito à compreensão da avaliação e identificação do conteúdo histórico de um processo (MIRANDA, 2011, p. 6). Como vimos anteriormente, já vão longe os tempos em que se entendia a história como o resultado dos feitos dos grandes vultos, ou então relacionada a episódios significativos – como as grandes batalhas ou momentos cívicos relevantes – sempre do ponto de vista de uma parcela da sociedade. Não que tais aspectos não sejam relevantes, mas eles não podem ser os únicos elementos a serem considerados quando se elabora uma tabela de temporalidade.

Isso aponta para uma nova realidade na tarefa de organizar e estruturar fundos documentais do Poder Judiciário. Todos os elementos acima elencados são imprescindíveis em qualquer programa de gestão que se proponha para as instituições judiciais. Há diversos pressupostos que devem ser levados em conta, não apenas porque tais documentos são diversos entre si, mas porque seu potencial informacional também possui circunstâncias diferenciadas (FARGE, 2009, p. 58).

Essa questão é, também, extremamente relevante do ponto de vista da sociedade. Num momento em que as políticas de transparência estão sendo decisivas, torna-se

3 Segundo SA�TOS, 2008, p. 178, a “avaliação [é] feita a partir de critérios preestabelecidos, definição dos prazos de guarda e destinação (eliminação ou preservação permanente) da docu-mentação arquiv�stica de uma dada instituição; a avaliação demanda con�ecimento do funciona-mento da instituição, sua estrutura administrativa, sua missão, objetivos e atividades geradoras de documentos; contempla a participação do arquivista nas ações da Comissão Permanente de Avaliação de Documentos, na elaboração e na aplicação da tabela de temporalidade, bem como os editais e listas de descarte e eliminação de documentos arquiv�sticos e a sujeição desses ins-trumentos à instituição arquiv�stica na esfera de competência, no caso de órgãos governamen-tais; também abrange a atividade de fiscalização visando evitar a eliminação não autorizada de documentos arquiv�sticos; no âmbito da destinação orientada pela avaliação, abrange a prática de microfilmagem e de digitalização de documentos; nesta função também se inserem estudos para a definição de critérios de seleção de amostragem para séries documentais elimináveis.” Para Bernardes (1998, p. 14), avaliar significa “fundamentalmente [...] identificar valores e definir prazos de guarda para os documentos de arquivo, independentemente de seu suporte ser o papel, o filme, a fita magnética, o disquete, o disco ótico ou qualquer outro. A avaliação deverá ser realizada no momento da produção, paralelamente ao trabalho de classificação, para evitar a acumulação desordenada, segundo critérios temáticos, numéricos ou cronológicos.”

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fundamental repensarmos a questão da avaliação a partir de outras premissas (MIRANDA, 2011, p. 12) que transcendam os aspectos meramente administrativos e jurídicos até então envolvidos. A avaliação de autos judiciais não pode ser realizada sem o pleno conhecimento desses registros, o que implica analisar e compreender melhor tais documentos à luz das modernas concepções de história e memória.

Com essas considerações, chegamos ao ponto fundamental da atividade avaliativa, considerando-se os atuais sistemas de gestão eletrônica de documentos. A partir do uso intensivo de equipamentos de informática no controle e processamento das massas documentais, ficou cada vez mais explícita a necessidade de configurar tais sistemas para absorver a metodologia de trabalho da atividade arquivística.

Esses sistemas, porém, não podem ser meros indutores de ações que possuem a importância acima relatada. Expressando claramente a questão, devemos considerar que a avaliação de autos não pode ser realizada de modo automático, através de registros efetuados por pessoal sem a devida capacitação, e valendo-se de programas de computador restritivos, que não permitem a adequada visualização dos documentos avaliados.

Isso não significa que a avaliação dos processos judiciais, cujo número chega aos milhões, deva ser executada tomando-se um por um desses autos. Tal procedimento tornaria inviável qualquer atividade nos arquivos judiciais. Não pode ser feita, porém, por seu extremo, através de um registro numérico que indique campos tão resumidos quanto a classe e o assunto do processo, pois tal metodologia impede uma identificação apropriada dos documentos, no sentido proposto pelo princípio da informação qualificada.

Portanto, a atual expansão do uso da informática na administração de conjuntos documentais oriundos do Judiciário deve considerar outras variáveis, como, por exemplo, a quantidade de documentos reunidos no processo, a existência de outros suportes, o conteúdo evidenciado nos feitos, ou mesmo a condição do texto produzido como argumentação. Estes itens são meramente exemplificativos, sendo que o mais importante é a participação ativa da equipe na formulação de critérios de avaliação – a Comissão citada acima, que deve, insistimos, prezar pela interdisciplinaridade e pela qualificação de seus membros – para definir, com maior rigor possível, o valor intrínseco dessa documentação.

COnCLUSãO

Os acervos arquivísticos do Poder Judiciário, cuja importância torna-se cada vez mais latente, estão demandando novas perspectivas de ação, tendo em vista sua importância. São documentos de expressivo interesse histórico e social, pois relatam episódios significativos da trajetória de nosssas sociedades, não apenas daqueles

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personagens que sempre estiveram em cena, mas principalmente dos que até há pouco eram menosprezados como objeto de pesquisa.

Essas modificações estruturais, tanto no que diz respeito aos procedimentos historiográficos, como daqueles que demonstram novas concepções de organização documental, precisam passar a ser observadas com mais atenção na concepção das ferramentas que devem promover os documentos do Poder Judiciário. A dimensão desse acervo, para além de seu uso jurídico-administrativo, precisa ser uma meta a ser perseguida pelos gestores desse patrimônio.

A documentação originada das demandas judiciais, que ao longo dos anos estiveram restritas a poucas análises, tem sido demandadas com significativa amplitude, nos tempos mais recentes. Além disso, a própria configuração social do Judiciário vem sendo objeto de alterações importantes, em função do crescimento de seu protagonismo como poder de Estado. E esta mudança de perfil vai se refletir em seus documentos judiciais.

Por força dessas circunstâncias, é necessário que o Judiciário compreenda o expressivo significado social de suas ações, que transbordam suas questões específicas, decorrentes de suas atividades cotidianas. Os documentos judiciais precisam ter a relevância de patrimônio social, o que significa incorporar, na análise desses documentos, outras lógicas de avaliação, organização e acesso, permitindo à sociedade, de modo geral, sua ampla vinculação.

O Judiciário brasileiro está se modificando. A chegada de novos magistrados, com outra visão de sua atividade, junto com a transformação da sociedade brasileira como um todo, na esteira da consolidação de nosso sistema democrático, exige maior diálogo da Justiça com os diferentes grupos sociais. De um poder de Estado, o Judiciário deve se aceitar como um poder que emana do povo, pois é nessa condição que se configura sua existência. E a história desse povo está contida em seus arquivos, portanto nada mais justo que buscar manter essa história para as próximas gerações.

REfERênCIAS

BELLOTTO, Heloisa Liberalli. Arquivos Permanentes: Tratamento documental. 2ª ed. Ver. E ampliada. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10. Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003.

CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. São Paulo: Brasiliense, 1986.

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