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LÉA BEATRIZ TEIXEIRA SOARES

TERAPIA OCUPACIONA

LLógica do Capital ou do

Trabalho?

Retrospectiva histórica da profissão no Estado brasileiro de 1950 a 1980

EDITORA HUCITECSão Paulo, 1991

DEDICO ESTE TRABALHO

À dúvida e resistência de terapeutas ocupacionais que, apesar da alienação de sua prática e do espaço institucional, souberam abrir o debate e aprofundá-lo fora do espaço terapêutico específico.

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À luta dos trabalhadores em assumir a direção da história pelo aprendizado da reflexão e ação sobre os conflitos a serem superados.Àqueles que direta e indiretamente permitiram que este trabalho existisse, em especial à Camila e ao Zenon.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho se originou da crise do papel profissional desempenhado pela terapia ocupacional no Brasil nos anos 80. A fundamentação clínica, advinda da formação técnica e reducionista hegemônica nos cursos de graduação em saúde, não conseguia justificar os fracassos em programas reabilitacionais nem tampouco subsidiar a emergente intervenção em programas educativos e de promoção da saúde.A superação dessa crise, sob nosso ponto de vista, só pode advir do reconhecimento das raízes da atual conjuntura, ou seja, da inserção histórica e social da terapia ocupacional nas políticas sociais brasileiras, que delinearam determinadas práticas institucionais e enfoques terapêuticos. A alienação da categoria a respeito de seu próprio percurso histórico é fruto tanto da limitada literatura nacional (Arruda, 1962; Cerqueira, 1967; Gonçalves, 1964; Lemos, 1985; Silveira, 1976), dos conflitos e ruptura ocorridos nesta trajetória, quanto pelo fato de a constituição histórica existente ser factual, quase

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independente e autônoma do movimento da sociedade e de suas contradições.A literatura na área, primordialmente produzida nos Estados Unidos e Inglaterra (Hopkins, 1983; MacDonald, 1972; Mosey e Rerek, 1979; Reed e Sanderson, 1980; Scullin, 1975), fundamenta a constituição profissional como decorrência dos incapacitados da Primeira e Segunda Guerras Mundiais e do avanço das práticas médicas. Para estes autores não existe a produção social das doenças, o governo é um "mediador neutro" e a clientela não é observada enquanto classe social.Assim, o reconhecimento das tendências e conflitos contemporâneos esteve prejudicado pela ausência de uma construção histórica não fragmentada e globalizante. Pretende-se, com este trabalho, ultrapassar a visão instantânea da realidade para a identificação da inserção da terapia ocupacional com seus múltiplos fatores intervenientes na política de saúde brasileira.No Brasil a terapia ocupacional iniciou sua intervenção nos anos 40 com doentes mentais, e na década seguinte, com incapacitados físicos objetivando a remissão dos sintomas patológicos e a reabilitação social e econômica dessa cliente-la. Para tanto, utilizou-se o trabalho, a recreação e o exercício como meio de desenvolvimento e adaptação do homem à sociedade. A vinculação destas três formas de atividade humana numa abordagem terapêutica em resposta a demandas sociais específicas constituiu historicamente a terapia ocupacional.

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"O termo 'ocupação' tem sido desde muito reconhecido como um requisito para a sobrevivência e, em graus variados, como uma fonte de prazer. O termo 'terapia ocupacional' [...] é [...] o uso do trabalho, exercício e jogo como formas de tratamento" (Hopkins, 1983:1).A terapia ocupacional vem intervir no binômio trabalho- saúde e, sob nosso ponto de vista, assume, enquanto base fundamental, o caráter subjetivo/objetivo do trabalho como realização da capacidade humana e inserção do indivíduo à sua realidade material.Os terapeutas ocupacionais brasileiros, ao se engajarem no mercado de trabalho, têm convivido com a crítica realidade da assistência à saúde1: verbas reduzidas para as medidas preventivas de caráter coletivo e atendimento às populações marginais; a crise de insolvência dos serviços hospitalares e ambulatoriais particulares ou estatais mantidos pela Previdência Social, e a política de subvenção às entidades beneficentes ou particulares voltadas à reabilitação conveniadas ao sistema público.A terapia ocupacional, profissão historicamente ligada à reabilitação de pessoas portadoras de déficit ou incoordenação motora (oriundos de traumatismos, doenças incapacitantes ou degenerativas), problemas psíquicos ou deficiência mental, vive o dia-a-dia das instituições conveniadas ou, em menor escala, os programas públicos ambulatoriais e hospitalares

1 Este trabalho focaliza o período de 1950 a 1980; não inclui, portanto, as modificações advindas como Sistema Único de Saúde.

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de saúde mental, hanseníase e reabilitação profissional. A contradição principal no meio terapêutico ocupacional é a falta de condições de se concretizar o objetivo último da categoria: a autonomia do indivíduo em suas atividades de vida diária e sua absorção ao mundo do trabalho.Das instituições conveniadas, inúmeras entidades beneficentes se mantêm em decorrência do vínculo ao sistema de saúde previsto na Portaria Interministerial 186, de 1978, MEC-MPAS (Ministério da Educação e Cultura e da Previdência e Assistência Social: Brasil, s.d.:754). Esta portaria regulamenta o atendimento a excepcionais e determina os critérios de classificação para a dotação de verbas, de acordo com os recursos humanos e instalações, correspondente a cada tipo de clientela. Assim, no item recursos, o pessoal técnico recebe pontos segundo uma proporção prevista entre o número de clientes e a problemática atendida. A desatualização e fiscalização dos recursos governamentais face à recessão e injunções políticas têm favorecido a insolvência das entidades beneficentes que a enfrentam com campanhas de doação, sócios-contribuintes, promoções especiais, redução do quadro de pessoal, achatamento salarial e "superlotação" do atendimento. Assim a terapia ocupacional realizada na maioria destas entidades focaliza a orientação de professores, o tratamento neurológico e o treinamento de habilidades motoras e perceptivas. O enfoque profissionalizante é raramente abordado por

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requerer maior infra-estrutura, com programa a longo prazo e de natureza mais complexa.Nas clínicas, consultórios ou escolas particulares observa-se, como tendência, a sofisticação de técnicas e recursos, requisitando dos profissionais uma constante modernização. Nestes locais, apesar de a clientela ser de maior poder aquisitivo, aí também os profissionais necessitam atender mais pacientes em seu tempo de serviço ou ampliar a jornada de trabalho para manter seu próprio padrão de consumo e atualização. O trabalho do terapeuta ocupacional nas entidades particulares também se assemelha quanto aos objetivos, e às vezes até quanto à forma, ao planejado nas entidades beneficentes. A distinção se dá quanto às maiores chances de concretização deste programa terapêutico nas instituições particulares.Por sua vez, a população doente mental é atendida, se for previdenciária, em hospitais particulares conveniados, ou, então, em hospitais estatais e, mais recentemente, nos ambulatórios. O sistema de convênio hospitalar do INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social) também prevê um sistema de classificação segundo as instalações e recursos humanos, o RECLAC. Aqui as distorções também ocorrem. Por exemplo, um terapeuta ocupacional para cinqüenta pacientes, numa jornada de vinte horas semanais, vale quarenta pontos, número máximo atingido por esta classificação. Agora, a contratação do profissional não é obrigatória, pois

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"os mesmos quarenta pontos podem ser obtidos em espécie (geladeiras, por exemplo)" (Hahn, 1983:5). Em geral, existe somente um terapeuta ocupacional contratado em um hospital de 250 leitos, cujo trabalho é a ocupação terapêutica de pequena parcela dos internos sem uma intervenção mais específica e individualizada sobre o distúrbio afetivo e práxico do indivíduo (cotidianidade, relacionamento social, prática profissional). O trabalho ocupacional objetiva basicamente a redução da sintomatologia do paciente, lidando com os aspectos mais gerais do indivíduo.Os Centros de Reabilitação Profissional do INAMPS contam em sua equipe profissional com terapeutas ocupacionais para tratamento e avaliação para o trabalho. No entanto, as perspectivas do previdenciário acidentado (80% dos casos elegíveis em São Paulo), ao ser recuperado, são, de imediato, a suspensão do auxílio-doença, sem a respectiva recolocação no mercado de trabalho. Em contrapartida, o acidentado não reabilitado vem somar um subemprego ao auxílio-doença, o qual, geralmente, é superior ao salário original, sem o risco da rotatividade de mão-de-obra no mercado de trabalho, cuja flutuação é elevada entre os incapacitados. Essa contradição promove o abandono do atendimento pelo acidentado ou ainda seu desestímulo pelo programa de reabilitação.Esse breve panorama da reabilitação no Brasil, com suas distintas e díspares instituições, tem

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como pano de fundo a mesma realidade: a inexistência de uma política governamental de reabilitação comprometida e sistemática para a área integrada aos demais níveis de atenção à saúde e a uma política de pleno emprego.O presente trabalho busca estabelecer um estudo sobre a constituição da terapia ocupacional no Estado brasileiro no período de 1950 a 1980, adotando o referencial materialista dialético. Por este referencial, foram relacionadas as políticas de saúde do século XX na sociedade brasileira, particularizando as medidas voltadas para a atenção terciária de saúde. Uma outra parte, imbricada a esta, foi a análise dos dados coletados e das entrevistas realizadas.O fenômeno da constituição de uma prática social pode ser estudado por diferentes óticas. Uma das formas propostas por Willeski (apud Tambini, 1979:5-6) divide o processo de constituição de uma profissão em cinco etapas. A primeira delas se dá com o surgimento de um grupo ocupacional cujo trabalho responde a necessidades sociais específicas; a segunda ocorre a partir da definição sobre o processo de seleção e formação deste grupo ocupacional; a terceira é a constitui-ção de uma entidade da categoria; a quarta se manifesta na busca da legitimação oficial, do reconhecimento público e controle do ingresso e exercício profissional e, por último, na elaboração de um código de ética.Essa visão, que parte da necessidade social e percorre um caminho intrínseco à própria categoria ora constituída, apesar de lógica e

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seqüencial, não esclarece o movimento mais amplo entre a emergência de determinadas necessidades na sociedade, a luta política por seu reconhecimento, a reorientação do conhecimento científico para alguma destas necessidades, a constituição de novas modalidades ocupacionais a partir da revolução técnico-científica e a absorção e institucionalização dessas novas modalidades ao conjunto de medidas hegemônicas do Estado.A complexidade desta última abordagem exigiu o estudo de parte da literatura marxista sobre a estrutura da sociedade de classes; a historicidade das necessidades humanas e do próprio homem; as contradições imanentes a esse processo e sua superação; as transformações do modelo econô-mico e suas repercussões na saúde dos trabalhadores; as necessidades de saúde da população e as respostas do Estado via políticas sociais; e o papel econômico, político e ideológico imbricado nas práticas de saúde.Por este prisma, o caminho especificamente traçado por uma dada profissão, a terapia ocupacional, adquire uma nova dimensão: de síntese das múltiplas determinações a que está sujeita e sobre as quais exerce influência. Sob este mesmo enfoque outras profissões já foram analisadas, como a medicina, o serviço social e a pedagogia (vide, respectivamente, Gonçalves 1979; Verdes-Leroux, 1986 e Carvalho, 1989).A partir da literatura à qual tivemos acesso novas questões se colocaram: quais teriam sido os determinantes econômicos, político-ideológicos e

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as necessidades sociais que vieram constituir, no Brasil, a terapia ocupacional, uma outra profissão na área de saúde? A quais necessidades sociais estará a terapia ocupacional respondendo atualmente? Qual a função político-ideológica contemporânea desta prática de saúde? A terapia ocupacional responde ou pode vir a responder às necessidades da classe trabalhadora?A problematização desses pontos, que dão rumo a este trabalho, redimensionou a coleta de dados sobre o processo de constituição e desenvolvimento dos serviços e cursos de formação de terapeutas ocupacionais no Brasil.Para tanto foram levantados dados junto às treze coordenações de cursos de terapia ocupacional do país e foram realizadas entrevistas com pessoas que tiveram destaque no processo de formação de terapeutas ocupacionais em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, visando resgatar a história não documentada dos cursos pioneiros. A maior parte das entrevistas, ao fornecer elementos da realidade profissional, veio alimentar esta análise. O presente trabalho incorporou alguns depoimentos dos entrevistados, que aparecem diretamente no texto. As entrevistas na íntegra, no entanto, foram transcritas e permanecem à disposição dos interessados. O Anexo II lista a totalidade das entrevistas.A reflexão sobre o processo brasileiro ainda não atingiu um grau de explicitação que permita uma análise mais profunda, constituindo um impasse a ser enfrentado por este e tantos outros

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trabalhos que estejam sendo realizados. Tentou-se homogeneizar a linguagem, ainda que, por exemplo, os termos louco, insano, alienado surjam em vários pontos alternados, sem a precisão lingüística adequada.Pela complexidade dos fatores que envolvem a relação trabalho e saúde, e, especificamente, como o referencial teórico adotado neste trabalho ainda é pouco veiculado em terapia ocupacional, decidimos por fazer uma exposição de caráter introdutório para aqueles que necessitem se inteirar do método materialista dialético, no Capítulo I, e das políticas de saúde no Brasil, no Capítulo II. A originalidade deste trabalho se encontra nos Capítulos III e IV.Para tanto, no Capítulo I, apresentamos os conceitos básicos envolvidos nesta análise: a concepção histórico-material de homem e sociedade, o caráter de desenvolvimento e de alienação da atividade humana; as necessidades de saúde e respectivas respostas do Estado, e as funções que a medicina, como prática hegemônica da saúde, cumpre no Estado monopolista brasileiro.No Capítulo II buscamos retratar o movimento entre as transformações da base econômica sobre as políticas sociais do Estado brasileiro no século XX, destinadas à classe trabalhadora e às populações marginais, ressaltando as medidas vinculadas à reabilitação física e mental.No Capítulo III, o processo de implantação de serviços de reabilitação e respectivas instituições no Brasil, no período de 1950 a 1980, são

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analisados segundo sua independência e articulação com as políticas sociais do país e do movimento internacional de reabilitação e revolução técnico-científica no setor saúde.No Capítulo IV, buscamos retratar a formação do terapeuta ocupacional no Brasil, os modelos técnico-científicos da profissão nos diversos espaços institucionais resultantes de seu entrelaçamento com as políticas sociais. Este percurso, sobre a historicidade do emprego de atividades com os indivíduos doentes, visa resgatar os elementos constitutivos de uma visão globalizante, unitária, da práxis humana, que supere a visão reducionista de homem-saúde-atividade e seja engajada no movimento de construção de uma nova sociedade.O presente trabalho não pretende encontrar saídas e concluir etapas. Ao contrário, quer ser uma contribuição à reflexão e problematização dessa prática social, ao resgatar o percurso de constituição da terapia ocupacional no Brasil, seu caráter assistencialista e suas contradições intrínsecas. Assim, ao se buscar reconhecer as funções econômicas, políticas e ideológicas cumpridas por esta prática profissional pretende-se pôr um pouco mais às claras as contradições da sociedade capitalista no que tange aos mecanismos de sujeição das classes populares intermediadas pelas instituições de saúde, visando corroborar com o processo mais amplo de emancipação dos trabalhadores.

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1TRABALHO, CAPITAL E SAÚDE

O presente capítulo trata das relações entre o tra-balho humano, o sistema capitalista e a forma histórica social que a necessidade de saúde assume e é satisfeita no bojo da sociedade de classes. Esses pressupostos imbricam-se com o problema particular a ser tratado nesta investigação: a constituição de uma determinada prática social, a terapia ocupacional, no interior da divisão do trabalho em saúde na sociedade brasileira.A caracterização social da clientela neste século pertence primordialmente ao exército industrial de reserva e às populações marginais. O surgimento da terapia ocupacional na segunda década deste século nos Estados Unidos, em nosso ponto de vista, ocorreu no período de pico da produção industrial, quando a lógica economicista do capital requisitava a absorção de incapacitados à força de trabalho. Assim, criaram-se serviços de reabilitação física e oficinas de trabalho nos hospitais para a recuperação de inválidos. Já sua continuidade decorreu da adequação desta prática profissional, e dos serviços de reabilitação, ao processo global de divisão do trabalho na área de saúde, da realização de interesses político-ideológicos das classes hegemônicas com estas parcelas da

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população e do atendimento de determinadas necessidades de saúde que não encontravam respostas na exclusiva intervenção médica.A sociedade brasileira, onde se desenvolve o capitalismo tardio, estruturou de maneira tênue e paulatina um sistema de saúde para a população, que inclui os serviços de prevenção, tratamento e reabilitação. A partir do início do século e sobretudo no Estado Novo, similar ao processo europeu, que teve início no século XIX, a saúde dos trabalhadores tornou- se tarefa do Estado, "instância da sociedade historicamente responsabilizada pelas condições de saúde da força de trabalho, [...] através de suas instituições médicas" (Luz, 1979:54).A identificação das condições de saúde como presença/ausência relativa de doenças na população tem sido adotada, aqui e nas demais sociedades capitalistas, de maneira a não se questionar a determinação que as condições globais de vida têm sobre a saúde da população.A análise que Madel T. Luz (1979) faz sobre as instituições de saúde brasileiras demonstra que a "crise da saúde do povo", resultante das duras condições de vida das classes populares no modo capitalista de produção, é "recuperada" segundo o discurso estatal ao implantarem-se medidas de saúde para a população, mas, na prática, estas vêm beneficiar, a nível institucional, os interesses das classes dominantes.O Estado brasileiro assume a centralização e o planejamento da saúde como mais um eixo de poder disciplinador da sociedade. A intervenção

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direta, maciça e organizada da estrutura governamental sobre a sociedade, após a Segunda Guerra Mundial, é fruto da concentração do capital. A autora fala do poder disciplinador da saúde:"Ora, uma das formas institucionais mais importantes de controle das classes pelo Poder dominante faz-se, segundo Foucault, através da manipulação dos corpos. Para a quase totalidade das camadas sociais o corpo é, primordialmente, neste modo de produção, instrumento de tra-balho. As instituições vinculadas à Saúde e instituições médicas converteram-se progressivamente, desta forma, em todo o mundo capitalista, em instrumento fundamental de enquadramento político das classes e, indiretamente, de manutenção do sistema de produção" (Luz, 1979:50).

As instituições vinculadas à saúde exercem, então, o papel regulador entre as classes sociais ao definirem a rotina diária: alimentação, higiene, moradia, os hábitos sociais, as condutas corretas com a doença, até a avaliação da doença como fator que permite/impede a execução do trabalho.Como a sociedade capitalista não é um modelo pronto, acabado, mas, ao contrário, realiza-se diferenciadamente em várias nações, com nuanças próprias e contradições internas, locais e internacionais, então o processo de intervenção do Estado capitalista sobre as instituições de saúde não pode ser analisado de maneira

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estanque, indiscriminada de uma nação para outra, ou, ainda, autônoma em relação às demais.As mudanças no modo de ação do Estado capitalista — de uma postura liberal, antiintervencionista, a uma intervenção articulada da economia às instituições da sociedade civil — e, concomitantemente, as várias representações que são formuladas em cada momento histórico, todas estas questões são resultantes, fundamentalmente, do modo como os homens vivem e se relacionam entre si, ou seja, do modo de produção da sociedade.A cada modo de produção da vida social e a cada etapa do processo de transformação deste modo de produção correspondem relações, estruturas sociais e representações específicas a este modo de vida que, por sua vez, são determinadas pelabase econômica, e, ao mesmo tempo, exercem influências sobre ela.Portanto, para se dimensionar uma questão específica da sociedade, particularmente o modo como a saúde/doença é concretizada numa determinada época e contexto social, relacionando as condições de saúde desta comunidade com as determinações da base econômica da sociedade e as iniciativas da sociedade civil e política em sua complexidade, faz-se necessário explicitar a relação entre os pressupostos fundamentais desta pesquisa: a concepção histórico-material do homem e da sociedade; as contradições intrínsecas a cada modo de produção; o trabalho como elemento de

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desenvolvimento e alienação do homem; a historicidade da necessidade de saúde em particular; a divisão técnica do trabalho irradiando-se às práticas de saúde e às funções ideológicas e econômicas imbricadas nesse modo de concretização da saúde/doença.

A CONCEPÇÃO HISTÓRICO-MATERIAL DE HOMEM E SOCIEDADEA principal premissa adotada é a de que o homem é um ser essencialmente social e histórico.O ato histórico que distingue os seres humanos de outros animais é a produção de seus meios de vida. Ao responderem coletivamente a suas necessidades e interesses, os homens produzem sua existência e, ao produzi-la, condicionam sua própria organização física.Agora, se para os animais a luta pela existência requer um desgaste de forças que é determinado por sua estrutura orgânica, a organização física do homem é que exerce influência decisiva sobre a luta pela preservação da existência. Inicialmente, a mão foi para o homem seu primeiro instrumento, a primeira ferramenta de que se valeu na luta pela preservação. A fabricação de outros instrumentos e a estru-turação em grupos permitiram ao homem prescindir da transformação orgânica corporal para então exercer um domínio sobre a natureza.

"Para ele [Marx] o homem não é uma coisa dada, acabada. Ele se torna homem a partir de duas

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condições básicas: "1. o homem produz-se a si mesmo, determina-se, ao se colocar como um ser em transformação, como ser da práxis; "2. a realização do homem como atividade dele próprio só pode ter lugar na história. A mediação necessária para a realização do homem é a realidade material" (Gadotti, 1982:42 — grifo do autor).

A práxis, o trabalho humanoO homem, diferentemente das outras espécies, é um ser em constante transformação, decorrente não mais de sua estrutura biológica, orgânica, mas fundamentalmente do trabalho humano, da produção material da sua existência. As transformações promovidas pelo homem e sobre o próprio homem se realizam a partir do e no processo do trabalho humano.O homem, a partir de sua prática, antecipa-se a ela, prevê, planeja sua ação e a modifica no contato direto de sua ação sobre a realidade material. Ao final deste processo prático-reflexivo-prático, o homem modifica seu próprio plano, incorporando os dados adquiridos na experiência prática, ou melhor, tanto a realidade material (o que é dado) pode ter sido transformada quanto as relações sociais, as concepções, ou ainda o próprio homem.A colocação de finalidades é que caracteriza a práxis, a atividade propriamente humana e essencialmente transformadora (Cf. Vasquez, 1975: 185-194). A práxis, por ser o mecanismo de transformação do homem, ao se concretizar na

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produção material da existência atinge sua máxima potência. A atividade prodiitiva humana, também chamada trabalho, como forma original da práxis, por sua dinamicidade, foi o cerne do processo de hominização, ou seja, de criação da espécie humana.

O processo de hominização"O processo de hominização de nossos primatas surgiu com o advento do trabalho e, a partir desta base, edificou-se a sociedade. No momento em que os macacos passam a fazer uso premeditado de um osso ou madeira para alcançar alimentos à distância ou para se defender, que passam a usar sistematicamente as patas dianteiras como garras, especializando o uso das mãos e, principalmente, à medida que, ao antecipar sua necessidade de alimentação, proteção e preservação, chegam a construir instrumentos, estes primatas adquirem qualidades e condições que irão modificar estruturalmente a sua relação com o meio natural adverso.Esse grupo de símios passa a se adaptar às variações dos meios naturais, a sobreviver às intempéries, a coletivizar sua experiência, a transformar a sua vida material, a transformar sua própria estrutura biológica, sensorial e a criar necessidades novas ao seu agrupamento. A linguagem se constitui a partir da necessidade de troca de experiências e aprendizagens, de explicitar melhor as antecipações e construções práticas.

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A atividade produtiva torna-se a base sobre a qual se assenta a hominização.

"O aparecimento e o desenvolvimento do trabalho, condição primeira e fundamental da existência do homem, acarretaram a transformação e hominização do cérebro, dos órgãos de actividade externa e dos órgãos dos sentidos. 'Primeiro o trabalho, escreve Engels, depois dele, e ao mesmo tempo que ele, a linguagem: tais são os dois estímulos essenciais sob a influência dos quais o cérebro de um macaco se transformou pouco a pouco num cérebro humano'" (Leontiev, 1978:70).

Nessa perspectiva teórica, na qual a hominização é o resultado da passagem à vida numa sociedade organizada na base do trabalho, as leis que determinam este desenvolvimento não são as leis biológicas mas as leis sócio-econômicas. Sobre este processo2 Leontiev (1978:264) conclui: "A hominização, enquanto mudanças essenciais na organização física do homem, termina com o surgimento da história social da humanidade".Essa idéia aparentemente paradoxal contém a noção de que só é possível ao homem e às condições materiais continuarem modificando-se num outro processo, o de humanização, a partir da criação da cultura material e intelectual, e após a superação do processo de criação da espécie humana, ou seja, da hominização.

2 Sobre o processo de desenvolvimento da espécie humana leia-se Aléxis Leontiev, 1978:259-84.

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O trabalho humanoAs aquisições culturais e sociais engendradas no processo de humanização são transmitidas de geração em geração, através da cultura material e intelectual, numa forma particular, específica à espécie humana — o trabalho.

"Esta forma particular de fixação e transmissão às gerações seguintes das aquisições da evolução deve seu aparecimento ao facto, diferentemente dos animais, de os homens terem uma actividade criadora e produtiva. E antes de mais nada o caso da actividade humana funda-mental: o trabalho" (Ibid.:265 — grifo do autor).

Cada geração de homens apreende a realidade objetiva a partir de necessidades socialmente determinadas, a partir dos produtos (materiais e intelectuais) e de fenômenos historicamente desenvolvidos na atividade das gerações precedentes. E pelo trabalho que o homem historicamente transmite a sua produção anterior e engendra elementos para a criação do novo.Nesse sentido é que Engels (in Marx & Engels, II, s.d.:269) afirma: "O trabalho criou o próprio homem". E que Leontiev (1978:70) alerta: '"Ele [o trabalho] criou também a consciência do homem".Através do trabalho os homens produzem o seu meio de vida, a sua existência, sua consciência, a sua história e a própria superação destas condições.

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A produção da existência humanaO modo de produção da existência humana se concretiza a partir: — dos meios de produção, constituídos pelos recursos materiais e instrumentais existentes e a se reproduzir e pela forma determinada da atividade produtiva dos homens; — das relações de produção, da mediação estruturada entre os homens pautada na divisão do trabalho e da propriedade dos meios de produção.O homem é a síntese da sua produção: do que e como produz. A cada modo de produção, ou seja, das condições materiais da existência, consubstancia-se um determinado homem.Ao desenvolvimento das forças produtivas correspondem novas condições de produção da existência, de onde a criação de novos materiais e instrumentos, o domínio sobre os diferentes elementos da natureza e o surgimento de novas necessidades sociais vêm constituir, posteriormente, nova estrutura de produção, novas relações de poder (imbricadas nesta nova estrutura) e, conseqüentemente, novas formas de existência.Intrínseca à divisão do trabalho corresponde a forma de propriedade sobre o material, instrumental e produto do trabalho, simultânea à etapa de desenvolvimento das forças produtivas.

"As diferentes fases de desenvolvimento da divisão do trabalho são outras tantas formas diferentes de propriedade; ou seja, cada uma das

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fases da divisão do trabalho determina também as relações dos indivíduos entre si no que respeita ao material, ao instrumental e ao produto do trabalho" (Marx & Engels, 1981:24).

A historicidade do modo de produçãoA vinculação do modo de produção com as relações intrínsecas a ele deve ser dimensionada a cada período histórico. Por exemplo, no período medieval, quando a produção material era baseada primordialmente no consumo, a propriedade da terra era o elemento fundamental da divisão do trabalho. De um lado, estão as classes aristocráticas, proprietárias de terras, de outro lado, os servos da gleba. Os instrumentos, a terra, os animais, os servos eram tidos como entes "naturais" de uma realidade desigual. A desigualdade, por sua vez, era tida como "racional".Neste modo de produção, o desenvolvimento das forças produtivas é limitado à condição de os servos e aristocratas estarem atados à terra, da realização primitiva e artesanal do trabalho e da produção voltadas ao estrito consumo do feudo, sem excedentes. A representação3 do trabalho era intimamente ligada a esta forma de organização social.

3 A representação é constituída a partir do movimento real que ocorre entre os indivíduos e a sociedade, na produção de sua vida material e social. Karel Kosik, no livro Dialética do Concreto (1976:15), afirma que "a representação da coisa não constitui uma qualidade natural da coisa e da realidade: é a projeção, na consciência do sujeito, de determinadas condições históricas petrificadas". (Grifo do autor.)

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"[...] o trabalho humano só podia ser concebido como estigma fatal ou castigo. Em outras palavras, o trabalho só poderia ser mesmo um TRIPALIUM [três paus], ou seja, um verdadeiro instrumento de castigo" (Nosella, 1986:5).

Concomitante a cada modo de produção, correspondem contradições internas à coletividade, que se materializam em discrepantes condições de existência dos homens. O tecido social constitui-se, então, de distintas camadas e classes sociais.As camadas e classes sociais se discriminam quanto à propriedade do material, instrumentos e produto do trabalho, assim como pelas relações sociais de produção.

O modo de produção capitalistaNo capitalismo, a propriedade dos meios e do produto do trabalho social pelo capitalista determina uma relação de poder autoritário sobre os assalariados. Cabe ao capitalista gerir a produção em sua forma e conteúdo assim como contratar a força de trabalho. Cabe ao assalariado vender a sua força de trabalho e se organizar coletivamente para conquistar melhores condições de existência, bem como a gestão do processo produtivo.À estrutura do modo capitalista de produção correspondem duas classes com interesses antagônicos e ao mesmo tempo complementares; neste modo de produção, as relações de troca entre os homens são mediatizados pela

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mercadoria. Dois fatores são significativos na constituição destas duas classes: a apropriação pela burguesia do controle do processo produtivo e do produto do trabalho social; e a alienação da força de trabalho pela classe assalariada.Ao trabalhador, espoliado de qualquer propriedade dos meios de produção e do produto de seu trabalho, restou alienar sua única propriedade, a força de trabalho. Ao capitalista coube o comando industrial e a compra da força de trabalho, transformada em mercadoria, que se submete às leis de circulação e do valor.Contra a concepção aristocrática medieval da propriedade sobre a terra e o trabalho que nela se realizasse de natureza mística, metafísica, emergiu a concepção burguesa de propriedade sobre o próprio corpo e o fruto do trabalho. Locke, no século XVII, no período de ascensão da burguesia inglesa ao poder político, afirmava:

"Cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo. O trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele" (1978:45).

O conceito de propriedade a partir do próprio corpo e do fruto do trabalho, ao mesmo tempo em que transforma o servo da gleba em trabalhador livre-proprietário de sua força de trabalho, transforma o mestre de ofício em capitalista-proprietário dos meios de produção e do fruto do trabalho realizado na manufatura. A

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burguesia chama a si a propriedade sobre o seu próprio trabalho e daqueles que nele se engajam gerando e ampliando o capital.A forma de organização do trabalho na manufatura possui a peculiaridade de gerar valor, já que o tempo excedente à manutenção e reprodução da força de trabalho, ou seja, a mais-valia, é apropriado pelo capital. É neste processo que se assenta a fonte de acumulação do capital a partir da qual, de um lado, a burguesia amplia a jornada de trabalho, ou a intensifica, para obter mais tempo excedente e, portanto, mais capital, e, de outro lado, a força de trabalho tem o seu valor oscilante segundo os meios necessários à sua existência e a luta política entre trabalhadores e capitalistas.

"Como qualquer outra mercadoria, a força de trabalho tem um valor, e como qualquer outra mercadoria, seu valor está determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção; em outras palavras, o valor dos meios de vida necessários para sua subsistência e reprodução do trabalhador" (Cortazzo, 1984:10).

A força de trabalho, diferentemente de outras mercadorias, requer o consumo de meios de vida (alimentação, moradia etc.) que são mutáveis assim como o modo de elas serem atendidas. Além disso, as próprias necessidades da força de trabalho transformam-se segundo o momento histórico e a situação espacial (meio físico,

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cultural etc.). Com isto, o valor da força de trabalho tampouco é estável e existente a priori, no que concerne aos meios de vida por ela consumidos, assim como às relações de classe presentes na sociedade.A partir do processo produtivo, não só estão definidas as relações quanto à propriedade, mas também as relações sociais de produção.

"El resultado general a que llegué [...] puede resumirse así: en la producción social de su existencia, los hombres contraem determinadas relaciones necesarias y independientes de su voluntad, relaciones de producción que corresponden a una determinada fase de desarollo de sus fuerzas productivas materiales" (Marx, s.d.:69).

Como nos afirma Marx, as relações de produção são determinadas pelo estágio das forças produtivas, por sua materialidade, que intrinsecamente inclui o grau de consciência e representação dos homens a respeito delas. O seu desenvolvimento é, então, impulsionado pela necessidade de ultrapassar as condições materiais objetivas e contraditórias presentes na sociedade de classes.O desenvolvimento das forças produtivas é impulsionado, então, pela necessidade de ultrapassar as condições materiais objetivas existentes na sociedade de classes.As condições de existência de cada classe social materializam-se não somente por sua respectiva

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capacidade de consumo de bens materiais, cujas necessidades são intrínsecas à sua práxis social, mas também pelas relações sociais (dominação/submissão/igualitárias) estabelecidas nas várias instâncias da superestrutura.O conjunto de relações de produção condiciona o processo de vida social, política e intelectual em geral — "as relações de produção determinam todas as outras relações que existem entre os homens na sua vida social" (Plekanov, 1980:33 — grifo do autor).A base econômica que cimenta este homem, ao mesmo tempo raiz e fruto de sua produção material, determina a sua existência social, política e intelectual. Essa existência se manifesta na superestrutura da sociedade.

A superestrutura da sociedadeA existência social dos homens realiza-se em determinado bloco histórico, ou seja, na relação orgânica entre a base econômica que os cimenta e as superestruturas da sociedade. A direção cultural (hegemonia) e a coerção são garantidas através dos aparelhos culturais, políticos e econômicos que coesionam os interesses contraditórios de capitalistas, operários e camponeses.

"A estrutura e a superestrutura formam um 'bloco histórico', isto é, o conjunto complexo — contraditório e discordante — das superestruturas é o reflexo conjunto das relações sociais de produção" (Gramsci, 1981:52).

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Os interesses antagônicos de classe perpassam as superestruturas e nos Estados mais desenvolvidos estão presentes em duas instâncias do Estado. Gramsci, pensador italiano do século XX, ampliou a teoria marxista do Estado ao distinguir as duas instâncias: a sociedade política e a sociedade civil. A primeira delas — a sociedade política, classicamente conhecida como Estado ou governo — é o aparelho de poder que se mantém pela coerção (síntese da repressão com a violência), por intermédio das forças armadas, polícia, administração, tribunais, burocracia (cf. Buci-Gluckmann, 1980:126). A segunda instância — a sociedade civil — é constituída pelos aparelhos "privados" de hegemonia (o consenso obtido pela persuasão) como sindicatos, Igreja, escola, família, através dos quais a direção intelectual e moral da classe dominante obtém o consentimento e a adesão das classes subalternas. Algumas organizações do Estado tanto podem ser ligadas à sociedade civil ou política como, por exemplo, o sistema escolar, ou, ainda, podem ser ligadas a ambas como é o caso do parlamento.

"[..,] neste sentido, poder-se-ia dizer que o Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia revestida de coerção" (Gramsci, 1980:149).

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A hegemonia enquanto direção política é mantida na sociedade civil a partir da ideologia do grupo dirigente. A ideologia4, apesar de hegemônica, não é assimilada em sua totalidade pelos demais grupos sociais, que, de fato, a partir das relações e de sua práxis social, estruturam também suas concepções de mundo. A consciência dos homens advém da função, justaposição e contraposição das várias concepções de mundo: das anteriormente dominantes, da atual e da que está sendo forjada com vistas à constituição de um novo bloco histórico.Agora, como nos delimita Marx:

"Não é a consciência do homem que determina o seu ser mas, pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência" (Marx & Engels, v. I, s.d.:301).

Ou seja, são as condições objetivas, materiais, que constituem a consciência dos homens de uma coletividade e não supostamente o seu inverso, a consciência que determina o seu ser, a existência.A ideologia dominante vem cimentar a consciência e a práxis social da coletividade buscando encobrir as contradições da estrutura social ou apresentá-las como naturais, abstratas, anistóricas. Assim ocorre com as representações

4 A ideologia é a concepção de mundo que liga o corpo social (cf. Gramsci) ou, ainda, segundo Saviani (1980:28), é a estrutura organizada de princípios, objetivos e ações orientados ao final de um processo reflexivo.

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acerca do trabalho, tema central para a presente investigação.

As representações acerca do trabalhoNa sociedade capitalista, onde o trabalho da classe dominante é gerir a produção, atividade abstraída do ato de produzir, do contato direto na transformação material, a ideologia burguesa, de um lado, supervaloriza a atividade do capitalista, caracterizando-a como "trabalho intelectual" e, de outro, desqualifica o trabalho operário, daquele que mantém contato direto com o material, caracterizando-o como "trabalho manual". É claro que, em ambos os trabalhos, o do capitalista e o do operário, tanto a habilidade motora quanto a capacidade mental estão sendo empregadas em sua execução; no entanto, o que se passa na consciência dos homens na sociedade capitalista é que a hegemonia burguesa na sociedade civil divulga maciçamente sua representação social quanto ao trabalho burguês e operário, a ser assimilada ao conjunto de outras representações e concepções de mundo vigente — do TRIPALIUM, já mencionado anteriormente, ao trabalho criativo, não alienado.Agora, se a ideologia burguesa consegue, de um lado, encobrir a interdependência e os antagonismos das classes sociais, não consegue, de outro, mascarar as contraditórias condições de existência das classes.

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Ora, se os bens materiais e culturais são produzidos a partir do trabalho e não estão ao alcance de quem os realiza, da classe trabalhadora em particular, essa contradição fun-damental é que move as relações e o modo de produção capitalista.

O caráter alienado do trabalho e suas contradiçõesOutra das contradições produzidas no desenvolvimento das forças produtivas foi a alienação do homem em sua atividade prática. As relações de produção desiguais e a apropriação por uma classe de produtos do trabalho social têm provocado a separação entre as aquisições do desenvolvimento histórico daqueles que criam este desenvolvimento.

"Esta separação", afirma Leontiev (1978:275), "toma antes de mais nada uma forma prática, a alienação econômica dos meios e produtos do trabalho em face dos produtores directos. [...] Ela é, portanto, engendrada pela acção das leis objectivas do desenvolvimento da sociedade que não dependem da consciência ou da vontade dos homens" (grifos do autor).

Do processo de produção realizado nas corporações de ofícios medievais à manufatura, e desta à grande indústria, o trabalho foi sendo paulatinamente parcelado, simplificado,

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substituído por instrumentos de produção, pela maquinaria, de maneira que foi possibilitado o aumento da produtividade, o atendimento de necessidades sociais novas e a extração de mais-valia da força de trabalho. No entanto:

"A separação do trabalhador das condições objetivas da produção, ou seja, da terra, do conjunto dos meios de produção e dos meios de subsistência, gera a abstração do caráter humano da produção, coisificando o trabalhador. A sujeição física e mental do operário ao capital se efetiva através das condições de trabalho que a ele são imputadas" (Ferreira, 1983:29).

A abstração do caráter humano da produção, o seu parcelamento, tem gerado a alienação do homem em sua atividade produtiva, negando o elemento subjetivo do trabalho, coisificando o homem. A racionalização do processo de pro-dução advém da divisão do trabalho em condições de concorrência cujo "[...] resultado é a difusão da maquinaria industrial e a mecanização do trabalho humano" (Lukács, 1981:129).Essa lógica do capital vai permeando as representações e atividades realizadas na superestrutura. Desta forma, encontramos a atividade material e intelectual, o prazer e o trabalho, a produção e o consumo cada vez mais separados e pertencentes a diferentes homens. De um lado, a concentração de riquezas na classe dominante, acrescida da concentração da cultura intelectual e, de outro lado, a massa da

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população com acesso ao mínimo de desenvolvimento cultural necessário à produção de riquezas materiais, no limiar das funções que lhe foram socialmente atribuídas.A alienação concretiza-se para a maioria dos homens, não é "privilégio" de uma classe social ou de outra, de uma categoria profissional ou de outra, tampouco é específica ao trabalho, estando igualmente presente no não-trabalho, no tempo livre, no qual a indústria cultural participa da veiculação de padrões de consumo de mercadorias e concepções necessárias ao amálgama das classes como um todo social harmônico. Resulta que as necessidades não satisfeitas no espaço e tempo de trabalho desenvolvem tensões nos indivíduos que o dirigem à realização de atividades "compensató-rias" no seu tempo livre.O trabalho realizado no tempo livre, ou o não-trabalho como também é chamado, não assume necessariamente a condição de alienação, ao mesmo tempo que é fortemente determinado pela alienação do processo produtivo5. A luta social pela redução da jornada de trabalho, de liberação do trabalhador das condições alienadas de produção e, conseqüentemente, de maiores condições de usufruir o progresso socialmente produzido torna-se, muitas vezes, "a única forma possível de resistência" (Nosella, op. cit.:16).

5 Sobre a alienação no trabalho e no lazer ler Georges Friedman. O trabalho em migalhas. São Paulo, 1972:155-229; István Mészáros, Marx: a teoria da alienação. Rio de Janeiro, Zahar, 1981:87-133 e Harry Braverman. Trabalho e capital monopolista. 1981:15-69.

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A alienação do homem em suas atividades irá repercutir fundamentalmente nas práticas sociais que se utilizam da atividade humana, tanto no espaço educacional quanto no espaço terapêutico, como ocorre com a terapia ocupacional.Ora, se o tempo livre do homem for objetivado em atividades práxicas, criadoras e não se transformar em atividades "compensatórias" à divisão social de produção6 poderá remeter o seu realizador à questão essencial: por que o trabalho produtivo tem de ser parcelar, numa estrutura autoritária, vertical, à base da disciplina e coação? Não será possível ao homem objetivar-se, ultrapassando os limites e contradições atuais destas relações de produção, deste modo de produção?A alienação, para ser superada, depende da superação das dicotomias entre teoria e prática, entre a propriedade dos meios e produtos do trabalho de seus realizadores, entre o domínio técnico-científico do processo de trabalho e o corpo coletivo que o realiza. A alienação somente será totalmente superada através do controle do trabalho sobre a produção, num novo modo de produção:

"Assim, um autêntico controle pelo trabalhador tem como seu requisito a desmistificação da tecnologia e a reorganização do modo de produção" (Braverman, 1981:376).

66 O sistema de produção contemporâneo, da divisão do trabalho no monopólio, pode ser aprofundado em Braverman (op. cit.:359-379).

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A participação dos trabalhadores, através da autogestão, no ponto de vista acima, significa ainda pouco em relação a uma verdadeira democracia dos trabalhadores na fábrica. No entanto, ao se inserirem no poder participativo7, os trabalhadores vão dimensionar ainda mais a necessidade do domínio técnico como instrumento de luta na superação da alienação do trabalho produtivo e, portanto, no rumo da desalienação da sociedade como um todo.Assim, a divisão do trabalho poderá vir a ser superada pelo desenvolvimento das forças produtivas, com a automação absorvendo a especialização das atividades alienadas antes realizadas pelo homem, numa condição nova, a de liberação do homem no trabalho parcelar numa estrutura de poder igualitária, num novo modo de produção, o comunismo.

"Portanto, se o 'ethos' da era conhecida e antevista por Smith [Adam — autor de A Riqueza das Nações] estabelecia corretamente as virtudes da especialização, da divisão, devemos, na era que se aproxima, reservar um lugar igualmente consagrado para as vantagens da amplitude, da síntese" (Weiss, 1976:15 — grifos do autor).

7 Sobre o tema ler Dominique Pignon e Jean Querzola, "Democracia e autoritarismo na produção", in: Stephen Marglin et alii. Divisão social do trabalho, ciência, técnica e modo de produção capitalista, 1974. E sobre a crítica à visão romântica dos "grupos semi-autônomos" ler Benedito R. •de Moraes Neto e Felipe L. G. da Silva. "A linha de montagem no final do século". Revista de Administração de Empresas, 26(4): 45-6, out./dez., 1986.

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Ao mesmo tempo que o desenvolvimento das forças produtivas irá emancipar o homem do trabalho alienado parcelar, a coerção existente, no bojo do processo produtivo, será também ultrapassada. A tecnologia produzida historicamente, a compreensão científica e tecnológica da cultura moderna, torna possível a liberdade ao homem sem os riscos de uma recaída histórica a níveis mais baixos de produtividade (cf. Weiss, 1976:12).A liberdade da escolha da atividade a ser realizada pelo homem, a oportunidade de ampliar suas atividades produtivas não impedirão a necessidade de também as pessoas contribuírem de maneira ordenada à comunidade. O trabalho coletivizado, o domínio do processo de funcionamento de todo o complexo técnico-social, a abrangência do entendimento e a criatividade são os desafios colocados ao novo modo social de produção da sociedade, o comunismo.Se, de um lado, é fundamental a transformação da base econômica para revolucionar a organização social, de outro, anterior e simultâneo a este período, uma nova concepção de homem e sociedade se tornará hegemônica nesta formação social.A "crise de hegemonia", na concepção de Gramsci, ocorre quando um determinado grupo social, ainda não dominante, consegue atingir um consenso entre os demais grupos, coesionando o corpo social e dando-lhes a direção política e cultural. Essa situação somente ocorre no período

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de agudização das contradições, quando a classe dominante lança mão da força para assegurar o poder e evitar que um determinado grupo consciente desse processo instaure um novo bloco histórico, uma nova estrutura orgânica entre a base econômica e a superestrutura.O grupo social que conquistar a adesão de outros segmentos sociais pode obter a hegemonia anterior à conquista do aparelho governamental. A crise de hegemonia emerge quando a ideologia da classe dominante não consegue coesionar a "opinião pública" e se manter sólida entre as organizações que compõem a sociedade civil e política em contraposição à ideologia e ação da classe ascendente, que passa a assumir a direção política.A solidez da hegemonia da classe dominante depende do desenvolvimento de ambas as instâncias da sociedade e de sua íntima vinculação. Em formações sociais cuja sociedade civil é umbilicalmente ligada e dependente da sociedade política, a luta de classes volta-se para a conquista e conservação do Estado no sentido clássico (cf. Coutinho, 1985:65), ou seja, a classe dominante se mantém no poder através de governos autoritários e centralizados e a luta de classes se volta diretamente para a conquista do aparato governamental e não das "frágeis" instituições da sociedade civil. Em formações sociais do tipo ocidental, onde há o equilíbrio entre a sociedade civil e a política, a luta de classes se trava nas e pelas instituições hegemônicas do Estado:

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"[...] numa conquista progressiva — ou processual — de espaços no seio e através da sociedade civil" (Ibid: 65 — grifo do autor).

No processo de conquista de espaços na sociedade civil, na obtenção do consenso e na luta pela hegemonia nas organizações estatais, sindicais, nos conselhos de fábrica, nas organizações e nos movimentos populares é função do Partido8, no sentido mais amplo de direção de classe, incentivar e direcionar essas lutas com vistas à obtenção do espaço gover-namental para o exercício do poder vinculado a uma transformação radical da base econômica.A luta pela hegemonia não é exclusividade do espaço partidário9, sendo também dependente da conquista da direção nas organizações privadas do Estado. A direção política de um grupo social realiza-se através do intelectual orgânico que catalisa o desvelamento da ideologia dominante e de suas representações e gera ações eficazes sobre os principais conflitos deste grupo social.

"Nesse sentido é que a tarefa do intelectual é decisiva já que cabe a ele assumir a direção

8 Ao definir a função do Partido e o seu processo de transformação Gramsci declara: "O Partido representa não só as massas mas também urna doutrina, a doutrina do socialismo, e por isso luta para unificar a vontade das massas no sentido do socialismo, embora actuando no terreno real do que existe, mas que existe movendo-se e desenvolvendo-se" (1978:50 — grifo do autor).9 Nessa perspectiva, Gruppi argumenta: "Nunca Gramsci pensou que a classe operária pudesse conquistar o poder só com o partido; ela deve ter outras ligações, outras organizações, deve estar presente nas instituições estatais além de nas de massas" (1980:86.)

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orgânica do grupo no qual atua" (Oliveira, 1980:41).

O papel do intelectual orgânico em seu grupo social, conforme a concepção gramsciana, é fundamental no direcionamento, organização e síntese das necessidades e contradições internas ao seu agrupamento.Ao se estudar um problema da realidade social não basta identificar as suas contradições10

internas, tem-se também que estabelecer a sua interdependência. Ao se dimensionar as forças contrárias a um dado problema, é possível estabelecer modos de intervenção globalizantes, totalizadores, que atendam às demandas internas a esse fenômeno.

A SAÚDE NA SOCIEDADE DE CLASSESA análise até aqui realizada da concepção de homem, estrutura social e trabalho permite agora enfocar uma questão específica, a saúde humana, a ser organicamente dimensionada no interior da sociedade capitalista.A espécie humana, que se organiza e desenvolve a partir do trabalho, transforma a necessidade de saúde e o modo de ela ser satisfeita segundo a sua estrutura econômica e o momento histórico desta sociedade. Então, faz-se necessário entender as contradições inerentes ao

10 O termo contradição é aqui empregado no sentido dialético de elementos internos, inerentes aos fenômenos e que apesar da polaridade são complementares, não podendo ser negados na análise dos fenômenos.

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atendimento da necessidade de saúde no modo de produção capitalista.A saúde é uma necessidade humana que historicamente tem se transformado tanto ao nível conceituai, ou seja, das representações que se formam sobre o que é saúde, quanto nas formas como ela é administrada e legitimada socialmente.Por exemplo, o conjunto de necessidades denominadas doenças inicialmente relacionava o instinto e a sensibilidade do próprio indivíduo que sofre, antes mesmo de expandir-se a uma rede de relações sociais.

"As experiências advindas destas relações", relata-nos Arouca (1978:133), "eram comunicadas às outras pessoas, de pais a filhos, constituindo quase uma experiência coletiva diante do sofrimento."

A divisão do trabalho não atingia ainda o nível de especializar e circunscrever o saber sobre a saúde numa única prática social.Foucault, em seu livro O Nascimento da Clínica, a partir de uma perspectiva arqueológica, analisa o processo de concentração do saber clínico que constituiu a Medicina.Na Antiguidade, durante o período da propriedade tribal, quando a divisão do trabalho era pouco desenvolvida e se limitava à divisão entre os membros da família, os chefes, patriarcas da tribo, realizavam todos os cultos e tinham poderes totais sobre os membros da

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família. A explicação dos fenômenos era mística e as medidas clínicas adotadas contra a doença ocorriam nos rituais religiosos.É somente após a organização das tribos, fratrias e cúrias nas cidades, quando a divisão social do trabalho se desenvolve e uma nova ordem social se estrutura, com novos valores e necessidades, que o saber clínico veio a ser desmistificado, transformando-se numa atividade leiga, um trabalho prático, experimental. Nesta etapa a dissecação e as cirurgias se tornam medidas incorporadas à prática clínica.Zilboorg, na História da Psicologia Médica (1968:34), comenta esta mudança no espírito grego.

"O espírito não permaneceu atado muito tempo a sua própria mitologia [...]. A princípio do século VI a.C., o espírito grego se voltou para as observações e até um certo grau de experimentação."

Assim, no campo da saúde, a experiência do sofrimentorequer agora a intervenção de um indivíduo cujos conhecimentos possam cuidar deste sofrer. A especialização em uma determinada prática social, a Medicina, cria também novas formas de formação e transmissão desse saber, inicialmente não institucionais, mas vinculadas aos praticantes dessa modalidade de trabalho. A concentração desse saber provocou, em contrapartida, o desconhecimento da

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comunidade como um todo de medidas próprias para o combate às doenças, que ao ser assistida recebe o cuidado em si e não o conhecimento sobre o processo saúde/doença/cuidados de saúde.Nessa perspectiva, Arouca, no artigo "O trabalho médico, a produção capitalista e a viabilidade do modelo preventista" (1978), expõe que:

"[...] médicos e pacientes encontram-se em relação de troca em que um é portador de necessidades e o outro de conhecimentos. Mas o que o primeiro recebe não é o conhecimento e sim o cuidado, forma instrumental deste conhecimento monopolizado" (p. 133, grifos nossos).

Historicamente, esta relação de troca entre o especialista e o indivíduo portador de necessidade foi se substantivando numa atividade econômica determinada, a medicina, corroborando a divisão entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, entre as aquisições do desenvolvimento técnico-científico da sociedade e o afastamento das camadas populares desta produção.Na sociedade capitalista, onde a força de trabalho tornou- se a única propriedade do trabalhador, a saúde, por seu turno, se transforma numa qualidade da força de trabalho que lhe possibilita maior produtividade e o próprio consumo no processo de extração da mais-valia. Como nos declara Arouca (1978:143):

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"[...] a saúde, como valor biológico, pode ser considerada como um atributo da força de trabalho para que ela melhor possa ser consumida no processo produtivo. Porém, paradoxalmente, a força de trabalho como mercadoria incorpora para sua manutenção um 'quantum' de trabalho, cujo efeito não é aumentar o seu valor, mas sim possibilitar o aumento da sua exploração"(grifos nossos).

A ausência temporária ou não do atributo saúde penitencia duplamente o trabalhador: de um lado, pelo sofrimento decorrente do processo patológico e, de outro, pela privação econômica resultante do não consumo de sua força de trabalho.No processo capitalista de produção, o cuidado de saúde se transforma de necessidade em meio de vida, similar à moradia e alimentação; e, como meio de vida, cumpre a função de garantir a subsistência e reprodução da força de trabalho.A medida que avança a acumulação do capital, torna-se mais complexa a sua composição técnica, devido à centralização e transformação tecnológica originada pelo próprio trabalho. Este processo traz conseqüências diretas para o presente estudo, podendo ser sintetizadas em:1º) A revolução técnico-científica da produção incide diretamente sobre as condições de saúde do trabalhador.2º) A mudança da composição técnica do capital provoca a diminuição crescente (em relação ao

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capital total) da demanda de trabalho, ampliando o exército de reserva e as massas marginais.3º) A expansão do capital para o setor terciário introduz a divisão técnica na área de saúde.

1º) A revolução técnico-científica e a saúdeA interferência da revolução técnico-científica na produção sobre a saúde do trabalhador se processa através da racionalização do trabalho com a crescente simplificação, parcelamento e coisificação das atividades para a maioria dos trabalhadores da produção e do escritório e através da gerência, no planejamento e abstração de atividades para um certo grupo de empregados.A racionalização do sistema produtivo promove: a aceleração da produção; a determinação do ritmo de trabalho pelo tempo da máquina ou da linha de montagem; a transformação dos elementos subjetivos em fator humano (mensurável e previsto tecnicamente); a realização do trabalho em condições adversas do meio físico; a alienação do homem em sua atividade produtiva.A contrapartida ao sistema produtivo assim estruturado se manifesta a nível individual por meio de: absenteísmo e "turn-over", ainda como expressões individuais de "resistência" ao desconforto do trabalho; acidentes de trabalho; doenças ocupacionais (silicose, asbestose e outras); doenças incapacitantes, cuja ordem de incidência junto à Previdência Social em 1975 (Cf. DIESAT, 1984:6) são as neuroses, hipertensão arterial, osteoartrose, epilepsia e tuberculose.

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Essas manifestações, mesmo quando interferindo na produtividade (por exemplo, o absenteísmo), ou ainda que associadas, direta ou indiretamente, às condições e ambientes de trabalho, não produzem modificações no processo de trabalho, que historicamente se consolida como forma irreversível da produção. De outro lado, a legislação previdenciária, que pode absorver itens relativos a segurança e higiene no trabalho, somente se transforma nos momentos de intensa mobilização social.A forma de o capital lidar com a força de trabalho já era explicitada por Marx, ao final do século passado, em O Capital, Livro I, Vol. I:

"A produção capitalista, que essencialmente é produção de mais-valia, absorção de trabalho excedente, ao prolongar o dia de trabalho, não causa apenas a atrofia da força humana de trabalho, à qual rouba suas condições normais, morais e físicas de atividade e de desenvolvimento. Ela ocasiona o esgotamento prematuro e a morte da própria força de trabalho. Aumenta o tempo de duração do trabalhador num período determinado, encurtando a duração da sua vida" (1982:301).

As manifestações da intensidade da exploração da força de trabalho evidenciam-se pelos índices de mortalidade e morbidade assim como pela taxa de criminalidade, retratando a "racionalidade" do sistema produtivo.

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O antagonismo de interesses das classes sociais, face ao poderio político-econômico da burguesia, tem provocado, de outro lado, a resistência e organização dos trabalhadores. As bandeiras de luta do movimento sindical, segundo o grau de consciência de classe do conjunto dos assalariados, avançam dos estritamente econômicos (aumento salarial, índice de produtividade, descanso semanal remunerado) para os de cunho político mais acentuado (redução da jornada de trabalho, proteção ao trabalho do menor, condições de segurança contra acidentes e insalubridade, co-gestão).Nesse contexto se estabelece uma forma específica de medicina, intimamente ligada à indústria, seja ela assalariada pela própria indústria ou por uma empresa de prestação de serviços médicos. As atribuições desta prática médica se estendem desde seleção de mão-de-obra saudável a ser contratada, o controle do absenteísmo pela constatação ou não de ocorrência de doenças/acidentes que impeçam a realização do trabalho, o diagnóstico, a possível medicação até o desligamento do trabalhador de acordo com um quadro "nosológico" (de uma gravidez, às doenças ocupacionais, crônicas e incapacitantes). Os casos mais complexos, que requeiram longo tratamento, são geralmente encaminhados à Previdência Social.A lógica desse sistema pauta-se na recuperação do trabalhador na quantidade necessária que garanta a produtividade e a extração do trabalho excedente.

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"Não se trata de uma garantia de condições gerais de saúde ao trabalhador, segundo um conceito ideal de saúde e sim de mantê-lo em condições mínimas de saúde para a produção, reduzindo o impacto do desgaste na produção sobre o organismo" (Possas, 1981:XXVI — grifos da autora).

Os cuidados médicos destinados ao nível "necessário" de saúde aos trabalhadores da empresa, ao serem incorporados à estrutura produtiva, como um novo elemento na revolução técnico-científica, favorecem a assimilação da força de trabalho pelo capital e, paradoxalmente, o atributo de saúde "necessário" aos trabalhadores exclui da produção parcelas da força de trabalho caracterizadas como inaptas ao ingresso ou à permanência no sistema produtivo.Os assalariados não incluídos no atendimento de empresas médicas conveniadas ou pelo médico assalariado da própria indústria são atendidos pela rede previdenciária de assistência à saúde. O trabalho médico realizado na rede previdenciária, ao atender a força de trabalho e o exército de reserva, cumpre a mesma função do médico assalariado da indústria ou empresa de saúde, ou seja, de recuperar, manter e reproduzir a força de trabalho.

"Assim, selecionando, mantendo e recuperando a força de trabalho, aumentando a sua produtividade, diminuindo os riscos a que ela

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está submetida, a Medicina participa da organização do processo produtivo, diminuindo o tempo de trabalho necessário e aumentando a mais-valia produzida" (Arouca, 1978:143).

O trabalho do médico e das demais profissões de saúde, ao se realizar nos serviços beneficentes, centros ou postos de saúde, que atendem ao exército de reserva e às populações marginais, está ligado à superestrutura, cumprindo um papel político-ideológico significativo, ao disciplinar e controlar a população excedente do capital.

2º) A revolução técnico-científica e a população excedenteNa fase monopolista, o aumento da concentração do capital permite, através da racionalização, mecanização e automação, a revolução técnico-científica na indústria, na incessante busca do aumento de produtividade. Essas medidas provocam a redução na taxa de absorção da força de trabalho, proporcionalmente ao volume de capital acumulado. Ou seja, a revolução técnico-científica, introduzida na indústria ao final do século passado, diminuiu a força de trabalho contratada por ela própria. Este fato, às vezes, é encoberto com a expansão da produção de seus bens ao mercado consumidor, que resulta no aumento global do número de assalariados, mas a uma proporcionalidade reduzida.O processo de liberação contínua da força de trabalho reduz o número de trabalhadores realmente produtivos, amplia o número de

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trabalhadores do exército de reserva, aumenta a utilização do trabalhador em empregos ociosos ou nenhum emprego.Braverman (1981:204-5), ao analisar os dados do censo do Departamento de Estatística do Trabalho dos Estados Unidos, verificou que do universo de trabalhadores não agrícolas no período de 1920 a 1970 houve uma redução na porcentagem de trabalhadores contratados pelas indústrias fabris, de construção e outras "fabricantes de bens". Em relação ao número total de trabalhadores não agrícolas, a porcentagem de trabalhadores contratados era de 46,6% em 1920, passando a 33,0% em 1970. De fato, considerando-se a fonte idônea, pode-se constatar uma redução no índice de assimilação de trabalhadores na indústria, apesar do aumento absoluto da população trabalhadora ocupada na fabricação de bens. A outra face do deslocamento da população está ligada ao aumento absoluto e relativo do setor terciário.O excedente de trabalhadores liberados da indústria vai ser absorvido em novas ocupações, transformando-se a estrutura ocupacional da classe trabalhadora. Muitas destas ocupações vão surgir no setor terciário, responsável pela assimi-lação de parcelas cada vez maiores da força de trabalho. O setor terciário, funcionando a uma taxa de exploração maior que a da indústria, também introduz em determinados setores a racionalização do trabalho, liberando novo contingente de trabalhadores. Parte desse contingente liberado, amplamente não

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sindicalizada e retirada da reserva de pauperizados da sociedade, é assimilada por novos setores de baixa remuneração, que são menos suscetíveis à mudança tecnológica e requerem pequeno capital inicial. A intensidade da exploração e opressão nestes setores é imensamente maior que nos setores mecanizados da produção.Outra parcela desse contingente de trabalhadores vai ampliar o exército de reserva ou população excedente relativa na sua forma11

flutuante e na forma estagnada.A primeira delas, a forma flutuante, é constituída pelos trabalhadores que vão de função a função e segundo os movimentos da tecnologia e do capital, sendo contratados é depois descontratados. O desemprego entremeia esses períodos de ascenso e refluxo do setor industrial e de serviços. Nos países onde se estabeleceu o seguro-desemprego ele funciona como um salário reduzido, a partir das contribuições cobradas durante os períodos de emprego.

"[...] o sistema de seguro-desemprego [...]; é em parte uma garantia contra o desemprego prolongado, em parte o reconhecimento dos papéis desempenhados pelos trabalhadores, ora

11 Marx (1982, Livro I, V. 11:743-52) distinguiu três formas do exército de reserva, incluindo, além das duas supramencionadas, a forma latente, que está fora do movimento de trabalho, e é aquela que se encontra nas zonas agrícolas, resultado da falta de movimentos de atração compensatórios à repulsão dos "liberados" pela revolução tecnológica agrícola. Ela não contém os contingentes liberados das cidades e zonas metropolitanas.

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como parte dos empregados ora como parte das reservas do trabalho" (Braverman, 1981:327).

A outra forma, a população excedente relativa estagnada, é empregada de maneira irregular, eventual, marginal e se mistura com outro sedimento da população que vive em condições de miséria — as populações marginais.A concentração do capital cria (e recria) uma massa de trabalhadores desempregada, o exército de reserva, que exerce pressão sobre o mercado de trabalho, puxando para baixo a massa de salários e desempenhando, por isso, um importante papel no processo de acumulação. “Todo trabalhador dela faz parte durante o tempo em que está desempregado ou parcialmente empregado" (Possas, 1981:48).Em outro trecho de seu livro Saúde e Trabalho, Cristina Possas amplia o conceito:

"Assim, o trabalho excessivo da parte empregada da classe trabalhadora engrossa as fileiras de seu exército de reserva, enquanto inversamente a forte pressão que este exerce sobre aquela, através da concorrência, compele-a ao trabalho excessivo e a sujeitar-se às exigências do capital" (p. 54-5).Assim, percebe-se que a existência do exército de reserva não ocorre somente por necessidade de se manter baixa a massa de salários, mas também de sua sujeição às condições adversas de ritmo, insalubridade, jornada de trabalho, alie-

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nação, ou seja, da produtividade planejada para o setor.Outra parcela da população categorizada como "excedente" aos interesses do capital são as populações marginais, pauperizadas. A acumulação do capital e o progresso técnico criam e ampliam essa faixa da população que, por sua vez, está cronicamente afastada do sistema produtivo, cuja participação na economia somente ocorre em picos de aceleração do processo de acumulação.Nela estão os indivíduos alijados pela divisão do trabalho: os que ultrapassam a idade normal de um trabalhador, as vítimas da indústria, os deficientes, enfermos, viúvas etc.Marx inclui o pauperismo como categoria autônoma a ser analisada na superpopulação relativa:

"Finalmente, o mais profundo sedimento da superpopulação relativa vegeta no inferno da indigência, do pauperismo. [...] O pauperismo constitui o asilo dos inválidos do exército ativo dos trabalhadores e o peso morto do exército industrial de reserva" (Marx, L. I, V. II, 1982:746-7).

A "massa marginal", o pauperismo, é ampliada ainda mais nos países dependentes que, pela industrialização tardia, tendem a liberar mão-de-obra do campo e das formas de produção anteriores sem haver a expansão acentuada de empregos no mercado de trabalho. Elas vêm

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engrossar as massas humanas na periferia das cidades.A proletarização e pauperização de contingentes mais amplos da sociedade acarretam, por conseqüência, a elevação das taxas de morbidade (doenças) e a redução do tempo de vida médio da população. A miséria e a insegurança tornam-se permanentes no seio das nações capitalistas, extrapolando a capacidade das entidades filantrópicas privadas de controlá-las (cf. Braverman, op. cit.:244).O papel do Estado no capitalismo m onopolista é ampliado de modo a. interferir nas lacunas e contradições mais agudas da acumulação do capital, tornando-se complexo e requintado. Ele intervém no processo de concentração do capital de universalização d a economia através de medidas econômicas e políticas, trabalha com um orçamento absoluto e relativo ampliado e se efetiva pelos mecanismos repressivos e coercitivos, e pelos mecanismos político-ideológicos, que se concretizam, por meio de um discurso igualitário e universal, nas instituições escolares, de saúde, de comunicações e outros serviços.

"E muitos desses 'serviços' como prisões, polícia e 'assistência social' expandem-se extraordinariamente devido à amargurada e antagonística vida social das cidades" (Braverman, 1981:245).

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Minimizando as precárias condições de vida da população, o Estado capitalista implanta serviços de saúde pública e atendimento de urgência visando à erradicação e controle das doenças de massa a partir das ações de saúde sobre os membros da comunidade. O caráter social da doença não é absorvido pelo Estado. Berlinguer (1980:41) explicita esta determinação:

"A doença é um sofrimento individual, como sinal de um sofrimento coletivo, é assim como um sinal de alerta de que algo não vai bem com a coletividade. Se se cuida unicamente do sofrimento individual, ela vai se repetir em outros representantes da comunidade, pois a causa social não foi abolida."

Ao contrário da perspectiva apontada por Berlinguer, de transcender o atendimento individual, dirigindo-se da célula às causas sociais que adoecem o tecido social, as ações de saúde implementadas pelo Estado capitalista objetivam manter viva a força de trabalho necessária ao capital, aliviar a insegurança social, conter as tensões nas populações marginais e encobrir os imensos contrastes na existência dos homens, por meio de um discurso igualitário e universal e uma ação atenuante e pontual. Assim, de um lado, preserva-se a hegemonia burguesa sobre a sociedade civil, com a criação de instituições públicas de saúde, a subvenção a instituições asilares filantrópicas e entidades privadas, enfim, desenvolve-se um conjunto de medidas que

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serão chamadas de políticas sociais; de outro lado, atende-se a reivindicações e anseios das massas populares quanto à melhoria em suas condições de vida expressas em movimentos organizados ou em manifestações espontâneas de descontentamento que, por vezes, são violentas.O governo brasileiro, ao formular suas políticas sociais, como veremos em maior profundidade no capítulo seguinte, contribui para a acumulação do capital, também a partir do e no próprio sistema por ele planejado. De forma indireta, controlando e mantendo a força de trabalho irá gerar mais-valia ao capitalista e, diretamente, através da inclusão das empresas privadas de saúde no sistema previdenciário.As medidas de saúde pública, de assistência curativa individualizada e de reabilitação de incapacitados e deficientes vão se articulando no Brasil de maneira paulatina e contraditória. Urbach (in Moraes, 1973:140) nos alerta:

"Quanto maior o desenvolvimento econômico, e conseqüentemente quanto maior a complexidade social, maior é a importância da estrutura médica como elemento sustentador do edifício social."

3º) A divisão técnica na área de saúdeAs determinações da base econômica não se dão apenas na forma de assimilação do cuidado de saúde ou das relações de poder institucionais, mas também na estratificação dos serviços e do

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acesso aos cuidados de saúde pelas distintas classes sociais.A estrutura de saúde, seja a diretamente mantida pelo Estado, seja a sustentada pelas empresas médicas ou por entidades filantrópicas, incorpora a revolução técnico-científica da produção. Ao racionalizar, especializar e tecnicizar as práticas de saúde introduz novas modalidades ocupacionais: de um lado, os enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, e, de outra parte, os auxiliares, técnicos, atendentes de enfermagem, psicologia, terapia ocupacional, fisioterapia etc. Assim, o trabalhador individual é transformado em força socialmente combinada, em processo de trabalho coletivo.O espaço institucional torna-se mais hierarquizado ainda numa estrutura ocupacional que vai do atendente ao administrador, numa multiplicidade de instituições como os centros de saúde, ambulatórios, hospitais, centros de reabilitação, asilos etc.A hierarquia, em alguns setores, permanece confusa e descontrolada, pela transformação de profissionais liberais em assalariados e pelas disputas interdisciplinares quanto à supremacia médica e às áreas de fronteira12. A medicina, entretanto, ainda é a prática hegemônica na área de saúde, cuja autoridade lhe foi conferida historicamente.

12 Sobre a expansão de catorze profissões da área de saúde, a legislação específica e as áreas de conflito, ver Mary Jane Paris Spink. Regulamentação das profissões de saúde: o espaço de cada um. Fundação de Desenvolvimento Administrativo. Cadernos FUNDAP. São Paulo: 5:( 10), julho/1985,24-43.

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As análises sociológicas sobre a questão da saúde freqüentemente enfocam a prática médica como agente principal e majoritário do setor. As outras práticas da área da saúde, até o presente momento, têm sido pouco analisadas sob a perspectiva sociológica.

A relação da medicina com a base econômica e a superestruturaAs várias situações de trabalho médico já foram analisadas por Antonio Sérgio S. Arouca (1978:132-55).A primeira situação a se defrontar é da transformação de profissionais liberais em assalariados ou empregadores. As categorias mais antigas são as que opõem maior resistência ao assalariamento, à sujeição das condições de trabalho coletivo, à incorporação a uma equipe multiprofissional. Além disso, a remuneração paga pelo Estado ou pelas entidades privadas é inferior à possibilidade de rendimentos a serem obtidos na relação comercial de venda do cuidado de saúde às classes hegemônicas. Mas, como a oferta de serviços de saúde se diversificou e ampliou, foi reduzida a população que paga o valor integral da consulta.O profissional liberal, conforme a análise de Arouca, realiza uma relação simples de troca entre o seu conhecimento corporificado e a utilização técnica com o paciente. O processo em si e o produto do ato não são dissociados, não havendo circulação do resultado deste trabalho. Mas, nesta relação comercial, não produtiva,

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existe o consumo de bens produzidos pelo setor industrial (equipamentos, instrumentos, aparelhos corretivos, medicamentos), cujo custo e sua dimensão técnica são incorporados ao valor do cuidado. Portanto, a produção e o consumo do cuidado realizam simultaneamente o valor das mercadorias deste setor industrial.De outro lado, como o trabalho de saúde é dirigido não só a indivíduos em si mas a classes sociais, o cuidado adquire significados distintos conforme o paciente, seja força de trabalho seja detentor dos meios de produção.No primeiro caso, o cuidado de saúde, ao manter e recuperar valores vitais, significa valor de uso da força de trabalho e valor de uso para o seu comprador, o empresário. Para as classes hegemônicas, o cuidado de saúde significa valor de uso que é a corporificação do capital no processo de extração da mais-valia.Em síntese, as funções específicas que o trabalho médico desempenha na sociedade capitalista, Souza e Veras (1983:13) agrupam em dois níveis:

1 - a nível econômicoa) de reparação [reprodução]13, e manutenção da força de trabalho;b) de consumo de uma indústria farmacêutica e de equipamentos;

13 Cabe acrescentar, a nível econômico, o objetivo da reprodução da força de trabalho que inclui as medidas preventivas gerais de combate às doenças bem como os programas de controle de natalidade e materno-infantil.

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c) do consumo do ato médico devido às especializações que obrigam um doente passar pelas mãos de vários médicos.2 - a nível político-ideológicoa) através da prática médica realiza-se um tipo de controle das condutas das diversas classes sociais. Em relação a diferentes aspectos das pessoas (alimentação, trabalho, reprodução, prazer, lazer etc...); "b) trata-se também de chegar a uma suavização dos conflitos sociais seja enfatizando uma aparente unidade social, através do aumento de consumo de serviços médicos, seja incorporando às políticas sociais alguns interesses efetivos das classes dominadas sem que isto chegue a ameaçar o sistema estabelecido."A medicina, como prática de saúde predominante no setor, cumpre papéis econômicos ligados à extração de mais-valia, ao consumo de medicamentos e equipamentos específicos ao setor saúde e à mercantilização do ato médico em si; além disso, no plano político-ideológico cumpre o papel de veicular e cimentar a ideologia dominante no que tange ao modo de levar a vida e às contradições da existência humana na sociedade capitalista.O papel ideológico da prática médica também é analisado por Donnangelo (1975, 1976) e Maccacaro, in Basaglia e outros (1980).A autora Madel Terezinha Luz alerta para a necessidade de se perscrutar o "longo caminho de mediações a ser retraçado em meandros muito complexos e contradições a serem

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investigadas" (1979:52), ao se analisarem as funções e relações das práticas de saúde ao nível econômico, político e ideológico para se evitar uma simplificação e estreitamento da realidade.A autora aponta também o papel "organizador" na economia brasileira das instituições médicas, a partir da centralização e planificação crescentes dos serviços médicos que, além de regulamentarem a oferta de serviços privados de saúde, garantem a contratação permanente destes serviços pelos órgãos estatais.Acrescenta-se, ainda, outro papel ideológico à medicina, ao definir "o verdadeiro saber" em relação à saúde. Na eleição da representação hegemônica sobre o que é saúde e o que é doença, a medicina, através de suas instituições, nega a 'Validade científica" a todo outro saber que não seja coerente com a racionalidade do sistema capitalista.Por suas funções político-ideológicas e econômicas a medicina vem sustentar o projeto capitalista.

"Nasce assim uma nova medicina científica, fiscalizadora e burguesa — amplamente vitoriosa nas batalhas contra a doença infecciosa e parasitária, mas somente onde ela interfere no desenvolvimento da produção: capaz de controlar com eficácia a situação higiênico-sanitária mas somente nos locais e nos momentos que foram definidos pela escolha do capital" (Maccacaro, in Basagliae outros, 1980:77).

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A análise realizada a respeito da medicina, onde foram explicitadas as determinações do econômico sobre as políticas e sobre esta prática de saúde, e seu respectivo papel político-ideológico, vem abrir um novo rumo para a medicina, em particular, e para aqueles que buscam o atendimento das necessidades de saúde das classes populares.Por ainda ser um veio de investigação recente, suas repercussões avançam no entendimento da dimensão social da saúde/doença, promovendo amplos debates sobre a política de saúde atual e a permanente necessidade de sua refor-mulação14. A nível específico, este tipo de investigação pretende atingir repercussões sobre o conhecimento técnico e as práticas de saúde no sentido de: desmistificar a concepção de saúde vigente, assimilando a determinação social sobre as enfermidades; desalienar o homem de seu processo histórico-social; remodelar as relações terapêuticas; integrar e filtrar o conhecimento e as ações técnicas e difundir e direcionar a prática profissional com a clientela e o movimento popular em busca de respostas às necessidades de saúde da população.Os objetivos acima expostos devem partir da dimensão organizativa e das representações sociais já produzidas na sociedade, de maneira

14 A VIII Conferência Nacional de Saúde, que, fato inédito, contou com quatro mil pessoas incluindo representantes de entidades populares e partidos políticos, aprovou proposta de criação de um Sistema Único de Saúde, que integre todos os serviços, de caráter universal, a serem progressivamente estatizados. Ler Relatório Final da VIII Conferência Nacional de Saúde, Brasília, 1986.

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que a reinvenção desta prática não a transforme em nova prática autoritária sobre a população.É nessa perspectiva que o desenvolvimento do monopólio no Brasil, no século XX, no interior das lutas entre trabalho e capital, e sua determinação sobre as políticas sociais serão objeto de estudo do capítulo seguinte, onde serão priorizadas as medidas destinadas à força de trabalho e população marginal.

2POLÍTICAS DE SAÚDE NO SÉCULO XX

FACE ÀS CONDIÇÕES ESTRUTURAIS DA SOCIEDADE BRASILEIRA

A compreensão das medidas de saúde destinadas à classe trabalhadora e populações marginais realizadas pelas instituições de saúde e expressas nas "políticas sociais" do Estado brasileiro requer o debate sobre o papel, a natureza e as formas de intervenção do Estado nas sociedades capitalistas contemporâneas, particularmente no Brasil, onde se desenvolveu o capitalismo tardio. O estudo das relações do Estado capitalista com as instituições de saúde foi realizado por Donnangelo e Pereira (1979), Foucault (1977), Paula, in Braga e Paula (1980) e Rosen (1979). No mesmo enfoque, o processo brasileiro foi analisado por Braga e Paula (1980), Donnangelo (1975), Machado, Loureiro, Luz e Muricy (1978) e Singer, Campos e Oliveira (1978).

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Cabe ressaltar que na sociedade capitalista o Estado estabelece "políticas sociais" e, especificamente, intervém sobre a saúde da população à medida que, de um lado, a conservação e reprodução da força de trabalho é requisitada pelas classes dominantes e, de outro, a reivindicação das camadas populares por melhores condições de vida também se concretiza em necessidades de saúde.A articulação e contraposição destes dois conjuntos de interesses se manifestam nos fenômenos de expansão ou retração das "políticas sociais".

HISTÓRIA DA MEDICINA INSTITUCIONAL NO BRASILA história da medicina institucional no Brasil, desde o início do século, pode ser vista sob duas formas de organização social: primeira, as ações de saúde pública, como as campanhas sanitárias promovidas pelo Estado, de caráter mais coletivo, destinadas à população em geral e, segunda, a assistência médica individualizada, mantida tanto pelas instituições previdenciárias quanto pelas empresas nos seus serviços médicos, destinada aos trabalhadores urbanos. Na prática constituem-se três subsistemas de saúde — a saúde pública, a medicina previdenciária e a medicina do trabalho — com destinos autônomos e sofrendo determinações distintas.Apesar desta relativa autonomia dos três subsistemas, Possas (1981) nos alerta:

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"Uma retrospectiva histórica permite justamente mostrar como, com a evolução do capitalismo no país, estas formas de organização tendem a uma complementaridade, articulando-se e convergindo para uma subordinação crescente ao sistema previdenciário e, portanto, à lógica da produção e da privatização das ações de saúde" (p. 184).

A análise das instituições de reabilitação e de asilamento, por pertencerem, em sua. maioria, à sociedade civil e terem vínculos esparsos e atuais com o sistema de saúde, não foi mencionada pela autora acima. Esta investigação busca associar estes espaços alijados do sistema à análise institucional da saúde brasileira.O Estado brasileiro tratará da saúde como questão social a partir da economia capitalista exportadora cafeeira, quando a divisão do trabalho implicou o assalariamento da força de trabalho e condições de sua manutenção e reprodução.Assim, o trabalho assalariado emerge a partir da dinâmica da economia exportadora capitalista cafeeira, que, segundo Cardoso de Mello (1986), se pauta em dois segmentos: um núcleo agrário-produtor de alimentos exportáveis e para o consumo interno; e o segmento urbano, a ele acoplado, que inclui comércio, financiamento, transportes, administração e indústrias.No momento do auge exportador, os lucros obtidos pelo complexo cafeeiro foram investidos

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em projetos industriais, principalmente entre 1890-1894.A política de imigração em massa supria as necessidades do núcleo produtivo e do segmento urbano do complexo cafeeiro, fornecendo, ainda, um excedente de força de trabalho que se tornava disponível ao capital industrial.Por esse mecanismo "a burguesia cafeeira foi a matriz social da burguesia industrial" (Cardoso de Mello, 1986:100) e, por seu turno, os escravos libertos e os imigrantes foram a matriz social do proletariado urbano e rural.A indústria nascente destinou-se à produção de bens de consumo para as classes assalariadas urbanas. Basicamente, eram fabricadas roupas, calçados e gêneros alimentícios básicos.Assim, o processo de industrialização no Brasil elegeu a produção de bens de consumo assalariado, especialmente o produto têxtil, além de ativar a agricultura mercantil de alimentos.A indústria pesada só foi iniciada após a metade do século, a partir da grande empresa oligopolista nacional.A capitalização tardia e a interdependência da produção brasileira em relação aos países centrais foram condicionantes do processo de desenvolvimento nacional.A oferta abundante de força de trabalho favoreceu a exploração das camadas assalariadas15 por meio de uma política de baixos

15 Cristina Possas, em seu livro Saúde e Trabalho (1984), ao apresentar as condições de existência das camadas populares no início do século, relata que: "[...] nas duas primeiras décadas do século, trabalhava-se ainda em média, em São Paulo, cerca de sessenta horas por semana. [...] Não havia contrato de

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salários, longas jornadas de trabalho, remuneração inferior de mulheres e menores, além de multas ou castigos corporais imputados aos assalariados por ocasião de falhas e infrações em serviço.A crescente industrialização no meio urbano, aliada à exploração da força de trabalho, introduziram imitações na vida das camadas populares.

"A formação de favelas, cortiços, vilas operárias confirma cada vez mais o espaço urbano como espaço social, espaço político, isto é, desenhado pela lógica da hierarquia social. Sujeito portanto à organização e ao controle político, isto é, à instituição da Ordem" (Luz, 1979:55).

Foi nesta conjuntura que, com a criação de sindicatos e associações mutuárias, o movimento trabalhista assumiu grandes proporções, promovendo desde greves setoriais até greves gerais, como as de 1917 e 1919. Em contrapartida, modificou-se a postura liberal do governo.Ora, se para a expansão e capitalização do sistema produtivo era imprescindível a existência do trabalho assalariado, a baixo custo, em contrapartida, as taxas de exploração da força de trabalho criavam condições de vida insatisfatórias à reprodução da força de trabalho. No rol das

trabalho. Os operários eram admitidos e despedidos verbalmente, sem aviso prévio e sem nenhum tipo de indenização. [...] Não havia férias ou descanso semanal remunerado, nem direito a licença remunerada para tratamento de saúde" (p. 193-4).

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carências engendradas no novo modo de produção, temos: os acidentes, as doenças de massa e a subnutrição. Para minimizar estas contradições, o Estado adotou medidas que impediram a redução e o extermínio da força de trabalho urbano pela morbidade/mortalidade, mantendo assim o fluxo imigratório e a expansão crescente das camadas assalariadas.As ações de saúde pública surgiram como respostas momentâneas a agudos problemas, como a Lei de Vacinação Obrigatória contra a Varíola, campanhas contra a febre amarela e a peste bubônica. Os programas sanitários destinam-se basicamente às áreas portuárias e regiões produtivas, coadunando-se com a política econômica agrário-exportadora nacional. As ações de saúde pública foram garantidas pelos estudos desenvolvidos nos institutos de pesquisa, como o Instituto Soroterápico de Manguinhoss — RJ, criado em 1899 (hoje Fundação Osvaldo Cruz), o Instituto Bacteriológico — SP, de 1892 (hoje Instituto Adolfo Lutz) e outros que se destinaram a produzir vacinas e soros antipestosos.Às duas escolas médicas no início do século (Rio de Janeiro e Bahia), no período cafeeiro, acrescentaram-se mais sete: no Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Paraná, Distrito Federal, São Paulo, Pará e Pernambuco. Devido ao aumento da categoria médica, aliado ao interesse do governo em centralizar e fiscalizar o setor, ficou definido na Constituição e no Código Penal de 1890 o monopólio dos médicos sobre a arte de curar.

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No que tange à assistência individualizada de saúde, a prática médica majoritária, de alto custo, era de cunho liberal.Excepcionalmente, havia os serviços médicos em determinadas empresas dirigidos aos seus funcionários. A medicina do trabalho que se inaugurava, no entanto, era a mesma praticada nos consultórios particulares dos médicos, com a distinção de o médico ser, naquele momento, um técnico assalariado da empresa.A assistência médica acessível à população pobre ficava restrita às iniciativas filantrópicas que "fundavam e mantinham as obras de misericórdia destinadas aos abrigos de indigentes, viajantes e doentes" (Singer e outros, 1978:96). Além disso, alguns estados federativos mantinham seus próprios asilos de alienados.Neste quadro, começaram a surgir, desde a primeira metade do século XIX, associações mutuárias organizadas no meio operário inicialmente com "objetivos puramente assis-tenciais: serviços médico-farmacêuticos, auxílio em caso de enfermidade, invalidez, velhice e funerais" (Possas, 1981: 197). Esse movimento de solidariedade de classe ampliou-se quantitativamente, sendo que, em alguns casos, as associações mutuárias começaram a ultrapassar seus limites assistenciais, ao reivindicar melhores condições de vida e trabalho aos seus associados.A passagem do mutualismo ao modelo das Caixas de Aposentadoria e Pensões deve ser entendida

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no contexto da intervenção do Estado nas relações entre capital e trabalho.Concluindo, este período de transformações de base econômica com a intervenção estatal e de intensas mobilizações populares fomentou a tecnologia médico-sanitária no Brasil. A introdução da "medicina científica" foi garantida pelos Estados desenvolvidos nos institutos de pesquisa, que forneceram as bases para a medicalização de nossa sociedade, ampliando a ação estatal na vida social (cf. Singer e outros, 1978:114-5).Neste contexto político, nos anos 20, o Estado modifica a sua postura marcadamente liberal para inaugurar "um processo de intervenção crescente do Estado no âmbito da problemática trabalhista" (Oliveira & Teixeira, 1985:21). Em 1919 (ano da segunda greve geral), é aprovada uma lei sobre indenizações por acidente de trabalho, por unanimidade considerada marco histórico da nossa legislação trabalhista.O movimento previdenciário brasileiro estatal foi projeto da classe empresarial brasileira, para garantir condições mínimas de estabilidade aos seus trabalhadores:

"[...] a imigração crescente necessária à expansão da força de trabalho, se contrapondo às entidades mutualistas. Assim, o projeto previdenciário pretendia esvaziar o movimento operário, introduzindo a assistência médica e reduzindo os efeitos das precárias condições de

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trabalho e do salário real próximo ao nível da subsistência" (cf. Braga, op. cit.:46).

A Lei Elói Chaves, de 1923, cria as Caixas de Aposentadoria e Pensões dos Ferroviários (CAPs, organizadas no âmbito de cada empresa). Outras leis promulgadas em anos seguintes criam as CAPs para outros setores vitais: transportes, exportação, indústria e bancos. A assistência médica e farmacêutica, além das aposentadorias e pensões destinadas a todos os empregados e dependentes, passam a ser custeadas pela arrecadação compulsória de uma taxa fixada de três por cento por trabalhador, um por cento sobre os lucros da empresa e uma taxa sobre os serviços, por parte da União. Essas entidades, formadas nas grandes empresas privadas e públicas, eram administradas por representantes de empregados e empregadores. O Estado assume o papel normatizador entre as classes sociais.

O PRIMEIRO GOVERNO VARGAS E O ESTADO NOVOO país enfrenta, ao final da década de 20, uma profunda crise econômica, em conseqüência da crise internacional e da maneira como o Brasil estava articulado com o mercado mundial. E no bojo desta crise que eclode a Revolução de 1930, que leva à presidência Getúlio Vargas. "A Revolução de 30 marca o fim da hegemonia agrário-exportadora e o início do predomínio da estrutura produtiva de base urbano- industrial"

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(Oliveira, 1972:9), na qual o Estado exerce a função de catalisador e articulador da acumulação do capital, destruindo o "excessivo" federalismo da Primeira República, inaugurando o processo de redução de autonomia dos diversos estados.As principais medidas adotadas pelo Estado na esfera econômica, a partir de 1930, foram: a regulamentação das leis entre o trabalho e o capital; a fixação de preços dos produtos em geral; a penalização do custo e rentabilidade para a exportação; os subsídios diretos à indústria e os investimentos em infra-estrutura urbana.A legislação trabalhista e aremuneração urbana superior à rural que vigoram nas cidades, associadas às demais medidas econômicas, promovem a afluência de grandes parcel as da população rural para vender sua força de trabalho ao setor industrial e usufruir as melhorias implementadas nas cidades. Em decorrência do aumento da força de trabalho urbano, parcialmente assimilado pelo setor industrial, constituiu-se o exército industrial de reserva, a partir da forma latente, ou seja, do incremento de assalariados do campo, conforme nota de rodapé 10 do capítulo anterior. A existência do exército de reserva permite não só a redução da massa de salários na indústria como também favorece o "horizonte médio para o cálculo empresarial" (Oliveira, 1972:12).Nesse contexto, o setor terciário — serviços — foi o responsável pela absorção dos incrementos da força de trabalho afluentes às cidades, a partir de

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uma gama variada de atividades e formas arcaicas de subsistência.O caráter nacional e orgânico das medidas do Estado ligadas à questão social inaugura o que hoje chamamos de "políticas sociais".No plano das políticas sociais, seguindo a lógica da centralização federal, cria-se, em 1930, o Ministério da Educação e Saúde, com dois Departamentos Nacionais, um de Educação e outro de Saúde.A política de saúde incorpora e reforma as unidades de âmbito estadual montadas nos anos 20. O Estado resolve interferir sobre os recursos das CAPs, criando os Institutos de Aposentadorias e Pensões — IAPs, passando a arrecadação tripartite a ser igualitária e a hegemonia administrativa estatal.Assim, o Estado passa a contribuir com um terço da arrecadação a partir de impostos cobrados sobre os produtos em geral, os trabalhadores com um índice variável conforme a categoria, de três a oito por cento e as empresas deixam de contribuir com uma parcela de seus lucros para arrecadar igual percentil ao de seus assalariados.A contribuição tripartite, paritária, tinha forte apelo ideológico: o governo Vargas chama a si a administração dos IAPs na medida em que injeta recursos no setor, as empresas e os empregados participam igualitariamente na sustentação da Previdência. A Previdência Social era pensada segundo o modelo de Seguro Social.No entanto, a parcela tripartite da União não era repassada, a não ser de forma irregular e parcial,

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e a mudança na arrecadação empresarial significou uma redução imediata e progressiva em sua contribuição, já que o avanço tecnológico historicamente vem diminuir a massa de assalariados por empresa. Além disso, a arrecadação, sendo pautada na folha salarial, tornou vulnerável o montante de recursos da Previdência para enfrentar "conjunturas econômicas recessivas e/ou injunções políticas" (Teixeira, 1986:23). Uma análise dinâmica vem mostrar que são basicamente os assalariados que sustentam a Previdência Social, de forma direta, via contribuição compulsória em seu salário, e, de forma indireta, como consumidores, via incorporação aos preços da mercadoria dos impostos e da contribuição empresarial.Os IAPs foram expandidos ao máximo para outros setores da economia, ampliando o volume de recursos. O Estado implanta uma política "contencionista" sobre os recursos, reduzindo o valor real do pecúlio (aposentadoria ou pensão) e da cobertura da assistência médica. Enquanto em 1929-30, o número de aposentadorias correspondia a vinte por cento dos segurados, em 1944-45 eram menos que seis por cento (cf. Oliveira, 1985:64).A orientação "contencionista", difundida pela tecnocracia que se instala na Previdência Social objetivava a capitalização de recursos do setor a serem investidos na sustentação de setores produtivos. O Estado adota a política de "sociali-zação das perdas" por pressão dos capitalistas. A contenção dos gastos públicos surge na medida

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em que foram reduzidas as arrecadações estatais simultaneamente ao aumento de atribuições do Estado.A capitalização do setor de saúde estende-se por todo o período do governo Vargas, de 1930 a 1945. Desde o início, as medidas colocadas em prática nos IAPs, "de contenção de despesas e de aumento das contribuições dos empregados provocaram protestos e manifestações contrárias dos trabalhadores" (Oliveira & Teixeira, 1984:108).A centralização da política de saúde pelo Estado nacional, e, em 1937, a coordenação efetiva dos Departamentos Estaduais de Saúde pelo Departamento Nacional de Saúde e Assistência Médico-Social, cria uma rede uniforme, onde se desenvolviam também os programas de higiene materno-infantil.

"[...] formada por uma Diretoria, uma Organização de Órgãos Centralizadores (serviços especiais de combate à tuberculose, à lepra, além de hospitais e laboratórios) e uma Coordenação de Órgãos Descentralizados (Centros de Saúde nas cidades maiores e postos de higiene na área rural)" (Braga, op. cit.: 54).

Este complexo de medidas da política social (expansão dos IAPs a novas categorias profissionais, o avanço da atenção à saúde para o interior do país), aliado às medidas repressivas

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de 1935/3716, o atrelamento das entidades sindi-cais ao Estado e a substituição das lideranças operárias), permitiu, contraditoriamente, que o novo regime — o Estado Novo — ampliasse a sua base de apoio social, incluindo parcelas da classe trabalhadora.O modelo de transição implementado na ditadura de Vargas produziu um baixo custo de reprodução do trabalhador urbano também a partir da formação do operariado rural, que serviu às culturas comerciais do mercado interno e externo. O operariado rural não ganhou estatuto de proletariado, mantendo-se num padrão primitivo rural com altas taxas de exploração da força de trabalho e sem qualquer assimilação à Previdência Social.Getúlio adota a política de "conta-gotas" na concessão de benefícios aos assalariados. Em 1940, a legislação trabalhista cria o salário mínimo, valor calculado rigorosamente como "salário de subsistência", isto é, de reprodução:

"Os critérios de fixação do primeiro salário mínimo levavam em conta as necessidades alimentares (em termos de calorias, de proteínas etc.) para um padrão de trabalhador que deveria

16l6 Este foi o período de corte radical da forma de relação entre o primeiro governo Vargas e as classes trabalhadoras. "[...] Entre 1936 e 1937 não se registra nenhuma greve, pois a Lei de Segurança Nacional, Estado de Sítio e Estado de Guerra são 'argumentos' de força contra qualquer pretensão. As prisões e intimidações levam ao recuo operário, o que, por sua vez, permite ao Ministério do Trabalho começar a substituir gradativamente a verdadeira liderança sindical operária [...]. Desta maneira, para o operariado, o Estado Novo começa em novembro de 1935" (Carone apud Oliveira & Teixeira, 1985:110).

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enfrentar um certo tipo de produção, com um certo tipo de força mecânica, comprometimento psíquico etc." (Oliveira, 1972:11).

Neste cálculo não foram incluídas outras necessidades do trabalhador, como o lazer, os ganhos de produtividade e a possibilidade de expansão da força de trabalho. Em 1943, promulga-se uma nova CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) e se inicia a legislação sobre a assistência aos incapacitados do aparelho locomotor.O modelo de transição produziu, em contrapartida, uma maior concentração de renda a partir do aumento da taxa de exploração da força de trabalho e do aumento da produtividade industrial.Por sua vez, houve uma reorganização no Ministério da Educação e Saúde, em 1941. O Departamento Nacional de Saúde foi composto pelos Serviços Nacionais de Doenças Mentais, Tuberculose, Peste, Malária, Câncer, Febre Ama-rela, além do Departamento Nacional da Criança, criado em 1940, e outros ligados a questões operacionais (cf. Braga, op. cit.: 55-6). Esta estrutura será mantida mesmo após a criação do Ministério da Saúde, em 1953.

O PERÍODO DE TRANSIÇÃO DE 1945-50O período de democratização que se segue à deposição do ditador Getúlio Vargas leva à presidência o General Eurico Gaspar Dutra (de 1946 a 1950), sob a égide de uma nova

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Constituição elaborada por uma Assembléia Constituinte, em 1946, e sob a hegemonia das forças políticas oligárquicas e liberais, organizadas principalmente na União Democrática Nacional (UDN), adversas ao nacionalismo econômico, ao dirigismo estatal e à participação das massas no processo político. Ao nível da economia, em nome da "democracia representativa", instalaram-se no governo os princípios da "livre iniciativa" e de "igualdade de direitos para nacionais e estrangeiros". Foi criada, em 1948, a Comissão Mista Brasileiro-Americana, conhecida como Missão Abbink, que, em 1948, desenvolveu a associação entre grupos econômicos brasileiros e norte-americanos e os vinculou à Organização dos Estados Americanos — OEA, sob hegemonia dos Estados Unidos. A visão de desenvolvimento capitalista nacional foi abandonada em favor da tese da associação de capitais e interdependência.Nos anos críticos de 1945-46, a redemocratização do país permitiu uma politização maciça das massas urbanas, o que interferiu nos resultados das eleições nacionais, estaduais e municipais. O Partido Comunista do Brasil tornou-se o quarto partido nacional, com fortes relações com as massas urbanas, conseguindo importantes resultados nas eleições de 1945 e 1947.Em 1946, em contrapartida, o governo Dutra inicia o expurgo do funcionalismo público de membros do Partido Comunista, passando em seguida à repressão violenta de trabalhadores,

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intelectuais e chefes militares, a exemplo do que acontecia no Estado Novo (cf. Ianni, 1979:102).Esta política culminou com a colocação do Partido Comunista do Brasil na ilegalidade, em 1947, e a cassação dos mandatos de seus parlamentares, numa campanha anticomunista, que se coadunava com a política da Guerra Fria promovida principalmente pelo governo norte-americano.Paralelamente, cresce a importância do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que passa a mobilizar o proletariado industrial. Com a clandestinidade de Luís Carlos Prestes, Getúlio Vargas, e seu populismo trabalhista, ressurge como liderança popular, eliminando do primeiro plano do cenário nacional o reformismo socialista do PCB (cf. Ianni, 1979:103).As políticas sociais neste governo só tiveram destaque no Plano SALTE, que aplicou recursos orçamentários nas áreas de Saúde, Alimentação, Transportes e Energia. Apesar de ter sido um projeto para durar cinco anos, foi implementado parcialmente apenas nos anos de 49 a 51. Em 1952, o plano já estava praticamente abandonado. Os recursos da área de saúde foram aplicados em programas médico-assistenciais.A redemocratização da Previdência Social volta à tendência de repartição dos recursos arrecadados em benefícios pecuniários e serviços, minorando as medidas contencionistas dos anos 30-45.A transformação que se efetivou na política da Previdência Social brasileira — de um modelo contencionista de recursos a um modelo mais

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amplo de direitos da força de trabalho ativa e de seus dependentes — significou a adoção de outro modelo de política social, de caráter político-ideológico mais explícito. Dadas a influência e a duração deste novo modelo na Previdência Social brasileira vamos nos deter em sua análise.Após a segunda Guerra Mundial, os países capitalistas centrais esforçam-se em repensar a "Política Social" e as atribuições do Estado nesta área, superando a visão neoliberal e anti-intervencionista estatal.Na Europa, interesses tradicionalmente opostos coincidiram nesta etapa do desenvolvimento econômico. Do ponto de vista da base econômica temos, de um lado:

"[...] a passagem da fase concorrencial da acumulação capitalista para a fase monopolista [..], que passa crescentemente a se dar em função do aumento da produtividade do trabalho carecendo de um trabalhador mais qualificado e hígido (sadio)" (Teixeira, 1986:11-2).

De outro lado, a precária condição de vida da população européia após a segunda Guerra requeria a universalização da atenção à saúde a ser mantida pelo Estado, superando o modelo de cobertura previdenciária — Seguro Social —restrita aos assalariados, já que grande parte da população se encontrava pauperizada e os setores produtivos absorviam paulatinamente a força de trabalho disponível.

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No campo político-ideológico, o capitalismo se defrontava, de um lado, com a ascensão do socialismo (enquanto ideologia e forma de governo) e de outro com a ideologia nazi-fascista (esta derrotada militarmente). Ambos os adversários políticos possuíam medidas dirigidas às necessidades sociais que encontravam boa ressonância nas camadas populares.O projeto capitalista de "Estado de Bem-Estar Social" ou Seguridade Social, elaborado por Sir William Beveridge em 1942, foi implementado na Europa Ocidental sob os governos social-democratas e trabalhistas, onde o Estado assumiu grande parte dos custos do sistema aliado às contribuições individuais dos assalariados.

"A inclusão de temas 'sociais' na Carta do 'Atlântico', assinada pelos aliados após a guerra; o papel atribuído ao Bureau Internacional do Trabalho (mais tarde chamado de Organização Internacional do Trabalho), e o 'Plano Beveridge' são marcos deste projeto de hegemonia então em desenvolvimento. A democracia liberal procurava demonstrar, em síntese, que, como seus interlocutores (socialistas e nazistas), também tinha uma proposta avançada para a satisfação das 'necessidades sociais"' (Oliveira & Teixeira, 1985:176).

A Seguridade Social defendia a tese de uma concepção ampla de política social, universal, que favorecesse ações de saúde, higiene, educação,

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habitação, garantia de pleno emprego e redistribuição de renda, além dos benefícios pecuniários tradicionais. Os direitos sociais deixam de ser vinculados aos assalariados contribuintes da Previdência para serem direitos do cidadão, garantidos pelo Estado.O período pós-45 traz um clima de recolocação da questão previdenciária ao nível internacional em direção às teses da “Seguridade Social”.A Organização Internacional do Trabalho — OIT, nessa época, divulgou a Seguridade Social em suas reuniões internacionais, em eventos científicos que organizou, em documentos e nas revisões das Convenções Internacionais sobre o tema (cf. Oliveira & Teixeira, 1984:178).Os "intelectuais" da Previdência Social brasileira, especialmente os do IAPI (Industriários), assimilaram atese da Seguridade Social e a adaptaram à realidade brasileira. Se, de um íado, a economia capitalista brasileira também passava à fase monopolista, requerendo uma força de trabalho mais sadia, os serviços de saúde dos LAPs, segundo a diretriz distributivista, deviam ser ampliados e os demais benefícios deviam ser reajustados e distribuídos entre a população segurada, encerrando o período contencionista. De outro íado, estas medidas vieram reforçar a direção sindical populista além de serem uma medida política e ideológica eficiente no esvaziamento das bases operárias de orientação comunista visando à hegemonia sobre os assalariados.

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Entretanto, como os institutos preservaram uma relativa autonomia entre si e a lógica contencionista havia permitido financiar tanto projetos governamentais e setores da economia quanto o clientelismo da direção sindical (através da distribuição de benefícios segundo interesses eleitorais), a diretriz distributivista foi implementada estritamente por alguns lAPs. Esta somente foi generalizada a partir de 1960 pela Lei Orgânica da Previdência Social.Do ponto de vista do governo brasileiro, não havia crise social e econômica que requisitasse, para sua estabilização, medidas universais de melhoria das condições de vida da população. Então, dos princípios gerais da tese da Segurida-de Social alguns pontos nunca foram assimilados: que o Estado arcasse com o ônus dos planos aos previdenciários; que não fosse obrigatória a contribuição previdenciária para a obtenção do benefício; que o benefício não fosse proporcional ao salário; que houvesse o seguro-desemprego. Ou seja, o cerne do Plano de Seguridade Social — os direitos sociais como direitos da cidadania mantidos pelo Estado — não foi absorvido no Brasil, havendo assim uma ampliação dos be-nefícios a serem concedidos aos assalariados-contribuintes da Previdência.No interior das medidas de saúde da Seguridade Social foram incorporadas as medidas para a reabilitação física e mental, a partir das reivindicações militares e civis, articuladas no movimento internacional de reabilitação.

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O número de veteranos incapacitados na segunda Guerra veio catalisar o movimento de reabilitação encaminhado por entidades da sociedade civil integradas na Sociedade Internacional para o Bem-Estar dos Lesados17. Ele conquistou também o apoio da ONU — Organização da Nações Unidas, em 1946, além de suas Agências Especializadas das quais se destacaram a OIT, que incorporou os serviços de reabilitação às teses da Seguridade Social, e a OMS — Organização Mundial de Saúde, que forneceu bolsas aos vários continentes para a formação de técnicos especializados em reabilitação.Desde então, várias entidades brasileiras, como o IAPC (dos Comerciários) de São Paulo e Rio, a ABBR (Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação) e o Hospital das Clínicas da USP, implementaram pequenos programas de reabilitação para acidentados do trabalho, pacientes crônicos, deficientes sensoriais e físicos, com a assessoria de consultores da ONU, técnicos estrangeiros ou nacionais formados no exterior via colaboração da OIT ou OMS. Assim, foram introduzidas práticas especializadas em reabilitação inexistentes no Brasil. Dentre as novas profissões estava a terapia ocupacional, cujas raízes advêm do tratamento humanitário ao doente mental, em fins de 1700, e cuja expansão vinculou-se à recuperação de incapacitados e

17 Esta entidade não governamental, na década de 50, veio a se chamar Sociedade Internacional para a Reabilitação do Incapacitado e atualmente é conhecida por Reabilitação Internacional.

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outros doentes crônicos na Primeira e Segunda Guerra Mundial, quando se criaram cursos de formação nos Estados Unidos, no Canadá e na Inglaterra.No Brasil, os programas reabilitacionais introduziram-se, de um lado, pela lógica distributivista das entidades previdenciárias que propunha o amplo oferecimento de serviços de saúde, incluindo reabilitação, visando ao reengajamento do segurado na força de trabalho ativa e o fortalecimento das lideranças populistas e, de outro, pela ideologia assistencialista da burguesia, na qual cabia à sociedade civil prover recursos que reduzissem problemas específicos gerados no modo de produção capitalista, na perspectiva idealista de colaboração de classes e da sociedade como um todo harmônico, onde o problema social é desvinculado do sistema econômico.Em relação à política salarial, em todo o período do governo Dutra, o salário mínimo não foi aumentado uma única vez, apesar da crescente inflação de preços, reduzindo bastante o poder aquisitivo dos assalariados da indústria.

"[...] Os salários ficaram congelados, em sua maioria (principalmente o salário mínimo), enquanto o custo de vida, no Rio, subia, entre 1946 e 1951, de 62%" (Paul Singer, apud Ianni, 1979:101).

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A divisão social do trabalho promoveu a melhor configuração e representação das classes sociais no Brasil.

A PARTIR DO SEGUNDO GOVERNO VARGAS — 1950 A 1964A transição do governo Dutra para o segundo período governamental de Getúlio Vargas (1951-54) correspondeu a uma reorientação das relações entre o Estado e a Economia."A sociedade brasileira já estava bastante diferenciada, devido ao crescimento do setor industrial, à expansão do setor terciário e ao rápido crescimento dos centros urbanos dominantes (Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Recife, Belo Horizonte, Salvador e alguns outros)" (Ianni, 1979:110).O governo getulista introduziu no debate nacional a teoria do subdesenvolvimento, que assentou as bases do "desenvolvimentismo". A Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), criada no Chile em 1948, autora da teoria desenvolvimentista, recebia a hostilidade de empresários e governo dos Estados Unidos; conseqüentemente, o apoio getulista a estas teses e medidas econômicas elaboradas pela CEPAL o contrapunha aos interesses do capital estrangeiro, em particular do capital norte-americano, que em represália encerra a Comissão Mista Brasil - Estados Unidos, em 1953.As medidas adotadas entre 52-54 foram delineando a expansão e diferenciação do

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sistema econômico brasileiro, onde o poder público era indispensável.O salário mínimo sofreu algumas recuperações e oscilações, conforme o poder político dos trabalhadores, mas não chegou a atingir o poder aquisitivo do início dos anos 40, já que a inflação corroía o valor nominal dos salários (cf. Ianni, 1979:120).O segundo governo getulista assentou-se na política econômica de caráter nacionalista, e na política social de caráter trabalhista, onde a mobilização das massas populares era controlada pelo discurso populista e pela máquina estatal, num período de crise econômica interna (cf. Vieira, 1985:62-3). As políticas sociais reduziram-se a medidas setoriais contra problemas importantes e urgentes, mas sem aprofundamento e mudanças estruturais. No âmbito da Assistência Social, destacaram-se o Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS), a Legião Brasileira de Assistência (LBA), o Serviço Social da Indústria (SESI) e o Serviço Social do Comércio (SESC). A Assistência Social efetivava-se em suas várias modalidades de caráter particular, público ou semi-público."Aí se localizaram especialmente os asilos, os hospitais, as associações, que recebiam dotações de acordo com as possibilidades financeiras do País, em cada ano" (Id. ibid:55).

A política governamental populista, ao promover a monopolização da economia e, por associação,

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o aumento das massas marginais, adotou políticas de assistência dirigidas a estas camadas sociais, dados o grande contingente populacional que afluía às cidades e o receio da violência. O Estado chama a si o papel de controle e fomento das entidades assistencialistas, criando organismos centrais que cadastram e subvencionam as entidades, como a LBA. Isto garantiu que a institucionalização dos problemas sociais ao nível funcional, pelo fenômeno manifesto, esmorecesse seu vínculo às contradições da sociedade de classes, expandindo, ao mesmo tempo, a ideologia assistencialista do Estado, sua face democrática, humanitária e a hegemonia burguesa sobre essa população (cf. Quijano, in Pereira, 1978:184).No âmbito da Saúde Pública, o governo getulista propunha combater as falhas referentes a nutrição, saneamento, assistência médica e educação sanitária. Neste período auxiliou, também financeiramente, o ensino da enferma-gem bem como organizou a criação de novas escolas. Empreendeu uma série de campanhas contra as doenças de massa e pestilenciais, chagas, malária, febre amarela, peste, verminoses, tracoma e bouba, além de campanhas de erradicação das doenças venéreas e tuberculose. Junto às campanhas havia propostas de criação de novos estabelecimentos hospitalares e ambulatoriais e de ampliação dos existentes, dentre eles os destinados às doenças mentais (cf. Vieira, 1985:49).

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Em 1953, o governo Vargas cria o Ministério da Saúde de modo que se tornam específicas as verbas para a saúde coletiva cujos programas intervinham sobre uma grande causa de mortalidade da população — as infecções e parasitoses — predominantes na população infantil das camadas populares. Neste sentido, se, de um lado, a ascensão dos programas de saúde coletiva ao nível ministerial demonstra a atenção especial do Estado para com a saúde da população, de outro lado, o caráter nitidamente populista dessa medida revela-se ao se comparar o acréscimo de atribuições do Ministério da Saúde em relação à respectiva dotação orçamentária18 bem como pela não adoção simultânea de medida eficaz: a elevação de renda dos assalariados.Ao mesmo tempo que as medidas de saúde coletiva são desprestigiadas financeiramente, em 1º de maio de 1954 é aprovado o Regulamento Geral dos Institutos de Aposentadoria e Pensões, que define com visão abrangente o caráter de previdência e assistência das instituições aos segurados, ou seja, aos assalariados da ativa. Nessa medida, a ampliação dos programas de saúde da Previdência Social veio interferir sobre as doenças circulatórias que, segundo as estatísticas de saúde do período, já eram causas de morte de outro segmento populacional, as classes hegemônicas.

18 De 1950 a 1955, num período de desvalorização da moeda (cf. Vieira, 1985:49-50), o orçamento do Ministério da Saúde passou de 1,32% do orçamento federal a 5,45% e manteve-se inalterado ao nível estadual e municipal.

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"Os Institutos de Aposentadoria e Pensões têm por fim assegurar aos seus beneficiários os meios indispensáveis de manutenção, quando não se achem em condições de angariá-los por motivo de idade avançada, incapacidade, ou morte daqueles de quem dependiam economicamente, bem como a prestação de serviços que visem à proteção de sua saúde e concorram para o seu bem-estar" (Oliveira & Teixeira, 1985:161).O Regulamento Geral assumiu a diretriz distributivista para todos os IAPs, cabendo a cada qual efetivá-lo segundo sua relativa autonomia, orçamento, estrutura administrativa etc.A adoção do modelo distributivista na Previdência Social reforçou as lideranças sindicais populistas e garantiu a base de sustentação popular do segundo governo getulista. O populismo de Vargas mostrava às camadas populares a síntese do assistencialismo destinado à população marginal e do distributivismo nos IAPs voltado à força de trabalho ativa.A política norte-americana de alianças e absorções, o processo de internacionalização progressivo da reprodução e acumulação do capital, os interesses capitalistas locais de aliança ao capital estrangeiro, a desmobilização das classes moveram a deposição de Vargas em agosto de 54 e o fim das estratégias de formação do capitalismo nacional.No período de transição, entre a deposição e o suicídio de Vargas até a posse em janeiro de 1956 do candidato eleito, Juscelino Kubitschek de Oliveira, o poder político brasileiro esteve em

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crise, pelo antagonismo de posições gestadas nos anos anteriores.O Programa de Metas do Governo Juscelino Kubitschek acelera a acumulação do capital, de um lado, através da industrialização "pesada" (bens de produção e bens duráveis de consumo), com a transferência de tecnologia (ou trabalho morto externo), a partir do capital estrangeiro, lançando a capacidade produtiva à frente da demanda e, de outro lado, por meio do aumento da taxa de exploração da força de trabalho, quer se compare o salário real com o custo de reprodução da força de trabalho, quer se compare o salário real com a produtividade do setor.O avanço da urbanização aumentou o custo de reprodução da força de trabalho com a urbanização de vários de seus componentes: o transporte, a educação, a saúde, a energia elétrica, além do aumento de preços dos produtos industrializados, portanto, "o custo da reprodução também se mercantiliza, se industrializa" (Oliveira, 1972:52).Ao nível internacional, com a reativação e internacionalização do sistema econômico, associado à consolidação da hegemonia norte-americana sobre a Europa e o Japão, refor-mularam-se as relações econômicas, políticas e militares com os povos coloniais e dependentes. Agora, os governantes norte-americanos reconhecem a intervenção estatal na economia como uma garantia política e econômica para as empresas estrangeiras.

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O governo de Juscelino Kubitschek voltou-se a uma valorização extremada da política econômica, em prejuízo da política social."As metas econômicas do governo federal não só conviveram com precárias condições de vida da maioria da população brasileira, como ainda permitiram ocultá-las, através da febre desenvolvimentista" (Vieira, 1985:127).As políticas sociais pouca alteração organizativa tiveram e algumas medidas setoriais foram implementadas na Educação, Saúde Pública, Habitação Popular, Previdência Social e Assistência Social.Na Educação, em 1960, instala-se a Companhia Nacional de Educação e Reabilitação de Deficientes Mentais — CADEME, primeiro órgão federal específico ao deficiente mental, com dotação orçamentária própria, mas que somente inicia um planejamento cuidadoso após alguns anos de seu funcionamento (cf. Krynski & Clemente Filho, 1969:488).Em 1961, foi aprovado o Plano de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que favorecia ainda mais a mercantilização do ensino privado, a partir da utilização de fundos públicos. Foi criticado pela Campanha em Defesa da Escola Pública, campanha da sociedade civil que antevia a falência do ensino oficial. Nesse plano estava contemplada a educação especial destinada aos excepcionais.Na Saúde Pública, com um orçamento ministerial reduzido (cf. Vieira, 1985:118-9), foram empreendidas campanhas contra as doenças de

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massa, sobretudo a malária e a tuberculose, vinculadas à indigência social, ou seja, a parcelas da população "excedente" que vivia em condições de pauperismo (cf. Cap. 1:45-9).A Previdência Social manteve a diretriz da redemocratização de modo que a sua arrecadação era quase integralmente repassada em benefícios e serviços. A assistência médico- hospitalar destinada a segurados e dependentes absorvia, em média, uma boa parcela da arrecadação dos IAPs, cerca de dez por cento.Em 1960, o Ministério do Trabalho foi transformado em Ministério do Trabalho e Previdência Social. Assim, a saúde dos assalariados ficou politicamente caracterizada como componente da força de trabalho a ser planejada em conjunto com as políticas trabalhistas. Nesse mesmo ano, 1960, foi aprovada pelo Congresso e Executivo a Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS) que, após muitos anos de tramitação e reformulação,19

unifica o sistema previdenciário a todos os trabalhadores em regime de Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Permaneceram excluídos da LOPS os trabalhadores rurais, as empregadas domésticas e, naturalmente, os servidores civis e militares da União, estados, municípios e

19 O projeto original da LOPS era datado de 1947; os treze anos de tramitação do processo ocorreram pelas funções político-ideológicas que os IAPs cumpriam, tanto pela aplicação dos recursos em projetos governamentais e econômicos quanto pelo clientelismo localizado nos LAPs, conforme já relatado no governo Dutra. Sobre o processo de promulgação da LOPS ver Cohn (1980 - Cap. II).

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territórios, além de autarquias, que estivessem sujeitos a regimes próprios de previdência.A uniformização das atribuições dos institutos na LOPS ocorreu também pela crise do populismo, tanto nas classes dominantes quanto no sindicalismo populista, de tal forma que "a simbiose entre sindicatos e previdência social já havia perdido, em termos relativos, sua eficácia" (Cohn, 1980:33).A Lei Orgânica modificou os valores de sua arrecadação. Enquanto nos IAPs a contribuição variava entre três e oito por cento do salário, a LOPS fixou em oito por cento a contribuição do segurado, não excedendo a cinco vezes o valor do maior salário mínimo; para as empresas, quantia igual ao dos segurados. A arrecadação da União reduziu-se dos 33% previstos (e não realizados) a um valor variável de quinze a dez por cento restritos "às despesas de pagamento de pessoal e de administração geral da previdência bem como à cobertura de eventuais déficits orçamentários do sistema" (Possas, 1981:207). Na formulação da LOPS o Estado institucionalizou a redução de sua responsabilidade com o sustento da Previdência Social, desobrigando-se da contribuição igualitária tripartite e das dívidas acumuladas até então.Outra mudança radical foi a formulação abrangente da assistência médica, não sendo mais caracterizada como serviço "complementar", "condicional" aos limites financeiros. A LOPS prevê a compra de serviços

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de saúde do setor privado dos empregados, o financiamento para expansão de entidades beneficentes de saúde, o credenciamento de médicos, várias formas de concessão de assistência: via serviços públicos, privatização do sistema e via convênio com entidades assistenciais (Cf. Oliveira & Teixeira, 1985:161).Dentre as novas atribuições incorporadas na LOPS e destinadas aos beneficiários em geral estava a assistência reeducativa e de readaptação profissional. Havia, além disso, a assistência financeira, alimentar e habitacional, auxílio-reclusão, auxílio-funeral e o pecúlio.A transformação que se manifesta na política previdenciária, de um modelo contencionista para um modelo economicista, era justificada "tecnicamente", já que"a Previdência despendia muito dinheiro com benefícios por doença e invalidez e que, portanto, serviços médico- assistenciais e de recuperação podiam não só diminuir estas despesas como, ainda mais, aumentar a receita, pelo retorno mais rápido dos segurados em benefício à situação de segurados ativos" (Oliveira & Teixeira, 1985:174).O discurso economicista difundido por técnicos da Previdência Social também era absorvido pelas lideranças sindicais populistas. Assim, no II Congresso da Previdência Social, de 1957, o pronunciamento de um representante dos empregados, favorável à organização do serviço de readaptação profissional, que reforçaria em termos financeiros o IAPI, declarava:

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"[...] o trabalhador readaptado volta a ser o mesmo contribuinte para o instituto, 'não ficando eternamente na dependência do benefício e da assistência médica, sendo que, do contrário, 'não haverá receita no mundo que possa cobrir as despesas futuras do Instituto'" (apud Cohn, 1980:90).

A Previdência Social prepara-se para expandir o rol de sua assistência, à clientela acidentada no trabalho ou com doenças incapacitantes que, após um tratamento reabilitador, pudesse ser reincorporada à força de trabalho. Foi nesse sentido que a LOPS favoreceu a expansão de entidades beneficentes de saúde e dos serviços de reabilitação nos IAPs, ambos estruturas pioneiras na introdução de serviços multi-disciplinares de reabilitação no Brasil.A promulgação da LOPS, de um lado, foi um avanço na extensão de amplos benefícios aos segurados, derrotando o modelo contencionista, mas, de outro, não sanou as dificuldades financeiras crescentes nem criou mecanismos de estabilidade para os períodos de crise econômica, quando a baixa arrecadação e o déficit orçamentário vêm ocorrer, em grande parte, devido a problemas crônicos na arrecadação. A parcela tripartite do Estado atrasada nunca era quitada; os empregadores, mesmo processados, não recolhiam as contribuições de suas empresas ou sequer repassavam a arrecadação de seus empregados à Previdência. Em 1956, por exemplo, a arrecadação prevista só foi realizada

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em sessenta por cento, já que a União recolheu parcialmente a sua parcela e as empresas, incluindo a parte dos segurados, reteve 65% do total devido (cf. Oliveira & Teixeira, 1985:193). Ou seja, a ampla política previdenciária assume um caráter estritamente ideológico, já que o recolhimento das contribuições de capitalistas e governo não era efetivado nem havia punição para os infratores. O déficit orçamentário torna-se cada vez maior pelos problemas na arrecadação e pela elevação dos gastos.O governo populista que segue a JK é presidido por Jânio S. Quadros e João Goulart. O esquema inflacionário de acumulação de renda e acumulação de capital começa a enfrentar a mobilização de amplos setores da população na luta econômica. Dentre as classes empresariais ocorria uma disputa acentuada para que os interesses econômicos setoriais não fossem afetados, inexistindo ainda sua consolidação hegemônica.A mobilização econômica partiu dos assalariados de baixa renda e incluiu grupos das camadas médias como juízes, médicos, professores, atingindo, ao final, os trabalhadores agrícolas. Esse processo repercutia no plano político na "conscientização das massas", que eleitoralmente adquiriam características de classe.A classe média inicia a sua expansão a partir da nova estrutura produtiva, que, ao introduzir o maior parcelamento das atividades de mecanização, criou uma série de novas ocupações por ela absorvida. A classe média

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caracterizava-se pela heterogeneidade em sua composição e contradição de seus interesses, ora se aproximando aos dos assalariados e ora aos dos empresários.As tentativas populistas de conter a inflação sem prejudicar os variados interesses econômicos hegemônicos limitaram cada vez mais a utilização de medidas típicas do populismo para abrandar as reivindicações quanto à carestia de vida.

"Quando a taxa de elevação do custo de vida atingiu níveis cada vez maiores (acima de 50% ao ano, de 1961 em diante), a mobilização para a luta econômica não somente se tornou cada vez mais abrangente [...] mas esta mobilização tornou-se quase permanente, pois mal um reajustamento havia sido ganho, impunha-se logo preparar a luta pelo próximo" (Singer, 1975:30).

O fracasso das medidas antiinflacionárias e a instabilidade política social levaria Jânio à tentativa de golpe por meio da renúncia. Fracassada tal iniciativa o governo João Goulart assume a presidência e paulatinamente vai esgotando a sua relação com os trabalhadores por não incorporar as demandas trabalhistas.Assim, na gestão João Goulart, "em 1963, com a lei que instituiu o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural buscava o governo estender a assistência médica a praticamente 100% da população do país" (Luz, 1979:58). No entanto, não eram sanadas as bases concretas que

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garantiriam a sua efetivação, ou seja, respectivamente, a reposição das perdas salariais havidas pela inflação e pelo projeto desenvolvimentista e a efetiva arrecadação tripartite para a Previdência Social (só a partir de 1970 esta lei teve condições materiais — econômicas e políticas — de ser aplicada).Ao final do governo Goulart, em 13/12/63, foi promulgado o Decreto 53.264, que estabelece as Normas para a Prestação da Reabilitação Profissional na Previdência Social. Assim, os serviços de reabilitação profissional já existentes nos IAPs foram centralizados na SUSERPS — Superintendência dos Serviços de Reabilitação Profissional da Previdência Social. A SUSERPS reuniu por regiões o pessoal técnico da área para prestar assistência e treinamento profissional aos segurados em gozo de benefício, qualquer que fosse o IAP de origem. A SUSERPS foi o gérmen dos Centros de Reabilitação Profissional que surgem após a unificação dos IAPs no INPS."Com recursos próprios e centralizada num organismo único, a Superintendência de Serviços de Reabilitação Profissional da Previdência Social, a Reabilitação começa na Previdência, ao contrário da Assistência Médica, com uma planificação nada demagógica: adstrita às possibilidades clínicas psicológicas e sociais do cliente e às de pessoal e material da própria SUSERPS" (Cerqueira, 1965:89).As iniciativas nas políticas sociais não minimizaram os efeitos da corrida inflacionária. As tentativas governamentais fracassaram frente

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à agressividade dos diferentes grupos de interesse:

"Os industriais clamavam por mais crédito, os agricultores exigiam preços mínimos maiores e enfrentavam o tabelamento de preços dos gêneros com boicotes, os assalariados reivindicavam aumentos de salários a intervalos cada vez menores, chegando no limite à escala móvel de salários, os assalariados agrícolas pediam o salário mínimo e as donas de casa o congelamento dos preços" (Singer, 1975:31).

Estas foram as condições que antecederam o golpe militar de 1964, que rompeu com as tentativas anteriores de democratização e com os governos populistas, exercendo um governo centralizado que ampliou a concentração da renda e a injeção de capital estrangeiro.

O GOVERNO MILITAR-CIVIL — 1964 A 1980A ditadura militar efetivou-se no país a partir da rearticulação da burguesia em torno dos interesses monopolísticos e contou com o apoio das camadas médias urbanas (estas se ampliaram consideravelmente a partir de 1964).O governo militar-civil que se instaura investe o Executivo de poderes constituintes, cassa mandatos legislativos federais, estaduais e municipais e retira os poderes políticos, de quem bem quer, por dez anos, e acaba por dissolver os partidos políticos. O General Castelo Branco, eleito de forma indireta, pelo amordaçado e

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esvaziado Congresso Nacional, permanece no poder de abril de 1964 a março de 6720. O próximo mandato presidencial é do Marechal Artur da Costa e Silva, que não passou seu mandato a outro, pois foi tolhido por um golpe de Estado. Estes militares, por sua vez, deram outra redação à Constituição de janeiro de 1967.

"As diretrizes constitucionais legadas por Castelo Branco ao País já não satisfaziam, dois anos depois, aos partidários do Movimento de 1964" (Vieira, 1985:189).

Em outubro de 1969, o General Emílio Garrastazu Médici chega à presidência, sendo substituído pelo General Ernesto Geisel, em 1974, e pelo General João Batista Figueiredo, em 1979. Ao longo desses anos, as classes subalternas foram postas de lado na luta política e econômica.Os poderes Legislativo e Judiciário, que entre 1964 e 1968 passaram por muitas dificuldades, a partir da edição do Ato Institucional no 5, AI-5, por Costa e Silva, tornaram-se instáveis. O AI-5 vigorou até Geisel, quando este o trocou pelo Estado de Sítio, Medidas de Emergência, Estado de Emergência e outras reformas.Na obra realizada pelo governo militar, a acumulação monopolística e o controle

20 Os governadores de todos os estados e uma série de prefeitos de cidades consideradas "área de segurança nacional" passam também a ser indicados pelo regime militar. Em 1978, também um terço dos senadores deixam de ser elegíveis, pois com o avanço da organização e insatisfação popular o regime temia perder a maioria do Congresso.

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inflacionário é resolvido à custa das classes assalariadas."De 1960 a 1970, 70% do crescimento da renda na economia foi apropriado pelos 5% mais ricos do país" (cf. Oliveira, 1972:63).

Em contrapartida, entre 1958 e 1969, o chefe de uma família operária perde 39,3% do salário e a família como um todo perde dez por cento; portanto, se em 1958, para sua sustentação, era necessário um membro da família trabalhando, em 1969, a família vem requerer no mínimo dois membros trabalhando (cf. Oliveira, 1972:57).As classes assalariadas, sujeitas à legislação do trabalho, ao padrão de reajustes instituídos pelo governo e a substituição da estabilidade pelo Fundo de Garantia pelo Tempo de Serviço — FGTS, vêem como resultado deste período de amordaçamento e repressão21 o "turn-over" dos empregados, a expulsão da força de trabalho ativa dos maiores de quarenta anos, contribuindo para o aumento da taxa de exploração.Para implantar essa política de acumulação acelerada, o aparelho estatal precisou criar as bases financeiras apropriadas à nova etapa, implementando reformas administrativas, tributárias, financeiras etc.O plano econômico imposto a partir de 1964 suspende os investimentos públicos e privados provocando forte recessão até 1967. A partir daí

21 "No período entre 1964 e 1970 foram feitas 483 intervenções no Ministério do Trabalho em Sindicatos, 49 intervenções em Federações e 4 em Confederações" (cf. Camargo e outros, 1975:131).

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define-se uma política seletiva de combate à inflação, aumentando-se os créditos e gastos governamentais e, com isso, monopoliza-se a economia brasileira. Surgem os conglomerados de empresas, unidade típica da estrutura monopolística.Com menor arrecadação, a capacidade de gasto público é ainda mais comprimida e, para suprir esta lacuna, a União recorre ao endividamento externo. Entre 1969 e 1971, a dívida externa cresceu 31%.No plano das políticas sociais, o regime autoritário de 1964 estabeleceu uma nova ordem em suas relações com a sociedade civil, especialmente com os assalariados, na qual a Previdência Social faz parte integrante dessa reorganização. As mudanças ocorridas até o final dos anos 70 vão ser abordadas nos seguintes tópicos: Previdência Social, Saúde Pública e Educação, que, apesar de serem dependentes uns dos outros, preservam uma relativa autonomia.Castelo Branco, via Ministério do Trabalho, intervém nos sindicatos e em todos os institutos da previdência. Muitos dos interventores dos IAPs eram tecnocratas do IAPI. Estes, em uma comissão específica para tratar da reorganização da previdência, estendem a assistência ao trabalhador rural e unificam a organização num novo ministério: o da Previdência Social. Esse plano foi combatido por vários setores mas, em 1966, é aprovado em plano menos amplo, de fusão dos antigos institutos em um Instituto

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Nacional da Previdência Social — INPS. As resistências foram as mesmas, mas a viabilidade financeira garantiu a criação do INPS, com a fusão dos IAPs, excetuando o Instituto dos Servidores Públicos (IPASE) e dos militares, extinguindo-se simultaneamente o Serviço de Alimentação da Previdência Social.A reformulação da política previdenciária levou em consideração que a assistência médica tinha elevado extremamente o seu custo em conseqüência das inovações científicas e tecnológicas no setor. O saber e a prática médica pautavam- se no maior uso de medicamentos, de serviços para diagnósticos e de equipamentos médicos. O ato médico se diversificava em especializações, diferenciando a mão-de-obra empregada. A divisão técnica do trabalho avança para o setor da saúde no momento de sua capitalização. Já no final dos anos 50, o hospital havia se transformado, a partir das inovações científicas e tecnológicas, no centro dos serviços de atenção individualizada de saúde por incluir as diferentes especialidades, os equipamentos e a infra-estrutura necessária.

"E como se, tardiamente, a atenção à saúde vivesse a sua Revolução Industrial; o cuidado deixou de ser artesanal ou manufatureiro — prestado pelo médico isolado e por serviços simplificados, e passou a assumir características de grande indústria — papel desempenhado pelo hospital moderno. Da mesma forma, o capital — enquanto valor que se reproduz — instalou-se na

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atenção médica, que passou a produzir mercadorias no sentido mais estrito da palavra" (Braga, in — & Paula, 1981:87-8).

Sendo mais elevado o custo da atenção individualizada à saúde, bloqueou-se o acesso da maioria da população a estes serviços, requisitando a capitalização do sistema previdenciário para o custeio da atenção à saúde e a generalização de seu consumo. As classes assalariadas, contribuintes dos IAPs, possuíam algumas unidades hospitalares próprias, mas em número insuficiente para a demanda global. A intervenção nos IAPs, em 1964, e sua unificação no INPS permitiram a centralização dos recursos previdenciários bem como sua transferência ao setor privado. A unificação dos IAPs foi também uma resposta ao aumento de demanda de saúde não absorvida pelas instituições de saúde.

"Essa situação traduziu-se pelas enormes 'filas' de atendimento dos hospitais e postos municipais, os quebra- quebras dos ambulatórios; e greves promovidas por enfermeiros e funcionários" (Almeida & Pêgo, in IBASE, 1983:65).

O processo unificador e centralizador da Previdência Social vem consolidar o projeto autoritário do governo militar. O INPS completou a exclusão dos beneficiários da previdência, extinguindo-se a representação de empregados e empregadores em seus conselhos. A ideologia da

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modernização administrativa das instituições estatais burocratizou o INPS e facilitou o estabelecimento de condições para uma privatização dos serviços de saúde prestados aos previdenciários. A política previdenciária adotada a partir da década de 60 elegeu a compra dos serviços das empresas de saúde através do convênio-empresa e financiou a construção, am-pliação e compra de equipamento para a rede hospitalar privada em detrimento da rede própria.O convênio-empresa foi regulamentado em 1964 e inaugurado no ABC paulista para atender a 72% da demanda do operariado que não possuía estes serviços pelo IAPI. Esta medida favoreceu a diminuição do absenteísmo e turn-over e o aumento da produtividade.Conforme analisa Cristina Possas, no livro Saúde e Trabalho (1981:236-7), em 1969, cerca de noventa por cento dos recursos previdenciários gastos em assistência médica foram comprados de terceiros e, desse montante, 75% foram pagos às empresas médicas e hospitais privados. Essa tendência se manteve durante os anos posteriores, sendo que, em 1978, os mesmos noventa por cento dos recursos da assistência médica continuaram sendo comprados de terceiros e, destes, a maior parte foi transferida ao setor privado. Ou seja, a expansão da assistência à saúde prestada pela Previdência Social seguiu um modelo privatizante, de cuidados médicos individualizados e

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primordialmente realizados em unidades hospitalares.A partir dessa ótica, os leitos da previdência ficaram na ociosidade, enquanto os da rede particular atingiam sua capacidade máxima.

"As intervenções nos hospitais próprios da Previdência Social caíram entre 1970 e 1976 de 4,2% para 2,6% do total de internações. Enquanto isso, as internações nos hospitais particulares passavam de 95% para 98%" (Cor-deiro, op. cit.:86).

Uma premissa básica dessa ideologia tecnocrata de segurança nacional é, segundo Malloy (1976):"[...] de que um programa de previdência social eficiente e benéfico diminui a tensão social e eleva o moral do trabalhador, contribuindo, desse modo, para o desenvolvimento e a segurança nacional" (p. 21).

A expansão da cobertura do INPS à população rural não ocorreu ainda neste momento, mas somente em 1971, sob a forma de um instituto de assistência rural (FUNRURAL), cujo atendimento era diferenciado dos demais previdenciários e basicamente se realizava através dos convênios com as santas casas de misericórdia. Em 1973, os empregados do-mésticos são integrados ao INPS, abrangendo praticamente cem por cento dos assalariados no Brasil.

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A abrangência dos serviços, ainda que não padronizada entre FUNRURAL, INPS, IPASE e os institutos dos militares vem legitimar o regime junto aos assalariados, como mecanismo de distensão do aumento da jornada de trabalho, arrocho salarial etc. (cf. Cordeiro, in IBASE, 1983:83).

Ao mesmo tempo que a política previdenciária elegeu a privatização na prestação de serviços aos assalariados, em 1967, o governo, no bojo de uma redefinição das áreas de competência do ministério, determina ao Ministério da Saúde as seguintes atribuições: elaboração da política nacional de saúde e realização de medidas preventivas; vigilância sanitária de portos e fronteiras; controle de medicamentos, alimentos e drogas; pesquisa e ensino de Saúde Pública e atendimento médico e paramédico prestado diretamente à população.Conseqüentemente a esta redefinição, em 1968, elaborou-se o "Plano de Coordenação das Atividades de Promoção e Recuperação da Saúde", posto em prática em algumas áreas experimentais."O importante no tocante a esse 'Plano' é o fato de que a dicotomia entre saúde coletiva e individual era assumida pelo governo e que desta dicotomia resultava a responsabilidade do MS [Ministério da Saúde], pelas medidas de caráter coletivo, cabendo ao setor privado conveniado com o governo a prestação das outras" (Luz, M. T., in Guimarães, 1979:161).

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Por sua vez, o Ministério da Saúde teve seu orçamento reduzido gradativamente; passando de 2,21% do orçamento global da União, em 1968, para 0,9%, em 1974. As atribuições de caráter coletivo foram bem prejudicadas, sendo paralisadas uma série de "[...] serviços de saúde pública, tais como o controle de doenças endêmicas e o cuidado à gestante e à população infantil e dos programas de vacinação, etc." (Cordeiro, op. cit.:84).A saúde coletiva foi se pauperizando paralelamente à amplitude orçamentária, tecnocrática e do contingente atendido pela Previdência Social. Em 1974, o INPS respondia por quinze milhões de segurados.Em 1974, no governo Geisel, a crise sanitária manifestada na epidemia de meningite, no aumento da mortalidade infantil e do ressurgimento e aumento de certas doenças endêmicas (como a tuberculose), desmascarava o "milagre econômico", quando o crescimento da economia não constituía o bem-estar social tão proclamado pela ditadura militar; ao contrário, os bolsões de miséria aumentavam em virtude da concentração de renda, da desvalorização do salário real e do orçamento reduzido das medidas de saúde coletiva.A resposta do Estado foi a criação do Ministério da Previdência e Assistência Social e o Conselho de Desenvolvimento Social, composto pelos ministérios da área social (Saúde, Previdência Social, Educação e Trabalho). Este último

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"deveria corrigir as distorções do modelo econômico" (cf. Cordeiro, op. cit.:85).O Ministério da Previdência e Assistência Social — PAS, por seu turno, foi composto pelo INPS, IPASE, SASSE, bem como pela LBA (Legião Brasileira de Assistência), FUNA- BEM (Fundação Nacional para o Bem-Estar do Menor) e CEME (Central de Medicamentos), com uma receita somente inferior ao orçamento da União, superando todos os outros ministérios. A junção, ao nível ministerial, de previdência social com assistência social retrata a visão ideológica do governo. De um lado, a lógica do capital sobre o atributo saúde como valor da força de trabalho ativa a ser garantida e dela — o atributo saúde — se extrair mais-valia; de outro lado, o contingente excluído pelo capital a ser institucionalizado por entidades públicas, semipúblicas ou particulares que, ao assumir a custódia, amenizam as tensões sociais. Assim, a partir da capitalização dos recursos recolhidos da força de trabalho ativa se extraem parcelas que mantinham institucionalizados os segmentos do exército de reserva e as populações marginais.No mesmo ano de sua criação, o Ministério da Previdência e Assistência Social estabelece o Plano de Pronta Ação — PAA, procedendo à expansão do convênio-empresa entre a empresa de médio e grande porte com as empresas de saúde e, assim, atendendo à ampliação da demanda. As despesas neste contrato seriam cobertas em um terço, pela devolução da contribuição devida à Previdência Social e os dois

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terços seguintes pelo abatimento no imposto de renda da firma.Além do convênio-empresa já existente, o PAA previa o pagamento — por unidades de serviço (US) — para contratos e convênios com empresas médicas. Esta modalidade promoveu o rápido crescimento das empresas de saúde, onde os atos médicos chegam a ser realizados desnecessariamente ou ainda são cobrados sem terem sido concretizados.Em 1975, aprova-se a Lei 6.229, que cria o Sistema Nacional de Saúde, definindo as funções do complexo de instituições de saúde e as áreas de competência dos ministérios e órgãos federais, estaduais e municipais. No entanto, apesar de a lei verificar a multiplicidade, concomitância e concorrência entre as ações de saúde, ela não estabeleceu mecanismos efetivos de sua integração, permanecendo as disputas entre as burocracias do Ministério de Saúde — pelo planejamento e ação coletiva, com precário orçamento e o Ministério da Previdência e Assistência Social, opulento, e diversificado nas formas de prestação e níveis de qualificação da assistência individualizada de saúde.A inoperância da Lei 6.229 manteve a duplicidade de ação dos serviços de saúde, sua descoordenação e ineficiência. Aliadas ao desperdício de recursos nos serviços públicos, mantinham-se a lucratividade e fraudes nas empresas e nos hospitais privados cujos resultados não alteram a realidade de doença das classes populares, mas promovem uma séria

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crise financeira na Previdência Social em 1978. Em 1977/78, as atividades médico-assistenciais foram centralizadas no Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social — INAMPS, "poderoso aparelho burocrático gerenciando o movimento da medicina empresarial" (Cordeiro, op. cit.:87).Em outubro de 1979, no governo Figueiredo, realizou-se o I Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, com novecentos participantes. As recomendações apontavam para a unificação de todo o sistema, direcionamento dos recursos para a expansão do setor primário de atenção à saúde, fortalecimento do setor público, substituição gradativa do empresariamento e criação de mecanismos de controle popular no sistema de saúde22.Essas recomendações foram parcialmente incorporadas ao Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde — PREV-SAUDE, proposto pelos ministérios da Saúde e Previdência Social, para estender a cobertura de serviços básicos para noventa por cento da população brasileira. Esse atendimento foi posteriormente mutilado pelo Conselho de Desenvolvimento Social e teve como inimigos a burocracia do INAMPS, da Federação Brasileira de Hospitais, da Associação Médica Brasileira e da Associação Brasileira de Medicina de Grupos.

22 Conclusões similares foram aprovadas na VIII Conferência Nacional de Saúde, Brasília, julho/86. Vide nota de rodapé ns 13, Cap. I, p. 55.

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A tendência privatizante, burocrática e autoritária dos anos 70 estende-se para a década posterior, que o presente trabalho não comporta analisar.Se, de um lado, as instituições de saúde e seus agentes sofrem as determinações do modelo econômico, políticas sociais específicas e da conjuntura, de outro lado, as condições de trabalho, a característica da clientela, as possibilidades de efetivação do discurso propagado pelas diretrizes governamentais, a percepção crítica dos agentes/pessoal/clientela sobre o processo promovem movimentos — mesmo que individuais ou localizados — de insatisfação, de reconhecimento da submissão, do autoritarismo institucional, da necessidade de transformação dessa realidade, de se transformarem em autores e atores de uma nova realidade social.A história do movimento de resistência no interior das instituições de saúde bem como nos bairros periféricos e outros espaços onde se buscaram respostas aos problemas de saúde ainda carece de registro e divulgação. Algumas experiências iniciadas nos anos 70 têm sido divulgadas, surgindo algumas publicações (Merhy, s.d.:44-53 e Cortazzo, 1984) não havendo, portanto, uma sistematização dos movimentos alternativos de saúde e o processo de ressurgimento da sociedade civil, fato que aponta a necessidade de pesquisas nesta direção.Diretriz semelhante à da Previdência, ou seja, a privatização, foi aplicada pela ditadura militar no setor da Educação, que abordaremos aqui, pelos

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desdobramentos em relação à formação de recursos humanos para a área de saúde. Preconiza-se a universalização do ensino primário, com a colaboração empresarial via"salário-educação", o ensino profissionalizante ao nível médio e a privatização do ensino superior ao nível médio, pautado no acordo MEC-USAID.A estrutura universitária é reformulada em 1967 com a centralização do ensino e pesquisa em departamentos de uma mesma área de conhecimento, cerceando o trabalho interdisciplinar. A Reforma Universitária cerceou a representação estudantil e tornou autoritárias as formas de decisão que culmina com o Decreto-Lei 477 que coíbe as manifestações políticas e os protestos dos setores universitários. Em 1968 vários decretos tratam da expansão das vagas no ensino superior, a partir do setor privado, em resposta à demanda das camadas médias.Nessa conjuntura, a expansão do ensino superior foi realizada por empresas particulares, a partir de cursos independentes. A área de saúde, que, nos anos 60, vinha ampliando as modalidades profissionais, se vê atada aos interesses econômicos e ideológicos vinculados ao setor para garantir a formação de seus recursos humanos. A qualidade e quantidade necessárias dos recursos humanos em saúde tornaram-se independentes, de um lado, da lucratividade do curso de investimento necessário à sua realização e, de outro lado, das necessidades

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históricas determinadas no modo de organização dos serviços de saúde.A demanda das organizações de saúde, que na maioria eram particulares, aliada "aos anseios de ascensão social das grandes camadas médias via escolarização sofisticada" (Quadra & Amâncio, in Guimarães, 1978:245), condicionaram a determinação das escolas e vagas a serem criadas na área de saúde.Do modelo privatizante da política de saúde requisitava-se a absorção de médicos e psicólogos para a área da indústria, enfermeiros para chefiar as unidades hospitalares e assistentes sociais. Em escala muito menor, estariam as necessidades da área preventiva e das unidades semi-públicas (entidades beneficentes), as quais absorvem uma variedade de profissionais além dos anteriormente citados, em condições de trabalho e remuneração mais precárias.A lucratividade de um curso da área de saúde se determina pela demanda dos alunos versus o investimento de capital injetado pela instituição de ensino. O primeiro fator — demanda de alunos — é determinado pela expansão das camadas médias urbanas que vêem nas ocupações da saúde um forte apelo ideológico assistencialista, a expectativa de ascensão social pelo exercício liberal da profissão ou pela generalização da assistência de saúde à população e a absorção pelo contingente feminino das carreiras e profissões — também desconhecidas — em contraposição às carreiras já desvalorizadas

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como Pedagogia a Serviço Social ou Letras (cf. Durand, 1985:7-8). Quanto ao investimento da instituição de ensino, de um lado vê-se a proliferação de cursos de baixo custo de investimento em professor, equipamento e recursos materiais, como Pedagogia, Serviço Social; mas o seu reverso, um curso de alto custo como Medicina também teve as vagas expandidas no setor privado de ensino pelo grande afluxo de alunos que determinou fortemente a seleção do alunato segundo sua condição financeira de custeio do curso.Resultante dessas múltiplas determinações, observa-se um aumento desproporcional no oferecimento de vagas para cursos de Psicologia em relação a cursos que requisitassem laboratórios, estágios e maior proporcionalidade docente/aluno como Enfermagem, Fisioterapia etc.Outra questão a ser lembrada é que as universidades públicas, criadas posteriormente à Reforma Universitária, já foram constituídas sob a estrutura de fundação, juridicamente meio caminho andado à privatização e ao controle e determinação do mercado de trabalho. As verbas para o Ministério da Educação e Cultura decresceram de 7,6% em 1970, a 4,31% em 1975, recuperando-se um pouco, em 1978, com 5,2%. Esta redução provocou a diminuição de vagas no ensino público e, por sua vez, ampliou a concorrência nos vestibulares, acabando por reservá-las aos membros das classes hegemônicas (cf. Vieira, op. cit.:215-6).

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Além disso, a participação de técnicos norte-americanos na elaboração da Reforma Universitária estabeleceu prioridades técnicas na aplicação destes recursos. A ideologia do "progresso empresarial" valorizou as ciências aplicadas, a engenharia, a administração; com isso, algumas áreas do conhecimento tornaram-se "desvalorizadas", como ocorreu com a área de saúde, exceção feita à medicina. Ou seja, a educação universitária foi "requisitada" a participar de um determinado tipo de desenvolvimento social, onde o progresso técnico, os conglomerados econômicos, requisitavam ocupações ligadas à gerência, e as demais áreas do conhecimento, se não colaboravam diretamente na produção — como a medicina e a psicologia da indústria — eram convocadas a cumprir papéis fundamentalmente no plano político-ideológico da sociedade de classes.A precariedade no funcionamento de vários cursos de saúde em instituições públicas ou particulares não impediu a sua abertura e continuidade.Os critérios técnicos para abertura e manutenção de cursos universitários exigidos pelos órgãos fiscalizadores não contemplavam a qualidade do atendimento prestado à população. Teoricamente, os Conselhos Profissionais é que teriam por atribuição zelar pelo nível de assistência prestada por sua categoria à população; entretanto, é incomum ocorrerem processos éticos que resultem em punição ou

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mesmo exclusão de profissionais desqualificados ou especuladores.Finalizando, as políticas sociais realizadas pelo regime autoritário através de atuação setorial e parcelar nas áreas de Educação, Saúde Pública e Previdência Social apresentam-se unidas e bem direcionadas na lógica da privatização dos serviços do ensino superior ao médio, da assistência à força de trabalho ativo, onde o Estado mantém a centralização e o controle, desobrigando-se paulatinamente das medidas sociais abrangentes que se manifestam na perda da qualidade do ensino de primeiro grau, das medidas de saúde coletiva e nas atividades assistenciais.O conjunto de medidas implementadas, associadas à política econômica e às medidas coercitivas, promoveu a desmobilização da sociedade civil no período de maior pauperização de nossa história.Entretanto, na segunda metade dos anos 70, a sociedade civil se fortalece e os movimentos sociais começam a se expressar em várias vertentes: no meio estudantil, pela reconstrução da UNE (União Nacional dos Estudantes); no meio sindical, pela retomada da luta salarial após a greve vitoriosa dos metalúrgicos da região do ABC, em 1978; no movimento feminista; no movimento dos negros; no meio popular, via Comunidades Eclesiais de Base e organizações independentes; no Movimento pelo Custo deVida; da Anistia e de Creches; em experiências localizadas de participação popular na gestão do

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serviço público, como o movimento de saúde da Zona Leste, de administrações municipais participativas (Campinas, Piracicaba, Lajes), além de manifestações desordenadas de revolta e insatisfação da população reprimida.O surgimento de todos esses movimentos mostra que parcelas crescentes da sociedade civil tomam consciência da contradição entre suas necessidades como cidadãos e grupos sociais, e as possibilidades de satisfação existentes dentro da estrutura social vigente (cf. Singer, in e outros, 1980:28).O movimento oposicionista também se expressa no plano eleitoral e parlamentar através do MDB (Movimento Democrático Brasileiro), partido da "oposição consentida", e em outros organismos partidários não oficiais, incorporando forças populares e setores que haviam sido excluídos da política, de tal forma que, ao final dos anos 70, a sociedade brasileira conquista o processo de abertura política e nova organização partidária e civil.Ao fim da década de 70; a experiência de novas lutas permitiu que se descobrisse a importância de romper o isolamento político de cada setor e que, para tanto, era necessária a articulação dos movimentos entre si em busca da democratização e transformações de base para o conjunto da sociedade.Concluindo, conforme análise realizada neste capítulo, o processo de monopolização da economia criou necessidades novas a serem realizadas pelo Estado. Nas primeiras décadas

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deste século, as ações do Estado no campo das políticas sociais foram implementadas através de medidas de saúde pública, de caráter coletivo, que mantivessem viva a força de trabalho no período de expansão das atividades industriais.Ao fortalecimento das necessidades sociais, iniciativas mutualistas e reivindicações trabalhistas, o Estado monopolista responde à pressão popular com a criação das Caixas de Aposentadorias e Pensões, onde também a assistência individualizada de saúde era realizada; assim desaqueciam-se as reivindicações por uma legislação trabalhista com os CAPs de trabalhadores ligados ao complexo exportador. Ou seja, o Estado vem responder à necessidade de manutenção dessa força de trabalho envolvida em setores vitais da economia numa perspectiva econômica, ao mesmo tempo que cimentava a igualdade de oportunidades que essa nova forma de organização social promovia, numa perspectiva político-ideológica.Com a diversificação da economia e a expansão da atividade industrial, o Estado é requisitado a participar ativamente do processo de hegemonia urbano-industrial. Essa necessidade político-econômica cria os Institutos de Aposentadoria e Pensões para outros setores da economia, a partir dos quais o Estado administra estes recursos, capitalizando e investindo segundo suas próprias prioridades. A lógica contencionista na Previdência Social vai basicamente de 1930 a 1945, durante o primeiro governo Vargas, no qual a expansão do serviço da Previdência garantiu

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uma base de apoio popular à ditadura que se implantou.Ao processo de democratização da sociedade iniciada em 1946, que foi delimitado pelos governos populistas que se sucederam, altera-se a lógica contencionista dos IAPs para uma lógica distributivista. Ela perdura até 64, com grande diferença entre os serviços e benefícios prestados pelos diferentes IAPs: IPA Comerciários, IA Marítimos, IA Bancários, IAP Industriários etc. As irregularidades na arrecadação empresarial e governamental foram tornando os orçamentos dos IAPs cada vez mais deficitários, tampouco conseguindo fazer frente às crises recessivas. A lógica economicista começa a influenciar os institutos financeiramente mais sólidos e nos quais grassavam os interesses político-eleitorais específicos.A necessidade de reordenamento entre as classes hegemônicas, vinculando-se ao capital internacional, e das relações de produção com as classes assalariadas e as populações marginais gestou o golpe de Estado de 1964.A uniformização da assistência no INPS, que garantiu as condições mínimas de reprodução da força de trabalho e parte do exército de reserva, aliada às medidas coletivas de caráter preventivo e custodiai, implementadas basicamente pelo Ministério da Saúde e voltadas às camadas populares e marginais, acrescidas das práticas de saúde liberais e beneficentes, vêm cobrir uma ampla gama de camadas sociais estruturadas a partir do modelo econômico monopolista,

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centralizador e autoritário. A integração e coordenação de todo esse complexo assistencial, pretendida desde 1975, não se realiza por haver interesses políticos específicos nas várias tecnocracias estatais, bem como os interesses econômicos imediatos das empresas de saúde conveniadas que se expandiram à custa dos recursos públicos e da ociosidade e ineficiência dos serviços estatais.As práticas de saúde nesta última década, paulatinamente, vêm se amalgamando a este complexo sistema de saúde, onde o atributo saúde é focalizado sob a ótica capitalista, de maneira que a expansão das modalidades ocupacionais em saúde se concretizavam a partir das funções desempenhadas a nível econômico, político e ideológico por cada uma destas modalidades.A vinculação das políticas de saúde brasileiras a uma dada realidade da assistência será tratada no próximo capítulo, em que se buscará enfocar a seguinte questão: como os serviços e práticas de reabilitação se articularam historicamente ao sistema de saúde existente, no período de 1950 a 1980, e quais funções econômicas, políticas e ideológicas foram desempenhadas por eles.

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A REABILITAÇÃO NO ESTADO BRASILEIRO DE 1950 A 1980

A análise dos serviços de reabilitação no Brasil, nas últimas três décadas, nos reporta a entidades da sociedade civil, alguns hospitais e instituições públicas que, em determinadas conjunturas político-econômicas, absorveram a problemática de saúde e recuperação dos acidentados, doentes mentais e deficientes.As concepções sobre o atendimento a ser prestado a essa população repercutem na estrutura posterior das instituições, que são transformadas de unidades asilares em entidades de reabilitação, nas quais se encontra inserida a terapia ocupacional. Os primeiros serviços especializados para deficientes e o atendimento aos doentes mentais serão tratados com maior profundidade por serem o berço da terapia ocupacional, além do que serão enfocados para se captar as práticas decorrentes do movimento internacional de reabilitação (cf. Soares, 1986c).

AS RAÍZES DA REABILITAÇÃO NO BRASILAs primeiras instituições brasileiras especializadas no atendimento de pessoas com incapacidades físicas, sensoriais ou doenças mentais foram fundadas na segunda metade do século passado.Para os deficientes sensoriais, o Imperial Instituto dos Meninos Cegos(RJ), atualmente chamado Instituto Benjamin Constant, foi fundado em 1854, tendo sido "a primeira instituição para a

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assistência à pessoa com deficiência" (Santos, 1984:14); logo após, em 1857, foi fundado também no Rio o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos que, neste século, recebeu o nome de Instituto Nacional de Educação dos Surdos. Em São Paulo, no início deste século, foi fundado o Instituto Padre Chico destinado ao abrigo dos deficientes visuais.Além dessas entidades, na sede do Império e na Província de São Paulo, foram fundados os hospitais de lázaros (de hanseníase), mantidos pelos governos locais para isolamento de doentes e familiares.Para os insanos mentais foi fundado o Hospital D. Pedro II, no Rio de Janeiro, em 1852: hospital amplo, destinado aos doentes mentais de todo o país, foi construído na perspectiva do tratamento humanitário, moral23. A província pioneira no atendimento a seus doentes mentais foi São Paulo, que, no mesmo ano, inaugura, em uma casa alugada, o Asilo Provisório de Alienados da Cidade de São Paulo. A partir daí os insanos brasileiros foram retirados das cadeias e enfermarias das Santas Casas, sendo "abolidas as correntes que serviam para conter os furiosos" (Fraletti, 1973:173).No Hospital D. Pedro II as ocupações eram realizadas nas oficinas de alfaiataria, marcenaria,

23 Esta forma de tratamento teve sua ascensão com a Revolução Francesa e, no entanto, seu declínio ocorreu já no século XIX (sobre o tema ler Medeiros, 1989:34-58). Ainda assim, influenciou a emergente psiquiatria brasileira. O tratamento moral propunha a suspensão das punições corporais, do uso de grilhões, e a retirada dos alienados das prisões construindo-se um Asilo no qual a vigilância, a estrutura da rotina institucional, as ocupações realizadas em oficinas e formas sutis de punição constituíam os alicerces do tratamento.

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sapataria, flores, e desfiação de estopa. Estas ocupações nos parecem similares às atividades urbanas ligadas ao setor secundário e terciário da economia nacional.Na virada do século (1898) inaugura-se a quarenta quilômetros de São Paulo o Hospital do Juqueri, com 1.400 alqueires, tendo sido criado e mantido pelo governo estadual para atender à demanda total de seus alienados. A direção era do psiquiatra Franco da Rocha, que, junto com Pacheco e Silva, seu sucessor, sob o nome de praxiterapia, introduziu o tratamento pelo trabalho, onde as atividades rurais, ligadas ao setor primário da economia, tiveram destaque.Em 1911, fundam-se no Rio de Janeiro duas colônias: a masculina, posteriormente chamada de Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, e a feminina, chamada Centro Psiquiátrico Nacional, em Engenho de Dentro. Em ambas eram realizadas atividades rurais como plantio de frutas, hortaliças e criação de animais. Além disso, na colônia masculina funcionavam oficinas de ferraria, mecânica, elétrica, carpintaria e marcenaria, tipografia e encadernação, sapataria, colchoaria e vassouraria e, por fim, pintura de paredes. Na colônia masculina, portanto, as ocupações realizadas se diversificaram do setor primário ao terciário da economia nacional.A partir da terapêutica pelo trabalho realizado no Hospital do Juqueri, posteriormente chamado de Hospital Franco da Rocha, o alienista Henrique de Oliveira Matos redigiu a tese inaugural da Cadeira de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP,

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intitulada Labortherapia nas Affecções Mentaes, em 1929. Esta tese, fundamentada no tratamento moral, também foi o marco inicial da produção científica brasileira em terapia ocupacional. Na primeira metade do século, os termos laborterapia, ergoterapia, praxiterapia e terapia ocupacional caracterizaram o uso terapêutico da ocupação. No entanto, após se constituírem a profissão e os cursos no Brasil, o termo terapia ocupacional tornou-se predominante.Conforme o registro de Matos (1929:61-2), as ocupações realizadas pelos 403 dos 1.022 doentes eram múltiplas: a agricultura (plantações, pomares, hortas), pecuária, oficina mecânica, carpintaria, colchoaria, rouparia, fabricação de cigarros, construções de pontes e unidades hospitalares, limpeza, transporte de alimentos, conserto de roupas, costura, bordados, banda de música, artesanato, desenhos e escrita de jornais internos. Dentre todas as ocupações, as atividades rurais eram as mais desenvolvidas, atendendo a um maior número de doentes. Matos declara:"Preferimos o trabalho agrícola ao industrial, pois é mais higiênico e mais vantajoso no ponto de vista therapeutico; além disso, a distribuição do trabalho é mais fácil ao trabalhador agrícola que ao operário industrial, principalmente nas condições econômicas actuaes do Brasil" (1929:6).A ocupação terapêutica predominante para os doentes mentais de São Paulo foi a atividade agropecuária simples com baixa utilização de

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equipamentos. Este fato sugere que o destino da mão-de-obra tratada no Hospital do Juqueri era o núcleo agrário da economia capitalista exportadora cafeeira cujo declínio em sua hegemonia foi marcado pelo êxodo de trabalhadores rurais às cidades para a estrutura produtiva urbano-industrial em ascensão (cf. Oliveira, 1972:9 e Cap. 11:58-64).A opção dos alienistas paulistas, a ser melhor analisada em trabalhos posteriores, pode traduzir a função econômica cumprida pelos doentes mentais recuperados no incremento da força de trabalho rural e/ou de seu exército de reserva no momento de declínio da hegemonia agrário-exportadora.A assistência aos deficientes mentais brasileiros teve um início promissor no Estado de Minas Gerais, por iniciativa do governo estadual, quando foi introduzido na rede estadual de ensino, no ano de 1929, a educação especializada para crianças deficientes mensais e portadoras de problemas emocionais.Helena Antipoff, psicóloga russa, foi convidada a integrar o grupo responsável pela formação e supervisão dos professores especiais na Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico. Ela se tornou uma agente importante de formação de recursos humanos para o setor, fomentando também a criação de entidades da sociedade civil destinadas ao atendimento do deficiente mental.Em 1931, cria-se um sistema pioneiro de atenção ao doente mental: a Assistência a Psicopatas para o Estado de Pernambuco. Este modelo, com

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oferta diversificada de serviços, introduziu, também, a ocupação terapêutica no Nordeste. Ele era mantido por verbas estaduais e foi elaborado pelo neuro-higienista Ulisses Pernambuco. O sistema era constituído por um Ambulatório (o primeiro ambulatório público do país), um serviço aberto, um serviço de Higiene Mental; ao nível preventivo: um Hospital Psiquiátrico para casos agudos, um Manicômio Judiciário e duas Colônias Agrícolas; para crônicos: uma masculina, em Barreiros; e outra feminina, perto de Recife, depois denominada Colônia Ulisses Pernambuco. Esses serviços funcionaram com equipes multiprofissionais numa perspectiva de intervenção institucional e de ação comunitária extra-hospitalar (cf. Cerqueira, 1984:27-9), de modo a integrar a atenção preventiva, curativa e de reabilitação.A reabilitação dos doentes mentais na colônia masculina se pautava no trabalho agropecuário. Lá os doentes moravam em casas que eles mesmos construíam, cultivavam suas roças, pescavam e ainda forneciam farinha para os outros hospitais do estado."Na Colônia as porcentagens de pacientes ocupados aproximavam-se às de Simon, cujo livro Tratamiento Ocupacional de los Enfermos Mentales, 1937, já traduzido para o espanhol, todos os discípulos de Ulisses se consideravam na obrigação de ler" (Cerqueira, 1984:28).A ocupação terapêutica nos hospitais de alienados no Brasil foi relatada por Arruda (1962), Brunetto (1975), Castro (1961), Cerqueira (1965,

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1984), Greco (1981), Lancman (1988) e Silveira (1976).A ocupação terapêutica vinculada ao tratamento moral se alastra até as primeiras décadas do século XX, quando a concepção organicista da doença mental, que atribui etiologia anatômica, bioquímica ou endócrina às doenças mentais.torna-se hegemônica na psiquiatria. O doente mental vem a ser objeto de estudo clínico e cirúrgico, investigando-se as alterações encefálicas que seriam responsáveis pelas manifestações na conduta do doente mental. O uso da ocupação terapêutica torna-se descontínua tanto pela concepção psiquiátrica dominante que ora a desprestigiava, quanto pelas políticas públicas que ora continham seus recursos.No primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-45), a orientação "contencionista" nas políticas sociais, aliada à centralização da política de saúde do Ministério da Educação e Saúde, promoveu a expansão de serviços para o interior do país (cf. Cap. 11:63-7), só que às custas de falta de pessoal, corte de verbas para os hospitais públicos e superpopulação hospitalar. Além disso, o crescimento da industrialização promovida pelo Estado foi decorrente também do aumento da taxa de exploração da mão-de-obra garantida pela constituição do exército de reserva. Assim, a expansão da população excedente do capital (cf. Cap. 1:45-9) a partir da força de trabalho rural e urbana deve ter declinado a necessidade econômica de

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reassimilação do doente mental à força de trabalho rural.O Estado Novo e a mudança na ordem político-econômica piorou as condições de vida da população e reduziu as verbas para o setor de saúde. Essas medidas provocaram sérios prejuízos à assistência psiquiátrica brasileira, em especial ao serviço em Engenho de Dentro, RJ e à Assistência a Psicopatas de Pernambuco que sofreram, além da repressão, a prisão e o afastamento de inúmeros civis dos cargos públicos, entre eles a doutora Nise da Silveira e o doutor Ulisses Pernambuco. Com estas medidas, diminuídas as condições de tratamento e resistência de profissionais do setor, obteve-se a superpopulação hospitalar.O grande aumento da população do Hospital do Juqueri, por exemplo, que ao final da década de 20 tinha cerca de 1.000 doentes, ocorreu no período de 1939 a 1942 "pela transferência de todos os alienados das cadeias do interior" conforme registra Fraletti, psiquiatra organicista, ex-diretor doHospi- tal (1973:183). Este autor, no entanto, considerou salutar a atitude do então interventor posto, que "desafogava" as cadeias separando os loucos dos presos comuns. Agravando um pouco mais o quadro da superpopulação, estavam as precárias condições de conservação dos hospitais e o número restrito e desinformado de funcionários.A assistência aos doentes mentais foi levemente modificada somente no final do primeiro governo de Getúlio Vargas, quando este buscou

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implementar algumas políticas sociais visando obter o apoio popular a seu governo.Em 1944, é promulgado o Regulamento de Lei que estrutura o Serviço Nacional de Doenças Mentais e reconhece a existência de serviços abertos, fechados e mistos. Apesar de a regulamentação prever os ambulatórios psiquiátricos, estes não foram implantados24.Os programas para os incapacitados físicos só emergem a partir do movimento internacional de reabilitação, nos anos 40. Segundo a análise da terapeuta ocupacional norte-americana, Anne C. Mosey (1979:47), o movimento de reabilitação existiu em função das falhas nas instituições sociais, família, escola e medicina organizada. A independência, possibilitada pelos programas de reabilitação, a vantagem econômica para a sociedade e o aumento no número de pessoas incapacitadas pelo próprio avanço da ciência, impulsionado pelos veteranos de guerra incapacitados, transformaram a reabilitação no terceiro nível de atenção à saúde, praticada a partir da instalação da incapacidade (por deficiências congênitas, moléstias crônicas, acidentes de trabalho, de trânsito, domésticos ou pelas doenças ocupacionais).O discurso sobre a Seguridade Social e a visão assistencialista da incapacidade são assimilados pela Previdência

24 A tendência à superlotação continuou tanto que em 1953, conforme denunciou Gonçalves (1964:88-9), adepto da comunidade terapêutica, o volume de internações no Estado de São Paulo era de 14.348, passando em dois anos a 17.250. Deste total 90% estavam superlotados no Juqueri cuja capacidade era inferior à metade.

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Social brasileira encobrindo a necessidade dos países europeus de reincorporarem parcela da mão-de-obra acidentada ou inválida à sua força de trabalho ativa, resultado, em parte, da mortalidade advinda na Segunda Guerra Mundial e, em parte, da resposta do Estado à sua crise econômica e social (ver Cap. 11:69-73).A leitura das determinações da base econômica sobre este fenômeno social, a reabilitação do incapacitado, usualmente não é realizada pela literatura da área da saúde; e, quando ocorre, o econômico se vincula à reabilitação no interior das instituições da superestrutura como, por exemplo, na redução de gastos da Previdência Social com a reabilitação de seus aposentados por invalidez. Esta lógica, a economicista, relatada no capítulo anterior (80-1), identifica algumas relações superestruturais mas, por ser mais mecânica e superficial, necessita ser reinterpretada à luz de sua relação primordial com a base econômica.Na tentativa de fazer esta vinculação, identificamos que os serviços de reabilitação profissional subsidiados pelo governo norte-americano foram destinados inicialmente aos veteranos da Primeira Guerra (lei de 1917), no ano seguinte, aos acidentados da indústria (lei de 1918 e 1919), e durante a década seguinte, estes serviços foram ampliados à população civil (lei de 1920 e de 1923).No entanto, a depressão econômica dos anos 30 constituiu um período de crise e desvalorização da reabilitação de incapacitados, mesmo ao nível

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legislativo, que estabeleceu medidas restritivas, de um lado, ao emprego dos incapacitados na indústria e, de outro, à produtividade das indústrias hospitalares e oficinas protegidas, que passaram a funcionar a partir de então através do "princípio de manufatura para uso do Estado" (Scullin, 1975:9), i.é, produtos não comercializáveis, para consumo interno. Ora a força de trabalho dos incapacitados era absorvida na produção, ora era mantida na retaguarda, nas oficinas protegidas de trabalho dos hospitais e entidades.Esse vaivém dos trabalhadores incapacitados no mercado de trabalho traz evidências de sua dependência direta ao momento em que se encontra a economia. Quando existe expansão econômica os incapacitados são absorvidos, caso contrário, não o são. A força de trabalho dos incapacitados, portanto, faz parte do exército de reserva e interfere nele, pois é regulada pelo momento econômico do país.O papel regulador da força de trabalho dos incapacitados no exército de reserva se tornou mais nítido durante a Segunda Guerra Mundial, quando a América do Norte viveu um aumento na produção de bens (principalmente armamentos), absorvendo maciçamente os incapacitados à população economicamente ativa.O relato, ainda que longo, de Salazar y de Agüero (1956:36-7) é bem elucidativo:"Frente à escassez de braços e graças às urgências da guerra, milhares de deficientes foram desempenhar as funções industriais que

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ficaram vagas ao irem engrossar as fileiras do Exército, Marinha e Aeronáutica os indivíduos normais que antes as ocupavam. (...) Ao final de 1942 — durante a Segunda Guerra — a indústria absorveu tal número de lesados que parecia que somente os incapacitados severos não teriam trabalho; os lesados chegaram a ser vistos mais como elementos de êxito do que como elemento passivo no ambiente social e econômico da América do Norte" (tradução livre).Durante esse período, os serviços de reabilitação, a medicina física e a terapia ocupacional voltada às disfunções físicas tiveram grande expansão nas entidades públicas, Forças Armadas, instituições filantrópicas e particulares, sustentadas pelas taxas das companhias de seguro, segundo relatam Scullin (1975:12) e Salazar y de Agüero (1956:36).As evidências já apresentadas levam a crer que existe uma relação diretamente proporcional entre a expansão dos serviços de reabilitação com a carência de mão-de-obra na economia, requerendo, entretanto, maiores pesquisas sobre o vínculo da reabilitação com a base econômica.Um outro fato que nos alertou para esta vinculação econômica foi o artigo de Francisca Maltese (s.d.:7), que descreve o processo de instalação da linha de montagem na primeira década nos Estados Unidos, na indústria automo-bilística Ford.Para vencer a resistência dos assalariados ao parcelamento e desqualificação técnica dos operários, a empresa contratou deficientes físicos

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e sensoriais para a linha de montagem. A adaptação destes àquela nova forma de produ-ção forjou argumentos persuasivos que enalteceram a linha de montagem pela facilidade do trabalho individual. Assim, obteve-se um enorme afluxo de trabalhadores sadios para esta atividade industrial em expansão. Desta maneira foi implantado este novo processo produtivo, destituindo-se os antigos operários especializados pelos trabalhadores desqualificados.A força de trabalho dos incapacitados tem sido usualmente utilizada em condições insalubres de trabalho, em formas de produção que enfrentam resistência dos assalariados, em outras ocupações desvalorizadas pela força de trabalho ou, ainda, em última instância, no exército de reserva, conservando os baixos salários da parcela de trabalhadores contratada, que passa, então, a ser influenciada diretamente pelas políticas econômicas e sociais capitalistas.No seu vaivém histórico, a necessidade de reabilitação tem sido determinada pelo modelo econômico, que, ao promover condições insalubres de vida e trabalho, ainda favorece o crescimento da população enferma e de incapazes para o trabalho e novos contingentes marginais, além de, em determinados momentos específicos, requisitar a absorção de parcelas do exército de reserva estagnadas, onde está parte dos incapacitados.Em outros momentos, a necessidade de reabilitação cumpre funções no plano político-ideológico, quando as instituições e programas

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governamentais em sua aparente neutralidade face aos contraditórios interesses de classe se propõem minorar os efeitos negativos da industrialização, "reparando" as desigualdades sociais através do atendimento a necessidades específicas de saúde, sem alterar, de outro lado, as condições e os ambientes de trabalho e de vida que promovem a incapacidade ou a própria política econômica que gera o crescente pauperismo.Na segunda metade deste século surgem os primeiros serviços de reabilitação brasileiros que se estabeleceram em alguns hospitais gerais e psiquiátricos, seguidos das entidades beneficentes para o deficiente e dos programas de reabilitação profissional efetivados em alguns institutos da Previdência Social. O governo brasileiro, diferentemente dos países centrais, adotou o programa reabilitador anterior a uma expressiva demanda interna. Esta medida incrementou a dependência econômico-tecnológica aos países centrais e veio cumprir funções a nível político-ideológico.A reabilitação era, então, definida pela Organização Internacional do Trabalho, OIT, em 1954, como o "conjunto de medidas físicas, mentais, sociais, profissionais e econômicas que objetivava o desenvolvimento da capacidade do indivíduo deficitário de modo que esteja apto para, por si só, prover sua própria subsistência" (Carvalho, 1960:5).A finalidade específica da reabilitação, segundo a definição da OIT, é tornar o indivíduo "deficitário"

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apto a prover sua subsistência, ou seja, o indivíduo deve desenvolver sua capacidade restante de modo que a Previdência Social esteja isenta de sua manutenção e que ele próprio adquira condições de se auto-sustentar, ainda que ao nível de subsistência. Segundo outra definição menos polêmica adotada pelo Conselho Nacional de Reabilitação dos EUA, em 1953, "Reabilitação é a restauração do incapacitado ao uso, o mais completo possível, do que ele for capaz, tanto sob o ponto de vista físico e mental, como social, profissional e econômico" (Idem, ibidem:5).Nesta conceituação, e em muitas outras, são fundamentais as noções de recuperação, capacidades não desenvolvidas e enfoque profissional e econômico. Nos países onde a legislação social assegurou a manutenção pelo Estado das pessoas incapacitadas, os serviços de reabilitação públicos ou privados contribuíram para a "autonomia" financeira do incapacitado ou, pelo menos, do sistema de pensões previdenciárias.Quase a totalidade dos locais buscou seguir o modelo reabilitador estrangeiro chegando-se, mesmo, à cooperação técnica e orientação direta. Foi assim que a introdução dos serviços de reabilitação veio corroborar a mudança da concepção de saúde vigente, de um modelo estritamente biológico à sua integração ao psicológico e social."[...] a saúde não se atém apenas às condições de equilíbrio fisiológico do indivíduo. Transcende

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em muito a idéia estritamente clínica da doença. Nela, o homem deve ser considerado como um todo indivisível em seus atributos biológicos e sociais" (Vital, 1978:1-2).Inerente a esse modelo intervencionista de reabilitação, dois conceitos são igualmente superados: primeiro, de que as doenças crônicas, as deficiências físicas e as moléstias mentais não possuem tratamento que previna seqüelas ou recupere incapacidades e, segundo, de que o atendimento à saúde é sinônimo de tratamento médico. A introdução de outras profissões cuja meta é o trabalho em equipe associa-se à divisão do trabalho no setor de saúde.As iniciativas da sociedade civil por meio das entidades beneficentes adquiriram um papel de destaque, já que a ação planificada em reabilitação por parte do governo brasileiro não vem ocorrer a médio ou a longo prazo, de sorte que, até o presente momento, grande parte da população — das zonas urbanas e rurais e das distintas regiões — não tem acesso aos serviços de reabilitação bem como às medidas profiláticas e educativas específicas, O "desinteresse" governamental transparece na não-inclusão dos serviços de reabilitação no rol das políticas sociais e no não-cumprimento da tênue legislação em vigor.Outra dificuldade enfrentada pelas entidades de reabilitação foi a falta de pessoal técnico especializado, que produzisse uma intervenção multidisciplinar face à problemática da clientela. De um lado, os médicos, assistentes sociais,

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enfermeiros e psicólogos — categorias mais antigas no Brasil — não contavam com nenhuma formação teórico-prática em reabilitação. De outro lado, os terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, orientadores profissionais e técnicos em prótese e órtese não existiam no mercado de trabalho e inexistiam também os respectivos cursos de formação.Muitos dos profissionais requeridos foram formados a partir de supervisão e orientação médica sobre o conhecimento clínico das patologias e a partir de publicações estrangeiras que explicitavam os princípios e métodos de tratamento específicos.O ressurgimento da ocupação terapêutica e de outras práticas em reabilitação até o final dos anos 70 será tratado em tópicos autônomos, porém complementares, a saber:— a revolução técnico-científica e a reabilitação;— os serviços de reabilitação na área hospitalar;— a reabilitação nas entidades filantrópicas e particulares;— a reabilitação no interior das políticas sociais.

A REVOLUÇÃO TÉCNICO-CIENTÍFICA E A REABILITAÇÃOA racionalização do trabalho traz sérias conseqüências para a saúde do trabalhador (cf. Cap. I.:42-9) ao aumentar a produtividade e submeter o assalariado a condições adversas de trabalho, onde os acidentes e as doenças ocupacionais emergem, além de expandir o exército de reserva e as populações marginais

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pelo decréscimo na taxa de absorção da força de trabalho.Além disso, o avanço técnico-científico em saúde, ao desenvolver novos instrumentos, materiais e técnicas, tem prolongado o tempo de vida das pessoas acometidas por doenças crônicas e incapacitantes, criando necessidades novas a serem resolvidas pelas práticas de saúde.A divisão técnica na área de saúde e o regime de capita lização do setor privilegiam o hospital como espaço institucional e, apesar de o trabalho em saúde ser de caráter intensivo, incrementaram ao custo da produção da saúde os insumos industrializados. E nesta medida que a revolução técnico-científica encareceu o custo dos serviços de saúde, ao mesmo tempo que ampliou sua abrangência sobre as necessidades da população, bem como as funções sociais desempenhadas por eles.A revolução técnico-científica fortaleceu o hospital e o tornou hegemônico em relação aos demais espaços institucionais, avançou no sentido de transformar o hospital geral, já fortalecido, em hospital de clínicas especializadas segundo a problemática da clientela, de incentivar as especializações médicas e dos demais técnicos, e os equipamentos e materiais industrializados.O processo de especialização hospitalar avança rapidamente em direção ao atendimento de doentes agudos em detrimento aos crônicos, que exigem longo tempo de internação. Neste último grupo destacam-se a doença mental, a

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tuberculose, que já haviam conquistado seu espaço institucional próprio, na maioria das vezes sob custeio do Estado.Os hospitais particulares absorvem a polêmica norte- americana sobre o atendimento às doenças crônicas, de longa permanência hospitalar, e que são mais prevalentes entre as pessoas idosas.A Revista Paulista de Hospitais, órgão de divulgação da Associação Paulista de Hospitais, entidade mantida por empresários e administradores hospitalares, no ano de 1953 inaugura a seguinte polêmica:Qual o melhor local para o atendimento dos crônicos — o hospital geral ou o especializado? O público, com estrutura e recursos limitados, ou o particular, em maior número, recebendo subsídios públicos?Com o incremento da industrialização, urbanização e concentração de renda, o tempo de vida médio do brasileiro também aumentou, principalmente nas classes dirigentes. Desta forma, as doenças crônicas — moléstias do sistema nervoso (de maior incidência), do aparelho digestivo, respiratório, locomotor (cf. Hilary, 1953:29) — tornam-se um "filão de ouro" pretendido pelas empresas médicas junto à Previdência Social.Durante toda a década de 50, esta associação promoveu a ampla divulgação dos serviços existentes em reabilitação, pessoal técnico necessário e condições para implantação dos diversos setores.

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Ao final dos anos 50, Silas Braga Reis, em artigo publicado nessa revista, defende a necessidade de hospitais especializados para as deficiências motoras. Ao analisar o custo do leito-dia dos pacientes paraplégicos internados na Ortopedia do Hospital das Clínicas de São Paulo, hospital para agudos e crônicos, e dos tuberculosos do Hospital do Mandaqui de São Paulo, hospital especializado para tuberculosos, mesmo ponderando as especificidades técnicas necessárias a cada clientela, ele prova que, no primeiro caso, o custo unitário do leito era aproximadamente 600% superior ao custo do paciente internado do hospital especializado. E as justificativas ficavam entre a existência de recursos materiais e humanos próprios aos agudos e não utilizáveis pelos crônicos e a menor produtividade na utilização dos recursos na assistência do hospital geral.O autor conclui, apresentando uma proposta global de estrutura, pela necessidade de criação de hospitais para pacientes crônicos do aparelho locomotor, a exemplo do que já ocorrera nos Estados Unidos. E justifica:"Estamos vivendo dias de especializações em todos os sentidos. O Hospital não pode afastar-se desta diretriz sem sofrer sérios prejuízos. A especialização acelera a produção e melhora a qualidade, conseqüentemente, baixa o custo dessa mesma produção" (Reis, 1958:30).A lógica do capital é absorvida pelos administradores hospitalares, bem como pelos demais técnicos que, por sua vez, o difundem à

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população. Outro fator de desenvolvimento da reabilitação no Brasil, especificamente da função motora, foi a indústria de equipamentos médico-hospitalares. Segundo a definição da multinacional Baumer QBS, desde 1921, no Brasil, esses equipamentos e materiais (excetuando-se os aparelhos para casos de audição, visão e lesões cardíacas) eram aqueles destinados [...] à reabilitação de indivíduos com incapacidades físicas provenientes de amputações, fraturas e malformações congênitas ou adquiridas e suas seqüelas" (1959:81).Os equipamentos e materiais específicos para a área podem ser subdivididos em três grupos (conforme figura da página seguinte):Grupo I — A recuperação — total ou parcial — a partir da intervenção cirúrgica ou da hospitalização. Este grupo é constituído de instrumental, próteses inclusas, aparelhos de tração, pulmão de aço etc.Grupo II — A reabilitação é realizada através de aparelhos e equipamentos especializados. Inclui os aparelhos para mobilização do paciente em centros de reabilitação e também os aparelhos adaptados aos reabilitandos: de prótese, órtese e adaptações para as atividades de vida diária e prática (pratos e talheres adaptados, escovas, calçadeiras, pegadores de objetos etc.).Grupo III — Elementos auxiliares que complementam os grupos anteriores, como as cadeiras de rodas, muletas, barras para parede, elevadores de pacientes etc.

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Figura 1 — Modelos de equipamentos médico-hospitalares próprios para a reabilitação (Baumer, 1959:81).

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No centro da figura acima está o símbolo da Ortopedia, elaborado em 1749 por N. Andry no livro A Ortopedia ou a arte de corrigir nas crianças as deformidades do corpo (apud Fou- cault, 1977:32), que evidencia a relevância desta especialidade para o setor industrial. Ainda neste artigo, a empresa afirma:

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"Onde a reabilitação e a ortopedia ocupam lugar de destaque na saúde pública (nos Estados Unidos a indústria médico-hospitalar é considerada a 'terceira força' industrial do país), vemos companhias que se especializam na fabricação de um único item dos milhares que compõem a Reabilitação. Isso é possível, nesses países, graças ao elevado consumo e onde 'todo cidadão tem direito a um mínimo de conforto e assistência'" (Baumer, 1959:82).No Brasil, a Baumer, detentora da tecnologia apropriada, foi a única indústria voltada à produção e comercialização de todos os itens descritos anteriormente durante várias décadas. Este fato decorreu, segundo ela, da variedade dos itens, do baixo consumo, do número reduzido de centros de reabilitação e do baixo poder aquisitivo da população. Concluindo, este ramo industrial dependeu e requisitou o desenvolvimento do setor de reabilitação, tanto através da iniciativa privada quanto pública.

OS SERVIÇOS DE REABILITAÇÃO NA ÁREA HOSPITALARA ocupação terapêutica é retomada nos hospitais psiquiátricos brasileiros agora com o nome de terapia ocupacional, profissão constituída nos Estados Unidos na segunda década do século XX, com indicações sistematizadas e atendendo a casos agudos.A primeira definição formal da profissão, elaborada em 1922, e mantida até os anos 70, foi a do médico H. A. Pattison:

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"Dr. Pattison definia terapia ocupacional como 'qualquer atividade, mental ou física, claramente prescrita e orientada para o objetivo específico de contribuir para o tratamento e acelerar a recuperação de uma doença ou traumatismo'" (Reed, 1980:2)A ocupação terapêutica retorna à baila em psiquiatria pela incorporação, na corrente organicista, do enfoque psicoterápico de Simon, ou na absorção da corrente fenomenológica de Schneider, ou na neurológica de Jackson (Henry Ey, Paul Sivadon), ou, ainda, nas correntes de base analítica, a psicanálise de Freud e a psicologia analítica de Jung (cf. Silveira, 1976:5-18).Segundo tese de Jaime Gonçalves, Do Asilo à Comunidade Terapêutica: contribuições para o estudo da terapêutica ocupacional e esquizofrenia (1964:88-9), o hospital psiquiátrico limitara-se nas últimas décadas a apenas vigiar e a custodiar os pacientes, aliás, função precípua deles mesmos. Os profissionais especializados eram os médicos, que, por seu turno, também enfrentavam sérias dificuldades."[...] O número de médicos em relação aos pacientes é ínfimo, além do que, boa parte deles não é psiquiatra. [...] Via de regra, um médico tem, sob sua responsabilidade, centenas de doentes" (Gonçalves, op. cit., 90).A predominância de médicos não psiquiatras no Hospital do Juqueri, por exemplo, foi decorrência da hegemonia da linha organicista da doença mental que, ao entendê-la incurável, privilegiava

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pesquisas anatomopatológicas buscando desvendar a natureza orgânica da doença e, a partir daí, a intervenção clínico-cirúrgica apropriada.Se, de um lado, os médicos nos hospitais psiquiátricos eram numericamente reduzidos, de outro, para se ampliar as perspectivas de atendimento dessa superpopulação requeria-se também o treinamento em serviço de seus funcionários. A ocupação terapêutica volta a ser aplicada novamente por funcionários que recebem a supervisão médica.No ressurgimento da ocupação terapêutica em psiquiatria tem destaque o trabalho desenvolvido pela psiquiatra Nise da Silveira, no Serviço de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico Nacional, em Engenho de Dentro, RJ, em 1946."A finalidade desse serviço era a de beneficiar o doente com uma ocupação livremente escolhida, metodicamente dirigida e só eventualmente útil ao hospital" (Brunetto, 1975:215)Neste serviço, iniciaram-se trabalhos com pacientes agudos, superando a visão anterior de que a ocupação terapêutica só era destinada aos crônicos. As atividades desenvolvidas eram bem variadas25, agrupando-se em oficinas que envolviam o esforço característico do trabalho (marcenaria, sapataria, encadernação, costura, trabalhos agrícolas etc.); atividades expressivas (pintura, modelagem, escultura, música, dança

25 O serviço de terapêutica ocupacional em Engenho de Dentro funciona até hoje, embora em meados dos anos 80 tenha sido introduzida outra abordagem de tratamento ocupacional concorrente a este, disputando o espaço institucional.

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etc.); atividades recreativas (jogos, festas, pas-seios, rádio) e atividades culturais (escola, biblioteca).A psicologia analítica de Jung era o fundamento teórico sobre a doença mental aliada às bases psicodinâmicas do uso terapêutico de atividades, de Fidler.As atividades são acompanhadas pelo monitor de uma oficina que, hábil no seu ofício, requer conhecimento de psiquiatria e teoria da terapia ocupacional para não se entusiasmar pelo "doente bom" (aquele que é capaz de uma produção quase normal) e não desistir do paciente regredido "por perder tempo e material" (cf. Silveira, 1976:37). Os monitores do Serviço e demais interessados foram formados em terapia ocupacional por cursos realizados em 1948, 1953, 1961 e 1979, no próprio local.Em 1952 foi fundado o Museu de Imagens do Inconsciente, a partir dos trabalhos plásticos produzidos pelos esquizofrênicos nas oficinas,"Aberto não só a psiquiatras, mas também a antropólogos, artistas, críticos de arte e educadores interessados pelos problemas da psicologia profunda e da atividade criadora" (Id. ibid.:41).Pelo seu alto valor técnico foi criada a Sociedade Amigos do Museu de Imagens do Inconsciente de tal modo que ele tem sobrevivido às intempéries de verbas públicas e se mantido em atividade.A Casa das Palmeiras, entidade civil sem fins lucrativos, criada em 1956, tornou-se a extensão do serviço, atendendo os egressos a nível

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ambulatória! Lá o principal método de tratamento é a ocupação terapêutica em seu amplo sentido.No ano de 1961, o Decreto 51.169, do Presidente Jânio Quadros, previa que a Seção de Terapêutica Ocupacional e de Reabilitação — STOR, de Engenho de Dentro, chefiado por Nise da Silveira, receberia recurso, estabeleceria planos de aplicação e formaria pessoal especializado em terapêutica ocupacional para todos os hospitais psiquiátricos integrados ao Sistema Nacional de Doenças Mentais, do Ministério da Saúde. Entretanto, após a renúncia de Jânio, este decreto não foi implantado, permanecendo os serviços de terapêutica ocupacional do país, isolados e em número reduzido. Por outro lado, nesse ano foram instalados alguns ambulatórios-piloto no país a partir do Regulamento promulgado em 1944.O trabalho desenvolvido por Nise da Silveira foi divulgado na Revista Brasileira de Saúde Mental, em 1966, e posteriormente foi editado sob o título: Terapia Ocupacional — Teoria e Prática, em 1976.Essa abordagem durante muitas décadas foi bastante marginalizada, quer seja no meio psiquiátrico tradicional (vide Padovani; Leconte e outros, apud Cerqueira, 1965:130- 5), onde o enfoque medicamentoso da doença mental era fortalecido pelas multinacionais da indústria farmacêutica26, quer seja pela visão psicanalítica

26 Sobre o tema a Dra. Nise da Silveira, aposentada desde 1975, mas ainda ativa nos estudos e pesquisas declara em entrevista realizada em 21/5/86: "As multinacionais da indústria farmacêutica controlam a psiquiatria. Vivemos a pior fase do obscurantismo na psiquiatria".

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ortodoxa. A abordagem junguiana ainda hoje é uma corrente minoritária na área de saúde mental.No meio terapêutico ocupacional o trabalho desenvolvido pela doutora Nise da Silveira e sua equipe foi marginalizado até adécadade 80, conforme reitera Magalhães (1987:77-81). Este fato nos parece ser decorrência da orientação organicista predominante nos cursos de saúde e da lógica privatizante na política de saúde, que absorveram abordagens sintomatológicas mais adequadas à rotatividade e pequena permanên-cia na internação sem retaguarda ambulatorial. Acrescente- se ainda o corporativismo dos terapeutas ocupacionais que se viam "ameaçados" pelo volume de pessoas formadas sob outra concepção teórica, competindo no mercado de trabalho27.Um outro serviço psiquiátrico no Rio de Janeiro vem introduzir o Setor de Praxiterapia, o Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil (atualmente Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRJ), em 1957. Após poucos meses de sua criação, o setor é chefiado pelo psiquiatra Luís Cerqueira, ex-aluno de Ulisses Pernambuco e, naquela ocasião, há quinze anos trabalhando com ocupação terapêutica. Nessa unidade psiquiátrica, vários estudos foram realizados por docentes, internos e doutorandos, crescendo a produção científica brasileira em terapia

27 A redescoberta deste trabalho se associa à emergência de um novo modelo de formação de terapeutas ocupacionais, que analisa várias concepções teóricas em busca da superação da crise do modelo médico e da política de saúde vigente.

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ocupacional. Dentre estes trabalhos, destacam-se as teses de Arruda (1962), Castro. (1961), Cerqueira (1965) e o trabalho de Correa (1964).Em outros Estados da federação, o processo de reintrodução da ocupação terapêutica ocorre com nomes diversos em algumas unidades psiquiátricas de escolas médicas como: praxiterapia, na Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina da Universidade do Recife (Othon Bastos apud Cerqueira, 1965:108); terapia ocupacional, no Hospital Diurno do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (Cione, Minzone e Azou- bel Neto, 1966:219-30), em 1961; terapia ocupacional, no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Hauck, 1986:8); pela introdução do trabalho em hospital público, como no Hospital Colônia de Natal — RN, encaminhado por Suliano Filho (1963); — pela ambientoterapia, na Clínica Pinel — RS, por Marcelo Blaya; — por atividades em geral, como no Sanatório Américo Bairral, em Itapira — SP; ou, ainda, na Clínica Bela Vista, do Rio de Janeiro, por Oswaldo dos Santos (1964) (cf. Cerqueira, 1965:26). O panorama global da assistência psiquiátrica é modificada a partir da unificação dos IAPs no INPS, quando os hospitais particulares são conveniados ao sistema e amplia-se o número de leitos oferecidos, delimitam-se os dias de internação pelo quadro nosológico, ao mesmo tempo em que os doentes passam a rodiziar de

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hospital a hospital, sem assistência ambulatorial que evitasse a reinternação e promovesse a saúde mental.Além disso, em 1971, inspirada no sistema de convênios da Previdência Social com os hospitais particulares, a Secretaria de Saúde de São Paulo resolve distribuir de quinze a dezoito mil pacientes internos dos vários hospitais do Juqueri, em uma série de hospitais particulares e beneficentes com os quais passa a se conveniar, cuja capacidade média de lotação era de duzentos leitos.O pronunciamento de Milton Sabbag, presidente do Departamento de Psiquiatria da Federação Brasileira de Hospitais, é bastante "convincente" quanto à validade dessa opção política do governo paulista."[...] dezenas de pequenos hospitais privados e beneficentes, que corresponderam a esta convocação e sobre os quais passou [a Coordenadoria de Saúde Mental] a exercer uma fiscalização continuada e progressiva. Com isso obteve-se uma sensível melhora na qualidade da assistência com acentuada redução de despesas" (1983:12).Se melhorias houve, conforme o autor faz menção, foram quanto à dimensão geográfica da institucionalização da loucura. Ou seja, ao invés de a cronificação institucional ocorrer num único local, ela passou, a partir de então, a residir em guetos menores e variados, nos quais assegurou-se a segregação e mascarou-se a inexistência de programas de saúde mental vinculados a

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medidas econômicas favoráveis à força de trabalho. Estas medidas também foram adotadas por outras secretarias estaduais.Outros hospitais, além do psiquiátrico, introduzem atividades recreativas e trabalhos manuais visando a redução dos efeitos da hospitalização. O Hospital das Clínicas da Facul-dade de Medicina da Universidade de São Paulo — HC-USP — na década de 40, realizava com os pacientes internados um programa de laborterapia sob os cuidados do Serviço Social:"Então nós, do Serviço Social, verificamos que os pacientes (que ficavam muito tempo internados) tinham problemas de adaptação e ficavam na ociosidade. Aí começamos a desenvolver um programa de laborterapia com os pacientes: trabalhos manuais, shows, teatro, cinema, inclu-sive fazíamos festas na enfermaria" (Hauck, 1986:1).Pautada nesta experiência, Lourdes F. Carvalho, médica de orientação organicista, professora do curso de Administração Hospitalar da Universidade de São Paulo, apresenta uma proposta de montar o serviço de terapêutica ocupacional, "[...] individualizado, em estreito entrosamento com o Serviço Social e o Serviço de Fisioterapia" (Carvalho, 1953:19).Quanto ao exercício desta nova especialidade, a autora propunha sua realização por um médico treinado nesse setor ou por terapeuta ocupacional formado em cursos específicos de um a três anos de duração.

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A partir de 1951, o HC-USP envia alguns de seus técnicos aos Estados Unidos para se especializarem em reabilitação; esses técnicos introduziram entre nós, após o regresso, novas abordagens. Dentre eles, estava a assistente social e enfermeira Neyde Tosetti Hauck, que foi estudar terapia ocupacional na New York University, estagiando em vários hospitais daquele país.Os técnicos, ao retornarem, eram lotados na Clínica Ortopédica e Traumatológica do Hospital das Clínicas, inaugurada em 1953 e dirigida pelo professor Godoy Moreira. Aí se estruturou um amplo programa de reabilitação voltado às várias clínicas, além de cursos de formação técnica (dentre eles o curso, de um ano, de formação de fisioterapeutas, para as necessidades internas).O desenvolvimento posterior dos serviços de reabilitação do Hospital das Clínicas está intimamente ligado à criação e extinção do Instituto de Reabilitação, centro de demonstração e formação de pessoal instalado com a assessoria da Organização das Nações Unidas, da Organização Mundial de Saúde e da Organização Internacional do Trabalho e ligado estatutariamente ao Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina da USP. O Instituto de Reabilitação, dado seu papel relevante na formação de terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas e outros técnicos em reabilitação física durante seu funcionamento — de 1956 a 1968 — quando foi extinto, será analisado no capítulo seguinte.

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Outros hospitais paulistas também empregavam a recreação com os doentes; por exemplo, o Hospital São Luís Gonzaga, para tuberculosos, ligado à Santa Casa de São Paulo e os Hospitais-Sanatórios da Divisão do Serviço de Tuberculose de São Paulo (cf. Borba, 1954:21); além disso, a recreação era indicada para hospitais de tuberculose, câncer, lepra, moléstias nervosas ou, ainda, para idosos (Almuree, 1954:11 e Louzã, 1954:25).Ao final da década de 50, em Belo Horizonte, era fundado o Hospital Arapiara, entidade montada por médicos voltados para a medicina física e de reabilitação. Esta entidade particular destinou-se à reabilitação física infantil e do adulto. Para garantir a consecução de um programa multidisciplinar conveniou-se à Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, em 1961, para a formação de técnicos em fisioterapia e terapia ocupacional (Pitanguy e outros, 1986:1), bem como para oferecer residência em fisiatria (Fonseca, 1973:19). Este tipo de hospital, especializado em doenças do aparelho locomotor, reforça a orientação técnico-científica da saúde e o seu processo de capitalização. A instalação de serviços especializados, a formação teórica e supervisão de estágios dos alunos de terapia ocupacional eram feitas pelos médicos; após 1969, e já com alguns terapeutas formados, essas funções foram desempenhadas por profissional estrangeiro; de 1969-70, por Débora Wood (norte-americana) e, de 1971-83, por Joanna Noordhoek (holandesa).

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Ao mesmo tempo em que esses serviços brotam em alguns hospitais, a rede de hospitais particulares, organizada em entidades como a Associação Paulista de Hospitais, difundia a necessidade de melhoria e expansão do atendimento em reabilitação, reivindicando a prestação desses serviços a partir de sua ampliação subvencionada pela Previdência Social. A política de privatização da assistência é promovida, após 1966, pelo INPS.Os hospitais privados de clínica geral, na década de 70, incorporam o serviço de fisioterapia, cuja intervenção se aproxima mais da conduta clínica, agindo sobre sintomas de ordem biológica, na remissão de quadros de dor, déficit respiratório e mobilidade. A terapêutica ocupacional, exceto na assistência psiquiátrica, é pouco absorvida nos hospitais da rede particular por seu objeto de trabalho não ser sintomatológico e de efeito rápido.Em 1975, cria-se a Divisão de Reabilitação Profissional da Vergueiro — DRPV, unidade ligada ao Hospital das Clínicas da USP, retomando-se o trabalho multidisciplinar em reabilitação, após sete anos da extinção do Instituto de Reabilitação. Esta unidade foi um dos últimos serviços hospitalares de grande porte criado nos anos 70, que, paradoxalmente, não atingiu a plenitude em sua capacidade de atendimento.

OS SERVIÇOS DE REABILITAÇÃO NAS ENTIDADES FILANTRÓPICAS E PARTICULARES

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A começar da década de 40 foram montadas, em vários estados brasileiros, instituições filantrópicas — sem fins lucrativos — e particulares, por iniciativas da sociedade civil."Os primeiros esforços para o estabelecimento de serviços de atenção aos lesados foram feitos quase sempre por entidades privadas" (Salazar y de Agüero, 1956:64).O atendimento aos deficientes foi divulgado pelo Rotary Internacional, que patrocinou a criação da Sociedade Internacional das Crianças Lesadas (1919) e da Sociedade Internacional para o Bem-Estar dos Lesados (1922). Estas se encarregaram de organizar congressos, cursos e cultivar a opinião pública favorável aos programas de intervenção (cf. Idem, Ibidem: 64-7 e Silva, 1986a:311).As instituições nacionais eram voltadas, em sua maioria, ao atendimento de crianças portadoras de deficiências mentais e/ou físicas, sendo introduzidas, em determinados locais, técnicas recentes de reabilitação, havendo também o atendimento custodial-asilar.As instituições pioneiras em cada estado, segundo APAE (1975), Boccolini (1953), Campos (1985), Carvalho (1960), Crefito-328 (1986), Fundação das Pioneiras Sociais (1980), Fundação para o Livro do Cego no Brasil (s.d.), Hauck (1986), Krynski e outros (1969), Lemos (1986), Mello (1978), Santos (1984), Silva (1986a) e

28 O Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional — 3S Região (São Paulo e Paraná) por força de lei, possui cadastro das entidades que mantêm estes serviços em funcionamento. Estes dados foram coletados no Arquivo de Empresas desta autarquia federal.

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Sociedade Pestalozzi do Brasil (1975), são apresentadas a seguir.Os setores de atendimento em terapia ocupacional foram sendo implantados anos mais tarde, a partir da formação de técnicos com orientação direta do médico responsável ou pelos profissionais formados em terapia ocupacional, basicamente no Instituto de Reabilitação da USP29.Como se pôde observar, todas as instituições destinaram- se ao atendimento da clientela infantil.Em 1932, Helena Antipoff e colaboradores fundam a Sociedade Pestalozzi voltada ao atendimento clínico e preparação para o trabalho dos excepcionais, através da experimentação de atividades em oficinas. Este mesmo trabalho foi implantado no interior do estado.Essa organização técnico-administrativa foi levada à capital federal, Rio de Janeiro, sendo criada em 1945 a Sociedade Pestalozzi do Brasil — SPB — com o propósito de, além do atendimento ao excepcional, fomentar a abertura de entidades congêneres em outros estados da federação, em 1945."[...] visando à educação e ao estudo dos excepcionais — crianças e adolescentes — portadores de anomalias mentais, psíquicas ou sociais que afetaram o seu desenvolvimento e,

29 A relação de entidades cujos setores foram montados por terapeutas ocupacionais formados em São Paulo consta da entrevista de Neyde Tosetti Hauck (1986:7-8) e Soares (1986b).

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conseqüentemente, seu ajustamento na escola, na família e na sociedade" (SPB-RJ, 1975:15).A Sociedade Pestalozzi do Brasil, além da assistência, fornecia cursos de recreação e outras atividades formando professoras e auxiliares de praxiterapia para a região.Ainda no Rio de Janeiro, em 1948, dirigida por Luís Cerqueira, psiquiatra defensor da ocupação terapêutica, funcionou a Instituição Ulisses Pernambuco, em homenagem ao falecido neuro-higienista nordestino, que muito influenciou o seu trabalho.Esta instituição atendia de quinze a vinte adolescentes excepcionais. Seu programa de tratamento fundamentava-se na realização de atividades sob orientação das professoras, variando entre trabalhos em madeira, passeios externos, atividades musicais e recreação. Nesse processo, sob supervisão do doutor Cerqueira, foi formada uma terapeuta ocupacional prática, Octacília Josefa de Mello, que relata sua vida profissional no livro Terapia Ocupacional: minhas experiências (1978). Essa entidade foi fechada em 1956, após a saída de seu diretor.Em 1954, conforme relato de Lemos (1986) e Soares (1986a) foi fundada a Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação — ABBR, por Fernando Lemos (arquiteto), Charles Murray (empresário), cujos filhos eram portadores de deficiências físicas, médicos da área e simpatizantes.Essa entidade de caráter filantrópico destinou-se ao tratamento clínico e cirúrgico de pessoas com

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poliomielite, amputações e demais casos de ortopedia e neurologia. Ela foi construída ao lado do Hospital de Jesus, entidade estadual cuja unidade de convalescentes de ortopedia, traumatologia e neurologia, realizava tratamento clínico-cirúrgico, mas não possuía nenhum serviço de reabilitação.Para dar início ao centro de reabilitação era necessária a formação de técnicos em fisioterapia e terapia ocupacional, visto que não existiam cursos de formação no Brasil e os profissionais formados no exterior já se encontravam vinculados a outras instituições (cf. Campos, 1985:1-2). Para a formação destes técnicos foi então criada a Escola de Reabilitação do Rio de Janeiro, vinculada à ABBR.Assim, ao final de 1957, inaugurou-se a ABBR com um prédio (hoje chamado de Anexo) e alguns barracões, estando instalados no andar térreo os setores de fisioterapia e terapia ocupacional e atendendo a quarenta crianças encaminhadas pelo Hospital Jesus (cf. Lemos, 1985:8-9).Em 1954, criou-se a APAE do Rio de Janeiro, entidade beneficente de utilidade pública, sem fins lucrativos, voltada para o deficiente mental e núcleo inicial da Federação Nacional das APAEs (fundada em 1963). A APAE realizava o atendimento psicopeaagógico, estimulação precoce e possuía oficinas protegidas de trabalho."[...] sua finalidade é ocupar e recuperar os pacientes através de oficinas especializadas,

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dando-lhes assim, melhores condições de vida" (Mello, 1978:66).No Rio de Janeiro, portanto, na década de 50 existiram três instituições voltadas ao deficiente mental e uma voltada para a reabilitação física dos incapacitados.Em São Paulo foram fundados o Lar Escola São Francisco, voltado às crianças portadoras de deficiências físicas, 1943; a Fundação para o Livro do Cego no Brasil (s.d.), em 1943; "iniciando o ensino de crianças cegas, [...] pela professora especializada Dorina Gouveia Nowill"; a Associação de Amigos da Criança Defeituosa "destinada a tratar crianças portadoras de seqüelas de poliomielite, paralisia cerebral ou defeitos congênitos" (Carvalho, 1960:36), em 1950; o Instituto de Ortofrenia e a Sociedade Pestalozzi de São Paulo, para crianças com deficiência mental, ambos em 1952, e a Associação de Pais e Amigos do Excepcional — APAE de São Paulo, criada em 1961, e desenvolvendo programas de habilitação profissional desde 1964.Na Bahia, em 1958, foi criado "à custa da iniciativa particular um centro de reabilitação, o Instituto Baiano de Reabilitação" (Carvalho, 1960:39).Na recém-criada Brasília foi inaugurado o Centro de Reabilitação Sarah Kubitschek, projetado e instalado em região central para ser acessível a todos os pontos da cidade. Bem equipada, a instituição se volta ao atendimento de doenças do aparelho locomotor. Em 1972, o Centro vem

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participar do processo de formação de recursos humanos em reabilitação, incluindo a residência médica em fisiatria (Castro, 1974:12) e em terapia funcional.O subsídio às entidades que trabalham com excepcionais era fornecido, sem política específica nos anos 60, pela LBA, FEBEM e CADEME (Campanha Nacional de Educação e Reabilitação de Deficientes Mentais), esta última criada em 1960 pelo MEC (Cf. Krynski & Clemente Filho, 1969:488-9). A CADEME deu origem ao CENESP — Centro Nacional deEducação Especial, em 1969, que, aliado à Portaria no 20 do MPAS, de 1975, e à Portaria Interministerial no 186, do MPAS e MEC, de 1978, estabeleceram as normas para o subsídio às entidades particulares e beneficentes via LBA e CENESP (cf. Brasil, s.d. & Vital, 1978:A-4). Assim, as entidades particulares e filantrópicas vão se expandindo à medida que a LBA, INPS, FEBEM, CENESP, Secretarias Estaduais e Departamentos Municipais fornecem subsídios aos serviços multiprofissionais destinados à assistência e/ou educação especial do menor, deficiente físico, mental e idoso. Os dados quanto à expansão quantitativa desses serviços não foram coletados por este trabalho podendo ser tema de pesquisas posteriores.

A REABILITAÇÃO NO INTERIOR DAS POLÍTICAS SOCIAISNo primeiro governo Vargas, é instituída uma legislação sobre a participação do poder público

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na assistência aos incapacitados do aparelho locomotor, sob a influência da Organização Internacional do Trabalho. Esta difundia a tese da Seguridade Social (cf. Cap.11:69-73), que incorporava a reabilitação profissional a todos cidadãos. No entanto, a Portaria no 83, de 1943, promulgada pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, através do Conselho Nacional de Trabalho, determina"[...] que os Institutos e Caixas de Aposentadoria e Pensões organizassem serviços de Reeducação e Readaptação de Segurados e Aposentados por Invalidez" (Vital, 1978:4).Assim, a readaptação e reeducação para o trabalho seria destinada exclusivamente àqueles previdenciários acidentados e aposentados por invalidez e não para a totalidade dos incapacitados; fossem seus dependentes ou, ainda, os não- previdenciários.Ainda no ano de 1943 (cf. Carvalho, 1960:31-40), o Ministério da Educação e Saúde nomeia uma Comissão de Assistência a Mutilados, que passa no ano seguinte a ser incorporada à Divisão de Organização Hospitalar. De concreto, essa comissão nada conseguiu efetivar.Os anos seguintes foram pródigos na legislação, criando-se, inclusive, a Comissão de Readaptação dos Incapazes das Forças Armadas — GRIFA, que foi extinta em 1947 (dois anos após sua criação), tendo reabilitado um único homem (cf. Id. Ibid.:40). A legislação, não sendo implementada, não provocou nenhuma alteração na atenção terciária à saúde.

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É interessante notar que, embora a Portaria 83 e outras que a seguiram, em 1944, 45 e 48 (Vital, 1978: A2-3), dissessem respeito a todo IAP ou CAP, somente conseguimos identificar que o IAPC (dos Comerciários) de alguns estados (São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul) e, possivel-mente, o IAPI (dos Industriários) chegaram a introduzir serviços de reabilitação.A farta legislação sobre reabilitação neste período, de orientação distributivista, ao não ser efetivada pelos IAPs, que mantiveram o modelo contencionista de gestão dos recursos e aplicação segundo injunções políticas específicas (cf. Cap. 11:76), revela uma dicotomia entre o discurso oficial e a realidade concreta, característica dos governos populistas.Destes IAPs, o serviço de reabilitação que mais se desenvolveu foi o vinculado ao IAPC (cf. Silva, 1986b e Nowill, 1962:13) que, em São Paulo, tinha também profissionais formados no exterior. Dentre estes profissionais formados estava Lila Linhares Blandy, assistente social que se formou em terapia ocupacional em meados da década de 50 e Wilma Seabra Mayer, assistente social que se formou orientadora profissional (Cf. Hauck, 1986:9-10 e Campos, 1985:2). A primeira delas, Lila L. Blandy, uma das pioneiras em terapia ocupacional no país, foi cedida, a título de colaboração, para lecionar no curso de terapia ocupacional da Escola de Reabilitação do Rio de Janeiro, no período de 1956 a 1958. De lá voltou a São Paulo, trabalhou no Rio Grande do Sul e, no início dos anos 70, foi montar o setor e trabalhar

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no IAPC de Minas Gerais. A outra, Wilma Seabra Mayer, em 1959, foi trabalhar no Instituto de Reabilitação da USP, onde participou do treinamento de outros orientadores profissionais. O serviço do IAPC de São Paulo se ampliou com o ingresso de novos profissionais formados naquele período.O IAPC de São Paulo mantinha também uma pequena unidade de atendimento hospitalar psiquiátrico, para vinte internos. O tratamento desenvolvido nesta unidade psiquiátrica incluía a recreação organizada por um clube formado por pacientes, funcionários e médicos. Havia a preocupação de manter todos os pacientes ocupados, preservando interesses e iniciativas. Os procedimentos do clube foram relatados no artigo: "A terapêutica pelo clube em psiquiatria", de Ferrão e outros (1960:115-28).Assim, o IAPC mantinha o serviço de readaptação e reabilitação profissional a uma parcela de seus segurados inválidos para o trabalho por doenças físicas ou mentais, a partir de seu próprio orçamento e visando a redução das despesas com pensões e aposentadorias.O IAPI, apesar da pequena participação dos contribuintes em sua gestão, de prestar assistência médica a somente 30% de seus segurados e de a direção populista privilegiar o financiamento de projetos governamentais, ainda assim, o seu corpo técnico assimilara a validade dos serviços de reabilitação. Nos anos 50, o IAPI difundiu a necessidade de reabilitação profissional baseada na lógica economicista de

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reduzir despesas com aposentadorias através da recuperação dos segurados inválidos (cf. Cap. 11:80).Através das medidas assistencialistas do estado, criou-se em 1950, o Serviço de Reabilitação do SESI (Serviço Social da Indústria). Em São Paulo, desde sua fundação, esse serviço é dirigido pelo fisiatra Fernando Boccolini. Em suas instalações foram incluídos todos os serviços de reabilitação física e profissional, com os técnicos especializados formados por ele mesmo, via treinamento em serviço e cursos de curta duração. A contratação de terapeutas formados nos cursos universitários veio acontecer após muitos anos do seu funcionamento, mantendo-se, entretanto, a rigorosa hierarquia clínica na equipe. A visão assistencialista é a que predomina neste serviço, ainda que, em determinados períodos de expansão econômica, fosse efetivada a colocação profissional dos operários reabilitados.A sociedade civil vem desenvolver uma representação30 sobre o significado da reabilitação do incapacitado a partir dos serviços existentes, beneficentes e estatais. Assim, o reabilitado é visto como um indivíduo produtivo e útil à sociedade por (re)adquirir independência econômica e em seu auto-cuidado.No entanto, como esta concepção é veiculada pelas entidades de reabilitação, majoritariamente

30 Este conceito já foi explicitado anteriormente (Cap. 1:27) a partir de Kosik (1976:15) e diz respeito à cristalização de significados que tem correspondência histórica com a realidade e determinadas coisas.

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assistencialistas, e a absorção profissional do reabilitado é instável, a reabilitação em si assume um forte apelo ideológico ao mascarar a existência do exército de reserva (cf. Cap. 11:74-9). Neste sentido a relação entre absorção do incapacitado reabilitado com os períodos de expansão econômica ou com a própria rotatividade da mão-de-obra não é identificada já que estes indicadores não são mensurados pelos programas reabilitacionais e estão fora do alcance de sua interferência. Desta forma, a responsabilidade social de ser ou não ser produtivo é deslocada para o próprio indivíduo reabilitado.Na década seguinte, a Lei Orgânica da Previdência Social — LOPS, de 1968, estabelece o direito universal àqueles segurados que recebem auxílio-doença, os aposentados e os pensionistas inválidos à assistência reeducativa e readaptação profissional. Esta assistência se efetivou na ABBR e em outras entidades congêneres, subsidiadas por recursos da Previdência Social, ou seja, o direito à reabilitação se executou em instituições beneficentes, corroborando a representação social da reabilitação como medida assistencialista.Ao final do governo João Goulart, em 13/12/63, com recursos próprios e centralizada na SUSERPS (Superintendência dos Serviços de Reabilitação Profissional daPrevidência Social), centraliza-se a prestação de serviços de reabilitação aos segurados em geral, por região e não por categoria profissional. O planejamento público

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para o setor foi elaborado meses depois, já no regime militar.Este plano reconhece a supervisão médica sobre as demais atividades e abre uma frente de trabalho aos outros técnicos de reabilitação: terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, proféti-cos, enfermeiros, assistentes sociais, ortofonistas. Inclui o treinamento profissional nas oficinas de reabilitação da Previdência, em empresas ou entidades do ensino profissional. Para pôr o plano em execução, a SUSERPS centralizou os profissionais dos IAPs em alguns centros urbanos.Luís Cerqueira (1965), ao analisar a regulamentação, exortava a Previdência a se envolver com a formação e valorização dos profissionais de reabilitação para não tornar inoperante a proposta por impossibilidade de funcionamento da equipe multidisciplinar ou por desvios estruturais, ao se contar"[...] com auxiliares mal preparados, mal recrutados em quase todos os institutos; todos mal pagos e insuficientes numericamente, tendo de atender sem o menor planejamento, com os IAPs divididos e o segurado se sentindo injustiçado com os altos e baixos assistenciais" (Id., Ibid.:90).No entanto, o alerta sobre a formação de pessoal e sua valorização econômica não foi absorvido pelo INPS nem pelo MEC, sendo que as diretrizes do regime pós-64 foram de privatização do ensino superior e da assistência à saúde, garantida no acordo MEC-USAID e na unificação dos IAPs, de modo que o Estado se desobrigava

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da consecução integral dos programas sociais (cf. Cap. II: 86-94).A crise de saúde da população é tratada pela Previdência Social com medidas assistencialistas, no atendimento ao excepcional, previsto em 66, cujo subsídio às entidades é regulamentado em 69; no atendimento asilar do menor carente e infrator pela Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (criada em 1964) e com medidas de privatização da assistência hospitalar e ambulatorial, expressa no aumento dos leitos hospitalares da rede privada e das empresas de medicina de grupo, responsáveis nos anos 80 pelo consumo de 90% dos gastos em assistência médica.Ao assumir o atendimento custodiai dos menores, normalizar os serviços de reabilitação nos Centros de Reabilitação Profissional — CRPs (do INPS), condicionar a aposentadoria ao seu parecer e, finalmente, instituir o subsídio às entidades para excepcionais, a Previdência Social amplia sua penetração em outras instâncias da sociedade sem, contudo, ampliar suas divisas. Esse processo se cristaliza em 1974, através do Ministério da Previdência e Assistência Social, onde LBA, INPS, FUNABEM convivem sob o mesmo teto, e cujas contradições em suas funções levam a uma crescente centralização e concentração de recursos institucionais, processo coroado na criação do Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social, em 1978.

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Durante os anos 70, os Centros de Reabilitação Profissional do INPS31 vão sendo instalados, tendo como prioridade os casos de acidentados do trabalho, antes da fase final de seu tratamento clínico. Por exemplo, em São Paulo, 80% dos casos atendidos no CRP são acidentados do trabalho. A reabilitação profissional era definida nos seguintes termos pelo Ministro da Previdência e Assistência Social:"A Reabilitação Profissional consiste em um programa integrado objetivando proporcionar ao trabalhador, quando incapacitado por doença ou acidente de trabalho, os meios de reeducação e de readaptação profissional de maneira a que possa se reintegrar na força de trabalho" (Brasil — MPAS, 1975).Assim, a força de trabalho ativa que se acidentou é recuperada e recolocada no mercado de trabalho pelo CRP. Entretanto, segundo estudos realizados em 1976 pelo próprio INPS, dos 3.808 reabilitados entre 72 e 75 somente 1.898 (49,8%) continuaram empregados; destes, só 34,3% têm mais de um ano de emprego. Com porcentagens semelhantes, outros estudos do INPS (apud DIESAT, 1984:10) confirmam que somente 50% dos reabilitados conseguem se empregar novamente e, neste grupo, a rotatividade da mão-de-obra é muito maior. Os demais retornam ao auxílio-doença (50%), estão desempregados (30%) ou deixaram de trabalhar (11,5%). Ou seja, os incapacitados do trabalho têm um destino: ou

31 Sobre os CRPs e expondo o ponto de vista da instituição existe o trabalho do Coordenador de Reabilitação Profissional do INPS (Pereira, 1978:1-7).

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constituem parte do exército de reserva flutuante (através da rotatividade de sua absorção e do subemprego), ou vão pertencer à porção estagnada e marginal da população excedente ao capital (cf. Cap. 1:45-9).Agora, se os dados anteriores põem em dúvida a eficiência do serviço, outros argumentos oficiais são apresentados para justificar a continuidade destes serviços. Assim, segundo relatório de 1976 do Setor de Avaliação de Benefícios do INPS (apud Id., Ibid.:10), se o incapacitado reabilitado vier a contribuir novamente à Previdência por um período de dezessete meses, a Reabilitação Profissional torna-se auto-suficiente, e, num prazo de cinco anos, o empreendimento todo se torna lucrativo. Aqui se evidencia novamente a lógica economicista dos técnicos da Previdência.Ao final dos anos 70, catorze Centros de Reabilitação Profissional funcionavam nas cidades de Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Niterói, Caxias, Belo Horizonte, Juiz de Fora, Brasília, Salvador, Recife, Fortaleza e Belém. Outros quatro foram inaugurados em 1980, nas cidades de Santos, Campinas, Vitória e João Pessoa (cf. Pereira, 1978:6).O economicismo, ao nível do planejamento burocrático- administrativo da Previdência, e o assistencialismo, ao nível do discurso das práticas de saúde e das entidades beneficentes conveniadas, se caracterizam como duas faces de uma mesma política social.

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Na década de 70, cresce o número de instituições voltadas à população marginal e excedente, das unidades da FEBEM às creches e parques infantis, dos asilos aos presídios. Nesses locais, para implementarem os programas regulares educa-tivos e/ou coercitivos, são incluídas outras práticas profissionais, dentre elas a terapia ocupacional. A ênfase na análise para indicação de atividades, na comunicação interpessoal, na relação terapêutica construtiva e no apoio aos programas pedagógicos, disciplinares ou de lazer é enfoque predominante entre as modalidades de terapêutica ocupacional efetivadas nestas instituições. A privação cultural, a alienação econômica, a desagregação familiar são teorizações que visaram enfrentar as condições complexas desta realidade social na qual foram confrontados os internos e profissionais.A emancipação econômico-social efetiva do incapacitado ou marginal requisita, além de recursos técnicos e financeiros para o setor de saúde, uma vinculação efetiva e coordenada a outras políticas sociais, principalmente a um conjunto de medidas econômicas que garanta a absorção crescente da força de trabalho, sem redução da massa salarial.As transformações do espaço institucional, no qual as práticas profissionais estão engajadas, o fenômeno da competição no mercado de trabalho, as repercussões desse movimento na orientação teórico-prática especificamente da terapia ocupacional e as funções político-

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ideológicas cumpridas por esta prática de saúde serão tema do capítulo seguinte.

4TERAPIA OCUPACIONAL: DO

REDUCIONISMO A UMA PRAXIS UNITÁRIA

A. atividade de doentes internados no âmbito do auto-cuidado, da capacidade produtiva e do lazer foi se transformando tanto ao nível de sua concepção quanto do seu uso no movimento real das instituições de saúde e educação, sendo que a forma dominante desta prática social foi denominada terapia ocupacional.O papel do terapeuta ocupacional foi se constituindo historicamente como fruto de sua adequação às contraditórias condições da realidade social, de tal modo que para se proceder à análise deste papel é necessário se identificar o tipo de sociedade em que esta prática social foi engendrada e as conjunturas político-econômicas que deram dimensão e características próprias ao seu papel técnico-político.A terapia ocupacional surgiu, basicamente, de dois processos: ocupação dos doentes crônicos em hospitais de longa permanência com base em programas recreativos e/ou laborterápicos e restauração da capacidade funcional dos incapacitados físicos em programas multidisciplinares de reabilitação.

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CONCEPÇÕES E PRÁTICAS DA TERAPIA PELA ATIVIDADE NO BRASILO processo inicial foi o de ocupação dos doentes em instituições asilares de psiquiatria ou tuberculose, efetivado no Brasil da metade do século XIX até meados deste século, com vários períodos de refluxo. Esses hospitais eram geralmente mantidos pelo Estado, sendo que para o tratamento destas doenças prescrevia-se o isolamento da vida doméstica e produtiva. A hospitalização dessa clientela por períodos prolongados de permanência gerava uma desconexão brusca e quase definitiva dos internos com o ritmo, os hábitos e as relações sociais. Para reduzir os efeitos desfavoráveis da hospitalização sobre o comportamento dos internos (loucos ou tuberculosos) introduziram-se atividades recreativas, de auto-cuidado, profissionais e de conservação do espaço institucional, que visavam à ocupação dos internados.A aplicação de atividades com internos recebeu vários enfoques e denominações diversas: laborterapia, ergoterapia, terapia ocupacional e praxiterapia. Segundo a terapeuta ocupacional Lídia Brunetto, em 'Terapia Ocupacional — correlação teórico-prática" (1975), os conceitos estabelecem certas correlações e equivalências, mas com distinções entre eles.Os termos laborterapia e ergoterapia, por exemplo, surgem na literatura anglo-saxônica e se equivalem.

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"A laborterapia tem [...] o caráter de exercitação para o trabalho. O paciente que por causa da doença perdeu o hábito de uma atividade de trabalho regular, deve ser conduzido por meio de laborterapia e fornecer novamente contribuição contínua e útil. A reintegração na vida de trabalho normal é o objetivo da laborterapia" (Brunetto, 1975:216).Neste sentido, a laborterapia e a ergoterapia objetivaram manter a capacidade produtiva do interno e por isso eram realizadas pelos pacientes que apresentassem iniciativa, responsabilidade e constância no trabalho, não sendo assimiladas pelos negativistas ou aqueles que não tivessem possibilidades de se engajarem em atividades produtivas.Nas atividades de laborterapia ou de ergoterapia, os trabalhos que se concretizam em produtos "comercializáveis" são privilegiados, ou seja, os trabalhos manuais, artesanais, profissionalizantes em detrimento da recreação e atividades expressivas. Há que se acrescentar ainda como característica deste modelo o controle intenso do técnico sobre a definição do projeto e a sua execução à medida que o produto do trabalho se caracteriza como mercadoria a ser produzida de acordo com os padrões do consumo vigente.Outra denominação empregada na época era a de praxiterapia, que, segundo Arruda (1962), se origina da palavra grega práxis, cuja significação é ação, atividade. Esta denominação é a mais próxima da terapia ocupacional, embora o seu

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emprego se distinga da forma de intervenção atual."Nela, contudo, não está implícito o sentido finalista, utilitarista de satisfação e de ação moral, que se encontra no conceito de Ocupação. A ocupação terapêutica é considerada por muitos uma forma de psicoterapia" (Arruda, 1962:15 — grifos do autor).O princípio da ocupação era exercitar o indivíduo para o trabalho, de modo que a população encaminhada pelo médico para a laborterapia, ergoterapia ou praxiterapia era aquela que se encontrava ao final do processo de recuperação, ou seja, sem delírios, alucinações ou manias, no caso de doentes mentais, ou após o período de repouso e cirurgia, no caso de tuberculosos. A instituição asilar inseria seus doentes nas oficinas de trabalho especialmente organizadas, no tra-balho agrícola, ou ainda nos trabalhos de conservação do ambiente (limpeza, alimentação, pintura, transporte de materiais).As grandes instituições asilares como o Hospital de Engenho de Dentro (RJ), Hospital do Juqueri (SP), Hospital de Barbacena (MG), Hospital Colônia Juliano Moreira (PE) e outros construídos no início deste século no Brasil são exemplos vivos do grande espaço institucional destinado aos insanos mentais cuja concepção de tratamento incorporava a ocupação dos doentes em trabalhos agrícolas e artesanais. Estas atividades reproduziam as atividades econômicas primordiais do meio rural e urbano da época. A produção interna provia a própria instituição. Este

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período foi chamado de a fase econômica da profissão (Cf. Scullin, 1975:2).Segundo Lindemann (apud Brunetto, 1975), a passagem da laborterapia à terapia ocupacional deu-se nos Estados Unidos a partir da Primeira Guerra Mundial, quando o emprego de atividades artesanais foi preconizado para a recuperação de incapacitados. No entanto, segundo análise materialista histórica desenvolvida por este trabalho no capítulo anterior, o gerador deste fato social (cf. Cap. 111:108- 11) foi a necessidade de absorção de parcela do exército de reserva no momento de expansão econômica nos Estados Unidos e as pressões sociais dos veteranos de guerra por autonomia financeira e valorização social.Em 1923, no lastro da legislação trabalhista de 1917-18, era aprovada nos Estados Unidos a Lei Federal de Reabilitação Industrial que determinou:"[...] que todo hospital geral que lidasse com acidentes ou doença industrial adotasse a terapia ocupacional como uma parte integral de seu tratamento" (Rerek, 1979:41).A terapia ocupacional vem englobar os conceitos parciais de ergoterapia e redimensionar a utilização dos exercícios físicos, da música, dos jogos e brinquedos a uma finalidade mais específica. A terapia ocupacional, por outro lado, também se distingue da laborterapia ao ocupar os doentes desde o início da manifestação patológica, desenvolvendo o interesse, sondando habilidades e estimulando a realização de ati-

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vidades no âmbito dos auto-cuidados, do lazer e da produtividade (cf. Reed, 1980:6 e 18).Nos Estados Unidos esta prática de saúde ampliou-se a partir de cursos sistemáticos de formação de terapeutas ocupacionais (desde 1914) e fundação de uma associação científica nacional, em 1917, expandindo-se, na década se-guinte, pela crescente divisão do trabalho na área de saúde.No interior do processo de parcelamento do trabalho na área de saúde emergia, então, a terapia ocupacional, que tinha por objetivos tornar produtivos os doentes crônicos, os incapacitados do trabalho e da guerra, atendendo à demanda ampliada da força de trabalho. Por intermédio dela, o paciente realizava o trabalho manual, artesanal ou industrial, de acordo com a sua capacidade produtiva, numa graduação que ia da atividade mais simples para a mais complexa, até que numa etapa final estivesse em condições de ingressar no mercado de trabalho. Nesta primeira etapa da divisão do trabalho em saúde o paradigma da ocupação (cf. Kielhofner & Burke, 1985:11-7) era suficiente para embasar a terapia ocupacional que tinha como objetivo de estudo a ocupação humana, aqui concebida como "a totalidade da experiência do homem como um organismo produtivo, estético, jocoso, criativo e reflexivo" (Id.,Ibid.:16).Nos anos 30, a grave crise econômica dos países monopolistas recrudesceu a legislação social e quase extinguiu a recuperação da mão-de-obra incapacitada num período de desemprego

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desenfreado. Nesta ocasião, a prática profissio-nal, ainda pouco desenvolvida, teve necessidade de maior aproximação à medicina por questão de sobrevivência no período da depressão, de 1929 a 1941 (cf. Rerek, 1979:44-5). Esta aproximação provocou uma mudança no escopo conceitual da ocupação para se adequar à concepção de saúde emergente, já que a especialização crescente da ciência provocou, por sua vez, a reformulação teórica de várias práticas de saúde visando criar modelos específicos de aplicação."A medicina, de forma crescente, insistia para que a terapia ocupacional confrontasse, diretamente, os problemas motores da incapacidade física e a patologia intra-psíquica da doença mental" (Kielhofner & Burke, 1985:19).Neste processo, a profissão buscou definir objetivos e técnicas terapêuticas diferenciadas, segundo a especialidade médica correspondente à clientela, sem base teórica ainda estruturada. Assim, a terapia ocupacional era dividida em terapia ocupacional física, vinculada à fisiatria, ortopedia e neurologia, e terapia ocupacional mental, ligada à psiquiatria.Na década de 40, concomitante ao reaquecimento da economia e à entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra, são retomados os programas de reabilitação profissional do incapacitado físico e do doente mental realizados por equipe multidisciplinar nos quais estava a terapia ocupacional e orientação profissional. Os programas de reabilitação profissional foram difundidos os todos em

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continentes em decorrência de duas vertentes fundamentais de âmbito internacional: o movimento de reabilitação e a Seguridade Social (cf. Cap. 11:69-73 e Cap. 111:107-9).No Brasil, o declínio da ocupação terapêutica ocorre após os anos 30, em conseqüência das repercussões da crise econômica internacional na economia exportadora nacional, que gestou a orientação "contencionista" do Estado nas políticas sociais, visando à industrialização e formação do monopólio econômico nacional. Assim, similar a outros países, a rede hospitalar pública sofreu um corte de verbas em todos os itens, foi superlotado de doentes e indigentes encaminhados das cadeias públicas e perdeu as condições mínimas necessárias ao oferecimento de tratamento à doença mental ou tuberculose.O ressurgimento da ocupação terapêutica no país é a retomada do processo de redemocratização da sociedade, em meados dos anos 40, sob a vigência do capital monopolista, da especialização crescente da ciência, da divisão técnico- científica em saúde e suas respectivas orientações teórico- práticas.No processo de redemocratização da sociedade (final do primeiro governo de Getúlio Vargas e início do governo Gaspar Dutra), os movimentos sociais e trabalhistas se reorganizam e a lógica contencionista nas políticas sociais é influenciada pela orientação distributivista. Desse modo, os programas do Departamento Nacional de Saúde são reforçados no Plano SALTE (Saúde, Alimentação, Transporte e Energia). Dentre eles,

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o Serviço Nacional de Doenças Mentais (criado em 1944) e alguns IAPs (Institutos de Aposenta-dorias e Pensões) deixam de ser serviços de saúde segundo a prioridade e disponibilidade orçamentária. No entanto, a maioria dos IAPs continuou mantendo a diretriz contencionista, não priorizando os serviços de saúde, conforme o relato dos capítulos anteriores.A sociedade civil, melhor estruturada em classes, se mobiliza e toma iniciativas no campo da reabilitação, terceira etapa da atenção à saúde. São criadas várias entidades beneficentes e particulares voltadas ao atendimento dos deficientes físicos e mentais, sob os auspícios do Rotary Internacional, cuja ideologia assistencialista apregoava a colaboração de classes (da burguesia e classe média para com as classes populares) visando à solução de uma necessidade comum (cf. Cap. 111:126-31).Nesse contexto, a medicina se encontra permeada pelas especializações clínicas, sob a orientação primordial das teorias anatomopatológicas, mas limitada por outras correntes de pensamento. Além disso, outras práticas de saúde vão sendo implantadas no interior do complexo hospitalar, local privilegiado para a capitalização da saúde, onde se dá a conjunção das várias especialidades médicas e profissionais.O parcelamento e sofisticação das práticas em saúde permitiu o assalariamento da categoria médica, o aumento do consumo de atos "médicos" (aqui empregado no sentido mais geral

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do termo, ou seja, de qualquer prática de saúde), a industrialização dos insumos "médicos" (equipamentos, exames laboratoriais, medicamentos) e a hierarquização das práticas de saúde.Os governos posteriores (Getúlio, Juscelino, Jânio, Jango), até 1964, seguiram a orientação populista, isto é, um discurso oficial voltado a toda população aliado a execução de medidas concretas para a acumulação do capital. No âmbito das políticas sociais, privilegiaram, de um lado, a força de trabalho na ativa, via previdência social, assumindo feição trabalhista, e adotaram, por outro lado, medidas setoriais e momentâneas na assistência social e saúde pública (vide criação do Ministério da Saúde, Cap. 11:75-6).No primeiro caso, os IAPs paulatinamente ofereceram serviços de saúde aos segurados em detrimento do valor real de aposentadorias e pensões; no segundo caso, a assistência social se efetivou via serviços públicos e através de subvenção às instituições que atendiam às populações marginais, ampliadas no processo de monopolização da economia.Assim, o Estado brasileiro na fase do capital monopolista veio interferir nas lacunas e contradições do capital, pelas medidas econômicas e políticas que regulam a força de trabalho, o exército de reserva e as populações marginais, pelos mecanismos coercitivos e repressivos e também pelos mecanismos político-ideológicos (cf. Cap.1:27-32, 45-9).

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Particularmente, na instituição psiquiátrica retoma-se a ocupação dos internos sob as formas já apresentadas: ergoterapia, laborterapia e praxiterapia e, agora, terapia ocupacional.No Centro Psiquiátrico Nacional, em Engenho de Dentro, Nise da Silveira, psiquiatra que não adotara os tratamentos inovadores dos anos 40 — o eletro-choque e o coma insulínico —, empregava a terapia ocupacional com os doentes mentais. Em 1946, como ela mesma declara:"Enveredei por um outro caminho, pelo caminho muito modesto da terapêutica ocupacional. Mas essa terapêutica, como a entendia, era bastante diferente daquela praticada, correntemente, que visava antes de tudo produtividade em benefício da economia hospitalar. A terapêutica ocupacional que procurei adotar era de atividades expressivas que pudessem dizer algo sobre o interior do indivíduo, e ao mesmo tempo falar das relações deste com o meio. [...] Então comecei pouco a pouco a abrir setores e oficinas, a iniciar atividades, trabalhos manuais, mar-cenaria, sapataria, tapeçaria, esportes, teatro, festas e entre estas, em pé de igualdade, um ateliê de desenho e pintura. Ao todo cheguei a abrir dezessete setores de atividades, que davam uma vida peculiar ao hospital, embora atingisse um número pequeno de pacientes porque não dispunha de pessoal suficiente" (apud Lisboa, 1986:2).A terapêutica ocupacional realizada por Nise da Silveira, cuja concepção de doença mental se baseia na psicologia analítica de Jung, visava a

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expressão dos conflitos intrapsíquicos manifestos nas produções plásticas e artesanais dos internos.O uso terapêutico de atividades se baseava nos princípios psicodinâmicos de Fidler que, desde aquela época, se contrapunha à concepção de exercício para o trabalho da corrente humanitária do tratamento moral, ao tratamento de sintomas praticado pela corrente organicista e também ao trabalho do paciente como fonte de recursos para o hospital.No Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil, Luís Cerqueira, chefe do Setor de Praxiterapia e difusor das correntes socioterápicas, empregava os termos praxiterapia e terapia ocupacional como sinônimos. No entanto, fazia questão de diferenciá-los do conceito de reabilitação — fase final de um programa terapêutico no qual o paciente se torna aprendiz de um trabalho de cunho econômico, produtivo, estruturado, ato que deveria ser remunerado para não haver exploração do interno. Ele alertava aos desavisados para não começarem o programa de atividades pelo final, ou seja, pela atividade profissional. Do contrário as atividades seriam colocadas de fora para dentro, não ocorrendo o tratamento pelo trabalho, mas sim "[...] a fisioterapia dos trabalhos manuais" (1965:42).O alerta do professor Cerqueira se dirigia aos programas de reabilitação, laborterapia ou ergoterapia que se situavam neste limiar. As diferenças existentes entre os vários conceitos

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conviveram com o seu uso indiscriminado, que ultrapassa a linguagem e o próprio fenômeno de realização de atividades. Para um leigo, a aparência de um setor de terapia ocupacional não se distingue da aparência de um setor de laborterapia.As atividades realizadas no setor de terapia ocupacional incluem as auto-expressivas, que trabalham a espontaneidade e a comunicação como desenho, pintura, escultura, gravura, cerâmica, literatura, poesia, jornal, criação musical, dança livre etc.; as sociais: festas (folclóricas, religiosas, cívicas, aniversários), excursões, cinema, teatro, banda, coral, clube; as psicomotoras: esportes, trabalhos em madeira, couro, metais, recreação, jogos, trabalhos manuais, domésticos, técnicos, agropecuários (cf. Cerqueira, op. cit., 34). A classificação das atividades pode ser muito variada, segundo os objetivos a que se propõe o seu uso. Já na laborterapia e reabilitação, conforme relato anterior, as atividades profissionalizantes são as escolhidas, por produzirem objetos "comercializáveis".Se para os especialistas na área a distinção entre reabilitação, laborterapia e terapia ocupacional não é muito clara, para os demais permanece a dubiedade e sinonímia entre as diversas concepções da ocupação terapêutica. Isto se verifica no artigo "Reabilitação em Psiquiatria", da Irmã M. S. T. Iasi, da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo:

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"[...] podemos dizer que as atividades recreacionais, educacionais e o início de readaptação profissional constituem o vasto programada ‘Laborterapia', o qual contribui para o reajustamento físico, mental, social e econômico do paciente" (Iasi, 1957:24).Aí as várias atividades empregadas interagem com uma visão global de homem, biopsicossocial, objetivando-se também a readaptação profissional; no entanto, a denominação adotada é laborterapia.A ocupação terapêutica, já reconhecida com seus vários enfoques na psiquiatria, desde o tratamento humanitário, vem a ser difundida no Brasil agora na área de ortopedia, neurologia, fisiologia e na nascente fisiatria, sendo emprega-da com os doentes de internação prolongada, objetivando-se a recuperação do déficit físico e o reequilíbrio psicológico e social, sob a denominação de terapia ocupacional.A terapia ocupacional é reconhecida, então, por seu emprego no campo da doença mental e nas disfunções físicas.Este caminho — o da terapêutica ocupacional para as disfunções motoras — foi o responsável pela criação dos primeiros cursos de formação profissional no país. De um lado, a medicina se especializava ainda mais, requerendo do médico o treinamento no exterior ou o autodidatismo, e, de outro, o tratamento ao incapacitado físico era difundido pelo movimento internacional de reabilitação, num modelo integrado de equipe multidisciplinar. Portanto, para se falar da

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introdução da terapia ocupacional nas disfunções físicas há que se relatar o início da formação de terapeutas ocupacionais no Brasil.

A FORMAÇÃO DE TERAPEUTAS OCUPACIONAISPara atender à demanda crescente das entidades e serviços de reabilitação, foram sendo constituídos alguns cursos de formação em terapia ocupacional e fisioterapia, substituindo o treinamento em serviço (como o realizado pelo SESI, em São Paulo, ou por alguns hospitais, no Rio de Janeiro), ou os cursos especializados em uma dada clientela, realizados internamente em algumas instituições (como o Curso Elementar de Terapia Ocupacional, ministrado por Nise da Silveira, em 1948,1953, 1961 e 1979, conforme Silveira, 1976:38).Os primeiros cursos de formação em nível universitário seguiram o modelo norte-americano que, por sua vez, sofreu influências diretas do movimento internacional de reabilitação.O movimento de reabilitação repercutiu internacionalmente na década de 40, conquistando uma série de leis protecionistas para o deficiente físico e mental, de programas especiais na Previdência Social e nos serviços hospitalares, custodiais. Também decorre deste movimento a fabricação de aparelhos proféticos e ortopédicos em melhores condições de adaptação ao indivíduo (cf. Mosey, 1979:47-9).O movimento internacional de reabilitação, cujas raízes foram relatadas no Capítulo III (107-

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113,127), foi divulgado por uma série de entidades integradas à Sociedade Internacional para o Bem-Estar dos Lesados. Atualmente denominada Reabilitação Internacional32, esta entidade conta com 115 organizações filiadas, de 64 países de todos os continentes. Dentre elas destacam-se como pioneiros a Federação Mundial de Veteranos, o Conselho Mundial para o Bem-Estar dos Cegos e as entidades profissionais ligadas à área, a saber, Sociedade Internacional de Medicina Física (ou seja, fisiatria), a Federação Mundial de Terapeutas Ocupacionais (criada em 1952) e a Confederação Mundial dos Fisioterapeutas (cf. Silva, 1986 a: 311 e Salazar y de Agüero, 1965:64-7).Outras agências não-governamentais também absorveram reivindicações desse movimento, como a OIT (Organização Internacional do Trabalho), que difundiu a necessidade de reabilitação profissional aos acidentados do trabalho, e a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), que difundiu propostas e recursos sobre a educação especial para o deficiente. As iniciativas autôno-mas destas entidades ligadas à ONU (Organização das Nações Unidas) fomentaram, posteriormente, a necessidade de uma proposta integrada de ações em reabilitação que evitasse superposições e lacunas nos seus programas.Em uma Assembléia Geral da ONU, de dezembro de 1946, foi adotada a resolução de se elaborar"[...] um programa de consultoria em diversas áreas do bem-estar social, nele incluindo a

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reabilitação das pessoas deficientes, como uma das principais áreas com possibilidades de captar recursos financeiros para assistência técnica a ser colocada à disposição dos países subdesenvolvidos e interessados no assunto" (Silva32, 1986a:312).Assim, a ONU assumiu a coordenação, planejamento e o suprimento de reforços às áreas não cobertas pelas outras organizações, bem como a formação de pessoal para prótese e órtoses (cf. Salazar y de Agüero, 1956:68-73). A Organização Mundial de Saúde — OMS cabia não só o preparo de médicos mas dos demais profissionais, na área de reabilitação: enfermeiros, terapeutas ocupacionais, orientadores profissionais etc. A OIT cuidava da reabilitação profissional via previdência social, e a UNESCO cuidava da educação especial, principalmente de deficientes mentais e sensoriais (cegueira, surdez); somente anos mais tarde a paralisia cerebral foi incluída no rol da educação especial. Mais recentemente, o UNICEF (Fundo de Emergência das Nações Unidas para as Crianças) veio incrementar os esforços no âmbito da reabilitação."No início da década de cinqüenta a ONU [...] resolveu adotar uma estratégia mais efetiva para a implantação de projetos de reabilitação nos quatro continentes: provocar a organização de Centros de Demonstração de Técnicas de

32 O autor acima, orientador profissional do extinto Instituto de Reabilitação da USP, trabalhou, no período de 1963 a 1968, na Unidade de Reabilitação de Pessoas Deficientes, ligado ao Departamento de Assuntos Sociais da ONU, organismo especificamente criado para esta finalidade.

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Reabilitação, que acumulassem a responsabilida-de de não só dar atendimento qualificado, mas também desenvolver cursos para a formação de pessoal básico nessas mesmas técnicas" (Silva, 1986 a: 319).Em decorrência, enviaram-se emissários para os quatro continentes para pesquisarem os locais mais adequados à instalação dos centros de demonstração, segundo os critérios já definidos pelas organizações.A partir de 1951, a ONU enviou para a América Latina vários emissários (Dr. Paulo Novaes, em 51; Dr. Ling, em 52; Dr. Gustave Gringas, em 55) a fim de estudar o local mais adequado para a instalação de um possível Centro de Reabilitação. Entre São Paulo, Santiago do Chile e Cidade do México, a cidade selecionada foi São Paulo.O Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP foi escolhido pelos consultores da ONU para ser o centro latino-americano, pois nele já funcionava um setor de recuperação vinculado ao Centro Médico da Faculdade de Medicina de São Paulo, "a única classificada com o grau A pela Associação Médica Americana, dentro de toda a América Latina" (Instituto, 1957:16). Portanto, o fato de o Hospital das Clínicas ser um complexo hospitalar ligado a um centro universitário modelo e de renome internacional assegurou a implantação do projeto; além disso, estava localizado num grande centro industrial em expansão, onde havia, de um lado, contingente de acidentados do trabalho e incapacitados, e de

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outro, possibilidade de colocação profissional dos reabilitados no mercado de trabalho."[...] uma das principais finalidades do Instituto projetado pela ONU, [era] a recuperação dos operários acidentados" (Dr. Ling apud Carvalho, 1959:23).Outro fator fundamental na escolha foi o apoio do governo local e federal no que tange aos recursos financeiros e espaço físico necessário à instalação de um centro de reabilitação modelo, no qual viesse a funcionar um serviço de reabilitação integrado por vários setores. Foram todos estes fatores que permitiram a eleição da unidade ortopédica do Hospital das Clínicas da USP. Os demais centros de demonstração foram montados em Bombaim, na índia, para o continente asiático; em Skopje, na Iugoslávia, para a Europa, e em Alexandria, no Egito, para o continente africano (cf. Silva, 1986 a: 320).O centro latino-americano veio a ser denominado Instituto Nacional de Reabilitação (INAR) e foi instalado no primeiro andar da Clínica Ortopédica e Traumatológica, com verbas do governo estadual para as adaptações e ampliações indispensáveis à sua instalação. O INAR foi criado em 1956 por decreto estadual e, dois anos mais tarde, a Lei 5.029 (Estado: 1958) o criava oficialmente com o nome modificado para Instituto de Reabilitação da Universidade de São Paulo (IR), ligado ao Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina.O Instituto começou a funcionar com os técnicos de que já dispunha, muitos formados ou

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atualizados nos Estados Unidos, com bolsas da OMS, a saber, terapeuta ocupacional — Neyde Tosetti Hauck33; assistente social — Luzia Banducci; psicóloga — Mathilde Neder; enfermeira — Celina de Arruda Camargo; médicos — professor F. E. Godoy Moreira, Roberto Taliberti, Waldo Rolim de Moraes, professor Cantídio de Moura Campos, João D. M. B. A. Rossi. Além destes profissionais vieram outros ligados às especialidades já citadas e a outras.A assistência técnica internacional foi dada, por parte da ONU, com envio do coordenador do projeto, Paul Albright, de Nova York, como chefe da missão (de 1/57 a 4/58) e do técnico em prótese e aparelhos ortopédicos, o dinamarquês Erik K. Jansen (de 2/57 a 12/60), responsável pela modernização de toda a Clínica Ortopédica. Pela OMS, foram enviados o inglês, Dr. Robin F. Hindley-Smith (de 7/58 a 12/61), que sucedeu Albright, enquanto este foi orientar projetos de reabilitação no Rio de Janeiro e em outros estados, a fisioterapeuta Karin Lindberg (de 12/56 a 12/60) e, anos mais tarde34, a terapeuta ocupacional, Elisabeth Eagles (de 3/64 a 11/65). Pela OIT, foram enviados o técnico especializado em reabilitação de cegos, Joseph Albert Asenjo

33 Esta profissional, além de montar e dirigir três setores: do Instituto de Reabilitação, da Clínica Ortopédica e Traumatológica e da Divisão de Reabilitação Profissional da Vergueiro (DRPV), todos ligados ao Hospital das Clínicas da USP, também formou as primeiras turmas de profissionais do Estado de São Paulo. Ver Hauck (1986) ou Soares (1986b).34 A assistência técnica internacional ocorreu nesta data para assumir o setor de Terapia Ocupacional do I. R., que foi desmembrado do setor da Clínica Ortopédica, chefiada por Neyde T. Hauck.

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(de 10/57 a 9/58), e o orientador profissional, John Alfred Humphreys (de 3/58 a 2/59). A assessoria internacional funcionava na base da contrapartida, ou seja, para cada técnico estrangeiro havia um técnico local a ser preparado, que posteriormente assumia autonomamente o serviço.O Instituto de Reabilitação da USP, segundo estudo de Godoy Moreira e outros (1964:3), atendeu a 2.402 casos até março de 1963. Destes, 87,1% eram casos com problemas no aparelho locomotor, sendo que destes 29% eram casos de paralisia cerebral; 23,64% de amputações; 10,32% de hemiplegia e 6,2% de casos de poliomielite. Os demais casos eram 5% de deficiência visual e 3,7% de doenças cardiorrespiratórias e outros diagnósticos. A classificação dos casos sob aótica clínica (todos os autores eram médicos) não discriminou a clientela preferencial definida pela ONU, ou seja, os acidentados do trabalho. Revendo o levantamento, ainda que se separassem as doenças perinatais e de desenvolvimento (pa-ralisia cerebral e poliomielite), não seria possível identificar entre os outros quadros nosológicos os que foram causados por acidentes de trabalho ou por doenças ocupacionais. Ou seja, nos anos que se seguiram à cooperação internacional, o discurso local sobre o atendimento realizado no IR privilegiou o aspecto clínico, nosológico, do tratamento à caracterização social da clientela ou à reabilitação profissional.

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Quanto à procedência da população atendida no Instituto de Reabilitação, a maioria era originária de outros estados, além de serem atendidos paraguaios, bolivianos, venezuelanos e outros pacientes da América Latina.Quanto ao ensino, o Instituto de Reabilitação, desde 1959, formou técnicos em fisioterapia e terapia ocupacional e, a partir de 1960 em diante, técnicos em prótese e órtoses ortopédicas e em locomoção de cegos. A duração dos dois primeiros cursos era de dois anos, até 1964, quando passou a três anos de duração, e dos dois últimos cursos era de um ano (Moraes, 1959:57). O modelo curricular era estruturado para cursos técnicos, de curta duração.Assim, não só foi instituída em São Paulo uma entidade modelo com toda uma equipe multiprofissional trabalhando, bem atualizada e equipada, contando com inúmeros técnicos estrangeiros, como também foram habilitados profissionais locais para a área de reabilitação. Desta maneira foram formados os especialistas que inexistiam no país, a saber, os terapeutas ocupacionais e os fisioterapeutas para as demais entidades de assistência. Em número reduzido, os profissionais formados nesses anos eram contratados pelo próprio Hospital das Clínicas (Psiquiatria, Ortopedia, IR) e por entidades assistenciais como a Santa Casa, AACD (Associação de Assistência à Criança Defeituosa), LESF (Lar Escola São Francisco) etc. (cf. Hauck, 1986:7-8).

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Paralelamente, por iniciativas de entidades de outros estados, com ou sem assessoria direta de consultores da ONU, outros cursos de formação em fisioterapia e terapia ocupacional foram instalados no Brasil.Os cursos realizados no Rio de Janeiro foram promovidos pela ABBR (Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação) e tiveram início um ano antes dos cursos paulistas, em 1956. Mas como estes foram promovidos por uma entidade civil, não vinculada ao meio universitário, contou com menor apoio governamental. A ABBR instalou a Escola de Reabilitação do Rio de Janeiro — ERRJ, que formou fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais baseados no modelo curricular israelita, que, por sua vez, se baseava no modelo norte-americano, de nível universitário. A primeira turma de profissionais formou-se no curso de dois anos de duração, enquanto as seguintes já foram formadas em três anos.A ERRJ, dirigida por Jorge Faria, um dos médicos fundadores da ABBR, em contato direto com as associações internacionais de fisioterapia e terapia ocupacional, contou com a vinda de profissionais do exterior para a formação de fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais.A fisioterapeuta irlandesa Edith MacConnel, que trabalhava num hospital carioca, e a terapeuta ocupacional formada no exterior, cedida pelo IAPC de São Paulo de 1956 a 58, Lila Linhares Blandy, foram as professoras da área profissionalizante de cada um dos cursos. Da

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primeira turma de formandos, em fevereiro de 1958, foram escolhidos o fisioterapeuta Miguel Alves Vieira, também educador físico, e Hilêde Wanderley Cantanhede, também assistente social, que permaneceram como professores dos cursos (cf. Cantanhede, 1985:4). O curso veio a ter colaboração temporária de duas técnicas canadenses, trazidas pela ABBR, fisioterapeuta Winter e a terapeuta ocupacional Laurie Brown (cf. Faria, 1986:5).Os terapeutas ocupacionais formados no Rio de Janeiro, também em número reduzido, foram integralmente absorvidos na própria ABBR ou ERRJ. Somente após alguns anos foram se engajando em outras entidades, como a Sociedade Pestalozzi do Rio de Janeiro, o Instituto Psiquiátrico Nacional, a Clínica Pinel e outros.Os terapeutas ocupacionais formados nestas primeiras escolas eram fortemente ligados à reabilitação física e à direção médica; o aprendizado sobre o atendimento de doentes mentais era restrito à teoria ou a casos associados à deficiência física. Alguns anos depois teve início o estágio curricular supervisionado em unidades psiquiátricas.Os terapeutas ocupacionais formados a partir da década de 50 seguiram o modelo clínico vigente na medicina que lhes possibilitou constituir uma determinada identidade e corpo de conhecimento técnico-científico. A formação do profissional era, então, eminentemente clínica, ou seja, aprendia-se a sintomatologia, o processo patológico, a intervenção médica específica à patologia e

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alguns princípios da respectiva terapêutica. Este último item era ministrado nas poucas disciplinas profissionalizantes do curso. O estágio se caracterizava como momento do treinamento em serviço e a atuação profissional posterior à formatura é que permitira a especialização do profissional em alguma área de atuação com o seu correspondente fundamento.Os cursos de formação de terapeutas ocupacionais em outros estados tiveram início nos anos 60 em Minas Gerais, Pernambuco e Bahia.A partir de 1962, em Belo Horizonte, se iniciaram os cursos de fisioterapia e terapia ocupacional, frutos do convênio entre as Faculdades de Ciências Médicas de Minas Gerais e a Fundação Arapiara, ligada ao hospital de mesmo nome, especializada em doenças do aparelho locomotor. Os primeiros profissionais foram formados por médicos do Hospital Arapiara, onde estagiavam e eram contratados. Ao final dos anos 60, o hospital contou para atendimento e atividades didáticas com uma terapeuta ocupacional de formação estrangeira, a norte-americana Débora Wood, de 1969 a 1971, substituída pela holandesa Johanna Nordhoek, de 1971 a 1983 (cf. Nordhoek, 1987:1-2 e Pitanguy e outros, 1986:2-3). Os poucos profissionais formados nesta instituição iam trabalhar em instituições da cidade.Ao final do ano de 1963, o processo de constituição do currículo mínimo dos cursos de terapia ocupacional e fisioterapia encaminhado pela Escola de Reabilitação do Rio de Janeiro —

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ERRJ é aprovado pelo Conselho Nacional de Educação (atual Conselho Federal de Educação — CFE). A definição do currículo mínimo era requisito para o credenciamento dos cursos. Ele foi aprovado com 2.160 horas, para três anos letivos de duração e em nível universitário (cf. Brasil, 1964; Campos, 1985:2; Faria, 1986:6-7 e Soares, 1986a). A proposta encaminhada pela ERRJ se baseou em seu modelo curricular e sobrepujou a proposta dos médicos do IR de São Paulo, prevista para o curso técnico, com dois anos de duração. Essa discordância já havia impedido e retardado o processo decisório sobre as propostas de currículo mínimo encaminhadas à Câmara dos Deputados. Essa vitória do modelo universitário para a formação de ambos os terapeutas, ainda que contasse de cinco matérias, provocou o aumento de créditos e/ou o tempo de duração dos cursos de São Paulo, Minas Gerais e outros estados.Os terapeutas ocupacionais se organizaram em associações científicas da categoria nos estados da Guanabara e São Paulo e na Associação de Terapeutas Ocupacionais do Brasil — ATOB, fundada em 13/11/1964. Também realizaram encontros regionais e nacionais onde foi incentivada a troca de experiências, o crescimento científico e o fortalecimento da categoria.Cinco anos depois, o Decreto-Lei 938, de 13 de outubro de 1969 (Brasil, 1969:8658), veio reconhecer os terapeutas ocupacionais e fisioterapeutas, diplomados por escolas e cursos

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reconhecidos pelo MEC, como profissionais de nível superior, e tornar exclusiva a execução de métodos e técnicas específicos a cada categoria.A regulamentação profissional foi decretada pelo então presidente da República, Arthur da Costa e Silva, por ter se sensibilizado pela área de reabilitação após o sucesso terapêutico de seu tratamento na ABBR35.O Decreto-Lei 938, em seu artigo 4, estabeleceu que:"É atividade privativa do terapeuta ocupacional executar métodos e técnicas terapêuticas e recreacionais com a finalidade de restaurar, desenvolver e conservar a capacidade mental do paciente".Este artigo se propõe tornar privativa a aplicação de métodos e técnicas terapêuticas e recreacionais dirigidas à capacidade mental do paciente. Ele não cita o uso da atividade, não explicita o que é método ou técnica terapêutica, nem inclui no objeto da intervenção a capacidade física/motora, que, por sua vez, foi relacionada aos métodos e técnicas fisioterápicas e tornada privativa do fisioterapeuta. Consta ainda neste decreto que a direção dos respectivos serviços, a assessoria técnica, o magistério nas disciplinas de formação básica ou profissional e a supervisão de profissionais e alunos da área serão realizados

35 O fraco reconhecimento oficial da reabilitação é apontado por alguns, como decorrência da fragilidade na conquista da regulamentação das categorias. Neste teor Cerqueira (1984:123) reitera: "E foi necessário que adoecesse outro presidente em 1968, para que a carreira de TO fosse reconhecida, oficializada". Circunstancial ou não, populista ou não, foram estas as condições de regulamentação desta carreira no período do Estado autoritário.

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pelos fisioterapeutas ou terapeutas ocupacionais com diplomas reconhecidos.Os avanços legislativos — definição do currículo mínimo e a regulamentação da profissão — não foram, nas duas ocasiões, encaminhados pelo conjunto da categoria, que, ainda dispersa, não se envolveu e nem lutou conjuntamente por seu reconhecimento. Se isso, de um lado, demonstra a tenacidade de segmentos profissionais, de outro, mostra a desarticulação da categoria e seu limitado grau de consciência profissional e de intervenção coletiva.Sob um outro ângulo de análise, pode-se depreender que as novas profissões, prematuras, com número reduzido de praticantes e de cursos de formação, devessem se expandir pelo mercado de trabalho para, a posteriori, serem regulamentadas. Ainda assim, ao se estabelecer a exclusividade na aplicação destas técnicas aos formados em cursos regulares, dever-se-ia incorporar os profissionais autodidatas e aqueles com cursos paralelos de formação, de modo que estes adquirissem o reconhecimento oficial e o direito à continuidade de seu trabalho técnico. Entretanto, a regulamentação das profissões efetivamente não criou mecanismos de reconhe-cimento das práticas marginais ou alternativas ao ensino oficial, ao contrário, buscou vetar o exercício profissional àqueles que não seguiram o percurso tradicional do ensino superior.Em meados dos anos 70, a expansão da rede de ensino superior, pautada principalmente no setor particular, vem atender à demanda crescente de

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escolarização das camadas médias, promovendo abertura de novos cursos, entre os quais os de terapia ocupacional. Neste sentido, o ensino superior veio cumprir um papei regulador do exército de reserva das camadas médias, e, particularmente, as novas profissões da área de saúde vieram atender ao contingente feminino desta população. Esta é uma das razões que podem explicar a introdução e regulamentação precoce de várias profissões nas sociedades capitalistas periféricas. A tese apresentada por Spink (1985:25) é clara:"Assim, enquanto a regulamentação tende, de maneira geral, a ser o produto final de um longo processo de formação, no Brasil, freqüentemente, a legislação precedeu a constituição dos quadros profissionais".Conseqüente ao reconhecimento das profissões de reabilitação, tem início o confronto de setores da categoria médica, alarmada pela divisão do trabalho, e a nova constatação hierárquica da equipe de saúde, mantida sob sua hegemonia.A regulamentação das profissões, embora ainda contivesse algumas imprecisões, encontrou um forte adversário: a Sociedade Brasileira de Medicina Física e Reabilitação. Esta entidade, ligada à Associação Médica Brasileira, congrega os médicos fisiatras, ortopedistas, neurologistas, reumatologistas, enfim, os especialistas no tratamento e reabilitação de doenças ou traumatismos incapacitantes.A Sociedade Brasileira de Medicina Física e Reabilitação reivindicou a supervisão médica

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sobre o exercício profissional do fisioterapeuta e terapeuta ocupacional e contestou juridicamente, em 1970, a regulamentação das categorias "por hipertrofia de atividade" delas em relação à categoria médica (cf. Fonseca, 1973:20). Como nas origens da área da reabilitação cabia ao médico não só o diagnóstico clínico como também a seleção, indicação, aplicação e acompanhamento periódico da aplicação destas técnicas, principalmente as de cunho fisioterápico, setores da categoria médica se opuseram à nova realidade da área de saúde. Assim, em inúmeros hospitais, clínicas e consultórios, as técnicas fisioterápicas (eletroterapia, hidroterapia, cinesioterapia e outras) continuaram sob estrito controle e aplicação médicos.A resistência da categoria médica à privatividade dos profissionais de fisioterapia e terapia ocupacional coincide com a redução relativa da competência médica sobre o diagnóstico e terapêutica, além do que a privatização da assistência hospitalar impôs limites ao exercício liberal da medicina e incentivou o assalariamento médico, repercutindo no auto-prestígio da categoria.Na passagem dos anos 60 aos 70, no Brasil, a profissão de terapeuta ocupacional e fisioterapeuta adquirem maior autonomia em relação à categoria médica, sendo adotados novos referenciais teóricos, melhor estruturados. Esta ruptura foi aceita parcialmente pelos médicos que continuaram a trabalhar com as

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demais profissões, ora assimilando sua relativa autonomia, ora recrudescendo a cobrança teórica da área e restringindo sua intervenção.A postura restritiva, no entanto, se fez presente durante os longos anos em que o processo de privatização dos serviços hospitalares foi fomentado pelo INAMPS e a rede hospitalar e educacional pública foi sofrendo os limites orçamentários de uma política social burocrática, privatizante e elitista.Em São Paulo, o diretor do Instituto de Reabilitação, professor Flávio Pires de Camargo, após dez anos de funcionamento do IR-USP e concomitante à Reforma Universitária, inicia o processo de desligamento do Instituto do Departamento de Ortopedia e Traumatologia, propondo que ele fosse transformado numa divisão ligada diretamente ao Hospital das Clínicas. Entretanto, como a nova estrutura não foi implantada, irrompe um processo de dissolução das atribuições do Instituto no que tange à reabilitação de incapacitados e treinamento de médicos e pessoal técnico-auxiliar. Os cursos, em contrapartida, foram transferidos para outro departamento da Faculdade de Medicina da USP, iniciando um processo de peregrinação da Ortopedia à Radiologia, desta à Pediatria e até mesmo à Medicina Nuclear, conforme as injunções políticas às quais os cursos foram submetidos."Desta forma foram suspensas gradativamente as funções assistenciais do Instituto de Reabilitação, sendo que, a partir de 60 só

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restavam as funções de ensino, as quais se tornaram bastante precárias na parte de aplicação, como conseqüência da supressão das atividades práticas do Instituto de Reabilitação" (Alvarenga & Ferrari, 1974:6).A dissolução do Instituto de Reabilitação ao final dos anos 60, com a dispersão de seus técnicos para outras unidades do HC e outras instituições, encerra o Centro de Demonstração de Técnicas de Reabilitação, modelo proposto e assessorado pela ONU e agências congêneres, assumido pelo governo estadual e pela área de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina.Com a desativação do Instituto de Reabilitação da USP os serviços de reabilitação brasileiros perderam um modelo de trabalho multidisciplinar integrado e bem equipado cuja produção de conhecimentos transcendia a área médica. A justificativa deste padrão de atendimento é explicitado por um dos integrantes do extinto Instituto de Reabilitação:"Porque num trabalho técnico dessa natureza, você precisa de um padrão [...], você precisa de um paradigma, de um modelo. Não para você copiar, não. E para você se posicionar" (Silva, 1986b:25).Nesta medida, a disputa corporativista produzia grandes repercussões e as profissões não-médicas (oficialmente chamadas de profissões paramédicas) da saúde tiveram que caminhar por si e, por vezes, à míngua, no espaço institucional controlado pela visão médica restritiva.

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O modelo integrado de assistência multidisciplinar resistiu em escala reduzida na Clínica Ortopédica e Traumatológica do HC, mas os cursos de terapia ocupacional e fisioterapia, transferidos à Faculdade, sem espaço físico e verbas adequadas, passaram a ser ministrados por alguns professores contratados e pela colaboração voluntária e, conseqüentemente, assistemática de profissionais vinculados às instituições da cidade. Os cursos de técnicos em prótese e órtese e de locomoção de cegos são desativados juntamente com o instituto, sobrevivendo apenas o treinamento em serviço da Oficina Ortopédica da AACD e no setor de locomoção da Fundação para o Livro do Cego no Brasil.Dificuldades financeiras e pressões políticas locais também estão presentes em outros cursos cujo caso mais gritante foi o da Escola de Reabilitação do Rio de Janeiro, que culmina com a venda dos cursos para um outro estabelecimento de ensino, em 1978; mas, em menor escala, estão a Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, instituição de ensino beneficente; a Escola de Medicina e Saúde Pública da Bahia, instituição de ensino particular, e, ainda, a Universidade Federal de Pernambuco.No início dos anos 70 existiam no total cinco cursos de graduação; em 1980, treze, sendo que os cursos oferecidos por instituições públicas passaram de dois a quatro do total.A maior parte dos terapeutas ocupacionais brasileiros era formada, portanto, pela rede

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particular de ensino. Por conseguinte, as condições de oferecimento e manutenção dos cursos se tornaram diretamente dependentes da sua lucratividade. Essa condição tornou instável a formação dos profissionais, principalmente nos períodos recessivos, de crises internas à categoria ou ao espaço institucional, quando de-cresce a demanda de alunos.Os cursos mantidos nas universidades públicas estavam, porém, resguardados do fantasma do encerramento, confrontando-se, outrossim, com as minguadas verbas e a estrutura administrativa restritiva à área, situação essa muitas vezes derivada de sua vinculação acadêmica à faculdade de medicina.Nos anos 70, no processo de ressurgimento das entidades representativas e movimentos sociais, as associações científicas por categoria profissional vão se fortalecendo e buscando alternativas de reconhecimento oficial face às políticas de saúde recessivas e privatizantes. Nesse movimento os terapeutas ocupacionais se uniram aos fisioterapeutas em busca de maior legitimidade oficial, conquistando a criação dos Conselhos Federal e Regionais das categorias, em 17/12/75, e da associação pré-sindical em São Paulo, em 1978 (transformada em Sindicato em 1980).O Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (e respectivos auxiliares) — COFFITO — veio normatizar as atribuições específicas de cada uma das categorias e estabelecer o Código de Ética profissional; os Conselhos Regionais se

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encarregaram do credenciamento e fiscalização de entidades mantenedoras dos serviços e profissionais habilitados ao exercício profissional. Estes mecanismos vieram ampliar as garantias no mercado de trabalho, ainda que o controle e participação nas políticas de saúde estivessem bloqueadas. As entidades de caráter pré-sindicais fundadas em outros estados buscaram definir piso salarial, mecanismos de progressão funcional e estabilidade empregatícia face à recessão econômica e às condições deficitárias das instituições de saúde.No que diz respeito à formação acadêmica do terapeuta ocupacional, a categoria se empenhou na reformulação do currículo mínimo do curso, baseado nos padrões internacionais preconizados pela Federação Mundial de Terapia Ocupacional (WFOT), projetando de 78 a 80 uma nova proposta."Tendo em vista a inadequação do referido modelo (médico, onde predominam as disciplinas da área biológica) para a formação do Terapeuta Ocupacional, frente às novas perspectivas do mercado de trabalho e melhor delimitação do campo profissional, foi desenvolvido um estudo, [...] em âmbito nacional, com vistas a redefinir o perfil profissional e elaborar um novo currículo mínimo compatível com as novas realidades da atuação prática" (Coordenação, 1985:2).O projeto enviado ao MEC em 1980 foi aprovado em 13/12/82 (Brasil, 1982). Os cursos passaram de 2.160 para 3.240 horas, de três para quatro anos e de um modelo de formação clínico-

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biológica para um modelo de saúde que integrasse o enfoque psicológico e social ao biológico, e onde a profissão atuasse da prevenção à reabilitação. O novo currículo mínimo promoveu inúmeras transformações nos cursos.A categoria, após várias ações desencadeadas nos anos 70, conquistou várias vitórias no que diz respeito à melhoria na formação do profissional, ao aceite de profissionais em cursos de pós-graduação, à atualização das práticas com a clientela nas instituições de saúde e assistência social e à fiscalização do mercado de trabalho profissional.Embora a categoria reconhecesse as dificuldades no mercado de trabalho, a competitividade com a direção clínica na instituição (centrada na figura do médico, cujo centralismo das decisões asfixiava a participação dos outros quanto a encaminhamento e alta dos casos) impregnou as atenções corporativas obscurecendo o pano de fundo da concorrência inter-categorias: a política de privatização da assistência à saúde implementada na década de 70 associada a medidas recessivas, no final desse período.

A INSERÇÃO DA TERAPIA OCUPACIONAL NO MERCADO DE TRABALHO

A lógica capitalista, ao se expandir para a área de saúde (cf. Cap. 1:39-56), transformou as condições de trabalho existente de tal forma que a reorganização do setor promoveu confrontos

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inter-categorias, a alienação dos profissionais quanto a nova estrutura, redefinição de seus papéis específicos e assimilação de tecnologias. A limitada absorção dos terapeutas de cada categoria, a passagem do "status" de profissionais liberais para assalariados, e o confronto de interesses "por uma fatia maior no mercado de trabalho" criaram as condições de batalha entre as várias categorias (vide Spink, 1985:24-43).A busca de salvaguardas específicas não reconheceu a questão essencial — a privatização da assistência à saúde, que promoveu insolvência das instituições públicas e das entidades beneficentes de reabilitação — nem o processo de formação do exército de reserva das camadas médias e o respectivo achatamento salarial da força de trabalho ativa. Além do que, nessa alienação, as energias corporativas se esvaíram no discurso da competência técnica sobre a saúde da população, não opondo resistência direta e conjunta à política implantada peio Estado autoritário e, muito menos, à integração de medidas e práticas alternativas para e com a população.Especificamente, o mercado de trabalho apresentava uma configuração complexa: unidades ligadas ao Ministério da Previdência e Assistência Social (em cujas instituições o terapeuta ocupacional está inserido) e unidades ligadas ao Ministério da Saúde. No primeiro plano, ocorreu a expansão da rede hospitalar privada em detrimento da criação de hospitais e

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serviços próprios promovida pela previdência social (cf. Cap. 11:87-9). Embutida na capitalização do setor saúde estava a tecnificação dos atos e insumos de saúde mediados pelos equipamentos médico-hospitalares e a diversificação dos serviços de ação rápida. Foi privilegiada, no sistema de convênio, a realização de uma série de exames, técnicas terapêuticas e especialidades clínicas compatíveis ao diagnóstico e tratamento sintomatológico de curta e média duração.No rol dos equipamentos adquiridos pelos hospitais de clínica geral, ortopédica, neurológica, cardiológica, encontram-se os aparelhos de eletroterapia, audiometria, tração, eletromiografia, termoterapia, hidroterapia e outros. A prescrição das técnicas fisioterápicas, por exemplo, geralmente era feita pelo médico. O fisioterapeuta, na maioria das vezes, não era contratado pelo hospital já que inexistiam sanções legais e fiscalização que garantisse a exclusividade ao profissional "habilitado" (no caso específico o fisioterapeuta formado em curso universitário reconhecido pelo MEC), conforme determinação do Decreto-Lei 938, de 1969.A terapia ocupacional, apesar de também ter sua exclusividade contestada pela fisiatria, não era usualmente empregada peleis especialidades médicas, pois, praticamente, não absorvia equipamentos médico-hospitalares e nem era prescrita para doentes de curta internação, mas somente àqueles que apresentavam níveis mínimos de movimentação voluntária e de

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colaboração para o trabalho ativo. Assim, a terapia ocupacional praticamente não foi absorvida na rede hospitalar, exceção feita a alguns hospitais já referidos no capítulo anterior (hospitais de fisiatria ou hospitais gerais ligados a escolas médicas).A terapia ocupacional, ao trabalhar com a clientela que sofre de acometimento orgânico, enfoca primordialmente a restauração física, buscando atingir o máximo da capacidade motora. Só que, com este mesmo objetivo, os hospitais já empregavam a fisioterapia, cujas técnicas, além desta, também atendiam a outros objetivos clínicos, e se adequavam melhor à política de tratamento sintomatológico, de uso de equipamentos e técnicas diversificadas. Por outro lado, os demais objetivos da terapia ocupacional física, a saber, o treinamento de hábitos de trabalho e o treinamento vocacional, não eram assimilados pelos hospitais já que estes prio-rizavam a redução dos sintomas em curto período de internação.A ótica tecnológica era explicitada na tabela de pagamento por unidades de serviço — US — do INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social). Pela tabela no elenco de técnicas fisioterápicas (como eletroterapia, massoterapia, termoterapia etc.) e de seu correspondente pagamento, consta a terapia ocupacional em um único item e uma só equivalência em US.Em contrapartida, a terapia ocupacional encontrava-se inserida no programa de

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assistência à doença mental tanto no Ministério da Saúde como no da Previdência Social, que se efetiva, em toda a década de 70, por uma complexa rede hospitalar constituída por hospitais estatais, basicamente de doentes crônicos, e hospitais particulares e beneficentes, conveniados ao INAMPS, ou, ainda, como já foi relatado no capítulo anterior, às Secretarias de Saúde. Os hospitais conveniados, com média de 250 leitos, apresentavam alta rotatividade já que o INAMPS previa um mês de internação para os casos de neurose e três meses para os casos de psicose. Com estes parâmetros, a meta da assistência psiquiátrica era a remissão do quadro agudo da doença, ou seja, a supressão dos sintomas patológicos obtida, basicamente, pelo uso intensivo de psico-fármacos e, em menor escala, do eletro-choque e coma insulínico, atendendo assim ao limite previsto para cada tipo de internação. Esta política buscou sanar as inter-nações prolongadas e fornecer parâmetros técnicos para a assistência; é claro que os pacientes que não se recuperassem nesse prazo poderiam continuar internados; entretanto, como o parecer psiquiátrico necessário à dilatação do prazo desencadeava um longo processo burocrático para ressarcimento financeiro, freqüentemente esta alternativa era pouco utilizada pelos hospitais.No sistema de convênio previam-se pontos para os recursos humanos e instalações que classificavam os hospitais e determinavam a respectiva remuneração hospitalar — o RECLAC

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— inserido na Portaria SAMES 8/74 (cf. Cerqueira, 1984:153 -4). Por esta classificação, o padrão mais elevado de assistência e, portanto, de remuneração seria de um hospital que contasse com uma equipe de psiquiatras (um para cada quarenta pacientes agudos ou sessenta pacientes crônicos), um assistente social, um psicólogo e um terapeuta ocupacional, cada um dos três últimos responsáveis individualmente pelo atendimento de cinqüenta pacientes, em uma jornada de vinte horas semanais. Por este cálculo, enquanto o número de psiquiatras variava segundo o número total de pacientes, os demais profissionais permaneciam fixos, ou seja, para um hospital com 250 leitos, os profissionais não-médicos poderiam dispor, separadamente, de cerca de cinco minutos semanais para cada doente.Esta previsão é bem restritiva já que o terapeuta, ainda que atenda aos cinqüenta pacientes planejados, disporá de, no máximo, 24 minutos semanais para cada paciente, supondo realizar os atendimentos ininterruptamente. Estes dados mostram que não é esperada uma intervenção mais específica de qualquer prática terapêutica, mas, talvez, uma terapêutica multidisciplinar para uma parcela dos internados.Concluindo, o pagamento previsto pela previdência aos recursos humanos da instituição determinava um modelo de intervenção farmacológica generalizada, coerente com a corrente organicista da psiquiatria, e uma possibilidade, a poucos pacientes, de receberem

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outras terapêuticas, mas num lapso curto de tempo. Assim, na doença mental, democratizou-se o oferecimento de um tratamento mínimo — o farmacológico e custodial —, resguardando-se a uma faixa pequena deste contingente um tratamento bem diferenciado, com outros especialistas de saúde, ao nível individual e grupai. Por este mecanismo eram previstos e realizados dois tipos de atenção e tratamento hospitalar, que costumavam ter correspondência com o nível sociocultural e de consumo da clientela, ou seja, aos mais conscientes e/ou de padrão mais elevado, as diversas abordagens e aos mais regressivos e de padrão menor, o tratamento medicamentoso e custodiai. Não obstante, a primazia da orientação tecnológica na área transparece ao se comparar a pontuação de equipamentos versus recursos humanos, pois, pelo sistema classificatório, um profissional recebe os mesmos pontos que um bebedouro elétrico ou uma geladeira (Cf. Hahn, 1983:5).Nos hospitais psiquiátricos, públicos ou conveniados, observa-se então uma tendência de eleição de laborterapia e, em menor escala, de uma proposta de terapia ocupacional que valorizasse o indivíduo, denominada geralmente de terapia ocupacional mental ou psiquiátrica.No primeiro caso, a adoção da laborterapia era associada à concepção do tratamento moral36

36 O tratamento moral foi a fonte inspiradora da psiquiatria brasileira, responsável pela construção dos grandes hospitais-fazenda e hospitais-oficina, mas, segundo alguns autores (Machado e outros, 1978), o tratamento moral não chegou a ser verdadeiramente implantado no Brasil e, não tendo sido completamente esgotado, ainda perdura na concepção, psiquiátrica

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francês cujos pilares eram o isolamento, a vigilância, o controle do tempo e da ocupação dos internos e a contenção. A ocupação terapêutica encaminhavam-se os pacientes "que perturbam a enfermaria", os que estavam próximos da alta hospitalar, para readquirirem os hábitos de trabalho e os que tinham habilidade para os trabalhos manuais. Para os pacientes em geral, organizavam-se festas, jogos e outras atividades.As atividades mais freqüentes na laborterapia eram as atividades artesanais e produtivas (cuidados com o ambiente, oficinas), nas quais o produto final ou deveria ser vendido, revertendo-se em material de consumo para o setor, ou, ainda, deveria reverter em serviços para a instituição. O estudo recente de Lancman (1989a e b), realizado no Hospital do Juqueri, alerta sobre o papel desempenhado pela ocupação terapêutica no interior do hospital psiquiátrico. Ela vem corroborar o sistema de privilégios que disciplinariza a todos e beneficia àqueles "eleitos" que apresentem melhor capacidade de trabalho, obediência e grau de consciência.A terapia ocupacional da área mental ou psiquiátrica tem suporte na corrente organicista e em correntes humanistas, como a fenomenologia, a psicanálise.Do ponto de vista da corrente organicista (linha predominante nos anos 60), a ocupação de doentes objetivava a redução dos sintomas clínicos; assim, na terapia ocupacional, os

contemporânea.

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pacientes agressivos deviam trabalhar com argila para descarregar os impulsos agressivos, os pacientes desagregados deviam fazer tecelagem para organizar o pensamento e os pacientes depressivos trabalhar atividades recreativas para facilitar a sociabilização. Para cada tipo de sintoma correspondia um determinado tipo de atividade. Nesta concepção o treinamento de hábitos de trabalho não era priorizado e as atividades profissionalizantes eram pouco utiliza-das. O terapeuta ocupacional aplicava atividades prescritas e informava o médico sobre a evolução do caso.A terapia ocupacional que enfocava valorização do indivíduo se pautava em outras correntes de pensamento: a fenomenológica, a sociocultural e a psicanalítica, conforme a classificação de Hopkins (1983). Por estas correntes, a relação terapêutica era reconhecida como um outro instrumento de intervenção a ser aliado à atividade. Nessa medida, a empatia devia ser considerada na relação terapeuta-paciente, bem como as relações estabelecidas no grupo de pacientes. A escolha da atividade pelo terapeuta levava em consideração o interesse, a iniciativa e a afetividade envolvida na realização da atividade. Este conteúdo era trabalhado com um número reduzido de pacientes, a partir de avaliação ocupacional individual, atividades de livre-escolha do paciente, atividades grupais e avaliação do andamento indivíduo-grupo ao final do trabalho diário. Tendo em vista o tempo de internação, de um a três meses, as possibilidades

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de trabalho se fixavam no aqui e agora, ainda que as reinternações hospitalares se mantivessem constantes pela inexistência da rede ambulatorial de retaguarda. Este trabalho se efetivava em hospitais que se propunham oferecer um tratamento mais humanitário aos pacientes, a partir de um trabalho mais coeso dos vários especialistas, ou, ainda, em unidades hospitalares que se propunham assumir um pro-cesso de humanização, como o iniciado no Instituto de Psiquiatria do HC-USP37.Voltando agora a nossa análise para outra parcela da população assistida pela terapia ocupacional, verifica-se que as entidades que atendem ao menor deficiente mental ou físico tiveram um crescimento numérico e qualitativo na década passada, principalmente as destinadas à educação especial de deficientes mentais, que foram favorecidas pelo subsídio governamental. A Portaria Interministerial 186, de 1978, do Ministério de Educação e Cultura e Ministério da Previdência e Assistência Social, regulamentou o atendimento e o ensino especial aos excepcionais.As verbas estipuladas pelo MEC/MPAS em seus convênios estabeleceram uma escala de classificação dos recursos humanos correspondendo ao tipo de patologia e volume da

37 Sobre o tema, 1er o trabalho de Fernanda Nicácio, "Contribuição para discussão e reflexão do papel do terapeuta ocupacional na instituição psiquiátrica" (1985), que relata a recriação teórico-prática desta abordagem terapêutica no bojo da experiência multidisciplinar de resgate da cidadania do doente mental e de sua participação nas assembléias, instrumento central do redirecionamento da instituição.

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clientela. Assim, para o atendimento de quarenta clientes entre deficientes mentais e deficientes físicos leves (trinta em período parcial e dez, integral) foi previsto um terapeuta ocupacional para uma jornada de quarenta horas semanais e vinte horas para os demais técnicos. Para o atendimento de quarenta clientes (em mesmo esquema, parcial e integral) deficientes mentais e deficientes físicos moderados e graves, além do terapeuta ocupacional também foi previsto um fisioterapeuta por quarenta horas, permanecendo inalterada a jornada dos outros técnicos. Agora, para atender quarenta deficientes físicos, em período integral, era suficiente que a jornada do terapeuta ocupacional fosse de dez horas sema-nais (cf. Brasil, 1978: 29-34). Aqui é reforçada a distinção feita no Decreto-Lei 938: o terapeuta ocupacional cuida da capacidade mental e o fisioterapeuta cuida da capacidade física.Esta classificação governamental previa, no máximo, uma sessão semanal específica de cinqüenta minutos para cada cliente portador de deficiência física e/ou mental. Todavia, como esta clientela requer, em média, duas sessões semanais e a maioria das entidades possui pelo menos uma centena de pacientes, constatamos a mesma lógica do programa de saúde mental, que prevê dois tipos de assistência, na maioria das vezes reproduzindo a mesma lógica de oferta dos programas multidisciplinares àqueles de maior padrão sócio-econômico-cultural.Por força da desatualização de verbas dos convênios com as entidades beneficentes, ligada

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à flutuação dos recursos para as políticas sociais, as entidades assistenciais menores sofrem no período recessivo uma séria crise de insolvência, cujas campanhas financeiras de sócios-contribuintes, promoções e donativos procuram saldar. Neste quadro, os trabalhadores da saúde têm sido submetidos a irrisórios níveis salariais e condições de trabalho, verificando-se a rotativida-de dos profissionais, a busca de outros empregos e a expansão do exército de reserva profissional.Por sua vez, nos Centros de Reabilitação Profissional do INPS, que foram sendo instalados em vários estados, destinados aos acidentados do trabalho, doentes ocupacionais e incapacitados, a rígida estrutura funcional ladeada pela supremacia do modelo clínico sobre os demais enfoques limitou as possibilidades de um trabalho multidisciplinar integrado. A recuperação da disfunção física do acidentado do trabalho (80% dos casos atendidos no CRP de São Paulo), o treinamento de habilidades e o encaminhamento à oficina profissionalizante têm sido o modelo cinesiológico de terapia ocupacional que será melhor apresentado poste-riormente.Por sua vez, nos anos 70, o Estado autoritário adotou medidas assistencialistas. Foram criadas instituições de caráter total, instituições fechadas destinadas ao atendimento do menor (carente e infrator) e do idoso, acrescidos de serviços abertos, como creches e jardins de infância. Estas entidades públicas e beneficentes mantidas pela FEBEM (Fundação para o Bem-Estar do Menor),

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Legião Brasileira de Assistência e Secretarias Estaduais e Municipais agruparam segmentos da população pauperizada, fornecendo abrigo e ali-mentação em troca da disciplina e segregação38.O terapeuta ocupacional foi se inserindo também nas novas instituições sociais, acima referidas, nas quais os programas de intervenção apresentavam espaço para o ingresso de outros profissionais. A partir de então a categoria ampliou sua ação da reabilitação e tratamento precoce às medidas preventivas e estimuladoras destinadas a crianças e idosos institucionalizados. Nos asilos, creches e FEBEM são concentradas parcelas da população pauperizada, frutos da monopolização da economia sem adoção maciça de políticas sociais saneadoras do processo de destruição das forças produtivas, dissolução do núcleo familiar e marginalidade econômica e sociocultural. A criação destas instituições sociais demarca a mediação do Estado sobre o conflito, em irmã perspectiva de redução da violência, tensões sociais acrescidas do mascaramento ideológico desta realidade.O processo de institucionalização das populações marginais (no sentido empregado por Marx, 1982:746-7 e cf. Cap. 1:48-51) abriu uma nova realidade no âmbito da assistência: como caracterizar essa população? Como lidar com a

38 Muitos estudos têm sido realizados sobre a função das instituições da sociedade moderna. Particularmente, sobre a instituição psiquiátrica tem se verificado que ela exerce prioritariamente um papel de controle social sobre os grupos marginais e/ou desviantes. Esta função fica encoberta pela função terapêutica da instituição de saúde e assistência. Sobre o tema ler Basaglia (1985) e Machado (1978).

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marginalidade, linguagem e cultura dessas populações?Várias teorias foram desenvolvidas, adotando-se o referencial da psicologia e sociologia, como as teorias da personalidade marginal e da marginalidade como situação social (privação cultural, problemas na participação e integração nas instituições sociais, análises da desviança) conforme a classificação de Pereira (1978). Dentre as abordagens empregadas, temos as socioterápicas, as técnicas de modificação de comportamento, de estimulação precoce, de desenvolvimento perceptual-cognitivo, de dinâmica de grupo, de recreação.A clientela veio a ser atendida por vários especialistas, incluindo-se o terapeuta ocupacional. Este, ao trabalhar com a clientela infanto-juvenil, objetivou corrigir as defasagens do desenvolvimento e acelerar o processo integrativo. Ao trabalhar com a população idosa, por sua vez, o terapeuta ocupacional enfocou processos orgânicos degenerativos ou o apoio aos problemas de ordem emocionais como a solidão, a morte etc. Em ambas as clientelas, se evidencia o caráter assistencial do programa e da lógica institucional.A limitada adequação dos modelos profissionais a esta realidade gera a seguinte polêmica: há que se elaborar um novo modelo específico — a terapia ocupacional social? E a abordagem psicossocial, elaborada pelos profissionais norte- americanos, responde a estas necessidades? Ou,

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há que se enveredar na própria concepção de terapia ocupacional e nela buscar alternativas?Nos padrões classificatórios do INAMPS, LBA, FEBEM, CENESP foi previsto a contratação de um terapeuta ocupacional (ou assistente social, ou psicólogo) basicamente para ser responsável por um grupo de quarenta a cinqüenta, em média, sejam deficientes mentais, físicos ou pacientes psiquiátricos. Por este parâmetro, a política social já previa uma atuação mais genérica e, às vezes, superficial sobre os sintomas e a problemática principal da clientela. Acrescente-se, ainda, o fato de que cada instituição tem, em média, no mínimo, 150 clientes. Ora, a instituição ao contratar um profissional de cada tipo, que se responsabilizasse por um grupo de cinqüenta pacientes, obtinha o maior nível classificatório; desta maneira, da clientela total, somente uma parcela (ao redor de trinta clientes por setor profissional) receberia tratamento diferenciado do padrão geral.Em sendo assim, como o terapeuta ocupacional historicamente teria sido o último profissional a ser contratado nas instituições, a ele foram enviados, geralmente, os casos mais complexos ou crônicos, que já receberam, sem resultado, as ações parciais de outros técnicos. Atualmente não há dúvida que na área de saúde os casos mais complexos requerem uma ação combinada de vários técnicos integrando os vários aspectos parciais trabalhados por este ou aquele profissional. À medida que o terapeuta ocupacional foi demonstrando sua atuação,

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delineou-se melhor sua clientela, vindo a trabalhar com pacientes que se encontram em estágios iniciais ou menos complexos de alteração de comportamento, desenvolvimento sensório-motor ou capacidade física. Ao nível mais geral, todos os profissionais têm trabalhado o ajustamento da criança ou adulto às condições disciplinares da instituição.Aliados às funções reabilitadoras e disciplinares, outros critérios foram incorporados ao encaminhamento de pacientes à terapia ocupacional. No caso das instituições de caráter total, a concepção de laborterapia ainda está impregnada ao senso comum de administradores e outros técnicos. Nelas, o grau de consciência do paciente, sua condição social diferenciada e sua disponibilidade em colaborar com a instituição têm sido critérios utilizados no encaminhamento de pacientes ao tratamento especializado, no qual a realização do trabalho manual, o trânsito no espaço institucional, a atenção diferenciada e outras pequenas regalias e recompensas (cigarros, enfeites, alimentos e objetos de uso pessoal) se transformaram num sistema de privilégios e reforço à disciplina e ao trabalho, criando estratos diferenciados de pacientes, o trabalho passando a ser relação de uso entre os internos.Integrada ao espaço institucional, ao processo de desenvolvimento técnico-científico da área de saúde, de maturação e organização das categorias profissionais, a terapia ocupacional foi formulando modelos de intervenção a partir do

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modelo hegemônico da medicina, ou seja, o modelo clínico de saúde.A CORRENTE REDUCIONISTA E A TERAPIA OCUPACIONALA partir do método científico adotado pelas ciências da vida, denominado por Kielhofner & Burke (1985) de reducionismo, a terapia ocupacional veio constituir uma identidade e corpo de conhecimento técnico-científico correspondente.O reducionismo, método científico desenvolvido nas ciências exatas, se propõe a reduzir o mundo empírico em seus diferentes fenômenos para que, a partir do estudo particular de cada um, sua separação, mensuração e observação, sejam estabelecidas relações e seja atingida a compreensão do todo o seu funcionamento intrínseco. No método reducionista, abdica-se da totalidade e versatilidade, em favor do estudo em profundidade.O modelo médico decorrente do reducionismo "[...] engloba os conceitos de biofísica, bioquímica e a perspectiva psicanalítica da psiquiatria” (Kielhofner & Burke, 1985:18). O conceito de saúde e doença caracteriza-se por um equilíbrio de forças físicas e psíquicas no organismo, passando o homem a ser aquele analisável no microscópio ou no divã do analista.Segundo Perkins (apud Leavell & Clark, 977:11)"Saúde é um estado de relativo equilíbrio de forma e função do organismo, que resulta de seu ajustamento dinâmico satisfatório às forças que tendem a perturbá-lo. Não é um inter-

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relacionamento passivo entre a matéria orgânica e as forças que agem sobre ela, mas uma respo-sta ativa do organismo no sentido do reajustamento".Esta corrente reconhece a dinamicidade da saúde/doença, privilegia o organismo — o ser vivo — como o alvo de ação da saúde e identifica os vários determinantes sobre o organismo: agentes nocivos e meio ambiente. Mas quase os neutraliza ao não estabelecer a organicidade e interdependência das forças entre si e destas para com o organismo, de tal maneira que não se reconhece a determinação de certos fatores sobre outros, em determinadas condições. Devido ao desmembramento dos fatores, acaba-se por identificá-los isoladamente e, contraditoriamente, trabalha-se a independência de cada um deles.A concepção de homem inerente a essa corrente científica é a de indivíduo biopsicossocial, ou seja, um ser que se constitui de elementos biológicos (orgânicos), psicológicos e sociais. A doença advém do desequilíbrio de forças entre os elementos biológicos, sociais e psicológicos do indivíduo em relação ao meio ambiente e a intervenção terapêutica ocorre sobre o indivíduo doente, mais propriamente sobre os elementos alterados deste organismo. O organismo doente recebe a intervenção do(s) respectivo(s) especialista(s) em busca do reequilíbrio, da saúde.As especialidades profissionais que surgem do processo de parcelamento do conhecimento e

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fracionamento do homem em partes constitutivas têm por objetivo a saúde do paciente. A partir da ação de diversas disciplinas, objetiva-se a síntese, na somatória dos enfoques parciais, dependentes, mas, ao mesmo tempo, autônomos entre si.Pelo trabalho multiprofissional, o paciente é atendido parceladamente, por cada especialista e em uma determinada seqüência prevista; observam-se, às vezes, áreas de superposição, trabalhos independentes uns dos outros, ou, ain-da, necessidades não respondidas pelos diferentes profissionais. Não obstante, algumas equipes de trabalho conseguem obter um programa integrado interprofissional e uma participação efetiva do cliente nesta programação.No entanto, a falta de organicidade entre os diversos conhecimentos não dá a visão de conjunto necessária ao trabalho integrado, em equipe; além do mais, a concorrência profissional das camadas médias pelo "status" e espaço no mercado de trabalho39 conturba as possibilidades deste trabalho.A concepção de saúde é alienada das condições estruturais da sociedade e da produção social da doença, ou seja, as doenças são vistas como resultado de fatores autônomos entre si, mesmo os de ordem econômica; as classes sociais

39 A formação em massa de profissionais universitários, nem sempre justificada pelas necessidades de produção, tem promovido os fenômenos da concorrência, do desemprego, da superprodução escolar etc. (cf. Andrade, 1982:29). A luta entre as camadas médias da área de saúde é analisada por Durand e Spink (1985:4-23; 24-43).

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deixam de ser vistas como um fator no processo de saúde e doença, os indivíduos e seus sintomas são agora estudados pela ótica clínica.A terapia ocupacional, ao buscar o "status" científico, reducionista, e continuar obtendo o respaldo médico, conforme estudos de Mosey (1979:48), abdicou dos pressupostos da ocupação terapêutica, reproduzindo o modelo da especialização do conhecimento e dividindo-se por áreas clínicas chamadas, no meio profissional, de as diferentes áreas de atuação do terapeuta ocupacional.As áreas de atuação profissional foram se diversificando a tal ponto que as funções de terapia ocupacional só poderiam ser caracterizadas segundo a especialidade médica junto a qual ela era aplicada.No artigo "Terapia Ocupacional", escrito pelas profissionais paulistas, Nakagawa, Benetton e Takaki (1971:85), o alcance da profissão variava segundo o "campo médico", a saber, Ortopedia, Neurologia, Geriatria, Deficiência Visual e Psiquiatria.Os modelos reducionistas que se constituíram caracterizavam cada prática profissional segundo o objeto de estudo, o instrumental e os objetivos; para tanto a clientela atendida era diferenciada pelo modelo médico a partir dos sintomas biológicos ou mentais. O desmembramento entre objeto de estudo, objetivo e instrumento era necessário para justificar "cientificamente" a multiplicidade de papéis profissionais voltados ao atendimento da mesma clientela.

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O modelo reducionista se implanta na terapia ocupacional de tal maneira que, para cada tipo de problemática da clientela, era definido um objetivo específico, uma intervenção técnica peculiar e uma atividade própria, muitas vezes até alienados de um significado mais geral, todavia coerente com os objetivos técnicos traçados.A profissão, sob a vigência do reducionismo, era definida pela Associação Americana de Terapia Ocupacional em 1968, da seguinte forma:"A terapia ocupacional é a arte e a ciência de dirigir a resposta do homem à atividade selecionada para favorecer e manter a saúde, prevenir a incapacidade, para valorizar a conduta e para tratar ou adestrar os pacientes com disfunções físicas ou psicossociais" (Williard & Spackman, 1973:1).O objeto de estudo era a destreza e a conduta do indivíduo (paciente) com problemas de ordem física ou psicossocial. A atividade era escolhida pelo terapeuta, segundo seus princípios técnicos e intuitivos (ciência e arte), visando o tratamento e a reabilitação do desempenho e da conduta humana, ou seja, da ação humana em si e não dos fatores que a desencadeavam.Esta definição, ainda vaga, é parcialmente reformulada em 1972.Os aspectos sobre os quais recaem a intervenção tornam- se mais funcionais, a terapia ocupacional objetiva:"[...] restaurar, reforçar e melhorar o desempenho, facilitar o aprendizado de

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habilidades e funções essenciais para adaptação e produtividade" (Reed, 1980:4).Nesta retificação, feita pelo mesmo órgão de classe, não se esclarece, precisamente, a clientela atendida, os meios de se obterem os resultados terapêuticos e os modelos de intervenção adotados, ao mesmo tempo em que a adaptação e a produtividade surgem como necessidades naturais e a históricas. As lacunas em ambas as definições, que se manifestam na imprecisão dos termos e nos pontos a descoberto, retratam a reduzida teorização da área sobre sua base filosófica, já que a área de terapia ocupacional privilegiou a formulação de modelos de intervenção compatíveis com a clientela atendida.Posteriormente, em 1977, a Associação Americana definia a terapia ocupacional da seguinte forma:"A terapia ocupacional é a aplicação da ocupação, (de que modo) de alguma atividade na qual o ser humano se engaja para avaliação, diagnóstico e tratamento (processo) de problemas interferindo com o desempenho funcional (objetivo) em pessoas debilitadas por doenças ou traumatismos físicos, desordens emocionais, incapacidades congênitas ou do desenvolvimento ou processo de envelhecimento (clientela) com o fim de se alcançar o funcionamento ótimo e a prevenção e manutenção da saúde (meta)" (Reed, 1980:4).Nesta perspectiva se diferenciam o instrumento de trabalho — a ocupação, o processo, o objetivo,

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a clientela e a meta do trabalho terapêutico —, só que, ao mesmo tempo, se reduziu o significado social de seu objeto de estudo — a atividade humana — ao "funcionamento ótimo" do organis-mo, à produtividade, à ação alijada da reflexão.Ao se identificar a atividade humana como instrumento do terapeuta ocupacional, ainda que associada às técnicas comportamentais, sensório-motoras ou psicoterápicas que agem sobre a ação humana, esta foi sendo abstraída de sua concreticidade, tornando-se autônoma do indivíduo que a realiza e estéril às contradições deste homem, que tem sua ação social alterada.Nesse processo técnico, obtém-se como resultado uma nova atividade, agora revestida do teor terapêutico, cujo poder é capaz de recuperar o ser humano, de reformular os seus conflitos e desenvolver suas potencialidades. Entretanto, este homem precisou ser excluído de seu meio social e ser colocado na assepsia do espaço institucional, no qual, muitas vezes, não teve o direito elementar de ir e vir ou de escolha sobre o uso do seu corpo para, então, ser solicitado a colaborar nos vários setores técnicos. Esta aquiescência é fruto de valores introjetados em nossa sociedade, que tem sido disciplinada a encarar o desconhecido submetendo-se aos ditames da ciência, da ordem médica, do destino social. Por esta ótica, as características sociais da pessoa (condições de vida, cultura, trabalho) têm ingressado como pano de fundo nas terapias, ainda que estejam à mostra em seus corpos, suas posturas, seus trajes, suas doenças, sua

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linguagem. Mas, na maioria das vezes, quando consideradas, ingressam com forte carga ideológica, de um lado, valorizando o "status" social da clientela de poder aquisitivo e, de outro, desprestigiando a condição de outra classe social e o correspondente programa terapêutico, através de argumentos como insalubridade, ignorância e pobreza.A terapia ocupacional, fomentada inicialmente pela lógica da produtividade e associada ao assistencialismo, primordialmente atendeu às vítimas do trabalho e a seus dependentes. Só que, concomitantemente, as classes hegemônicas também requisitaram este atendimento especializado, visando não mais a produtividade, mas a sociabilização, a aquisição de habilidades educativas, a independência nas atividades de vida diária (higiene, vestuário, alimentação, comunicação, locomoção). De um lado, a terapia para o trabalho e do outro a terapia para o não-trabalho, constituindo-se praticamente como duas abordagens técnicas correspondentes a distintas classes e funções sociais.A terapia ocupacional desfocalizou, então, a recuperação da capacidade de trabalho e passou a enfocar a independência nas atividades de vida diária, a sociabilização, as atividades escolares e até o treinamento profissional.

OS MODELOS DE INTERVENÇÃO EM TERAPIA OCUPACIONAL

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A primeira diferenciação ocorrida na terapia ocupacional seguiu a divisão mais clássica da medicina (e da sociedade), a dicotomia corpo e mente. Ela se expressa na terapia ocupacional física (para as desordens orgânicas, desde os anos 30, nos Estados Unidos) e terapia ocupacional mental (para as desordens psíquicas, desde os anos 40, nos Estados Unidos). No artigo “Terapêutica Ocupacional", Lourdes de Freitas Carvalho (1953:19-21), médica do Hospital das Clínicas de São Paulo, apresenta a divisão inicial da terapia ocupacional em: terapia ocupacional física e terapia ocupacional psicológica.A partir desta primeira divisão constituíram-se outros modelos. Segundo Kielhofner & Burke (1985), no artigo "A terapia ocupacional após 60 anos; um relatório sobre a mudança de identidade e do corpo de conhecimento", a profissão constituiu três modelos, a saber: o modelo cinesiológico, o modelo psicanalítico e o modelo neurológico40.Da Terapia Ocupacional da área física ao modelo cinesiológicoA terapia ocupacional era definida por Carvalho (1953:19) da seguinte maneira:"A primeira (terapia ocupacional física) abrange a reabilitação das incapacidades físicas pós-traumatismo ou doença; a segunda (terapia ocupacional psicológica) é feita no tratamento

40 A classificação de modelos em terapia ocupacional é bastante diversificada, posto que esta temática é contemporânea. Elegemos esta classificação por ser mais globalizante atendendo às finalidades deste trabalho.

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das moléstias mentais. [...] A primeira é subdividida em três grupos:a) Terapêutica Ocupacional específica;b) Não-específica ou laborterápica;c) Colocação de pacientes em empregos (treinamento vocacional).A divisão da abordagem técnica segundo a clientela é clara e a subdivisão da primeira abordagem terapêutica ocupacional explicita sua particularidade. A terapêutica ocupacional específica é aquela que prescreve as atividades próprias à deficiência (vide Moraes, 1959:57), sendo a grande inovação aplicada ao tratamento de incapacitados, ou seja, a realização de atividades com finalidades prioritariamente motoras, musculares, de movimentação. Ela é, portanto, tratamento, pois desenvolve a função motora nos casos agudos, aliada ao programa terapêutico global. As outras formas são a laborterápica, para os casos de treinamento de hábitos de trabalho, o treinamento vocacional e profissionalizante. Estas formas eram indicadas para os incapacitados congênitos, sem formação profissional, para os acidentados que precisavam ser readaptados à função anterior e, ainda, àque-les que precisavam ser reabilitados para nova função.Nessa mesma perspectiva, a terapeuta ocupacional do Instituto de Reabilitação do HC-USP, Neyde Tosetti Hauck, no artigo “Terapia Ocupacional", publicado em 1959, apresenta a seguinte divisão em seu programa terapêutico para incapacitados físicos: terapia ocupacional

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médica; unidade pré-profissional e unidade de terapia ocupacional recreativa.Nessa forma de organizar o programa terapêutico cujas atividades podem atender a duas ou mais unidades, simultaneamente, o programa profissional engloba os objetivos laborterápicos e reabilitacionais, destacando as atividades recreativas voltadas à socialização, ao momento do não-trabalho (o lazer), e à minimização dos efeitos de uma internação prolongada. Além disso, quanto ao objetivo e método de indicação de atividades na unidade de terapia ocupacional médica, esclarece:"Esta unidade auxilia o médico, através de meios físicos, a completar o tratamento médico do paciente. A terapia ocupacional médica procura assegurar uma restauração física máxima antes da alta para o trabalho ou da exploração de um novo emprego [...] O tratamento continua até que o médico conclua que já foi atingido o máximo de restauração física" (Hauck, 1959:71 — grifos nossos).Assim, a atividade humana adquiria, no âmbito da terapia ocupacional física, um enfoque específico — a restauração física, que se coadunava com o objetivo central do corpo clínico. Esse enfoque específico, às vezes dissociado dos demais, do psicológico e do social, também mencionados pela autora, conduz ao reducionismo na dimensão do ser humano e de sua atividade. Como a autonomia desta carreira profissional era débil ao final dos anos 50, a prescrição de atividades e sua "alta" eram

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definidas pelo médico responsável pelo doente. A atividade passa a ser analisada e prescrita segundo a movimentação que ela realiza, a respectiva tonicidade muscular, desenvolvimento de habilidades, coordenação de movimentos, resistência física e promoção de estabilidade psicológica através do ajustamento às limitações "físicas".O princípio da atividade como exercício constitui o modelo cinesiológico (a partir do estudo do movimento), uma das correntes científicas da profissão. As atividades construtivas e as artesanais eram indicadas aos incapacitados visando o reforço psicológico e o trabalho produtivo. Este modelo é quase a transposição linear da linha organicista da doença mental.No programa da disciplina Terapia Ocupacional, do curso de graduação de mesmo nome do Instituto de Reabilitação da USP, objetivava-se o aprendizado das diferentes atividades "[...] que encerram os exercícios desejados, quer sob o ponto de vista terapêutico propriamente dito, como recreativo e vocacional" (Moraes, 1959:57). O conteúdo programático se volta ao atendimento de patologias motoras, onde o "objetivo terapêutico propriamente dito" é o exercício desejado, embutido na prescrição da atividade.Este modelo foi muito bem analisado por Francisco (1988: 36-42), que o caracteriza como a atividade pelo exercício. O objetivo último neste modelo era tornar o incapacitado tão independente quanto possível, usando as

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habilidades remanescentes para cuidar de si mesmo e exercer uma ocupação que o torne economicamente autônomo.O terapeuta ocupacional deste modelo tornou-se especialista em análise de equipamentos adaptados (nos países centrais) ou em confeccionar adaptações (nos países terceiro-mundistas, como o Brasil), em exercícios progressivos de resistência, em atividades de vida diária, em treinamento de hábitos de trabalho, resistência à fadiga, e programa pré-vocacional.O modelo cinesiológico em terapia ocupacional encontra boa assimilação, primeiro, em hospitais gerais e entidades beneficentes e, segundo, em clínicas e consultórios particulares. As distinções no trabalho realizado entre os primeiros e os últimos se encontram mais na variedade de recursos de suporte — jogos psicopedagógicos, espaço físico e condições de execução — do que na orientação técnica propriamente dita. Além destes locais, este modelo se conforma também ao trabalho nos Centros de Reabilitação Profissional — CRP do INAMPS e aos asilos de idosos, enfocando os processos degenerativos e funcionais da terceira idade.

Da Terapia Ocupacional da área mental ao modelo psicanalíticoDa concepção laborterápica à terapia ocupacional da área mental o avanço teórico se deu no que tange ao trabalho ocupacional na fase aguda da doença mental, às relações afetivas e sociais,

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além do uso de atividades plásticas e expressivas.Segundo a classificação de Kielhofner & Burke (1985), terapeutas ocupacionais norte-americanos, o modelo que se constituiu nesta área profissional foi o modelo psicanalítico.Esse movimento de terapia ocupacional mental foi preconizado pelos Fidler e pelos Ázima nos anos 50, utilizando conceitos psicodinâmicos para a análise e aplicação terapêutica da atividade. Nesse modelo, as relações interpessoais em geral e a relação terapeuta-paciente, em particular, são vistas como o cerne do tratamento. A atividade como expressão é bem caracterizado por Francisco (1988:46-50).O modelo psicanalítico adota as atividades artesanais, expressivas e outras para a conscientização e compreensão dos conflitos intrapsíquicos, para darem vazão, sublimação e catarse a estes sentimentos e pensamentos conflituosos. Ao terapeuta caberia provocar o comportamento saudável do paciente."Os objetivos do tratamento se tornaram a comunicação efetiva e a expressão e redução de sintomas" (Kielhofner & Burke, 1985:23).Algumas correntes de base analítica vêm adotar o uso de atividades plásticas ou dramáticas como fonte de expressão dos conflitos intrapsíquicos, como o trabalho de Nise da Silveira, nos anos 40. Entretanto, o modelo psicanalítico só começa a ser difundido entre os graduados em terapia ocupacional nos anos 70, sendo o pilar de alguns serviços de saúde mental nos anos 80.

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A introdução do modelo psicanalítico em terapia ocupacional objetiva a promoção de atitudes saudáveis nos pacientes com quadros de depressão, ansiedade, negatividade, alucinação etc., ativando os núcleos sadios do ego, facilitando a expressão de idéias e sentimentos obscuros e o estabelecimento de relações sociais significativas. As atividades plásticas — pintura, modelagem (cf. Benetton, 1984), as atividades culturais — festas, jornal, assim como as artesanais — tecelagem, costura, são bem empregadas visando à afetividade, socialização e organização do pensamento.Esta abordagem tem se implantado em alguns serviços particulares, obtendo-se bons resultados terapêuticos (a Casa, 1982; Jorge, 1980), ou, ainda, em condições adversas, "nadando contra a maré", pela tenacidade de sua condução, como é o caso da terapêutica ocupacional realizada no Museu de Imagens do Inconsciente, em Engenho de Dentro - RJ, de orientação psicanalítica, dirigida por Nise da Silveira e sua equipe.Assim, o modelo psicanalítico não foi incorporado à maioria dos hospitais psiquiátricos por sua incompatibilidade com o curto período de internação e a dosagem maciça de medicamentos.Portanto, se a terapia ocupacional psicanalítica não foi o modelo hegemônico na realidade psiquiátrica nacional, em dissonância com a realidade norte-americana, outros modelos de intervenção, além do laborterápico, tiveram influências no trabalho brasileiro. Em escala

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ainda menor, são encontrados outros modelos de atuação em saúde mental sob forte influência da corrente fenomenológica, da corrente sociocultural e da corrente comportamental. Estes modelos orientaram a terapia ocupacional contemporânea de alguns setores do atendimento apesar de o modelo organicista de tratamento ser o prevalente nas políticas de saúde mental. Os modelos de terapia ocupacional na área mental se implementaram também com crianças e idosos institucionalizados visando acelerar o processo integrativo e dar suporte a problemas emocionais.Da Terapia Ocupacional da área física ao modelo neurológicoA partir do atendimento de problemas físicos outro modelo conceitual foi elaborado, o modelo neurológico, baseado no vínculo entre percepção e motricidade, Esta vinculação se concretizou ao final dos anos 50 em algumas técnicas de tratamento: a abordagem sensorial-integradora, elaborada pela terapeuta ocupacional norte-americana Jean Ayres; a terapianeuroevolutivados Bobath, originariamente destinada aos portadores de paralisia cerebral; a técnica de estimulação sensorial de Rood; e as técnicas de desenvolvimento perceptivo da Frostig, Costallat ou Ramain.Os objetivos da terapia ocupacional no modelo neurológico são estimular o desenvolvimento sensório-perceptivo-motor seja ao nível preventivo ou no tratamento de desordens do

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desenvolvimento, habilitando o indivíduo ao desempenho de atividades de autocuidados, educacionais e de vida prática.Hoje, nas entidades beneficentes como as APAEs, Pestalozzi, Centro de Reabilitação Infantil e, em menor escala, nos CRP do INPS, nas creches e FEBEMs, o modelo neurológico em terapia ocupacional é o mais freqüente e adequado. Ele objetiva, principalmente, a orientação de professores das classes especiais quanto à programação de atividades perceptivas, de autocuidados e das atividades de vida diária — AVD (higiene, vestuário, alimentação, locomoção e linguagem) e, para uma pequena parcela, realiza o treino de habilidades motoras, das AVDs e treinamento perceptivo através de jogos psicopedagógicos visando corrigir defasagens do desenvolvimento. As oficinas pedagógicas, nos locais onde elas foram implementadas, geralmente ficam sob o encargo de pedagogos, e o trabalho profissionalizante, quando efetivado, fica sob a responsabilidade do terapeuta ocupacional, que realiza a seleção de clientes, atividades, treinamento e acompanhamento na oficina de trabalho abrigada. A colocação profissional raramente é efetivada pelas condições do mercado de trabalho e o preconceito social com o deficiente mental.A dimensão técnica adquirida pela terapia ocupacional por meio destes modelos de intervenção promoveu o respeito das áreas clínicas afins com a profissão e sua prescrição para novas disfunções, mas, em contrapartida,

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restringiu a sua base conceitual, esfacelando o homem para fins de tratamento e delimitando-o em determinados aspectos. Corroborando esta concepção, Berenice Rosa Francisco é clara:"Entretanto, como resultado indireto, a terapia ocupacional sofreu a perda de uma base filosófica, o homem perdeu o seu valor como 'organismo total' para resumir-se a um membro a ser recuperado" (Francisco, 1985:11).O enfoque dos vários modelos recai sobre os aspectos particulares do indivíduo, criando novos impasses ao conhecimento e às condições de saúde. Por exemplo, o terapeuta ocupacional das disfunções físicas (de base cinesiológica) não trabalha especificamente as alterações de ordem psicológica ou os hábitos sociais que se imbricam com a patologia. Mas se os incapacitados sofrem de problemas emocionais e muitas vezes são estigmatizados pela sociedade, o enfoque sobre a atividade destes indivíduos não deveria considerar estes fatores? Na concepção clássica deste modelo estas questões seriam trabalhadas pelo psicólogo, ainda que a ansiedade, depressão e angústia adentrem no atendimento da terapia ocupacional. Por sua vez, o terapeuta ocupacional de base neurológica não aborda especificamente as relações afetivas que perpassam o quadro nosológico, como a relação mãe/filho que interfere no desenvolvimento psicomotor e emocional da criança. Ou, ainda, o terapeuta ocupacional da área mental não intervém diretamente sobre as tensões musculares ou outras alterações orgânicas de seus pacientes

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catatônicos ou de pacientes portadores de outras psicopatologias. E, sob outro ângulo, a relação terapêutica é um instrumento exclusivo de trabalho do profissional de saúde mental ou pode e deve ser um recurso para qualquer terapia, transcendendo os atuais modelos?Além destas questões, a partir do treinamento profissionalizante da clientela outra polêmica emerge no meio terapêutico e social: a utilização da capacidade laborativa do reabilitado via ingresso no mercado de trabalho ou na oficina protegida é um indicador suficiente e eficaz da integração do indivíduo à sociedade? E as outras expressões socioculturais, de relacionamento social, de lazer, também não são indicadores da integração do cliente?As expressões socioculturais têm sido pouco exploradas no programa terapêutico ocupacional, de modo que ao se eleger os aspectos físicos ou psicológicos da problemática do cliente, estes são priorizados minimizando os demais. Afinal, seria preciso priorizar alguns dos aspectos da problemática do indivíduo no tratamento, de forma atemporal e a-histórica, se o indivíduo é um todo indivisível ou ele é um aglomerado compacto biopsicossocial?Concluindo, neste período de crise profissional no qual os modelos profissionais não têm respondido à complexidade de demandas da clientela, portanto, uma crise resultante do modelo reducionista de ciência, observou-se a busca de respostas em outras áreas de conhecimento (educação, psicologia, saúde pública), ora

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visando ampliar a concepção de homem e saúde e, ora visando a absorção de outros modelos técnicos (também fruto do reducionismo científico). Desta maneira, a intervenção em cada área foi se distinguindo ainda mais em relação às outras e, em decorrência, a atividade humana, o ponto de intersecção, foi sendo diluído. Assim, se a atividade humana, em seu aspecto físico, psíquico e social, deixasse de ser a essência da terapia ocupacional, o que viria a sê-lo?

DA CRISE ATUAL PARA UMA PRÁXIS UNITÁRIAPara se superar as contradições da atual crise torna-se necessário perscrutar as várias vinculações que tornaram possível a consolidação da revolução técnico-científica na área de saúde. Uma delas foi o processo de formação de novas carreiras em saúde que, além de absorver parcela da classe média não inserida na força de trabalho ativa, favoreceu a constituição do exército de reserva de nível universitário, tão necessário à redução salarial do conjunto dos assalariados, bem como a sujeição às condições adversas de efetivação do trabalho: reduzida Autonomia, recursos materiais limitados e importação das técnicas e produtos dos países centrais (cf. Cap. 1:51-2).Se, de um lado, existiram as determinações das políticas de saúde sobre o trabalho profissional, conforme análise no Cap. I (p. 54-6), de outro, existiu também a absorção incondicional das técnicas terapêuticas formuladas nos países

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centrais, que demonstravam sua eficiência sobre problemas específicos da clientela, sem refletir sobre o espaço institucional ou as relações de interdependência entre programas dos vários setores terapêuticos, já que o seu fundamento era o domínio técnico específico, parcelar.O modelo reducionista, que deu origem aos três modelos em terapia ocupacional, entra em crise a partir dos anos 70, em decorrência de a opção de aprofundamento em um aspecto específico do ser humano ter sido realizada autonomamente à abrangência, à totalidade.O resultado mais direto do método reducionista nos países centrais foi o desenvolvimento tecnológico do setor da saúde (cf. Cap. 11:87-8) seja nos equipamentos, materiais hospitalares, seja nos jogos psicopedagógicos que são absorvidos na rede hospitalar, nas entidades assistenciais e na rede ambulatorial. No Brasil, estes modelos de intervenção, além da absorção de técnicas e produtos industrializados, deram a "feição científica" ao reordenamento dos espaços institucionais. O resultado indireto foi a crise gerada pela falta de uma base filosófica que respondesse à complexidade da natureza humana reconhecendo os vínculos que os aspec-tos psicológicos, orgânicos e sociais do indivíduo têm entre si.Na adequação dos modelos de terapia ocupacional aos vários serviços de saúde, a visão reducionista não conseguiu responder ao problema dos incapacitados crônicos e das populações marginais institucionalizadas. Os

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problemas destes grupos transcendem às deficiências particulares e avançam sobre a concepção de adaptação, produtividade e segregação social.A especialização segundo a clientela e respectivas técnicas também produziu, em contrapartida, a perda da unidade, de um corpo conceitual comum, de modo a tornar a terapia ocupacional um arrazoado de técnicas específicas e de práticas diferenciadas.A variação no papel profissional segundo a população atendida sem a devida reflexão sobre o objeto de estudo da categoria "hipertrofiou os membros enquanto imobilizava a cabeça e o tronco". Como resultado obteve-se um organismo disforme, que percebe a fragilidade de seus pontos de ligação, mas intervém de forma segmentar e sem projeto interativo global. Se, didaticamente, a fragmentação do homem em partes constitutivas favoreceu o aprendizado linear do homem, na realidade concreta tornou-se uma abstração que produziu uma intervenção técnica parcial e desagregada do conjunto orgânico. O indivíduo e o profissional de saúde se alienaram da visão global da problemática da população, que não é estritamente física, mental ou social e, tampouco, é a simples somatória dos enfoques parciais (cf. Soares, 1986d).Novas concepções de ocupação são elaboradas nos Estados Unidos, visando o alargamento da concepção vigente, dentre elas o modelo ontogenético de desenvolvimento humano, proposto por Mosey em 1986, ou a teoria do

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comportamento ocupacional, por Reilly em 1971, ou a teoria da ocupação humana, por Kielhofner em 1983.Essa crise de identidade profissional é marcada por conflitos e debates a partir dos quais se reconhece a necessidade de ampliação do modelo teórico para a prática profissional incluindo a sociologia, a saúde pública, o confronto dos diversos modelos terapêuticos, além das matérias biológicas e psicológicas.Os autores Gary Kielhofner e Janice Burke (1985), ao final de sua análise sobre a crise atual da categoria, apontam a necessidade de se assumir uma visão abrangente, globalizante."O novo conhecimento deve evoluir a fim de dar apoio a uma compreensão dos sistemas de vida e do homem, Além disso, esses sistemas de vida devem ser entendidos em termos de sua totalidade, ordem hierárquica, crescimento e mudança em complexidade, e em termos das leis gerais que governam sua organização" (1985:29).Os autores apontam a Teoria Geral dos Sistemas cuja visão de homem é mais abrangente — um homem que se mantém e se equilibra no mundo, que ocupa ativamente o mundo físico, temporal e simbólico e desempenha papéis sociais produtivos.Os princípios globalizantes são incorporados à concepção de homem e ocupação, ainda que a organização entre os homens e seus respectivos papéis sociais não estejam explicitados nem, tampouco, seu movimento intrínseco com seus conflitos. Então, este ser humano abrangente vai

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se inserir num todo social harmônico evolutivo? O reducionismo, gérmen dos modelos profissionais e facilitador do desenvolvimento tecnológico, não estava vinculado a determinados interesses estruturais — econômicos, políticos e ideológicos — da sociedade monopolista? E a Teoria Geral dos Sistemas também não estará vinculada a estes mesmos interesses?A análise sobre o modelo da ocupação humana feita em profundidade por Maria Heloísa R. Medeiros (1989:96-102) revela o caráter liberai e ideológico desta abordagem."Ao valorizar o homem produtivo e adaptado à sociedade, homogeniza-se o sentido de produção,ignorando-se [...] um tipo específico de produção: a que provê lucros, mantém a alienação dos homens e realimenta o sistema e este estado de vida. A sociedade, considerada como um meio ambiente em equilíbrio, parece intransformável" (1989:101).A superação real da visão reducionista na ciência, em nosso ponto de vista, só ocorrerá à medida que se reconhece a luta de classes como motor da sociedade e da história dos homens. A partir daí, a neutralidade quanto à produção dos homens, sua organização política, sua elaboração teórica e produção material será gradativamente repensada à luz desta visão totalizante, de modo que as diferenças regionais, individuais e da experiência coletiva sejam abarcadas numa visão unitária de homem e sociedade.Assim, a realidade social e os homens das sociedades contemporâneas foram

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homogeneizados pelo processo de internacionalização do capital, ao mesmo tempo que as condições específicas de existência das classes continuam sendo particularizadas segundo seu vínculo com o todo.A sociedade brasileira, por exemplo, terceiro-mundista, que vive a relação de dependência econômica aos países centrais e a agudização dos conflitos sociais decorrentes do pauperismo acelerado, cujo governo tem sido alternado entre o autoritarismo e o populismo, cuja absorção tecnológica muitas vezes antecede à necessidade interna e resulta ineficiente, realiza com maior crueza as contradições de classe geradas pelo capitalismo monopolista (vide Braverman, 1981).Exemplo vivo, o Instituto de Reabilitação do HC-USP, montado com a ajuda internacional da ONU, que priorizava a reabilitação de incapacitados e acidentados do trabalho, passados vários anos de sua criação não possuía nenhum levantamento sobre os casos de acidentados de trabalho reabilitados e respectiva taxa de absorção no mercado de trabalho. A existência do IR durou pouco, sendo extinto abruptamente.De outro lado, os Centros de Reabilitação Profissional do INPS (conforme dados apresentados no capítulo anterior) conseguiam recolocar no mercado, após concluírem o programa profissionalizante, somente metade de sua clientela; a outra metade iria flutuar entre o subemprego e o desemprego.A falta de pesquisas sobre colocação profissional dos reabilitados pode ser interpretada por dois

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ângulos de análise. Numa visão superestrutural, corporativa, este campo de investigação estava sendo construído por um novo técnico, o orientador profissional — misto de assistente social, sociólogo e terapeuta ocupacional (vide Humphreys; Mayer & Silva, 1959:63-9), que acabou se extinguindo no mercado de trabalho, não chegando a se caracterizar como categoria profissional nem tendo curso de formação. A pesquisa sobre a colocação profissional, quando não realizada pelo orientador profissional, tampouco o foi pela prática hegemônica, a medicina; quanto às funções de análise do mercado de trabalho, treinamento e colocação profissional, estas foram sendo absorvidas pelos técnicos afins, como assistente social, terapeuta ocupacional, sociólogo e psicólogo.Outro ângulo da análise é de natureza estrutural, ligado ao modelo e conjuntura político-econômica de nossa sociedade. Os serviços de reabilitação no país podem ter sido introduzidos visando suprir uma demanda ampliada da força de trabalho, durante a Segunda Guerra, pela crise de importação (cf. Diesat, 1984:9). No entanto, como faltam pesquisas comprobatórias desta tese pode-se depreender que, pelo momento em que a reabilitação foi introduzida, ao final do Estado Novo, tenha sido uma medida populista adotada pelo governo visando recuperar o apoio das massas assalariadas ao regime (cf. Cap. 11:68-73). Partindo do pressuposto de que houve demanda da força de trabalho, as lideranças previdenciárias e Vargas adotaram esta medida

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com o mesmo objetivo dos países centrais. Agora, após a regularização de mão-de-obra, a validade de reabilitação profissional, enquanto recolocação no mercado de trabalho, se transformou em melhoria da condição de inserção do incapacitado à produção. Ora, se o reabilitado foi ou não recolocado, se ele se estabilizou ou não no emprego, estas questões tornaram-se problemas de ordem individual e não mais problema do Estado. Como as condições de acesso aos serviços foram limitadas ao previdenciário acidentado ou aposentado por invalidez, a lógica economicista — de redução de despesas com pensões e aposentadorias (cf. Oliveira & Teixeira, 1985:17) — é a que, de fato, norteou o oferecimento de vagas nos serviços de reabilitação federais (vide Cap. 11:80-1). Portanto, sob este prisma, não era necessário pesquisar a taxa de absorção dos reabilitados no mercado, dado que esta meta não era a que se pretendia prioriatariamente alcançar.A reabilitação e a independência econômica do incapacitado foram transformadas de modo a cumprir papéis político-ideológicos, e os serviços de reabilitação, por sua vez, vieram servir, indiretamente, ao processo de extração de mais-valia dos assalariados e de sustentação do status quo.A inserção da categoria no mercado de trabalho — via hospital psiquiátrico, reabilitação profissional, tratamento de deficientes e atendimento às populações marginais — veio formar a consciência do profissional. Afinal, que

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necessidades sociais foram sendo, de fato, atendidas pela terapia ocupacional e por que, ao cumprir as funções reabilitação e tratamento, a terapia ocupacional não foi valorizada no mercado de trabalho?No conflito entre o proclamado tecnicamente pela profissão e não realizável no espaço institucional ou não aplicável às camadas populares, e entre a luta dos profissionais oriundos das camadas médias, por sua incorporação à força de trabalho ativa, as funções econômicas e político-ideológicas foram se delineando.Ao adotar o mesmo referencial de análise já realizado em relação à medicina feito por Arouca (1978), Souza & Veras (1983), e outros já apresentados no Cap. I (54-6), verificamos que a terapia ocupacional cumpre, então, funções no plano econômico, ao recuperar os incapacitados da porção estagnada do exército de reserva41, ampliando a sua porção flutuante que, por seu turno, garante a redução de massa salarial do exército industrial ativo, seja por sua assimilação nos períodos de pico da produção, seja pela rotatividade de mão-de-obra. Ao mesmo tempo a terapia ocupacional, ao se diferenciar de outras práticas profissionais oferecidas ao "consumidor" de saúde, participando da divisão técnico-científica, vem corroborar o consumo e capitalização do setor de saúde, pela incorporação de equipamentos e materiais industrializados e do próprio cuidado de saúde

41 A classificação do exército de reserva já foi apresentada na nota de rodapé n° 10, Capítulo 1, tendo sido formulada por Marx (1982, Livro I, Vol. 11:743-52).

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como valor de uso para a força de trabalho e para as classes hegemônicas (cf. Arouca, 1978:143).Em outra instância, a terapia ocupacional historicamente desempenhou funções político-econômicas na área de saúde quando, em conjunto com as demais categorias ocupacionais, favoreceu o assalariamento da categoria médica à indústria e empresas de medicina de grupo, através da concorrência inter e intracategorias, reduzindo a massa salarial do setor como um todo e se incorporando ao exército de reserva das camadas médias (cf. Spink, 1985:25).Além disso, uma outra função de natureza econômica, que decorre de sua assimilação às instituições de ensino superior, aliada a outros cursos novos, implementou a política de privatização do ensino e de transformação dos institutos em universidades (cf. Cap. 11:94-7). Este mesmo fato também cumpre uma função ao nível político, já que a expansão de vagas na universidade veio diminuir o conflito social dos estudantes "excedentes", basicamente oriundos das camadas médias, que se constituíram um dos pilares do regime militar (cf. Quadros & Amâncio in Guimarães, 1978:245).A formação universitária, na divisão técnica da produção, foi esvaziada em sua função de capacitação técnica para o trabalho, já que a importação de tecnologia passou a prescindir de mão-de-obra altamente qualificada, e, em contrapartida, foi investida do papel regulador de custo e qualidade do exército industrial na ativa, ao absorver parte deste exército de reserva, "de

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sorte que pensar hoje a universidade fora da produção capitalista é o mesmo que pensar a ilha fora da água" (Prandi apud Spink, 1985:25).A terapia ocupacional, ao trabalhar com aspectos parciais do indivíduo — o sensório-motor, o comportamento ou a capacidade física—, tornou-se coadjuvante da medicalização destas populações, que se submeteram ao critério "científico" da saúde, responsável pela caracterização da problemática social e o encaminhamento à instituição respectiva. Ao se adotar o “Verniz científico" estabeleceu-se mais um grau de controle e a disciplina sobre a população que ora é enquadrada e separada pelos sintomas clínicos (nos hospitais e ambu-latórios), ora pelo tipo de deficiência (nas entidades beneficentes), e ora pela transgressão social cometida (na FEBEM ou presídio).Ao nível mais geral, a terapia ocupacional juntamente com as demais práticas de saúde veio reforçar o caráter assistencialista do Estado, em sua face democrática e humanitária em relação às populações marginais (cf. Quijano in Pereira, 1978:184). Ao mesmo tempo as demandas sociais, ao se tornarem objeto de intervenção multiprofissional, têm suas determinações sociais sobre saúde/doença obscurecidas no interior deste processo de atendimento. Desta maneira é que as práticas de saúde assumem seu caráter ideológico, cimentando a hegemonia burguesa sobre as camadas sociais.

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Cada vez mais, a complexidade e unicidade dos problemas da população vêm desmascarar a visão reducionista e sua feição burguesa. A dimensão social da saúde e doença tem se colocado com maior evidência, e o domínio técnico e sua concepção teórica têm assumido seu caráter político.A visão assistencialista predomina nas entidades filantrópicas, onde a ideologia de beneficência com as classes subalternas e o voluntarismo das senhoras da sociedade e seus dirigentes tentam ser repassados aos trabalhadores do setor e têm sido absorvido por muitos. Todavia, o achatamen-to salarial, a rotatividade da mão-de-obra do setor e a repressão usada, secundariamente, com profissionais, funcionários e internos (como sanções, exclusões e calúnias, conforme análise de Andrade, 1982:36-9), vêm caracterizar a condição de assalariamento de seus profissionais, desmascarando as políticas sociais incipientes na área de reabilitação, que estabelecem um orçamento reduzido para a assistência social.Se a necessidade de criação da terapia ocupacional partiu do impulso das forças produtivas, de ampliação do exército industrial ativo, através do binômio trabalho-recreação, no correr das últimas décadas ela foi se alterando, vindo cumprir funções de natureza político-ideológica em lugar daquelas estritamente de natureza econômica.A transformação da práxis social do terapeuta ocupacional a partir do seu atreiamento a funções ideológicas burguesas, efetivadas no

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tecnicismo da prática profissional, sem um modelo teórico abrangente, tem gerado a crise da ineficácia e alienação42 da atualidade.A visão unitária, globalizante do homem e estrutura social de produção, da dimensão criativa e alienante do trabalho humano e da historicidade das necessidades sociais são referenciais teóricos fundamentais para a ultrapassagem desta prática alienante e alienada, transformando-a em direção às necessidades de libertação do homem, visando os interesses emergentes de uma nova classe social.A visão unitária de homem e sociedade é condição essencial para a desalienação do trabalho em geral, e da atividade terapêutica, em particular, com a desmistificação da tecnologia e a recomposição da dimensão criadora da atividade humana, na qual o homem será liberado do trabalho parcelar, fragmentado, para consagrar "[...] as vantagens da amplitude, da síntese" (Weiss, 1976:15 — grifo do autor).A análise até aqui realizada pretendeu acrescentar novos ângulos de visão sobre as funções sociais que a terapia ocupacional tem cumprido nas instituições de saúde e nas políticas sociais da sociedade capitalista. A consciência crítica desta realidade tem como perspectiva de transformação desta e de outras práticas profissionais no que tange à melhoria do

42 Este tema foi abordado no Capítulo I deste trabalho, p. 33-9. Leia Braverman (1981:15-69), Ferreira (1983:23), Leontiev (1978:275), Nosela (1986:6). Várias experiências realizadas no Brasil têm como perspectiva a experiência da psiquiatria italiana no campo da saúde mental, cujos expoentes foram Basaglia (1985) e Rotelli.

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atendimento, a intervenção institucional e a conquista do direito social à saúde e ao trabalho para todos os cidadãos.Em relação ao atendimento específico, a terapia ocupacional deve se instrumentalizar para que a relação terapêutica, de ajuda, possa ser utilizada como um de seus recursos, associado à atividade em busca de uma ação profissional para e com a clientela.A relação terapêutica deverá se estabelecer, então, sob uma nova estrutura de poder entre o terapeuta e o cliente, onde a democratização atinja níveis de decisão e acesso ao conhecimento técnico terapêutico, reconhecendo-se o grau de dependência existente em seus respectivos papéis institucionais. Estas iniciativas podem se concretizar através do esclarecimento prestado ao cliente sobre a avaliação de seu de-sempenho e os critérios de prescrição de atividades. Pela apropriação deste domínio técnico o paciente pode se transformar, de mero receptor de uma ação abstraída de seu contexto e saber, em agente de seu plano terapêutico, autor de sua prática. Um ser humano íntegro, consciente de sua práxis, que identifica suas necessidades e busca respostas às suas demandas, sendo atuante em seu meio social.Quanto ao trabalho terapêutico, os modelos reducionistas de análise e prescrição da atividade humana (segundo os aspectos psicológicos, sociais ou físicos), devem ser revistos de tal forma que a integração e organicidade destes aspectos estejam presentes numa nova forma de

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análise e intervenção profissional. O enfoque integrado da capacidade física, sensório-motora, psicológica e social deve ser implantado no programa terapêutico. Este deverá incluir, além das atividades artesanais, recreativas, da vida diária e plásticas, usualmente empregadas, as atividades culturais e expressivas. Além disso, o planejamento, a execução e o produto final, devem contar com a participação real do cliente, de modo que a avaliação de todo o processo constitutivo da práxis (do planejamento ao produto final e suas repercussões sobre o autor e outros indivíduos) seja refletido e incorporado ao conjunto orgânico constituído por clientes, terapeuta ocupacional e demais trabalhadores da saúde.O conjunto orgânico constituído por clientes e agentes de saúde pode e deve ser constituído numa perspectiva de resgate e recriação dos papéis institucionais, visando também a transformação e desmantelamento da antiga estrutura institucional sedimentada na disciplina e exclusão.A terapia ocupacional deve buscar a vinculação entre o caráter subjetivo da atividade — de expressão de impulsos e de habilidades humanas ao caráter subjetivo — de inserção do indivíduo em sua realidade sociocultural, permeado pelas várias concepções de mundo.O caráter transformador, criativo da práxis, resgatado pelo movimento conjunto de terapeutas e clientes, virá superar o caráter abstrato e alienante da atividade terapêutica

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tradicional, propugnada pelos modelos reducionistas.Quanto ao treinamento profissional do incapacitado, há que se desmistificar a integração do reabilitado ao mercado de trabalho, símbolo do seu ajustamento à sociedade. Esta meta preconizada pela reabilitação tem sua veracidade histórica em determinadas conjunturas econômicas, sendo alteradas no processo de capitalização das sociedades modernas.A partir do reconhecimento do percurso da mão-de-obra incapacitada no mercado de trabalho, faz-se necessário superar as concepções acercado trabalho que permeiam o meio social e sustentam as relações de subserviência, o isolamento e a marginalidade destes segmentos da força de trabalho. O treinamento da mão-de-obra para o mercado de trabalho, ideologia amplamente difundida pelos profissionais; o trabalho como forma de expiação de falhas morais, de orientação religiosa; o trabalho como meio de ascensão social, de sobrevivência, de integração social e outras concepções, estão subjacentes à consciência da clientela e da sociedade.O trabalho profissionalizante a ser realizado deve evitar a dicotomia planejamento/ação, trabalho intelectual/trabalho manual, buscando formas de execução nas quais, ainda que o trabalho seja parcelar, seu executor terá conhecimento da totalidade e dimensão de sua inserção no projeto global, evitando-se o isolamento e as relações

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autoritárias presentes no trabalho, que comumente são reproduzidas na oficina.O terapeuta ocupacional, ao reconhecer as dificuldades de absorção e estabilidade dos incapacitados na força de trabalho ativa, problema absolutamente resolvível por uma política de pleno emprego, que, por sua vez, é frontalmente contrária aos interesses capitalistas, pode trabalhar com maior atenção as condições subjetivas do cliente, que lhe permitam enfrentar esta situação, ao mesmo tempo em que, juntamente com a clientela, vier analisar as condições reais do mercado de trabalho em busca de alternativas na estrutura ocupacional e de serviços.Num outro nível de intervenção, o profissional deve se aliar aos demais trabalhadores da instituição num processo, às vezes lento, mas determinante, de reflexão sobre as formas institucionais e os níveis de participação da clientela e familiares em sua estrutura. A aproximação do técnico aos demais auxiliares, que esbarra nas relações de autoridade, ou, inversamente, do técnico com a administração deve ser procurada no sentido de verificar as possibilidades de as pessoas que ali vivem e trabalham repensarem e remodelarem a sua práxis quanto à orientação técnica, disciplina, rotina etc. Esse processo delicado e bastante controlado, de democratização interna das instituições sociais, avança à medida que o movi-mento dos trabalhadores de saúde, articulados em várias entidades, lança denúncias sobre a

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medicalização dos problemas sociais e apresenta propostas alternativas de transformação das instituições e sua democratização (vide Nicácio, 1985).A reformulação do sistema de saúde brasileiro a partir de sua crise e estagnação visando a integração dos vários níveis de atenção à saúde, foram resoluções aprovadas na VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986. A estatização dos serviços de saúde com disponibilidade orçamentária e planejamento integrado para as várias demandas da população tende a contribuir para a elevação das condições de vida da população, incluindo-se aí os incapacitados, doentes, idosos e deficientes. A superação global se efetivará, no entanto, não somente com o direito dos cidadãos à saúde, mas principalmente pelo direito ao trabalho e à participação política.Nesta mesma direção a Nova Constituição Brasileira, aprovada em 1988, conseguiu incorporar uma série de direitos sociais, dentre eles o direito à saúde, apesar do forte enfrentamento do empresariado do setor. A mobilização sobre o tema nas entidades civis, organizações trabalhistas, partidárias e seu reconhecimento entre as camadas sociais garantiram essa conquista constitucional. Fruto desse processo, está em curso a implementação do Sistema Único de Saúde; todavia, a sua efetiva implantação dependerá do esforço e mobilização permanente dos setores organizados da sociedade civil.

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A perspectiva deste trabalho foi instigar o debate sobre as necessidades que a terapia ocupacional tem cumprido em nossa sociedade, a partir do enfoque materialista dialético, desvendando as razões do seu surgimento. Então, refletindo sobre a questão colocada no título deste livro, pergunta-se — a terapia ocupacional surgiu pela lógica do capital ou pela lógica do trabalho. Contra-argumentando — será possível que nas sociedades modernas exista uma prática social que responda às necessidades de uma classe sem haver repercussões na classe diametralmente oposta? Ou, mais simplesmente, existe trabalho na sociedade capitalista se não existir o capital?Esta prática de saúde, ao modificar a condição de trabalhar, de conviver, de desfrutar a vida, permitiu que a capacidade laborativa fosse empregada como valor de uso tanto para a força de trabalho quanto para a classe dirigente, ainda que a forma e o significado do trabalho do primeiro sejam antagônicos, mas complementares aos do segundo.Concluindo, a terapia ocupacional se constituiu para atender às necessidades de recuperação da força de trabalho que, por sua vez, foi requisitada para atender à demanda ampliada de produção das classes hegemônicas, tendo servido também a estas. Desta forma, não foi possível atender às necessidades das classes populares sem provocar alterações conjunturais que promoveram a absorção desta oferta para necessidades similares das classes dominantes.

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O direcionamento dos profissionais de saúde, em geral, e da terapia ocupacional, em particular, aos interesses da classe trabalhadora não se definirá abstratamente no planejamento de saúde, mas se construirá no processo de inserção de trabalhadores e terapeutas sobre a dimensão práxica do homem, do lazer ao trabalho. Se a terapia ocupacional destinada às camadas populares tem sido a terapia do trabalho, deve-se ampliá-la agora para a terapia do não-trabalho, buscando a emancipação dos assalariados e a constituição de novos homens, seres criativos, reflexivos e agentes de uma. nova história social. Se esta nova práxis ainda permanecerá sendo reconhecida ou identificada como terapia ocupacional, isto só o tempo dirá. Vislumbramos que a superação da atual divisão de trabalho em saúde, ao buscar a integração recriando não só o objeto de intervenção, mas também o objeto de estudo, constituirá novos saberes e, portanto, profissionais de novo tipo. Quando este patamar conceitual e práxico for atingido, novas questões estarão colocadas mas temos certeza de que as atuais crises de identidade quanto ao papel profissional já terão sido derrotadas pelo dinamismo do processo histórico.O presente trabalho não pretendeu superar a atual crise profissional da terapia ocupacional, mas sim problematizá-la, fomentando o debate através da síntese de vários aspectos desta realidade. Sem dúvida alguma, as questões aqui formuladas têm seu limite histórico correspondente ao nível de reflexão desta área

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profissional, e como tal, requisita, portanto, leitura crítica e continuidade do debate.