Upload
leticia
View
218
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
7/23/2019 6_maldonado_cap6.pdf
1/9
exi
ou
no
caso
de uma
6. idade projetual e
Daniel
Defoe
Em 1697, Daniel Defoe publicou o Ensaio sobre Projetos An Essay upon
Projects)
2
Nesse livro singular, contendo aspectos de grande atualidade,
Defoe anuncia o incio da
Era
do Projeto
Projecting Age).
Vinte anos
depois, o mesmo Defoe publicou
s
Aventuras de
Robinson
Crusoe The
Life and Strange Surprising dventures
of
Robisnon Crusoe
of
York)
(1719)
3
,
o romance de aventura que o fez famoso. Nessas obras -
na
primeira, implicitamente; e
na
segunda,
explicitamente-,
o tema
tratado
Este texto foi publicado originalmente em italiano no Apndice do livro futuro
de/la moderni t (p.
186-194),
Feltrinelli, Milo,
1987.
D. Defoe, n Essay upon Projects, The Scholar Press Limited, Menston
1969.
Esta
uma edio anasttica do texto original publicado em Londres em 1697 por Th. Cockerill, e
que foi reimpresso em 1700 com o ttulo Severa/ Essays relating to Academies e, em 1702 como
texto, ver W. Sombart, Der Burgeois.
Zur
Zeitgeschichte des modernen Wirtschaftsmenschen
(1913), Verlag von Duncker und Humblot, Mnchen, 1923 tr. it. Longanesi, Milano,
1978).
So, sobretudo, impor tantes as reflexes de Sombart sobre o papel dos artfices de projeto
Projectanten) no sculo
XVII
e xvm, atravs dos quais Defoe assume no Ensaio uma postura
crtica e de dialtico confronto. Defoe afasta-se desses artfices de projeto , que ele considera
uma verdadeira praga. Segundo ele, com poucas excees, seriam vendedores inescrupulosos
de Projetos Desonestos, que no devem ser confundidos com aqueles que, como o prprio
Defoe, elaboram Projetos Honestos para o progresso da sociedade do seu tempo dos tempos
vindouros. A ideia de uma projetualidade que, exercitada consequentemente em rodos os nveis
da realidade, pode ser um fator de modernizao, constitui o ncleo fundamental dessa obra.
No presente texto usamos D. D., The Life and Adventures ofRobinson Crusoe. Written
by
Himself, Sands and Co., London,
1899,
e tambm D.D., Robinson Crusoe, Dent-Eveyman,
London, 1977, edio baseada, como sabido, an Shakespeare Head Edition, Oxford, 1927.
7/23/2019 6_maldonado_cap6.pdf
2/9
86
Cultura
Sociedade
Tcnica
o da projetualidade,
ou
seja,
da
capacidade de criar projetos. Ma
ideia de projetualidade sustentada no ensaio diferente, diametralme;
oposta quela que se deixa transparecer
no
romance.
No ensaio, Defoe coloca a hiptese de uma projetualidade ente
7/23/2019 6_maldonado_cap6.pdf
3/9
6. idade projetual
e Daniel Defoe 87
is considera o sistema de valores e
as
normas que normalmente con
nam o projeto e as caractersticas do objeto projetado. Ele tem
um
-o problema: sobreviver. O que est aqum ou alm da sua vontade
breviver no considerado um problema. Robinson Crusoe , antes
ualquer coisa,
um
'solucionador de problemas', e aquilo que
para
no um problema, na prtica,
no
existe.
Outro princpio que guia o
comportamento
de Robinson situa-se
mesmo nvel: considera apenas aquilo que lhe conveniente. A sua
esso sempre a utilidade
para
si mesmo. Eis o motivo pelo qual ele
considerado a figura emblemtica
do
utilitar ismo tico de Bentham e
rimeiro expoente da ideologia "burguesa". Muitos autores acreditam
srir em Robinson Crusoe a expresso arqutipa
da
tica protestanterrabalho
8
Na
composio do seu
mundo
material, Robinson renuncia a qual
er referncia s formas institucionalizadas da cultura. Efetivamente ele
o
procura, em nenhum caso,
uma
legitimao cultu ral
para
os objetos
e produz: a prpria ideia de legitimao lhe pareceria desprovida de
ntido.
Quando,
por exemplo, decide fabricar
um
guarda-chuva,
no
; e
define a criao de
um
objeto de
"arte" ou
de
"artesanato
artstico
9
,
P. Colaiacomo, Biografia dei personaggio nei romanzi di Daniel Defoe, Bulzoni, Roma
965: Para Robinson todo produto da sua atividade parece ser especificado como "tempo
je trabalho" (p. 47). Isto verdadeiro, mas uma simplificao excessiva desse aspecto nos
~ l o c r i
fora da realidade do pensamento de Defoe. Alm disso, deve-se ter extrema cautela
ao analisar a tese, muito difusa, segundo a qual a adeso de Defoe
tica
do
trabalho poderia
ser totalmente explicada nos termos da tica protestante. Cf. sobre o argumento M. E. Novak,
Robinson Crusoe and economic utopia, in Kenyon Review , 25 (1963), p. 474-490. Apesar
de a tica protestante do trabalho aparecer em Defoe e Robinson, como
Novak
justamente
evidencia, de maneira muito sutil, continuamos a ver ainda hoje na 'vocao ativa' de Robin-
on uma das caractersticas essenciais do 'burgus emergente', uma prova da raiz protestante
do 'esprito do capitalismo'. uma linha interpretativa que sabidamente evoca Max Weber,
para quem as origens do capitalismo devem ser buscadas principalmente na tica protestante,
isto , na santificao do trabalho, no ascetismo e na austeridade, entre outras. Ver o famoso
ensaio de Max Weber, Die protestantische Ethik un der Geist des Kapitalismus, in Archiv
fr Sozialwissenschaft un Sozialpolitik ,
XXI
(1905), p. 1-no. Sabe-se tambm que a verso
de Weber sobre as origens
do
capitalismo nunca foi aceita unanimemente pelos estudiosos
do
assunto. W. Sombart,
por
exemplo, forneceu uma verso diferente. Ver W. Sombart,
Luxus
un Kapitalismus, Verlag von Duncker und Humblot, Mnchen, 1913
Defoe sempre manifestou desconfiana em relao
arte, como constatou Anthony
Burgess. a mesma percepo de James Joyce, externada na famosa conferncia ocorrida em
Trieste em 1912
e
publicada em D. D.,
Robinson Crusoe,
Einaudi, Torino, 1963). Mas no
caso de Robinson, Paul Valry oferece uma verso mais sutil, fazendo uma distino entre um
primeiro Robinson Crusoe, aquele que conhecemos logo aps o naufrgio, ainda em fase de
indigncia, e um
outro
Robinson, que j resolveu quase todos os seus problemas de sobrevi
vncia, numa fase de segurana e de abundncia. Sobre este ltimo Robinson ele escreve: Uma
habitao bem feita, com uma despensa bem sortida, dispondo da segurana essencial - tudo
isso trs, como consequncia, a liberao do tempo para lazer. Em meio a esses bens, Robinson
7/23/2019 6_maldonado_cap6.pdf
4/9
88
Cultura
Sociedade Tcnica
mas apenas uma engenhoca feita para proteg-lo do sol e da chuva, que
possa ser fechado quando
se
desejar'.
A escassez de recursos, materiais e
instrumentos tornam
a sua
tarefa extremamente difcil. Para enfrent-la, Robinson Crusoe
muda
drasticamente a sua estratgia criativa: em condies to adversas, no
pode percorrer o caminho tradicional.
No
pode
partir
de
uma
ideia
genrica de guarda-chuva - o guarda-chuva que vi
uma
vez
na
loja - e
deste ponto comear
uma
srie de invenes parciais, cuja somatria re
sultar no objeto guarda-chuva. O caminho que ele escolhe obviamente
diferente: reduz
ao
mnimo as etapas intermedirias e procura encontrar
na natureza - digamos j 'prontos' - os elementos construtivos do futuro
guarda-chuva.
Mas o procedimento requer
uma
viso
da
natureza com
um
olhar
diferente, com critrios utilitrios. Ou seja, enxergar cada pedao da
realidade
como
uma
parte
potencial do guarda-chuva. A postura utilita
rista de Robinson parece plenamente confirmada nessa opo projetual.
Definitivamente, ele
se
comporta como um predador para o qual tudo
presa: cada objeto, cada fragmento da realidade e cada fenmeno obser
vado imediatamente avaliado segundo a ptica da utilidade. Em
outra'
palavras, para Robinson no existe
uma
clara linha de demarcao entrt
a racionalidade dos fins e a racionalidade dos meios. E, nessa viso, n1
h espao e nem tempo para divagaes com outros tipos de valores.
verdade que Robinson Crusoe apela frequentemente sua ric:>
religiosidade. So frequentes as suas invocaes a Deus, suas referncia,
Bblia, suas preces, seus agradecimentos Divina Providncia e seu'
julgamentos morais de evidente origem puritana . Tudo isso, porm, n
denigre o seu
modo
de entender a atividade projetual, decididamem
orientada para o til e absolutamente indiferente a julgamentos tico
ou estticos.
No
influi nem mesmo a
postura
de extrema objetividade
de total distanciamento,
com
a qual ele observa a relao entre a prpna
ao laboral e os
produtos
que dela resultam. Marx, no
Capital,
faz um
avaliao ironicamente positiva dessa postura, atribuindo ao personage
de Defoe certa contribuio economia poltica, mais precisamente
teoria do valor
12
tornava-se novamente homem, um animal indeciso, um ser que apenas as circunstncias 1-
bastam para definir. Respirava distrado.
No
sabia que rumos deveria seguir, dedicando-se
letras e s artes . P Valry,
Histoires brises. Robinson. Le Robinson oisif, pensif, pourrn.
Oeuvres,
Gallimard, Paris, 1960, p. 412.
D Defoe, La vita ... cit., p. l6r .
Cf. M. Praz,
Defoe e Cellini,
in
Studi e svaghi inglesi,
Sansoni, Firenze
1937
Praz -
dencia: Apesar
de
Robinson Crusoe protestar pelas contnuas rememoraes dos pensamen
religiosos, o que admirvel nele no a contemplao, mas a ao (p.
38);
Robinson .. ri
bastante, mas sua ao ainda maior (p.
39); a
sua postura moralista pouco mais que,
fraca reflexo
posteventum
(p. 52).
K Marx, Das Kapital,
cit. (trad. it. p.
93).
Cf. S S Prauver,
Karl Marx and
V
Literature, Oxford University Press, Oxford,
1978,
p.
335.
Para as implicaes econm1
7/23/2019 6_maldonado_cap6.pdf
5/9
6. A idade
projetual
e
Daniel
Defoe
89
Vejamos
outro
exemplo esclarecedor. Desde o dia em que chegou
ilha, Robinson Crusoe sabe que dever construir urgentemente
um
abrigo.
Mas
desde o incio ele tem conscincia das dificuldades a serem
enfrentadas: preciso constru-lo imediatamente, mas ele
no
sabe onde
e nem como. A exceo de alguns restos do naufrgio, os meios dis
posio para alcanar esse objetivo so limitadssimos. Acrescente-se
ainda a falta de conhecimento, pois, nos primeiros dias, Robinson ignora
tudo sobre a ilha. E isso torna ainda mais problemtico o seu empre
endimento: deve erguer um abrigo capaz de resistir s foras hostis do
ambiente, mas ainda incapaz de avaliar as suas reais ameaas - a natu
reza, frequncia e potncia dos eventos hostis. Isso dificulta estabelecer
a resistncia e as dimenses do abrigo. Assim, ele encontra dificuldades
em definir as caractersticas fsicas do abrigo:
no
pode correr o risco
de subdimension-lo e,
por
outro lado, nem
pode
se
dar
ao
luxo
de
uperdimension-lo.
Tambm nesse caso, como no do guarda-chuva, ele deve assumir
uma postura de voraz apropriao utilitria do ambiente circundante.
Tambm nesse caso, a dramtica urgncia do problema a ser resolvido
-ondiciona fortemente o seu comportamento projetual:
para
ele, o abrigo
s um abrigo e ponto final.
No
passa pela sua mente que a sua ha-
itao possa ser uma bela obra de arquitetura . E a sua ao resulta
em:
uma
cortina colocada sob uma parede de rocha, circundada
por
uma robusta paliada de mastros de madeira e cabos martimos . Uma
onstruo que dificilmente poderia ser aceita
como uma
bela
obra
de
arquitetura . No mximo, poderia ser includa na categoria de arqui
etura sem arquiteto que Bernard Rudofsky chamou de arquitetura
sem pedigree 3.
Ento, pergunto-me: essas duas formas de projetualidade identifi
cadas
por
Defoe no final do sculo xvn e no incio do sculo
xvrn
- a pro-
tualidade de n Essay upon Projects e a de Robinson Crusoe - podem
enriquecer o debate atual sobre o papel
da
projetao? provvel.
Com
alguns ajustes e adaptaes, as questes levantadas
por
Defoe esto, sem
vida, presentes nos dias atuais.
roda narrativa quanto dos ensaios de Defoe, ver
K.
Polanyi, La grande trasformazione, cit.:
Ddoe tinha identificado a verdade que setenta anos depois Adam Smith pode no ter ou no
endido (p.
139).
Essas avaliaes, hoje muito comuns,
no
so compartilhadas
por
M.E.
ak,
Economics and the Fiction
of
Daniel Defoe,
University
of
California Press, Berkeley,
Novak v em Defoe um dos mais ferrenhos defensores do sistema mercantilista. Cf.
bm M.
E.
Novak, Robinson Crusoe and economic utopia, cit. Novak faz uma dura crtica
economistas que procuraram utilizar Crusoe como heri para as suas parbolas , p.
477.
re a posio de Defoe em relao ao tema do pauperismo e da benevolncia, ver a estimu-
te mtroduo de V. Accattatis a D. D., are
l e/emosina non e arit, dare lavoro ai poveri e
Jnno per la nazione, Feltrinelli, Milano 1982. Segundo a ptica atual, colocar Defoe entre
: mservadores do seu tempo um posicionamento que, como todos os julgamentos sobre
>e
pode ser controvertido.
B. Rudofsky,
The Prodigious Builders,
Secker and Warburg, London
1997,
p. 18.
7/23/2019 6_maldonado_cap6.pdf
6/9
19 Cultura Sociedade Tcnica
Basta pensar no discurso central do
Essay,
versando sobre a
sidade de formular projetos para enfrentar os problemas inadiveis d
nossa sociedade. Essa colocao tem seus
pontos
fracos. No basta fala
genericamente de projetao sem indicar as intervenes projetuais espe
cficas. Isso pode levar a
uma espcie de autopiedade por um dever
acreditamos cumprido,
quando, na
realidade, existiu apenas no plan
da exortao verbal, sem nenhuma concretude.
Essa fraqueza encontra-se no ensaio de Defoe. Qual a utilidade
se
colocar hipteses para formulao de projetos para transformao d
sociedade, se tais projetos se
mostram
incapazes de contribuir
para
u
real mudana dessa sociedade?
14
A bem da verdade, Defoe
no
ignor.
essa questo. Ele mesmo acena
para
o perigo de uma projetao qu
incide margem das grandes instituies sociais sem impactar direta
mente os centros de poder onde se decidem as grandes questes soei
que podem produzir benefcios diretos
populao .
Para superar esse risco, Defoe prope, no Essay, no apenas u
projeto, mas vrios projetos
para
instituies a servio
da
comunidade.
tais como as academias para o estudo da lngua inglesa, educao d
mulheres, formao de militares profissionais; instituies de crdito s
a vigilncia de um banco central; rede de estradas capazes de garan
a mobilidade intensiva das pessoas e das mercadorias. Esses projet
seriam financiados pelos proprietrios das reas beneficiadas, por me
de contribuies 'compulsrias
para
a urbanizao'. Embora de manei
um
tanto quanto
confusa, faz distino do que seria atualmente o imp
to direto, taxas e impostos indiretos; agncia de seguros para a prote
dos mercadores para os riscos e os efeitos de uma eventual falncia.
Desse
modo,
Defoe se iludia, acreditando que os centros de po
da poca pudessem
atuar
de forma mais equnime
para
estabelecer
ordem
social. Essa proposta, porm, permanece abstrata e inconclu
pelo simples motivo de no se
poder
criar instituies e estruturas
servio apenas atravs de um determinismo
diktat)
projetual. Pior ain
mudar o
mundo
exclusivamente atravs desse determinismo. Esta
crtica que sempre se fez
projetualidade de inspirao iluminista.
Nos
ltimos tempos, tende-se a generalizar e
dar
uma exten -
exagerada a essa crtica, at o ponto de invalidar todas as formas
projetualidade. Essa tendncia tem origem
no
erro de se identificar 'pri
jeto'
com
'ideologia'
ou 'projeto' com 'plano'.
Parece-me tratar-se de
grave equvoco.
No h
dvidas de que esse equvoco gerou as posi
errneas apresentadas nos mais recentes debates sobre a projetualida
Estas posies levam a banalizar e at ofuscar
um importante projeto
reflexo terica.
A atividade
projetual
foi
desvirtuada,
no
sendo
mais aque
atividade que
procura
oferecer solues inovadoras aos problema
.. Cf M. Apollonio,
Defoe, La
Scuola, Brescia 1946. Apollonio escreveu: Se ns
i
surpresos pela bondade intrnseca dos seus esquemas propostos .. os contemporneos , e
ainda os revisores burocrticos das suas propostas, podiam desprez-los (p. 84).
7/23/2019 6_maldonado_cap6.pdf
7/9
6. A idade
projetual
e Daniel Defoe
9
-iedade
e, portanto, no
mais
um
fator de progresso
inovador ,
mo diria L Sklair
15
Tornou-se uma atividade de prfidos idelogos
rdiamente iluministas (ou de utpicos extravagantes) que gostariam de
por os seus sonhos (ou delrios) totalitrios humanidade. O projeto
emonizado e chega-se, assim, rejeio indiscriminada da projetao,
ual j nos referimos. Esquece-se, todavia, que,
para
todos os efeitos,
ossa poca
uma
era projetual - uma projecting age, como
chamou
foe com trs sculos de antecedncia - talvez a mais projetual de todas
pocas
da
histria.
Peguemos, a ttulo de exemplo, o caso dos mais recentes avanos
tecnologia
da
informtica. Ela est beira de
mudar
radicalmente
: pressupostos que, durante milnios, foram a base das nossas prticas
vida econmica e social. Tais avanos certamente resultam de
uma
iatividade tecnocientfica e
tambm
de
uma
operosidade projetual sem
ecedentes. O mesmo se
pode
dizer de
outros importantes
avanos
a tecnologia moderna, pois
uma
coisa bvia: em um mundo como
nosso, cada vez mais dominado
por
objetos e processos tcnicos, a
~ r o j e t u l i d d e
est onipresente. Nesse contexto, a retrica
da
antiproje
- alidade pode ter apenas
um
sentido: a capitulao acrtica em relao
-
uma
projetualidade que mesmo assim
se
realiza.
Existe
ainda
uma tendncia (ou melhor, um movimento), que
-:-ansforma a proposta projetual de Robinson Crusoe em um verdadeiro
. odelo de
comportamento para
a nossa poca. Robinson torna-se um
.:rqutipo ideal de
um
novo
modo
de projetar que, diferentemente do
odelo hoje dominante,
no
se utiliza de
um
saber tecnocientfico sofis
:-cado e nem se prope a criar objetos de alta complexidade estrutural
funcional. Essa nova maneira de projet ar privilegia a simplicidade das
:olues propostas e a utilizao dos recursos bsicos.
Nessa tica, Robinson Crusoe apresentado
como um
precursor
:3 as 'tecnologias pobres', um precursor de uma projetao que rejeita
~ x p l i c i t m e n t e o condicionamento institucional das 'tecnologias ricas'.
Esquece-se, porm, que Robinson Crusoe um personagem de fico e,
.:orno tal,
com um
elevado grau de artificialismo
16
Ele
no
est livre de
-odas as formas de condicionamento institucional,
como
Defoe gostaria
ue
se
acreditasse. No
se
pode escapar
ao
sutil condicionamento s ins-
6tuies da sociedade qual pertencia antes do naufrgio. Quer queira,
L Sklair,
The Sociology o Progress,
cit.
p.
I77 e seguintes.
Devemos ser cautos sobre o artificialismo dos personagens de Defoe, pois o que mais
anpressiona na sua narrativa
o alto grau de verossimilhana dos seus contos. Isso fez dele
um grande precursor do realismo, ou melhor, de um realismo visionrio como corretamente
o define Terzi,
ou
ainda de um realismo mgico , segundo Apollonio. De Quincey admirava
em Defoe exatamente aquele ar e verossimilhana da sua narrativa [P. Rogers a cura di),
Defoe. The Criticai Heritage, Routledge and Kegan Paul, London I972, p. u8]; e J. L Borges
fala de romances exageradamente verossmeis de Daniel Defoe
(Discusin,
Gleizer, Buenos
. \ires,
I93
2, p. 97). Borges sabe, talvez melhor do que qualquer out ra pessoa, como a descrio
minuciosa do detalhe - tpica tanto de Defoe quan to de Borges - leva cedo ou tarde ao fantstico.
7/23/2019 6_maldonado_cap6.pdf
8/9
92
Cultura Sociedade Tcnica
quer no, a principal referncia continua sendo a sociedade inglesa d
poca de Lord Walpole, a mesma
do
prprio Defoe. Examinando bem,
tecnologia pobre de Robinson nada mais que uma verso emergenc1a
da tecnologia rica tpica da poca de Defoe.
Os atuais partidrios das tecnologias pobres entronizam Robinso
Crusoe
como
aquele que
se
rebela contra os injustos condicionament('
das instituies do seu tempo. Deve-se recordar que em s Aventuras
Robinson Crusoe (Serious Reflections During the Lifeand Surprising C -
ventures of
Robinson
Crusoe)
7
, publicado em
1720,
um ano depois da
Aventuras (Adventures) (25 de abril de 1719), e das Outras Aventur,;:
(Farther Adventures) (20 de agosto de 1719), Defoe deixa transparect:
uma outra chave de interpretao do seu romance: a vida de Robinso
Crusoe
nada
mais seria que uma verso alegrica da vida atormenta,- -
de um personagem real, a vida de
um homem que sofreu todo tipo
violncia, opresso, desonras e injrias, atraindo o desprezo dos homem
as oposies terrenas, os ataques dos demnios e as punies c e l e s t e s ~
Ele faz com que se perceba claramente que esse personagem n
seria o marinheiro escocs Alexander Selkirk, ou seja Robinson, mas
prprio Defoe1
8
,
o hbil artfice, capaz de todo tipo de violncia .
autor
de Robinson Crusoe, alm de romancista, ensasta e jornalista,
er
i
tambm um impertinente conselheiro dos poderosos, um empreendedi -
falido e perseguido por suas dvidas, um panfletrio preso por difama .
e posteriormente libertado como informante secreto.
Todavia, a alternativa que emerge das duas filosofias projetua
de Defoe - aquela explicitamente formulada no Ensaio e aquela qi.:
transparece no comportamento do personagem Robinson -
no
urr
alternativa moderna. Os problemas que temos hoje no se definem e ne
se resolvem em termos de aceitao
ou
de renncia s instituies. O
nossos problemas mais pungentes, devemos recordar, so aqueles relat-
vos guerra, meio ambiente, fome, mas tambm a liberdade, igualda
e dignidade. Como sabemos, alguns desses problemas so
i n s t i t u c i o n ~
Outros o so apenas parcialmente. Outros ainda no o so em absolur
D. Defoe, Serious Reflections During the Life and Surprising Adventures of Robin
Crusoe, m Shakespeare Head Edition of Novels and Selected Writings of Daniel Defoe, x
xm,
Oxford,
1927.
'
A vida de Defoe foi uma longa sequncia de desventuras e de problemas de tod
os tipos, muitos do quais eram acontecimentos corriqueiros na vida dos 'homens das letr
daquele perodo da histria europeia. O que importa saber como tais infortnios pess
eram interpretados (e, s vezes, transformados em matria-prima da criatividade) por aque
que os sofriam.
um ponto delicado. Nesse caso pode ser til estabelecer uma compara
(ou melhor, buscar analogias e diferenas) entre as personalidades que tiveram uma trajetr.
de vida semelhantes, cheias de peripcias. Esse o mtodo utilizado por Scwob, que comp.
Defoe e Cervantes e ainda
pot
Praz, que compara Defoe e Cellini.
Em
Defoe como em
Cell
(mas no em Cervantes), existe um forte sentimento de autocomiserao pelos prprios in;
tnios. Essa automiserao no deve ser confundida com resignao. Nem Defoe nem
Cell
pertencem quela categoria de vtimas resignadas e acomodadas.
7/23/2019 6_maldonado_cap6.pdf
9/9
6. idade projetual
e
Daniel
Defoe
O An
Essay
upon
Projects
obr de um idealizador de Proje-
tos Honestos Honest
Projects
que viveu um perodo particularmente
conturb do do nascimento
d
sociedade burguesa. A reflexo sobre as
propostas de Defoe pode nos ajudar a verificar a possibilidade
e
princi-
palmente a probabilidade de elaborar Projetos Honestos em um poca
como a nossa, n qual a enorme complexidade dos problemas a serem
resolvidos submete a um
dur
prova, todos os dias, a vontade projetual.