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    1/9

    exi

    ou

    no

    caso

    de uma

    6. idade projetual e

    Daniel

    Defoe

    Em 1697, Daniel Defoe publicou o Ensaio sobre Projetos An Essay upon

    Projects)

    2

    Nesse livro singular, contendo aspectos de grande atualidade,

    Defoe anuncia o incio da

    Era

    do Projeto

    Projecting Age).

    Vinte anos

    depois, o mesmo Defoe publicou

    s

    Aventuras de

    Robinson

    Crusoe The

    Life and Strange Surprising dventures

    of

    Robisnon Crusoe

    of

    York)

    (1719)

    3

    ,

    o romance de aventura que o fez famoso. Nessas obras -

    na

    primeira, implicitamente; e

    na

    segunda,

    explicitamente-,

    o tema

    tratado

    Este texto foi publicado originalmente em italiano no Apndice do livro futuro

    de/la moderni t (p.

    186-194),

    Feltrinelli, Milo,

    1987.

    D. Defoe, n Essay upon Projects, The Scholar Press Limited, Menston

    1969.

    Esta

    uma edio anasttica do texto original publicado em Londres em 1697 por Th. Cockerill, e

    que foi reimpresso em 1700 com o ttulo Severa/ Essays relating to Academies e, em 1702 como

    texto, ver W. Sombart, Der Burgeois.

    Zur

    Zeitgeschichte des modernen Wirtschaftsmenschen

    (1913), Verlag von Duncker und Humblot, Mnchen, 1923 tr. it. Longanesi, Milano,

    1978).

    So, sobretudo, impor tantes as reflexes de Sombart sobre o papel dos artfices de projeto

    Projectanten) no sculo

    XVII

    e xvm, atravs dos quais Defoe assume no Ensaio uma postura

    crtica e de dialtico confronto. Defoe afasta-se desses artfices de projeto , que ele considera

    uma verdadeira praga. Segundo ele, com poucas excees, seriam vendedores inescrupulosos

    de Projetos Desonestos, que no devem ser confundidos com aqueles que, como o prprio

    Defoe, elaboram Projetos Honestos para o progresso da sociedade do seu tempo dos tempos

    vindouros. A ideia de uma projetualidade que, exercitada consequentemente em rodos os nveis

    da realidade, pode ser um fator de modernizao, constitui o ncleo fundamental dessa obra.

    No presente texto usamos D. D., The Life and Adventures ofRobinson Crusoe. Written

    by

    Himself, Sands and Co., London,

    1899,

    e tambm D.D., Robinson Crusoe, Dent-Eveyman,

    London, 1977, edio baseada, como sabido, an Shakespeare Head Edition, Oxford, 1927.

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    86

    Cultura

    Sociedade

    Tcnica

    o da projetualidade,

    ou

    seja,

    da

    capacidade de criar projetos. Ma

    ideia de projetualidade sustentada no ensaio diferente, diametralme;

    oposta quela que se deixa transparecer

    no

    romance.

    No ensaio, Defoe coloca a hiptese de uma projetualidade ente

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    3/9

    6. idade projetual

    e Daniel Defoe 87

    is considera o sistema de valores e

    as

    normas que normalmente con

    nam o projeto e as caractersticas do objeto projetado. Ele tem

    um

    -o problema: sobreviver. O que est aqum ou alm da sua vontade

    breviver no considerado um problema. Robinson Crusoe , antes

    ualquer coisa,

    um

    'solucionador de problemas', e aquilo que

    para

    no um problema, na prtica,

    no

    existe.

    Outro princpio que guia o

    comportamento

    de Robinson situa-se

    mesmo nvel: considera apenas aquilo que lhe conveniente. A sua

    esso sempre a utilidade

    para

    si mesmo. Eis o motivo pelo qual ele

    considerado a figura emblemtica

    do

    utilitar ismo tico de Bentham e

    rimeiro expoente da ideologia "burguesa". Muitos autores acreditam

    srir em Robinson Crusoe a expresso arqutipa

    da

    tica protestanterrabalho

    8

    Na

    composio do seu

    mundo

    material, Robinson renuncia a qual

    er referncia s formas institucionalizadas da cultura. Efetivamente ele

    o

    procura, em nenhum caso,

    uma

    legitimao cultu ral

    para

    os objetos

    e produz: a prpria ideia de legitimao lhe pareceria desprovida de

    ntido.

    Quando,

    por exemplo, decide fabricar

    um

    guarda-chuva,

    no

    ; e

    define a criao de

    um

    objeto de

    "arte" ou

    de

    "artesanato

    artstico

    9

    ,

    P. Colaiacomo, Biografia dei personaggio nei romanzi di Daniel Defoe, Bulzoni, Roma

    965: Para Robinson todo produto da sua atividade parece ser especificado como "tempo

    je trabalho" (p. 47). Isto verdadeiro, mas uma simplificao excessiva desse aspecto nos

    ~ l o c r i

    fora da realidade do pensamento de Defoe. Alm disso, deve-se ter extrema cautela

    ao analisar a tese, muito difusa, segundo a qual a adeso de Defoe

    tica

    do

    trabalho poderia

    ser totalmente explicada nos termos da tica protestante. Cf. sobre o argumento M. E. Novak,

    Robinson Crusoe and economic utopia, in Kenyon Review , 25 (1963), p. 474-490. Apesar

    de a tica protestante do trabalho aparecer em Defoe e Robinson, como

    Novak

    justamente

    evidencia, de maneira muito sutil, continuamos a ver ainda hoje na 'vocao ativa' de Robin-

    on uma das caractersticas essenciais do 'burgus emergente', uma prova da raiz protestante

    do 'esprito do capitalismo'. uma linha interpretativa que sabidamente evoca Max Weber,

    para quem as origens do capitalismo devem ser buscadas principalmente na tica protestante,

    isto , na santificao do trabalho, no ascetismo e na austeridade, entre outras. Ver o famoso

    ensaio de Max Weber, Die protestantische Ethik un der Geist des Kapitalismus, in Archiv

    fr Sozialwissenschaft un Sozialpolitik ,

    XXI

    (1905), p. 1-no. Sabe-se tambm que a verso

    de Weber sobre as origens

    do

    capitalismo nunca foi aceita unanimemente pelos estudiosos

    do

    assunto. W. Sombart,

    por

    exemplo, forneceu uma verso diferente. Ver W. Sombart,

    Luxus

    un Kapitalismus, Verlag von Duncker und Humblot, Mnchen, 1913

    Defoe sempre manifestou desconfiana em relao

    arte, como constatou Anthony

    Burgess. a mesma percepo de James Joyce, externada na famosa conferncia ocorrida em

    Trieste em 1912

    e

    publicada em D. D.,

    Robinson Crusoe,

    Einaudi, Torino, 1963). Mas no

    caso de Robinson, Paul Valry oferece uma verso mais sutil, fazendo uma distino entre um

    primeiro Robinson Crusoe, aquele que conhecemos logo aps o naufrgio, ainda em fase de

    indigncia, e um

    outro

    Robinson, que j resolveu quase todos os seus problemas de sobrevi

    vncia, numa fase de segurana e de abundncia. Sobre este ltimo Robinson ele escreve: Uma

    habitao bem feita, com uma despensa bem sortida, dispondo da segurana essencial - tudo

    isso trs, como consequncia, a liberao do tempo para lazer. Em meio a esses bens, Robinson

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    88

    Cultura

    Sociedade Tcnica

    mas apenas uma engenhoca feita para proteg-lo do sol e da chuva, que

    possa ser fechado quando

    se

    desejar'.

    A escassez de recursos, materiais e

    instrumentos tornam

    a sua

    tarefa extremamente difcil. Para enfrent-la, Robinson Crusoe

    muda

    drasticamente a sua estratgia criativa: em condies to adversas, no

    pode percorrer o caminho tradicional.

    No

    pode

    partir

    de

    uma

    ideia

    genrica de guarda-chuva - o guarda-chuva que vi

    uma

    vez

    na

    loja - e

    deste ponto comear

    uma

    srie de invenes parciais, cuja somatria re

    sultar no objeto guarda-chuva. O caminho que ele escolhe obviamente

    diferente: reduz

    ao

    mnimo as etapas intermedirias e procura encontrar

    na natureza - digamos j 'prontos' - os elementos construtivos do futuro

    guarda-chuva.

    Mas o procedimento requer

    uma

    viso

    da

    natureza com

    um

    olhar

    diferente, com critrios utilitrios. Ou seja, enxergar cada pedao da

    realidade

    como

    uma

    parte

    potencial do guarda-chuva. A postura utilita

    rista de Robinson parece plenamente confirmada nessa opo projetual.

    Definitivamente, ele

    se

    comporta como um predador para o qual tudo

    presa: cada objeto, cada fragmento da realidade e cada fenmeno obser

    vado imediatamente avaliado segundo a ptica da utilidade. Em

    outra'

    palavras, para Robinson no existe

    uma

    clara linha de demarcao entrt

    a racionalidade dos fins e a racionalidade dos meios. E, nessa viso, n1

    h espao e nem tempo para divagaes com outros tipos de valores.

    verdade que Robinson Crusoe apela frequentemente sua ric:>

    religiosidade. So frequentes as suas invocaes a Deus, suas referncia,

    Bblia, suas preces, seus agradecimentos Divina Providncia e seu'

    julgamentos morais de evidente origem puritana . Tudo isso, porm, n

    denigre o seu

    modo

    de entender a atividade projetual, decididamem

    orientada para o til e absolutamente indiferente a julgamentos tico

    ou estticos.

    No

    influi nem mesmo a

    postura

    de extrema objetividade

    de total distanciamento,

    com

    a qual ele observa a relao entre a prpna

    ao laboral e os

    produtos

    que dela resultam. Marx, no

    Capital,

    faz um

    avaliao ironicamente positiva dessa postura, atribuindo ao personage

    de Defoe certa contribuio economia poltica, mais precisamente

    teoria do valor

    12

    tornava-se novamente homem, um animal indeciso, um ser que apenas as circunstncias 1-

    bastam para definir. Respirava distrado.

    No

    sabia que rumos deveria seguir, dedicando-se

    letras e s artes . P Valry,

    Histoires brises. Robinson. Le Robinson oisif, pensif, pourrn.

    Oeuvres,

    Gallimard, Paris, 1960, p. 412.

    D Defoe, La vita ... cit., p. l6r .

    Cf. M. Praz,

    Defoe e Cellini,

    in

    Studi e svaghi inglesi,

    Sansoni, Firenze

    1937

    Praz -

    dencia: Apesar

    de

    Robinson Crusoe protestar pelas contnuas rememoraes dos pensamen

    religiosos, o que admirvel nele no a contemplao, mas a ao (p.

    38);

    Robinson .. ri

    bastante, mas sua ao ainda maior (p.

    39); a

    sua postura moralista pouco mais que,

    fraca reflexo

    posteventum

    (p. 52).

    K Marx, Das Kapital,

    cit. (trad. it. p.

    93).

    Cf. S S Prauver,

    Karl Marx and

    V

    Literature, Oxford University Press, Oxford,

    1978,

    p.

    335.

    Para as implicaes econm1

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    6. A idade

    projetual

    e

    Daniel

    Defoe

    89

    Vejamos

    outro

    exemplo esclarecedor. Desde o dia em que chegou

    ilha, Robinson Crusoe sabe que dever construir urgentemente

    um

    abrigo.

    Mas

    desde o incio ele tem conscincia das dificuldades a serem

    enfrentadas: preciso constru-lo imediatamente, mas ele

    no

    sabe onde

    e nem como. A exceo de alguns restos do naufrgio, os meios dis

    posio para alcanar esse objetivo so limitadssimos. Acrescente-se

    ainda a falta de conhecimento, pois, nos primeiros dias, Robinson ignora

    tudo sobre a ilha. E isso torna ainda mais problemtico o seu empre

    endimento: deve erguer um abrigo capaz de resistir s foras hostis do

    ambiente, mas ainda incapaz de avaliar as suas reais ameaas - a natu

    reza, frequncia e potncia dos eventos hostis. Isso dificulta estabelecer

    a resistncia e as dimenses do abrigo. Assim, ele encontra dificuldades

    em definir as caractersticas fsicas do abrigo:

    no

    pode correr o risco

    de subdimension-lo e,

    por

    outro lado, nem

    pode

    se

    dar

    ao

    luxo

    de

    uperdimension-lo.

    Tambm nesse caso, como no do guarda-chuva, ele deve assumir

    uma postura de voraz apropriao utilitria do ambiente circundante.

    Tambm nesse caso, a dramtica urgncia do problema a ser resolvido

    -ondiciona fortemente o seu comportamento projetual:

    para

    ele, o abrigo

    s um abrigo e ponto final.

    No

    passa pela sua mente que a sua ha-

    itao possa ser uma bela obra de arquitetura . E a sua ao resulta

    em:

    uma

    cortina colocada sob uma parede de rocha, circundada

    por

    uma robusta paliada de mastros de madeira e cabos martimos . Uma

    onstruo que dificilmente poderia ser aceita

    como uma

    bela

    obra

    de

    arquitetura . No mximo, poderia ser includa na categoria de arqui

    etura sem arquiteto que Bernard Rudofsky chamou de arquitetura

    sem pedigree 3.

    Ento, pergunto-me: essas duas formas de projetualidade identifi

    cadas

    por

    Defoe no final do sculo xvn e no incio do sculo

    xvrn

    - a pro-

    tualidade de n Essay upon Projects e a de Robinson Crusoe - podem

    enriquecer o debate atual sobre o papel

    da

    projetao? provvel.

    Com

    alguns ajustes e adaptaes, as questes levantadas

    por

    Defoe esto, sem

    vida, presentes nos dias atuais.

    roda narrativa quanto dos ensaios de Defoe, ver

    K.

    Polanyi, La grande trasformazione, cit.:

    Ddoe tinha identificado a verdade que setenta anos depois Adam Smith pode no ter ou no

    endido (p.

    139).

    Essas avaliaes, hoje muito comuns,

    no

    so compartilhadas

    por

    M.E.

    ak,

    Economics and the Fiction

    of

    Daniel Defoe,

    University

    of

    California Press, Berkeley,

    Novak v em Defoe um dos mais ferrenhos defensores do sistema mercantilista. Cf.

    bm M.

    E.

    Novak, Robinson Crusoe and economic utopia, cit. Novak faz uma dura crtica

    economistas que procuraram utilizar Crusoe como heri para as suas parbolas , p.

    477.

    re a posio de Defoe em relao ao tema do pauperismo e da benevolncia, ver a estimu-

    te mtroduo de V. Accattatis a D. D., are

    l e/emosina non e arit, dare lavoro ai poveri e

    Jnno per la nazione, Feltrinelli, Milano 1982. Segundo a ptica atual, colocar Defoe entre

    : mservadores do seu tempo um posicionamento que, como todos os julgamentos sobre

    >e

    pode ser controvertido.

    B. Rudofsky,

    The Prodigious Builders,

    Secker and Warburg, London

    1997,

    p. 18.

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    6/9

    19 Cultura Sociedade Tcnica

    Basta pensar no discurso central do

    Essay,

    versando sobre a

    sidade de formular projetos para enfrentar os problemas inadiveis d

    nossa sociedade. Essa colocao tem seus

    pontos

    fracos. No basta fala

    genericamente de projetao sem indicar as intervenes projetuais espe

    cficas. Isso pode levar a

    uma espcie de autopiedade por um dever

    acreditamos cumprido,

    quando, na

    realidade, existiu apenas no plan

    da exortao verbal, sem nenhuma concretude.

    Essa fraqueza encontra-se no ensaio de Defoe. Qual a utilidade

    se

    colocar hipteses para formulao de projetos para transformao d

    sociedade, se tais projetos se

    mostram

    incapazes de contribuir

    para

    u

    real mudana dessa sociedade?

    14

    A bem da verdade, Defoe

    no

    ignor.

    essa questo. Ele mesmo acena

    para

    o perigo de uma projetao qu

    incide margem das grandes instituies sociais sem impactar direta

    mente os centros de poder onde se decidem as grandes questes soei

    que podem produzir benefcios diretos

    populao .

    Para superar esse risco, Defoe prope, no Essay, no apenas u

    projeto, mas vrios projetos

    para

    instituies a servio

    da

    comunidade.

    tais como as academias para o estudo da lngua inglesa, educao d

    mulheres, formao de militares profissionais; instituies de crdito s

    a vigilncia de um banco central; rede de estradas capazes de garan

    a mobilidade intensiva das pessoas e das mercadorias. Esses projet

    seriam financiados pelos proprietrios das reas beneficiadas, por me

    de contribuies 'compulsrias

    para

    a urbanizao'. Embora de manei

    um

    tanto quanto

    confusa, faz distino do que seria atualmente o imp

    to direto, taxas e impostos indiretos; agncia de seguros para a prote

    dos mercadores para os riscos e os efeitos de uma eventual falncia.

    Desse

    modo,

    Defoe se iludia, acreditando que os centros de po

    da poca pudessem

    atuar

    de forma mais equnime

    para

    estabelecer

    ordem

    social. Essa proposta, porm, permanece abstrata e inconclu

    pelo simples motivo de no se

    poder

    criar instituies e estruturas

    servio apenas atravs de um determinismo

    diktat)

    projetual. Pior ain

    mudar o

    mundo

    exclusivamente atravs desse determinismo. Esta

    crtica que sempre se fez

    projetualidade de inspirao iluminista.

    Nos

    ltimos tempos, tende-se a generalizar e

    dar

    uma exten -

    exagerada a essa crtica, at o ponto de invalidar todas as formas

    projetualidade. Essa tendncia tem origem

    no

    erro de se identificar 'pri

    jeto'

    com

    'ideologia'

    ou 'projeto' com 'plano'.

    Parece-me tratar-se de

    grave equvoco.

    No h

    dvidas de que esse equvoco gerou as posi

    errneas apresentadas nos mais recentes debates sobre a projetualida

    Estas posies levam a banalizar e at ofuscar

    um importante projeto

    reflexo terica.

    A atividade

    projetual

    foi

    desvirtuada,

    no

    sendo

    mais aque

    atividade que

    procura

    oferecer solues inovadoras aos problema

    .. Cf M. Apollonio,

    Defoe, La

    Scuola, Brescia 1946. Apollonio escreveu: Se ns

    i

    surpresos pela bondade intrnseca dos seus esquemas propostos .. os contemporneos , e

    ainda os revisores burocrticos das suas propostas, podiam desprez-los (p. 84).

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    7/9

    6. A idade

    projetual

    e Daniel Defoe

    9

    -iedade

    e, portanto, no

    mais

    um

    fator de progresso

    inovador ,

    mo diria L Sklair

    15

    Tornou-se uma atividade de prfidos idelogos

    rdiamente iluministas (ou de utpicos extravagantes) que gostariam de

    por os seus sonhos (ou delrios) totalitrios humanidade. O projeto

    emonizado e chega-se, assim, rejeio indiscriminada da projetao,

    ual j nos referimos. Esquece-se, todavia, que,

    para

    todos os efeitos,

    ossa poca

    uma

    era projetual - uma projecting age, como

    chamou

    foe com trs sculos de antecedncia - talvez a mais projetual de todas

    pocas

    da

    histria.

    Peguemos, a ttulo de exemplo, o caso dos mais recentes avanos

    tecnologia

    da

    informtica. Ela est beira de

    mudar

    radicalmente

    : pressupostos que, durante milnios, foram a base das nossas prticas

    vida econmica e social. Tais avanos certamente resultam de

    uma

    iatividade tecnocientfica e

    tambm

    de

    uma

    operosidade projetual sem

    ecedentes. O mesmo se

    pode

    dizer de

    outros importantes

    avanos

    a tecnologia moderna, pois

    uma

    coisa bvia: em um mundo como

    nosso, cada vez mais dominado

    por

    objetos e processos tcnicos, a

    ~ r o j e t u l i d d e

    est onipresente. Nesse contexto, a retrica

    da

    antiproje

    - alidade pode ter apenas

    um

    sentido: a capitulao acrtica em relao

    -

    uma

    projetualidade que mesmo assim

    se

    realiza.

    Existe

    ainda

    uma tendncia (ou melhor, um movimento), que

    -:-ansforma a proposta projetual de Robinson Crusoe em um verdadeiro

    . odelo de

    comportamento para

    a nossa poca. Robinson torna-se um

    .:rqutipo ideal de

    um

    novo

    modo

    de projetar que, diferentemente do

    odelo hoje dominante,

    no

    se utiliza de

    um

    saber tecnocientfico sofis

    :-cado e nem se prope a criar objetos de alta complexidade estrutural

    funcional. Essa nova maneira de projet ar privilegia a simplicidade das

    :olues propostas e a utilizao dos recursos bsicos.

    Nessa tica, Robinson Crusoe apresentado

    como um

    precursor

    :3 as 'tecnologias pobres', um precursor de uma projetao que rejeita

    ~ x p l i c i t m e n t e o condicionamento institucional das 'tecnologias ricas'.

    Esquece-se, porm, que Robinson Crusoe um personagem de fico e,

    .:orno tal,

    com um

    elevado grau de artificialismo

    16

    Ele

    no

    est livre de

    -odas as formas de condicionamento institucional,

    como

    Defoe gostaria

    ue

    se

    acreditasse. No

    se

    pode escapar

    ao

    sutil condicionamento s ins-

    6tuies da sociedade qual pertencia antes do naufrgio. Quer queira,

    L Sklair,

    The Sociology o Progress,

    cit.

    p.

    I77 e seguintes.

    Devemos ser cautos sobre o artificialismo dos personagens de Defoe, pois o que mais

    anpressiona na sua narrativa

    o alto grau de verossimilhana dos seus contos. Isso fez dele

    um grande precursor do realismo, ou melhor, de um realismo visionrio como corretamente

    o define Terzi,

    ou

    ainda de um realismo mgico , segundo Apollonio. De Quincey admirava

    em Defoe exatamente aquele ar e verossimilhana da sua narrativa [P. Rogers a cura di),

    Defoe. The Criticai Heritage, Routledge and Kegan Paul, London I972, p. u8]; e J. L Borges

    fala de romances exageradamente verossmeis de Daniel Defoe

    (Discusin,

    Gleizer, Buenos

    . \ires,

    I93

    2, p. 97). Borges sabe, talvez melhor do que qualquer out ra pessoa, como a descrio

    minuciosa do detalhe - tpica tanto de Defoe quan to de Borges - leva cedo ou tarde ao fantstico.

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    92

    Cultura Sociedade Tcnica

    quer no, a principal referncia continua sendo a sociedade inglesa d

    poca de Lord Walpole, a mesma

    do

    prprio Defoe. Examinando bem,

    tecnologia pobre de Robinson nada mais que uma verso emergenc1a

    da tecnologia rica tpica da poca de Defoe.

    Os atuais partidrios das tecnologias pobres entronizam Robinso

    Crusoe

    como

    aquele que

    se

    rebela contra os injustos condicionament('

    das instituies do seu tempo. Deve-se recordar que em s Aventuras

    Robinson Crusoe (Serious Reflections During the Lifeand Surprising C -

    ventures of

    Robinson

    Crusoe)

    7

    , publicado em

    1720,

    um ano depois da

    Aventuras (Adventures) (25 de abril de 1719), e das Outras Aventur,;:

    (Farther Adventures) (20 de agosto de 1719), Defoe deixa transparect:

    uma outra chave de interpretao do seu romance: a vida de Robinso

    Crusoe

    nada

    mais seria que uma verso alegrica da vida atormenta,- -

    de um personagem real, a vida de

    um homem que sofreu todo tipo

    violncia, opresso, desonras e injrias, atraindo o desprezo dos homem

    as oposies terrenas, os ataques dos demnios e as punies c e l e s t e s ~

    Ele faz com que se perceba claramente que esse personagem n

    seria o marinheiro escocs Alexander Selkirk, ou seja Robinson, mas

    prprio Defoe1

    8

    ,

    o hbil artfice, capaz de todo tipo de violncia .

    autor

    de Robinson Crusoe, alm de romancista, ensasta e jornalista,

    er

    i

    tambm um impertinente conselheiro dos poderosos, um empreendedi -

    falido e perseguido por suas dvidas, um panfletrio preso por difama .

    e posteriormente libertado como informante secreto.

    Todavia, a alternativa que emerge das duas filosofias projetua

    de Defoe - aquela explicitamente formulada no Ensaio e aquela qi.:

    transparece no comportamento do personagem Robinson -

    no

    urr

    alternativa moderna. Os problemas que temos hoje no se definem e ne

    se resolvem em termos de aceitao

    ou

    de renncia s instituies. O

    nossos problemas mais pungentes, devemos recordar, so aqueles relat-

    vos guerra, meio ambiente, fome, mas tambm a liberdade, igualda

    e dignidade. Como sabemos, alguns desses problemas so

    i n s t i t u c i o n ~

    Outros o so apenas parcialmente. Outros ainda no o so em absolur

    D. Defoe, Serious Reflections During the Life and Surprising Adventures of Robin

    Crusoe, m Shakespeare Head Edition of Novels and Selected Writings of Daniel Defoe, x

    xm,

    Oxford,

    1927.

    '

    A vida de Defoe foi uma longa sequncia de desventuras e de problemas de tod

    os tipos, muitos do quais eram acontecimentos corriqueiros na vida dos 'homens das letr

    daquele perodo da histria europeia. O que importa saber como tais infortnios pess

    eram interpretados (e, s vezes, transformados em matria-prima da criatividade) por aque

    que os sofriam.

    um ponto delicado. Nesse caso pode ser til estabelecer uma compara

    (ou melhor, buscar analogias e diferenas) entre as personalidades que tiveram uma trajetr.

    de vida semelhantes, cheias de peripcias. Esse o mtodo utilizado por Scwob, que comp.

    Defoe e Cervantes e ainda

    pot

    Praz, que compara Defoe e Cellini.

    Em

    Defoe como em

    Cell

    (mas no em Cervantes), existe um forte sentimento de autocomiserao pelos prprios in;

    tnios. Essa automiserao no deve ser confundida com resignao. Nem Defoe nem

    Cell

    pertencem quela categoria de vtimas resignadas e acomodadas.

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    6. idade projetual

    e

    Daniel

    Defoe

    O An

    Essay

    upon

    Projects

    obr de um idealizador de Proje-

    tos Honestos Honest

    Projects

    que viveu um perodo particularmente

    conturb do do nascimento

    d

    sociedade burguesa. A reflexo sobre as

    propostas de Defoe pode nos ajudar a verificar a possibilidade

    e

    princi-

    palmente a probabilidade de elaborar Projetos Honestos em um poca

    como a nossa, n qual a enorme complexidade dos problemas a serem

    resolvidos submete a um

    dur

    prova, todos os dias, a vontade projetual.