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QUATRO RAZÕES PARA RELER «NOVAS CARTAS PORTUGUESAS» Maria Alzira Seixo Ciberkiosk 1. A primeira razão consiste, muito naturalmente e curiosamente (isto é, desenvolvendo a nossa curiosidade ou indo ao encontro dela), a do confronto dos tempos. Sabe-se como, em 1971, escrever um livro destes era arriscado e agitador. Foi arriscado (as autoras viram-se submetidas a interrogatórios pela Pide, tiveram de valer-se de ‘conhecimentos’ socialmente e politicamente bem situados para não serem efectivamente molestadas, para além de adquirirem o labéu, a que não se esquivaram - e que elas próprias, na verdade, construíram - de serem consideradas com um estatuto de excepcionalidade social, sexual e literária, positivo em certos meios, negativo noutros, mas que na realidade as marcou e deu origem à figuração ambivalente das Três Marias), e, de facto, agitou . Pouco tempo depois, o 25 de Abril consagrava este, como outros acontecimentos, na constituição do feixe situacional preparador e veiculador das sensibilidades e potencialidades que antecederam a revolução. Hoje, é caso para nos perguntarmos: estará o livro tão definitivamente datado? Constituíu ele sobretudo um «acto performativo de discurso», uma actuação determinadamente social, ou institui-se como componente singular e autónoma de uma série literária, isto é, como obra de ficção determinante e individuada? Penso que as duas coisas. Ou melhor: penso que começou por ser de modo ambíguo a primeira (e uma das suas grandes riquezas, é justamente a da manutenção, ao longo da obra, desta ambiguidade e indefinição entre atitude de intervenção e significação insistente na literariedade), mas que se inseriu no sistema literário, enquanto manifestação da segunda. Essa inserção no sistema literário é que é curiosa. Por um lado, o livro conheceu um êxito assinalável na época, que hoje caíu , e a sua reedição não tem provocado, que eu saiba, grandes êxtases de empatia receptiva; por outro lado, a sua inserção no sistema social (que ostentaria a desinência participativa ou interventiva, se ela tivesse sido de facto a mais actuante) parece ter sido nula. Dir-se-á, então, que é um livro datado. Mas o que é um livro datado? É um livro ‘morto’, cuja incidência nas diversas sistemáticas da leitura contemporânea se desvaneceu, ou é um livro que fez data, que marcou um tempo e chamou a atenção para uma questão? A resposta parece-me, neste caso, óbvia. O que interessa, além do mais, é verificar como a situação para a qual o livro apelava (a situação social da mulher) não foi passível de qualquer alteração significativa, e o mesmo estado de coisas, que se revela idêntico, manifestar agora pelo seu apelativo literário um quase total desinteresse. Os chamados «progressos» efectivados (tentativas de estabelecimento de salário igual; participação feminina em organismos de direcção, gestão e política; promoção genérica de aspectos tradicionalmente ligados ao sector feminino - tarefas domésticas, hibridismo caseiro e educacional, moda, profissões, etc.) enfermam de uma característica de simulação (a lei igualitária é invocada para perversamente se manterem as desigualdades de facto), de oportunidade consumista (a rentabilidade das ocasiões de igualitarismo é desenfreadamente explorada pelo neo-liberalismo) ou de necessidade compensatória em termos de tempo ou de dinheiro, que, mudando efectivamente as coisas, torna o equilíbrio social postiço, artificial e, na base, identicamente injusto. É fácil dizer que os feminismos excessivos não importam a uma sociedade equilibrada, mas inteiramente incorrecto quando se trata da nossa, cujo equilíbrio é, no mínimo, arbitrariamente baloiçante; mas será oportuno insistir no facto de que a leitura das Novas Cartas Portuguesas , essencialmente política no início dos anos setenta (e por isso mesmo irrelevantemente sentido o seu significado em certas áreas intelectuais e ideológicas, por tender a substituir a luta política mais lata que então se travava), pode neste momento ser mais acentuadamente feminista, se por feminismo se entender (o que não é pacífico…) uma atitude intelectual que tem em conta uma situação social, política, económica e cultural que desfavorece a mulher, como desfavorece tudo aquilo a que impropriamente se chama «minorias» (porque por vezes são justamente, pelo contrário, maiorias), e que de modo mais preciso se pode designar como

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QUATRO RAZÕES PARA RELER «NOVAS CARTAS PORTUGUESAS»

Maria Alzira Seixo

Ciberkiosk

1.

A primeira razão consiste, muito naturalmente e curiosamente (isto é, desenvolvendo a nossa curiosidade ou indo ao encontro dela), a do confronto dos tempos. Sabe-se como, em 1971, escrever um livro destes era arriscado e agitador. Foi arriscado (as autoras viram-se submetidas a interrogatórios pela Pide, tiveram de valer-se de ‘conhecimentos’ socialmente e politicamente bem situados para não serem efectivamente molestadas, para além de adquirirem o labéu, a que não se esquivaram - e que elas próprias, na verdade, construíram - de serem consideradas com um estatuto de excepcionalidade social, sexual e literária, positivo em certos meios, negativo noutros, mas que na realidade as marcou e deu origem à figuração ambivalente das Três Marias), e, de facto, agitou. Pouco tempo depois, o 25 de Abril consagrava este, como outros acontecimentos, na constituição do feixe situacional preparador e veiculador das sensibilidades e potencialidades que antecederam a revolução.

Hoje, é caso para nos perguntarmos: estará o livro tão definitivamente datado? Constituíu ele sobretudo um «acto performativo de discurso», uma actuação determinadamente social, ou institui-se como componente singular e autónoma de uma série literária, isto é, como obra de ficção determinante e individuada? Penso que as duas coisas. Ou melhor: penso que começou por ser de modo ambíguo a primeira (e uma das suas grandes riquezas, é justamente a da manutenção, ao longo da obra, desta ambiguidade e indefinição entre atitude de intervenção e significação insistente na literariedade), mas que se inseriu no sistema literário, enquanto manifestação da segunda. Essa inserção no sistema literário é que é curiosa. Por um lado, o livro conheceu um êxito assinalável na época, que hoje caíu, e a sua reedição não tem provocado, que eu saiba, grandes êxtases de empatia receptiva; por outro lado, a sua inserção no sistema social (que ostentaria a desinência participativa ou interventiva, se ela tivesse sido de facto a mais actuante) parece ter sido nula. Dir-se-á, então, que é um livro datado. Mas o que é um livro datado? É um livro ‘morto’, cuja incidência nas diversas sistemáticas da leitura contemporânea se desvaneceu, ou é um livro que fez data, que marcou um tempo e chamou a atenção para uma questão? A resposta parece-me, neste caso, óbvia. O que interessa, além do mais, é verificar como a situação para a qual o livro apelava (a situação social da mulher) não foi passível de qualquer alteração significativa, e o mesmo estado de coisas, que se revela idêntico, manifestar agora pelo seu apelativo literário um quase total desinteresse. Os chamados «progressos» efectivados (tentativas de estabelecimento de salário igual; participação feminina em organismos de direcção, gestão e política; promoção genérica de aspectos tradicionalmente ligados ao sector feminino - tarefas domésticas, hibridismo caseiro e educacional, moda, profissões, etc.) enfermam de uma característica de simulação (a lei igualitária é invocada para perversamente se manterem as desigualdades de facto), de oportunidade consumista (a rentabilidade das ocasiões de igualitarismo é desenfreadamente explorada pelo neo-liberalismo) ou de necessidade compensatória em termos de tempo ou de dinheiro, que, mudando efectivamente as coisas, torna o equilíbrio social postiço, artificial e, na base, identicamente injusto.

É fácil dizer que os feminismos excessivos não importam a uma sociedade equilibrada, mas inteiramente incorrecto quando se trata da nossa, cujo equilíbrio é, no mínimo, arbitrariamente baloiçante; mas será oportuno insistir no facto de que a leitura das Novas Cartas Portuguesas, essencialmente política no início dos anos setenta (e por isso mesmo irrelevantemente sentido o seu significado em certas áreas intelectuais e ideológicas, por tender a substituir a luta política mais lata que então se travava), pode neste momento ser mais acentuadamente feminista, se por feminismo se entender (o que não é pacífico…) uma atitude intelectual que tem em conta uma situação social, política, económica e cultural que desfavorece a mulher, como desfavorece tudo aquilo a que impropriamente se chama «minorias» (porque por vezes são justamente, pelo contrário, maiorias), e que de modo mais preciso se pode designar como

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«entidades marginais» afastadas deliberadamente dos «centros» de consideração, de decisão, de tenência e de exercício do poder.

Não há talvez excesso nos feminismos, há incorrecções de recepção (ninguém propõe a sociedade de valquírias que o termo parece superficialmente suscitar na sua corrente percepção endoxal, nem o esquema de «inversão de dominâncias» tão temido pela ordem social vigente, que afinal ‘permite’ às mulheres a sua afirmaçãozita de vez em quando: um governo com ‘algumas’ ministras, alguns vultos sociais ou culturais ‘relativamente’ considerados, sobretudo se se não manifestarem demasiado, e se guardarem as devidas distâncias e respeitos subordinativos e afectivos em relação aos seus colegas machos; o que há de desagradável e errado em termos de estratégia e de finalização social, nos feminismos, é aquilo a que Marc Angenot chama a ideologia do ressentimento (Discours Social, «Discours politiques aujourd’hui», 4,1992), apelando para axiologias invertidas e para coligações em torno de bandeiras de identidades rancorosas. Se as grandes narrativas emancipadoras se desvaneceram, insiste Angenot, é porque de facto não há agora outra coisa senão umas historiazinhas em série para nevrosados ruminadores de danos e prejuízos, manifestando uma espécie de comprazimento nos malogros, de enobrecimento da inferiorização. O sistema sócio-político compreende isto, atribuindo alguns «prémios de consolação» aos ressentidos, tais como entrevistas na televisão, comportamento mediático seleccionado e algumas leis de «vacina», como diria Roland Barthes. O tribalismo é uma das suas componentes (oficialização da ‘condição feminina’ - e a própria Maria Velho da Costa gracejava há alguns anos ao protestar perante a inexistência de uma idêntica «protecção» à ‘condição masculina’…).

Se o rancor enquanto «ethos» é adversário de qualquer tentame progressista, e acaba por ser cúmplice de paliativos vexantes, a lucidez analítica e o estudo objectivo da questão impõe-se cada vez mais, sobretudo se inserirmos a questão feminina (designação que pessoalmente prefiro utilizar em vez de «feminismo»), na sua relação com a «questão masculina» - e verificando a impossibilidade de fazer aceder de um momento para o outro, o corpo social (e nomeadamente o corpo masculino) a uma educação identitária que possibilite uma radical e rápida mudança de mentalidades - na questão mais vasta e dominante da nossa época, o pós-colonialismo, que mina também muitas sociedades ex-colonizadoras (a nossa, justamente) enquanto culturas globalizantemente irrelevantes (não obstante as pretensões e pequenas satisfações «europeístas») e definitivamente de periferia.

Novas Cartas Portuguesas é um livro cuja releitura nos mostra uma sensibilização aguda e precursora, por parte das suas autoras, em relação a estas questões, e essa é, pois, a primeira razão que aqui invoco para a sua abordagem.

2.

A segunda razão tem a ver com o livro enquanto obra literária. Quase trinta anos depois, as Novas Cartas produzem um efeito de leitura que acentua a sua dimensão poética, com alguns traços importantes e muito ao gosto da literatura nossa contemporânea. Destacarei alguns.

A reescrita, que procede em intertextualidade com as Cartas da Religiosa Portuguesa, o que desde o início não é pacífico, não apenas pela afirmação amorosa determinada e determinante de Mariana Alcoforado, ou pela sua enunciação reiterada, não também fundamentalmente pela clausura religiosa, que é uma dominante da literatura de finais do classicismo e, em última análise, é metáfora de toda a clausura feminina, mas muito principalmente pela miscegenação literária inter-nacional, dado que a autoria de Guilleragues, nunca mencionada neste texto como autor de ficção, retira ao discurso a integridade do seu discurso identitário «nacionalista». Essa reescrita procede também em relação a outras formas de discursificação contemporânea, tais como a epistolografia relativa à guerra colonial, ou a modelos de mediação moderna, como as cartas de descendentes de Mariana ou de outras criaturas mais ou menos aparentadas, quer com a personagem quer com a problemática, que se misturam no texto produzindo um efeito de hibridismo des-organizado.

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O hibridismo, portanto, que também é manifesto, e marcado pela coexistência e diversidade de vários tipos de enunciados: a epístola, a prosa reflexiva, o poema em prosa, o poema em verso, o fragmento, o diálogo (numa interversão genológica que apaga ou desvia o carácter narrativo central - de matriz modernista ainda muito forte, correspondendo de facto a «uma grande narrativa emancipadora», mas que dá já lugar, como veremos, a uma forte contestação interna - e sublinha o género epistolar, cuja reescrita «nacionalista» (cartas portuguesas) se apresenta em modalidade irónica mas não só, porque há uma pungência lamentosa em relação a uma pátria perdida (tópico da literatura da época salazarista), mas tem essencialmente a função de intentar uma interpelação do «outro» e, mesmo, do outro «nacional» (novas cartas).

A alteridade, enquanto modalidade singular e específica do hibridismo, que afirma a entidade «outro» em várias das suas categorias: o outro amoroso, que mantém a deceptividade da relação romântica - e que é talvez um dos poucos traços caducos deste livro; o outro de si, enquanto força alienante de uma fidelidade identificadora com a educação recebida (tipo Princesse de Clèves), e por isso mesmo libertária do corpo aprisionado às concepções clássicas e setecentistas da subordinação do sentimento à razão, mas ao mesmo tempo voz de uma natureza humana sensorial que o espírito crítico filosófico dessa subordinação ao mesmo tempo está libertando (tipo La Nouvelle Héloïse); o outro enquanto ‘os outros’, corpo social endoxal, paralizante e opressivo (tipo La Religieuse de Diderot); o outro enquanto alteridade radical de entidade e de História, patente não só na intertextualidade literária e artística frequentemente convocada (O’Neil, Verdes Anos, Agustina, Romeu e Julieta, Desastres de Sofia, Maria Judite de Carvalho, A Farsa, Elisabeth Browning, Gil Vicente, etc.) mas também nos diversos tipos sócio-históricos configurados enquanto intervenientes no espaço do texto: de D. Tareja a Inês de Castro e a Elisabeth Regina, passando pelo cavaleiro de Chamilly, por vários fidalgos contemporâneos e posteriores, por outros Alcoforados ou relativos, por personagens diversas e efabuladas, descendentes ou intervenientes no ambiente sócio-político contemporâneo da enunciação.

O grande Outro tendencial do texto é no entanto, sem dúvida alguma, a meu ver, o do corpo social do discurso - que a entre-escrita, o entre-texto, o entre-outro e a miscegenação híbrida provocam, interpelando-o apelativamente, sensualmente (como que tendendo a um con-senso desejado e por este discurso instruído), na exibição despudorada e «concertada», quase judicativa (sentir em conjunto é, de certa forma, julgar), das «fendas» (Barthes diria: das «béances»), falhas ou faltas, femininas, através do processo de conjugação que este livro é. Ao contrário de uma argumentação organizada e sistemática, que aliás está presente em alguns textos parciais da obra, o discurso literário das Novas Cartas Portuguesas manifesta aqui uma separação (segregação) sequencial que remete para as insularidades e incompletudes, para os «cantos» também, da reversão feminina, entre expectâncias, solidões, satisfações, desacertos e reivindicações de plenitude e isolamento, numa demarcação ou articulação com o real. Delas se destaca também, evidentemente, o processo de entre-autoria. Não é decerto por acaso que estas três escritoras se juntam para escrever este livro, assumindo-se como metáfora do agrupamento feminino generalizado, e assumindo nas formulações discursivas as mencionadas metáforas da segregação, das falhas e da insularidade. Como diz J.J.A. Mooij, «many metaphorical utterances can be statements, although many are not - depending, of course, on the circumstances (kind of situation, verbal context, intention, emphasis, etc.). One also has a right, I would maintain, to have one’s metaphorical sentences taken as true or false assertions, and not merely as interesting suggestions or whatever (even if the metaphor should be changed into a quasi-smile). And finally, the audience has a right to assess their truth value» (1993. Fictional Realities. The uses of literary imagination. Amsterdam: Benjamins.179).

3.

E assim chegamos à terceira razão, específica e muito de estudar: a da repartição das vozes no texto. As vozes localizam-se a vários níveis, uma vez que em cartas e em poemas a primeira pessoa domina, e com as diferenciações que já apontámos. Mas, por agora, quereria apenas encarar as vozes de autoria, e o sentido constituído pelas três escritoras que se intervertem enquanto narradoras pessoais, de grupo e de identificação relativa anónima ao longo do livro. Há um passado literário evocado (na célebre epígrafe do livro, «De como Maina

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Mendes pôs Ambas as Mãos sobre o Corpo e deu um pontapé no cu dos Outros Legítimos Superiores» - e as maiúsculas dos dois últimos títulos são aqui minhas), que sublinha obras de natureza diversamente subvertora das três escritoras: Maria Velho da Costa, no plano da escrita; Maria Teresa Horta, no plano do erotismo; Maria Isabel Barreno, no plano da ideologia - ao mesmo tempo que enfatiza o predicado de base especificador das Novas Cartas, o do pontapé no cu, que sintetiza, no caso, esses três planos. Por outro lado, a escrita plural é cuidadosamente repartida, embora não identificada, e daí que eu prefira falar em repartição de vozes em vez de falar em pluralidade de discursos, dado que esta transcende o domínio das autorias, e que, por outro lado, essa repartição de vozes pode ser entendida em dois sentidos: no sentido de uma localização, e no sentido de uma partitura. A localização reenvia para a problemática do lugar, que justamente é sentido como falta, carência de espaço físico, social, cultural, económico, sexual, afectivo, literário, etc., ou pelo menos como confinamento ou isolacionismo, e manifesta-se no texto através dos fragmentos diferenciados, cada um deles escrito por uma das autoras. É da junção dos textos diversos, das vozes re-partidas, que resultam estas novas cartas. Por outro lado, há uma leitura interna dos textos, os de umas lidos pelas outras, que funciona em termos de conjunção e de disjunção, de efectivo diálogo, posição e contraposição, o mesmo é dizer, em termos de interpretação intra-textual recíproca, que é afinal o filão condutor do que pode ser entendido como um fio narrativo do texto, se é que ele existe. O que é interessante, aqui, é que a irrupção das vozes (das escritas - e a distinção entre voz e escrita, neste texto, não será susceptível de funcionar cabalmente, e seria justamente interessante estudar esta questão, já que a sua manifestação me surge em termos de relevo sonoro, e portanto de emergência da voz, como um grito, ou do registo da escrita, como um acto, e por isso o entendo como partitura, instrumentalizada no gesto de escrever os dizeres) não se regula através de um ritmo uniforme, e que o regime das autorias é sensivelmente conduzido de forma irregular, sem alternâncias ou cadências similares que permitam, se não a sua identificação, ao menos o agrupamento em três domínios (mesmo que sempre nominalmente indiferenciados) de autoria. Há, deste modo, o que se poderia designar como uma irradiação assimétrica no sentido da construção do texto, uma vez que a assimetria é aqui, não uma fuga à regra, mas praticamente a regra ela mesma, e que a desordem que ela transmite figura uma aliança ambígua entre a criatividade (literária) da voz e a sua anulação (social), numa acentuação da entropia que progressivamente radica, à medida que o texto avança, no jogo de intensidades que o discurso vai produzindo, e que é talvez a unidade fundamental da sua cadeia expressiva.

4.

A quarta razão tem a ver com uma outra voz emergente do texto, com uma outra modalidade do seu hibridismo intertextual e com um outro lugar da sua capacidade efabulativa: os da História (literária e sócio-cultural) que a todos alicerça. Sabe-se que este livro se urde em torno da reescrita das Cartas de Mariana Alcoforado, a freira de Beja. Mas sabe-se também que essa urdidura não tem nada a ver com a narrativa histórica ou com uma evocação de tipo biográfico, nem constitui uma outra versão ficcional dos acontecimentos. Mas, simultaneamente, tem a ver com isso tudo. As Novas Cartas são outras cartas (por vezes muito próximas da sua matriz, em situação e organização frásica e lexical), que resultam de uma paródia, no sentido matizado de homenagem, vinculação e sátira veiculado por Linda Hutcheon, das Lettres de la Religieuse Portugaise. Sendo outras cartas, as Novas Cartas são também outro tipo de textos, mas realizam, do protocolo epistolar, uma relação efectiva de interlocução, concretizada entre as escritoras participantes, e entre elas e o leitor. Assim, as Novas Cartas interpelam também a História enquanto fundamentação causal e temporal do presente factual que acima de tudo encenam, e isso através do processo de deformação regulamentada que Ricoeur atribui a todo o tipo de inovação literária. Em termos muito simples, ele elabora uma fundamentação da singularidade da obra literária que valerá decerto a pena recordar: «Quant à l’autre pôle de la tradition, l’innovation, son statut est corrélatif de celui de la sédimentation. Il y a toujours place pour l’innovation dans la mesure où ce qui, à titre ultime, est produit, dans la poièsis du poème, c’est toujours une oeuvre singulière, cette oeuvre-ci. C’est pourquoi les paradigmes constituent seulement la grammaire qui règle la composition d’oeuvres nouvelles - nouvelles avant de devenir typiques. De la même manière que la grammaire d’une langue règle la production de phrases bien formées, dont le nombre et le contenu sont imprévisibles, une oeuvre d’art - poème, drame, roman - est une production originale, une existence nouvelle dans le royaume langagier. Mais l’inverse n’est pas moins

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vrai: l’innovation reste une conduite gouvernée par des règles: le travail de l’imagination ne naît pas de rien. Il se relie d’une manière ou d’une autre aux paradigmes de la tradition. Mais il peut entretenir un rapport variable à ces paradigmes. L’éventail des solutions est vaste; il se déploie entre les deux pôles de l’application servile et de la déviance calculée, en passant par tous les degrés de la «déformation réglée» (1988. Temps et Récit, I. Paris: Seuil. 108). As Novas Cartas constituem um singular processo, a várias mãos e a várias vozes, de proceder a essa deformação regulamentada.

Em primeiro lugar, as cartas da freira são cinco, as das três Marias são nove. Aliás, a mais tardia aparece designada por «carta última», nada autorizando a que se afirme serem de facto nove, uma vez que no conjunto subordinado à oitava só existem duas - mas, dado que na assimetria referida no parágrafo anterior, nunca o número de cartas de cada conjunto excede as três (embora lhe seja por vezes inferior), e sendo a «carta última» constituída por duas «primeiras» (uma, 1, e a outra, cont.), poderá colocar-se essa hipótese. Além disso, cada carta (ou conjunto) é constituída, nas Novas Cartas, por três cartas, da autoria de cada uma das autoras, supõe-se - e, pelo menos, no primeiro conjunto de três, o protocolo geral dos «incipits» literários justifica a inferência de que são as três que escrevem, cada uma por sua vez. Só os três primeiros grupos são rigorosamente triádicos (embora não simétricos: os estilos não são sempre idênticos em 1, 2 e 3, respectivamente) e, a partir da carta IV, a sua terceira só irá aparecer muito adiante, após duas cartas do grupo VI, onde aliás a segunda se intitula «carta parva» (e é um poema, e no caso não uma contrafacção de Soror Mariana, como algumas das outras, e dirige-se às co-autoras ou co-narradoras), iniciando-se assim um sistema de dilações, e constituindo a carta VII uma só, que consiste numa espécie de «meta-epístola», que questiona «o lugar disto, deste trabalho e deste encontro».

Por outro lado, as cartas são entremeadas de poemas e textos de carácter diverso, alguns de tipo apócrifo, outros resolutamente ancorados no quotidiano circundante das escritoras; e a partir, justamente da «carta parva» e da «meta-epístola» (ou mais ou menos, seria interessante verificar esta ideia ou acertá-la), o livro começa a desinteressar-se das contrafacções e paráfrases de Soror Mariana, as cartas tornam-se progressivamente mais raras, e o que predomina são textos de carácter diverso, poemas, redacções, fragmentos de tipo ensaístico, composições de género vário; umas com títulos, outras não, umas organizadas tematicamente, outras consistindo em errâncias de escrita que circunscrevem a problemática geral, ou sua análoga, num universo poético lato.

Acresce que, no início do livro, o «concerto» a três vozes aparece, não obstante a assimetria que observámos, relativamente regrado e organizado: a literatura é definida como «uma longa carta» (1), e o livro como uma «paixão comum de exercícios diferentes, ou exercício comum de paixões diferentes»; «o amor no seu jogo através do contentamento» centra a segunda carta do primeiro grupo (2) e na terceira propõe-se a «cláusula» do texto como uma «desclausura» (3), iniciando o jogo temático de Mariana com a geral opressão feminina. A temática diversa da questão da mulher vai-se progressivamente tecendo ao longo dos textos seguintes, e teria sido um valioso contributo de Editor um índice que nos facultasse a tábua de todos os textos incluídos, com os títulos correspondentes, o que contribuiria para uma verificação mais acessível das regulações de alternância das partes respectivas, assim como do jogo das assimetrias verificado. O que é interessante, porém, é que, a partir de certa altura, a intenção paródica (que vive muito de uma distensão discursiva e afectiva entre as co-autoras) adquire um efeito de tensão que provoca um certo «desconcerto» entre as vozes, e até uma certa contenda que explicita diversidades mais acentuadas. Essa contenda, que na primeira parte do livro, «grosso modo», se exara na dramatismo desenvolvido pela vida de Mariana e seus relativos e descendentes, enquanto conhecimento reportado ou efabulativo do passado, acaba por não se resolver, o que é interessante, uma vez que a concepção do passado histórico na literatura o eterniza de certo modo, apenas lhe conferindo a problemática diversificada da interpretação: «Because we believe the past is over and done with, we do not think it is imitable or repeatable, although we do believe we are able to investigate the over-and-done-with past with some degree of accuracy. We insist that we are not likeour forefathers but that to some extend we can come to know them in their otherness» (1993. Janet Coleman, «The Uses of the Past», Cultural Participation, ed. Ann Rigney and Douwe Fokkema. Amsterdam: Benjamins. 22). Mas aqui, nas Novas Cartas, Mariana imprime a contenda no seio da própria legitimidade que ela conferiu à emancipação (passiva e sofredora, mas concreta e verbalizada) do

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sentimento feminino, e contribui para que as vozes diversas exibam a sua oposição e discordância. Que elas sejam manifestas neste texto, poderá ser motivo de suspeição quanto à falência do projecto, por parte de alguns leitores, porém do ponto de vista literário essa diversificação de caminhos só enriquece a densidade ideológica e o hibridismo formal do livro, conferindo-lhe uma novidade que a literatura actual adopta e constantemente desenvolve.

Deste modo, o texto parte de uma paráfrase criativa da história literária mas acaba por fundar decisivamente a sua própria temporalidade; e, curiosamente, a sua inscrição histórica consiste nomeadamente no facto de que, hoje em dia, e com o conhecimento que temos da obra das três escritoras, é mesmo possível e interessante identificar a maioria dos respectivos textos, através de marcas enunciativas, temáticas, estilísticas e ideológicas que se lhes tornaram próprias.

Em jeito de conclusão, chamaria a atenção para o facto de que esta dimensão histórica do texto lhe confere uma actualidade dada pela configuração própria que ela entreteceu, de forma viva e actuante, com o quotidiano que foi o seu, e que esta actualidade segunda nos leva a repensar certas modalidades de escrita contemporâneas e o modo de religação da literatura à circunstância efectiva. O que não é despiciendo, se considerarmos os problemas sociais de hoje, e a capacidade cada vez maior da literatura para fazer emergir o seu sentido, restringida embora pela ocultação social que a rodeia ou, mesmo quando a sublinha ou enfatiza, elide ou desvia o seu alcance e a sua intensidade.

Soror Mariana Alcoforado (1640-1723) nasceu e faleceu em Beja. Era uma religiosa que professou no Convento da Conceição em Beja, tendo sido escrivã e vigária do mesmo convento. Foi-lhe atribuída a autoria das Lettres Portugaises, publicadas em Paris em 1669 por Claude Barbin. No mesmo ano são publicadas em Colónia com o título Lettres d'amour d'une religieuse portugaise. Nesta última edição, uma nota informa que as cartas foram dirigidas ao cavaleiro de Chamilly e tinham sido traduzidas para francês por Guilleragues. Boissonade faz saber em 1810 que encontrou um manuscrito das cartas que indica que a autora das mesmas se chamava «Mariana Alcaforada, religiosa em Beja». Os investigadores actuais duvidam, no entanto, da atribuição desta autoria. As cartas tiveram várias traduções para português, sendo a última de Eugénio de Andrade (Lisboa, Assírio Alvim, 1993).